Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15993/22.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
CRÉDITO SUPERVENIENTE
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RP2023100915993/22.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Extinta a sociedade comercial, as situações jurídicas donde emerjam bens e direitos cuja existência seria da titularidade desta, e que não foram tidos em conta na partilha antes da extinção, são atribuídas aos seus antigos sócios.
II - Para se operar a qualificação como “crédito superveniente”, para os efeitos do disposto no artigo 164º do Código das Sociedades Comerciais, o que releva não é a data da constituição do crédito, ou dos factos que estão na origem do direito que se vem reclamar, mas tão-somente que no património da extinta sociedade existia esse direito e não foi exercido até ao encerramento da liquidação, podendo após a extinção da sociedade ser exercido pelo liquidatário ou os sócios.
III - A legitimidade ativa para a causa tem subjacente o interesse em demandar que se exprime pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, tendo-se em consideração o pedido e a causa de pedir nos termos em que são por ele configurados.
IV- Assim, invocando a autora ter adquirido aos (antigos) sócios da extinta sociedade um direito de crédito sobre terceiro que não foi alvo de partilha aquando da sua liquidação, não pode deixar de se lhe reconhecer legitimidade processual para demandar o responsável pela satisfação desse mesmo crédito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 15993/22.9T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo Central Cível, Juiz 4
Relator: Miguel Baldaia Morais
1ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
2ª Adjunta Desª. Eugénia Marinho da Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

“A..., Ldª” intentou a presente ação declarativa em processo comum contra AA, na qual conclui pedindo a condenação desta, na qualidade de única herdeira e interessada nas heranças abertas por óbito de BB e CC, a indemnizá-la no valor de €159.989,64, acrescido de juros de mora a contar da citação, sobre €133.324,70, à taxa anual de 4%.
Para substanciar tal pretensão alega que:
- Por escritura pública de .../.../2007, os progenitores da Ré (entretanto falecidos) venderam à sociedade comercial com a firma “B..., S.A.”, pelo preço de €390.000,00, o prédio rústico denominado “Monte ...”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo, sob o nº ...24, de ..., inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o art. ...66;
- A aquisição do direito de propriedade desse prédio rústico está atualmente registada a favor da A., pela apresentação nº 499, de 19 de maio de 2010, aquisição essa que foi realizada por entrada no capital social da A., por parte da citada sociedade B..., S.A.;
- Esse imóvel confina a nascente e a poente com o prédio rústico, também denominado “Monte ...”, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...98 – ... e inscrito na matriz sob o art. ...67º, pertencente atualmente a “C..., Lda.”;
- Nas estremas desses dois prédios rústicos existe uma parcela de terreno com a área de 90.934 m2 que a Autora e a referida “C..., Lda.” entendiam estar integrada nas respetivas e aludidas descrições prediais e inscrições matriciais;
- Esta questão foi dirimida no Proc. 9779/19.5T8PRT, que correu termos no Juiz 1 do Juízo Central Cível do Porto, tendo aí sido decidido (decisão que transitou em julgado em 21 de junho de 2021) que a referida parcela de 90.934 m2 fazia parte integrante do prédio inscrito na matriz sob o art. ...67º, cujo direito de propriedade pertence à referida “C..., Lda.”;
- O preço de €390.000,00 que a “B..., S.A.” pagou a BB e mulher teve em conta a área de 266.000 m2, à razão de €1,46617 por m2;
- Mercê da decisão proferida no citado processo nº 9779/19.5T8PRT, os referidos progenitores da Ré apenas transmitiram validamente o direito de propriedade do prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ...66º com a área de 175.066 m2;
- O que determina que a citada “B..., S.A.” tenha direito à redução do preço em valor correspondente a €133.324,70;
- Tendo a “B..., S.A.” entregado o citado prédio rústico inscrito na matriz sob o art. ...66º, para realização em espécie da sua entrada no capital social da A., esta ficou prejudicada com a diminuição da área daquele prédio urbano integrante no seu acervo imobiliário;
- A “B..., S.A.” foi dissolvida em 17 de novembro de 2011;
- Para compensar esse prejuízo sem alteração das participações no capital social, os sócios/liquidatários da “B..., S.A.” cederam o crédito que esta tem sobre a Ré (enquanto única herdeira da herança de seus falecidos pais) à “D..., S.A.”, que, por sua vez, o cedeu à Autora.
Citada a ré apresentou contestação na qual se defende por exceção dilatória, argumentando que a autora carece de legitimidade processual para a ação, já que os liquidatários da sociedade “B..., S.A.”, tendo terminado funções, não poderiam ter realizado o contrato de cessão de créditos que formalizaram com a “D..., S.A.” e a demandante. Defende-se ainda por exceção perentória, advogando encontrar-se caduco o reclamado direito à redução do preço da venda do ajuizado imóvel.
