Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
533/20.2T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR ESPECIFICADA
ENTREGA JUDICIAL DO BEM LOCADO
PRESSUPOSTOS
IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP20220127533/20.2T8FLG.P1
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Define-se como contrato de locação financeira o contrato pelo qual uma das partes adquire, por indicação de outra, um bem (móvel, imóvel ou estabelecimento), para ceder temporariamente a esta o gozo do mesmo, mediante a prestação de uma determinada quantia em dinheiro com a faculdade da parte que frui o bem poder adquirir o mesmo no termo do contrato.
II - São pressupostos do decretamento da providência cautelar especificada de entrega judicial de bem locado, nos termos do artigo 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24.06, com base na resolução do contrato de locação financeira: o termo desse contrato por resolução do mesmo, a falta de restituição do bem locado ao locador, e o pedido de cancelamento do registo desse contrato.
III - Segundo o disposto no artigo 783.º do CC, se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere (n.º 1), não podendo, porém, designar contra a vontade do credor uma dívida que ainda não esteja vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor; e também não lhe é lícito designar contra a vontade do credor uma dívida de montante superior ao da prestação efectuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial (n.º 2).
IV - Quando o devedor não faça a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data (n.º 1) e não sendo possível aplicar as regras fixadas no número precedente, a prestação presumir-se-á feita por conta de todas as dívidas, de forma rateada, mesmo com prejuízo, neste caso, do disposto no artigo 763º, nº2) (cf. artigo 784.º do CC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 533/20.2T8FLG.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Felgueiras
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço


Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório:
Banco ..., pessoa colectiva n.º ..., com sede na Rua ... Lisboa, veio requerer contra a requerida P... Unipessoal Lda., pessoa colectiva n.º ..., o presente procedimento cautelar de entrega judicial de bem imóvel locado, nos termos do art.21.º do DL 149/95 de 24 de Junho, do prédio melhor descrito na certidão predial junta com o requerimento inicial.
Para tanto e em síntese alegou o seguinte:
No exercício da sua actividade comercial, celebrou com a Requerida, em 28.07.2016, um contrato de contrato de locação financeira imobiliária (n.º .........-.) de um prédio urbano em regime de propriedade total, composto por edifício de dois pisos com logradouro, sito em ..., confrontando a norte, sul e nascente, com AA, a poente, com estrada municipal, da freguesia ..., concelho de Felgueiras, descrito na CRP de Felgueiras sob o artigo ..... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....., cuja utilização facultou a esta mediante o pagamento de 180 rendas mensais, antecipadas e indexadas, sendo o valor de cada uma variável de acordo as condições financeiras aprovadas e actualizado de acordo com a variação da taxa indexante;
Face ao incumprimento por parte da Requerida, do pagamento das rendas, resolveu o contrato.
Pese embora as insistências nesse sentido, a Requerida não restituiu o imóvel livre de pessoas e bens, sua propriedade.
Concluiu pedindo que seja ordenada a entrega imediata do bem imóvel locado, antecipado o juízo sobre a causa principal e, bem assim, que a Requerida seja condenada no pagamento das custas e demais encargos.
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Regularmente citada, veio a Requerida oferecer a sua oposição nos termos que dela melhor constam e que, aqui, e por brevidade, damos por reproduzidos e onde conclui pela improcedência do procedimento cautelar instaurado.
Teve lugar a realização da audiência de julgamento, com respeito pelas formalidades legais no culminar da qual foi proferida decisão que julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Requerida do pedido formulado.
A Requerente veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
A Requerida contra alegou.
Foi proferido despacho onde se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do presente recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela requerente/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
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Por seu turno a requerida/apelada conclui do seguinte modo as suas contra alegações:
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Perante o antes exposto, resulta claro serem as seguintes as questões que sustenta o presente recurso:
1ª) A licitude/ilicitude da resolução do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre a Requerente e a Requerida
2ª) A procedência/improcedência do procedimento cautelar de entrega judicial de bem imóvel aqui instaurado.