Respondeu a autora pugnando pela sua legitimidade para a lide, posto que a cessão de créditos realizada pelos liquidatários da sociedade “B..., S.A.” é permitida pelo disposto nos arts. 151º, nº 8 e 164º, nº 2, ambos do Cód. das Sociedades Comerciais; pugna igualmente pela improcedência da invocada exceção da caducidade.
Conclusos os autos foi proferida a seguinte decisão:
«Vem a Ré alegar a ilegitimidade ativa da autora (…).
Com interesse para a decisão da exceção considera-se assente a seguinte matéria:
1- Por escritura pública celebrada em 14 de setembro de 2022 DD e EE, enquanto liquidatários da sociedade “B..., SA” declararam ceder a “D..., SA” que, por sua vez, declarou ceder à autora o crédito descrito na respetiva escritura pública;
2- A sociedade B..., SA foi declarada extinta em 17.08.2011, tendo sido registado a dissolução e encerramento da sociedade pela Insc 3-Ap. ...17;
3- No dia 08 de Agosto de 2011 foi aprovada por unanimidade a liquidação e encerramento da sociedade B..., SA, tendo ficado a constar da acta que depois da partilha a sociedade não tem activo nem passivo nem aprovação de contas.
Cumpre apreciar:
Cabe apreciar nos autos se a Autora “A..., Ldª tem legitimidade e direito, enquanto cessionária, a vir pedir em juízo a quantia de €133.324,70 respeitante a um crédito sobre as heranças abertas por óbito dos progenitores da Ré ( BB e CC) , uma vez que é titular de direito de crédito sobre a Ré, e a sociedade “B..., SA” (alegada titular do crédito) já se mostrava extinta à data em que terá cedido o crédito à sociedade “D..., SA” que, por sua vez , na mesma data cedeu o crédito à ora autora.
Na acta em que a sociedade “B..., SA” deliberou requerer a extinção imediata da sociedade, foi declarado, que “depois da partilha não existe ativo ou passivo a liquidar” e “que consideram a sociedade dissolvida e liquidada, isto em 08 de agosto de 2011”.
Ora, ao declararem que inexiste ativo produziram uma renúncia abdicativa ao crédito agora invocado pela autora como cedido.
Neste sentido foi decidido no Acórdão da Relação do Porto de 19.10.2015, proferido no processo 122702/13.5YIPRT.P1 (11) (relator Oliveira Abreu), onde se fez constar que o sentido a conferir a uma declaração como aquela que aqui está em causa, produzida pelos sócios da sociedade B..., SA “afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da sua atividade societária. Através da declaração em apreço, a sociedade D…, Lda. renunciou aos créditos a que eventualmente ainda tivesse direito. É certo que o documento em causa nada diz, nem tinha que dizer, sublinhamos, atenta a natureza e particularidade do mesmo, quanto à aceitação por parte do aqui Réu (…), mas isso não significa que este não tenha dado a sua anuência à remissão de eventuais dívidas. Com efeito, reiteramos, o artº. 863º, do Código Civil não exige que o consentimento do devedor, a aceitação da proposta de acordo, seja manifestado por forma expressa, pelo que, a aceitação pode ser tácita e válida como tal, nos termos dos conjugados arts. 217º, e 219º do Código Civil. De resto, o Réu (…) ao invocar a remissão abdicativa, sustentando a renúncia da sociedade credora, cuja extinção imediata foi declarada por inexistência de ativo e passivo a liquidar, consubstancia inequívoca e válida aceitação tácita, considerada enquanto tal. Afigura-se-nos que estamos perante uma remissão abdicativa que, nos termos do citado artº. 863º, do Código Civil, fez extinguir a obrigação reclamada nos presentes autos”.
Conclui-se, pois, que “a declaração do sócio da sociedade declarada extinta, prestada no âmbito do procedimento instaurado ao abrigo do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (Anexo III do DL 76-A/2006 de 29 de março), qual seja, a inexistência de ativo e passivo a liquidar da sociedade, afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da sua atividade societária”.
Tendo a Autora invocado ser titular de um direito de crédito sobre a Ré por lhe ter sido cedido pela anterior credora, cabe-lhe demonstrar essa cessão de créditos.
No caso dos autos, demonstrando-se que a credora, encontra-se dissolvida e liquidada desde o ano de 2011, a cessão de créditos, entre aquela sociedade e a autora, tinha necessariamente de ser celebrada antes de tal data, e não o foi.