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Como ficou já visto, no recurso dos autos não vem impugnada a decisão de facto antes proferida.
Por ser assim importa, sem mais, recordar aqui qual o seu conteúdo e que é o seguinte:
“Dos elementos recolhidos nos autos resultam indiciariamente demonstrados os seguintes factos com interesse para a decisão:
1. A Requerente é uma instituição que tem por objecto social, entre outras actividades, a locação financeira de acordo com a legislação que regulamenta tal actividade.
2. No exercício de tal actividade, a Requerente celebrou com a Requerida, a 28.07.2016, um contrato de locação financeira imobiliária, ao qual foi atribuído o n.º .........-..
3. O referido contrato teve por objecto o prédio urbano em regime de propriedade total, composto por edifício de dois pisos com logradouro, sito em ..., confrontando a norte, sul e nascente, com AA, a poente, com estrada municipal, da freguesia ..., concelho de Felgueiras, descrito na CRP de Felgueiras sob o artigo ..... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ......
4. Nos termos do referido contrato, a Requerente obrigou-se o prédio referido em 3. e a cedê-lo à Requerida para seu gozo e utilização.
5. A cláusula 15.ª do contrato referido em 2., sob a epígrafe “Incumprimento Contratual e Resolução do Contrato), dispõe o seguinte: “1. O presente contrato poderá ser resolvido por qualquer das partes com fundamento no incumprimento das obrigações que à outra parte assistem. 2. Sem prejuízo dos restantes direitos previstos na lei em caso de incumprimento ou mora do locatário e dos restantes casos de resolução e caducidade fixados no presente contrato, pode o mesmo ser resolvido, pela locadora nos seguintes casos: a) em caso de incumprimento de quaisquer obrigações do locatário se este, interpelado para cumprir, o não fizer no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da referida interpelação. (…) 3. A resolução, efectivada ao abrigo dos números anteriores, será comunicada à outra parte por carta registada com aviso de recepção. (…).
6. A cláusula 20.ª do contrato referido em 2., sob a epígrafe “Comunicações”, dispõe o seguinte: “As comunicações que, nos termos legais, a locadora deva obrigatoriamente remeter ao locatário em formato de papel, serão enviadas, por meio de carta simples e sem aviso de recepção, para os endereços por este indicados no contrato (…) o qual, para efeitos das referidas comunicações, incluindo citação ou notificação judicial, se considera ser o domicílio convencionado.”
7. A aquisição do prédio referido em 3. encontra-se registada a favor da Requerente pela apresentação ... de 2008.09.08.
8. Nos termos do contrato referido em 2., e como contrapartida pelo gozo e fruição do prédio referido em 3., a Requerida assumiu a obrigação de pagar à Requerente 180 prestações mensais, antecipadas e indexadas, sendo o valor de cada uma variável de acordo as condições financeiras aprovadas e actualizado de acordo com a variação da taxa indexante.
9. A Requerida apresentou, em Fevereiro de 2019, um Processo Especial de Revitalização, no âmbito do qual a aqui Requerente apresentou reclamação de créditos, tendo reclamado, relativamente ao contrato referido em 2., o montante de 1.601,68 euros, correspondente às 30.ª e 31.ª rendas (rendas de Janeiro e Fevereiro de 2019), já vencidas, juros e comissões.
10. A Requerida apresentou um plano, que veio a ser aprovado e homologado por sentença datada de 12.07.2019, tendo ficado determinado que os pagamentos nele previstos deveriam ter lugar aquando do trânsito da decisão, ocorrido em 30.07.20197
11. De acordo com tal plano, e à data do início dos pagamentos previstos no mesmo, o valor devido pela Requerida à Requerente, relativo ao contrato referido em 2., ascendia ao montante de 6.034,16 euros.
12. Tal plano abrangia igualmente os pagamentos devidos pela Requerida em cumprimento de um contrato de mútuo com fiança ao qual foi atribuído o n.º .........-..
13. A Requerente enviou à Requerida, carta datada de 05.11.2019, e endereçada para a sede da Requerida mencionada no proémio do acordo identificado em 2., cujo teor é o seguinte: “Exmos. Senhores, Relativamente ao contrato de locação financeira identificado em epígrafe, constituíram-se V. Exas., em incumprimento, por não terem procedido ao pagamento das rendas e juros vencidos, no montante de €6.178,89 (…) Nos termos contratuais fica V.Exa. interpelada pela presente, para proceder à regularização dos montantes em dívida no prazo máximo de 60 (sessenta) dias. O incumprimento tornar-se-á definitivo caso V.Exas. não procedam ao pagamento da dívida, do prazo supra indicado, repondo a situação que se verificaria se não tivesse havido incumprimento, com as consequências daí resultantes.”
14. Aquando do envio da carta referida em 12., encontrava-se igualmente por liquidar o valor devido, nos termos do PER, relativamente ao contrato de mútuo com fiança ao qual foi atribuído o n.º .........-., contrato que foi resolvido pela Requerente nos mesmos termos referidos em 13.
15. Aquando do envio da carta referida em 12., o saldo devedor total, relativamente ao contrato referido em 2., correspondia a 87.508,36 euros, e relativamente ao contrato de mútuo com fiança ao qual foi atribuído o n.º .........-.., correspondia a 45.148,04 euros.
16. A Requerente enviou à Requerida, carta datada de 16.01.2020, cujo teor é o seguinte: “Exmos. Senhores, Considerando que continua por regularizar o contrato de locação financeira acima referido, vimos, por este meio, notificar V.Exa. da resolução do mesmo, nos termos e para os efeitos do disposto na cláusula 15.ª das Cláusulas Gerais do supra identificado contrato. Em consequência da resolução do contrato, devem V.Exas. restituir-nos o imóvel locado (…) Devem ainda V. Exas. Proceder ao pagamento da quantia de €27.606,59 (…)”.
17. À data do envio da carta referido no n.º anterior, a Requerida, relativamente ao contrato referido em 2., encontrava-se por liquidar o valor de 4.954,30 euros.
18. A Requerida liquidou, junto da Requerente, através de débitos em conta, os seguintes valores:
a) 08.10.2019: 3.000 euros;
b) 20.11.2019: 860,30 euros; 854,67 euros; 485,50 euros
c) 29.11.2019: 364,43 euros; 282,98 euros; 37,02 euros; 315,57 euros;
d) 09.12.2019: 353,26 euros;
e) 27.12.2019: 495,70 euros; 470, 87 euros; 37,02 euros; 280,54 euros;
f) 10.01.2020: 847,39 euros; 226,16 euros; 292,60 euros;
g) 13.01.2020: 493,19 euros; 37,02 euros; 781,40 euros; 37,02 euros; 798,84 euros; 37,02 euros; 36,89 euros.
Total: 11.425,39 euros
19. Dos valores referidos em 18., o montante de 7.164,14 euros foi alocado, pela Requerente, ao cumprimento das obrigações relativas ao contrato referido em 2. e o valor de 4.261,25 euros ao cumprimento das obrigações relativas ao contrato referido em 12.
20. O prédio referido em 1. não foi restituído à Requerente.
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Factos não provados:
a) A Requerida não recebeu a carta referida em 13.
b) A Requerida sempre deu instruções ao Balcão da sua conta (...) para que todos os valores depositados ou transferidos para a referida conta fossem alocados ao contrato mencionado em 2.
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Não se lograram provar quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa sendo certo que, no mais, os articulados continham matéria irrelevante, conclusiva ou de direito.
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Ficou já visto por todos que na sentença recorrida foi entendido não ser lícita a resolução do contrato de locação financeira em apreço nos autos operada pela requerente Banco ....