A declaração, prestada pelo sócio no âmbito do procedimento administrativo de extinção imediata da sociedade, de que “não existe ativo ou passivo a liquidar”, consubstancia renúncia a todos os créditos que possam emergir da atividade societária – uma remissão abdicativa.
E não se diga que cessão do crédito feita pelos liquidatários da sociedade B..., S.A. é permitida pelo disposto nos arts. 151º-8 e 164º-2 do C. S. Comerciais pois terminaram também as funções exercidas pelos liquidatários (sem prejuízo de posteriormente poderem intentar ações para cobrança de créditos supervenientes, nos termos dos arts. 151º, nº 8 e 164º, nºs 2 e 3 do Código das Sociedades Comerciais) sendo que este regime jurídico permite que os liquidatários possam regressar à sua atividade, mas condicionada estritamente aquela finalidade) , aqui completamente extravasada ( não está em causa passivo social não satisfeito ou acautelado).
Assim, uma vez que a autora não demonstra ser titular do direito que se arroga, resta concluir pela ilegitimidade ativa da mesma, conforme arguido pela Ré.
Nestes termos e face a todo o exposto supra, conhecendo a exceção dilatória que obsta ao conhecimento de mérito da causa, determina-se a absolvição da Ré da presente instância nos termos do n.º 2 do art.º 576º e art. 577º, do CPC».
Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1. Ao invés do decidido na douta sentença recorrida, a A., ora recorrente, tem legitimidade ativa na presente causa.
2. A cessão de crédito realizada na escritura pública junto à p.i. sob o doc. nº 12 é permitida pelo disposto nos artºs 151º-8 e 164º-2 do C. S. Comerciais e pelo consignado nos artºs 577º-1 e 581º-c) do C. Civil.
3. Está em causa um direito de crédito que apenas foi conhecido depois da sociedade B..., S.A. ter sido extinta, pelo que os liquidatários dela têm legitimidade para exercer os direitos relativos a esse crédito, incluindo o de o ceder em cumprimento de obrigações resultantes de negócios celebrados pela sociedade dissolvida, contraídos antes da dissolução com a ora recorrente.
4. Esse crédito advém da diminuição do valor de um prédio rústico que a referida B..., S.A. entregou à A., ora recorrente, para realização em espécie da sua participação no capital social desta.
5. A diminuição do valor do aludido prédio rústico resulta de uma decisão judicial proferida após a dissolução daquela B..., S.A..
6. Nessa decisão judicial foi declarado que o prédio rústico que os progenitores da Ré, ora recorrida, venderam à B..., S.A., tem uma área inferior à negociada, pelo que segundo o alegado na p.i., esta sociedade, atualmente dissolvida, tem um crédito de €133.324,70 sobre a referida Ré, ora recorrida, na qualidade de única herdeira dos referidos progenitores.
7. A referida diminuição do valor do prédio entregue para a realização em espécie da participação no capital social da A., ora recorrente, determina que esta tenha um direito de crédito sobre a sociedade dissolvida igual ao direito do crédito da B..., S.A. sobre a Ré, ora recorrida.
8. Para que a atual titular da metade da participação social que pertencia à sociedade dissolvida mantivesse essa proporção no capital social da A, ora recorrente, necessário se torna transferir para esta o montante de €133.324,70, através da cessão de crédito alegada nos autos.
9. Tendo em consideração que após a liquidação dessa sociedade apenas existe o referido direito de crédito sobre a Ré, ora recorrida, para se manter a referida proporção no capital social da sociedade que sucedeu à sociedade dissolvida, a cessão do crédito relatada nos autos constitui a forma mais rápida e ajustada, e, porventura, única.
10. Cessão de crédito que o disposto nos artºs 151º-8 e 164º-2 do C. S. Comerciais, conjugados com o consignado nos artºs 577º-1 e 581º-c) do C. Civil, permite aos liquidatários da sociedade dissolvida realizar, uma vez que a lei que permite o mais (cobrança do crédito à Ré, ora recorrida) permite o menos (cessão desse crédito à A., ora recorrente), aplicando-se o aforismo latino “A maiori ad minus”.
11. A interpretação autêntica do artº 162º do C. S. Comerciais consta do comentário de Raúl Ventura existente no volume intitulado “Dissolução e Liquidação de Sociedades”, de que se transcreve os seguintes trechos:
“(…) Seja qual for o momento em que um sistema jurídico coloque a extinção da sociedade e o termo da sua personalidade, pode acontecer que depois dele se verifique a necessidade de definir o destino de certas relações jurídicas que anteriormente tinham tido