E tal entendimento é o correcto como já de seguida verificaremos.
Resta agora apreciar, dada, desde logo, a posição assumida pela Requerida, se a resolução do contrato, enquanto pressuposto, alicerce ou fundamento da providência de entrega judicial requerida, se mostra lícita o que, se afirmado, permite concluir pela bondade da pretensão cautelar.
Vejamos.
Segundo o disposto no nº1 do art.º 17º do D.L. nº149/95 de 24.06, o “contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes de lei civil, relativas à locação”.
De acordo com o disposto nº nº1 do art.º 342º do Código Civil, “é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção”.
A propósito de tal norma, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª edição revista e actualizada, a pág. 359, que “ao lado da resolução legal, como por exemplo, nos casos de não cumprimento da obrigação, impossibilidade do cumprimento ou alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar (cfr. arts. 801º, nº2, 802º, 808º e 437º), em que o direito é conferido por uma das partes, admite este artigo que, por convenção, se atribua a uma ou ambas as partes o direito de resolver o contrato.
Esta convenção pode coincidir com o próprio contrato. Normalmente é mesmo uma cláusula dele. Mas nada impede que seja objecto de um acordo posterior."
Quanto às condições e ao momento em que se efectiva a resolução, dispõe o do seguinte modo o nº1 do art.º436º do CC: “A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte.”
Segundo os supra referidos autores, obra citada, a pág. 362, “A resolução pode fazer-se por acordo, mesmo que o direito tenha sido conferido apenas a uma das partes. Pode fazer-se judicialmente, se houver conflito entre os contraentes e um deles negar ao outro o direito de resolução. E pode fazer-se por declaração à parte contrária. Esta declaração tem interesse, porque marca o momento da resolução, mesmo que haja necessidade, posteriormente, de obter a declaração judicial de que o acto foi legalmente resolvido.”
Regressando à situação em apreço nos autos o que se verifica é o seguinte:
Tal como decorre do estipulado na cláusula 15.ª do contrato em apreço (cf. facto provado 5), é fundamento de resolução do contrato antes melhor identificado, o incumprimento das obrigações que à outra parte assistem, mais se estabelecendo que, em caso de mora do locatário, pode o contrato ser resolvido se o locatário, interpelado para cumprir, o não fizer no prazo de 60 dias a contar da referida interpelação.
Segundo o que ficou consignado e bem na sentença recorrida, “tais estipulações contratuais acolhem, a final, a previsão legal constante do art.808.º n.º 1 CC, e que se reconduz à modalidade de incumprimento definitivo decorrente da conversão da mora em incumprimento definitivo após o decurso do prazo estipulado na interpelação admonitória sem que o devedor cumpra no prazo concedido (art.º 808.º n.º 1 do CC).”
Ora segundo tal artigo, “o credor não pode, em princípio, resolver o negócio em consequência da mora do devedor. O que pode é exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos. O direito potestativo de resolução só é concedido no caso de impossibilidade culposa (cfr. art.º 801º).
(…)
Independentemente da perda do interesse do credor, a lei permite que este, no caso de mora, fixe ao devedor um prazo razoável para cumprir, sob pena, igualmente, de se considerar impossível o cumprimento” (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, Volume II, pág. 60/61).
O que cabe agora é pois aplicar regras ao caso concreto por forma a concluir pela validade ou invalidade da resolução do contrato, operada pela requerente aqui apelante Banco ....
Vejamos, pois.
Tem desde logo razão o Tribunal “a quo” quando defende que a carta de interpelação foi enviada para o endereço correcto por ser este o domicílio convencionado pelas partes no contrato dos autos (cf. a respectiva cláusula 20.ª) e ao assim concluir que atento o disposto no nº2 do art.º 224.º do CC, se deve considerar a interpelação em apreço como eficazmente realizada, atento nomeadamente o disposto no art.º 436º do Código Civil.
A ser deste modo o que importa saber é se no momento em que foi enviada à requerida/apelada a carta melhor identifica no ponto 16 dos factos provados, se encontravam verificados todos os pressupostos exigidos para a resolução do contrato.
Ora, por forma do que decorre do contido no ponto 13), está provado que quando foi envida a carta de interpelação, contendo a admonição exigida, o valor que se encontrava em mora ascendia à quantia de 6.178,89 €.
Tem por outro lado razão o Tribunal “a quo” quando tendo em conta o plano financeiro junto pela Requerida com a oposição, refere que considerando a data da carta de interpelação e a data da carta de resolução, é de concluir que, no lapso de tempo decorrido entre estas datas, se venceram as prestações nº 40, 41 e 42 (vencidas a 15.11.2019, 15.12.2019 e 15.01.2020, respectivamente), no valor total de 2.264,91€ (754,97 euros x 3).
A ser assim, também para nós era de 8.443,80€ o montante a liquidar pela Requerida, no prazo que lhe foi concedido, para impedir a conversão da mora em incumprimento definitivo.
Como decorre da decisão recorrida, parte dos montantes pagos pela requerida/apelada à requerente/apelante foram afectos por esta última ao cumprimento das obrigações relativas a um outro contrato celebrado entre as partes (a saber, um contrato de mútuo com fiança).
Sabe-se, igualmente que também neste último contrato se verificava a mora da requerida aqui apelada, sendo evidente que por força da afectação dos montantes liquidados ora a um ora a outro destes dois contratos, ambos viessem, posteriormente, a ser resolvidos pela requerente/apelante.
E isto por ser claro que os pagamentos realizados (7.164,14€ para o contrato identificado em 2) e 4.261,25€ para o contrato identificado em 12), se mostravam insuficientes para a liquidação integral de ambos os contratos (cf. o provado no ponto 19).
Perante tal circunstancialismo o que importa agora saber é se tais imputações devem ser consideradas válidas.
Ora resulta desde logo indiscutível o seguinte:
Na hipótese de todos os valores liquidados pela requerida/apelada terem sido imputados ao pagamento das quantias correspondentes ao contrato de locação melhor identificado em 2) dos factos provados, a correspondente obrigação teria sido integralmente satisfeita e, consequentemente, não haveria fundamento para a resolução operada pela requerente aqui apelante, nos termos sobreditos.
Segundo o entendimento do Tribunal “a quo”, não se apurou que as partes tenham definido critério de imputação e a ser assim impunha-se recorrer no caso concreto aos critérios supletivos previstos nos artigos 784º e 785º do CC, segundo os quais, a imputação das aludidas quantias, devia ter sido feita em primeiro lugar, aos juros, e depois às dívidas mais onerosas.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, a pág. 31, “a ordem estabelecida no novo Código, em termos supletivos, tem a seguinte justificação.
Em primeiro lugar, imputa-se a prestação na dívida vencida. Não pode, de esto, imputar-se numa dívida ainda não vencida, mesmo com declaração do devedor neste sentido, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor (cfr. nº2 do artigo anterior).
Em segundo lugar, imputa-se a prestação na dívida que ofereça menor garantia para o credor. Se uma das dívidas. Por ex., goza de uma garantia especial e outra não, é esta que se extingue. Se uma tem a garanti-la uma hipoteca e outra uma fiança, é igualmente a segunda que se considera paga. Se uma está representada por uma letra de câmbio e outra não, também será esta última que se considera paga, não tendo havido nenhuma garantia especial.
Em terceiro lugar, presume-se que o devedor quer extinguir a dívida mais onerosa, O ónus avalia-se pela existência e pelo montante dos juros, pela cláusula penal, pelos maiores encargos da execução, etc.
Em quarto lugar, atende-se à data do vencimento.
Por último, considera-se relevante a data da constituição das obrigações.
Na jurisprudência, são importantes entre outros, os Acórdãos desta Relação do Porto de 14.12.2017, processo 2811/16.6T8OAZ.P1 e de 09.03.2021, processo 4408/14.6T8PRT-B.P1, ambos em www.dgsi.pt.
Assim e como consta no sumário do primeiro deles:
“Nos termos do artigo 783.º do CC, se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere (n.º 1), não podendo, porém, designar contra a vontade do credor uma dívida que ainda não esteja vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor; e também não lhe é lícito designar contra a vontade do credor uma dívida de montante superior ao da prestação efectuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial (n.º 2).
Quando o devedor não faça a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data (n.º 1) e não sendo possível aplicar as regras fixadas no número precedente, a prestação presumir-se-á feita por conta de todas as dívidas, rateadamente, mesmo com prejuízo, neste caso, do disposto no artigo 763.º, (n.º 2) – cf. artigo 784.º do CC.”
Já no segundo o que se faz constar, com importância para a questão em análise, foi o seguinte:
“Salvo o devido respeito por opinião contrária, o regime legal do Código Civil relativo à “Imputação do cumprimento”, Subsecção V, é claro nestas matérias. Deste modo, leia-se o nº 1 do artigo 785º que estatui: “quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.” E depois anote-se o já referenciado nº 2 que impõe o último lugar na imputação do capital.
Ora, sabe-se estar em causa nos autos uma dívida de capital e uma dívida de juros; portanto, estão em contenda dívidas de diferentes espécies às quais se aplica uma norma especial, a do artigo 785º, que não se confunde com quaisquer outras; sabe-se enfim não ter ocorrido acordo dos credores em sentido diferente ao preceituado, supletivamente, por esta citada norma.

Trata-se, pois, de aplicar este regime e não o dos artigos 783º e 784º que dizem respeito apenas a dívidas da mesma espécie e cujo âmbito se encontra excluído pelo artigo seguinte relativo expressamente a “dívidas de juros, despesas e indemnização.”
Regressando à decisão recorrida, o que na mesma foi feito constar foi o seguinte:
“Considerou-se ainda que sendo de aplicar tais critérios às quantias em dívida no âmbito do contrato de locação financeira em causa nos autos e às quantias em dívida no âmbito do contrato de mútuo com fiança (sem prejuízo dos montantes atinentes aos juros devidos neste último que, dado ao hiato de tempo em causa e valor integral das quantias pagas pela Requerida, não são de molde a beliscar o raciocínio - teremos que considerar que os valores liquidados pela Requerida deveriam ter sido, em primeiro lugar, afectos ao cumprimento das dívidas atinentes ao contrato de locação financeira por se tratar da dívida mais onerosa, onerosidade acrescida atento o valor em dívida – cfr. facto 15.
Neste particular, importa referir que o juízo de maior onerosidade apenas se mostrou possível nestes termos considerando o facto de estarmos na presença de contratos de natureza diferente (impedindo, por exemplo, a sua comparação, neste plano, por reporte a juros remuneratórios) que, de resto, se desconhece, nos seus precisos termos, quanto ao contrato de mútuo com fiança.
Tal raciocínio assentou ainda na ponderação das consequências do incumprimento, mais gravosas no caso do contrato de locação financeira, atento o seu objecto e penalizações contratuais.”
Impõe-se afirmar que, face às orientações doutrinais e jurisprudenciais antes referidas, nenhum reparo nos merecem tais considerações.
Sendo assim, também nós entendemos que a imputação do cumprimento não foi regularmente realizada e, não o tendo sido, cabe concluir pela ilicitude da resolução a que a mesma abriu conduziu.
Tem razão o Tribunal “a quo” quando afirma que tendo sido a imputação legalmente realizada a requerida aqui apelada teria, no que ao contrato de locação financeira respeita, assegurado o pagamento integral das quantias em dívidas no prazo admonitório concedido pela requerente/apelante.
Ora é consabido que são requisitos da providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo, conforme se extrai da letra do art.21.º do DL 149/95 de 24.06, (1) a existência de um contrato de locação financeira, (2) a sua resolução ou o seu termo sem que tenha sido exercido o direito de compra, (3) e a falta de restituição do bem locado.
Sabe-se, igualmente, que a criação desta providência pretendeu ir ao encontro dos interesses das locadoras financeiras em recuperar o bem locado com celeridade e evitar o prejuízo decorrente da desvalorização operada pela passagem do tempo e da impossibilidade de exploração do mesmo enquanto a sua detenção não é assegurada.
Por outro lado, o cancelamento do registo implica um condicionamento relevante para posterior comercialização do bem locado (pois enquanto perdura o registo da locação financeira, dificilmente outra comercialização ocorrerá).
No caso dos autos, dúvidas não existem de que a Requerente e a Requerida celebraram um contrato de locação financeira mediante o qual a primeira cedeu à segunda o gozo e utilização do prédio melhor identificado em 3) mediante o pagamento das rendas convencionadas que, na economia do contrato, representam as prestações a suportar pelo adiantamento do montante correspondente ao preço do bem locado.
Também não restam dúvidas que, não obstante a resolução operada pela Requerente, o imóvel locado não foi entregue
O que cabia agora apreciar, é pois se a resolução do contrato, enquanto pressuposto, alicerce ou fundamento da providência de entrega judicial requerida, se mostra lícita o que, se a resposta fosse afirmativa, permitiria concluir pela bondade da pretensão cautelar.
Todos aceitam que a providência cautelar especificada de entrega judicial de bem locado, se destina a solucionar situações de periculum in mora relacionadas com o incumprimento de obrigações do locatário emergentes de contratos de locação financeira, colocando na disponibilidade das partes um factor de eficiência e de celeridade destinado a evitar o arrastamento de situações litigiosas e os correspondentes prejuízos económicos derivados de situação de imobilização de bens.
Como refere A. Abrantes Geraldes, “ (…) não pode ainda ignorar-se a especial natureza deste contrato do qual resulta apenas a transferência do gozo e fruição do bem locado, assim se compreendendo que tenha sido conferido ao locador o direito de reclamar a sua entrega imediata e a faculdade de o recolocar no mercado, a fim de evitar a degradação e a desvalorização que poderiam resultar da sua entrega a um fiel depositário ou da sua imobilização durante o período, por vezes longo, da pendência da acção principal” (cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil”, Procedimentos Cautelares Especificados, IV vol., 4ª ed., Almedina, págs. 339 e 340).
Ora o artigo 21º, nº1, do Decreto-Lei nº 149/95, de 24.06, faculta precisamente o recurso à providência cautelar especificada regulada no referido normativo em caso de resolução do contrato de locação financeira.
Como resulta da matéria de facto que aqui esta dada como provada, resultou demonstrado que, nos termos da cláusula 15ª, nº2, alínea a) do contrato melhor identificado em 2) dos factos provados, sob a epígrafe “Incumprimento Contratual e Resolução do Contrato”, ficou estipulado que tal contrato poderia ser resolvido por iniciativa da locadora em caso de incumprimento de quaisquer obrigações do locatário se este, interpelado para cumprir, o não fizer no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da referida interpelação.
Ficou já visto que não lícita a resolução operada pela locadora aqui apelante.
E a ser assim, não está verificado um dos pressupostos da providência que a mesma aqui veio requerer.
Por isso, bem decidiu o Tribunal “a quo” quando julgou improcedente o presente procedimento cautelar e, em consequência absolveu a requerida P... Unipessoal Lda. do pedido contra si formulado pela requerente Banco ....
Concluindo, não merecem ser acolhidos os argumentos que sustentam o presente recurso.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo da requerente/apelante (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 27 de Janeiro de 2022
Carlos Portela
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço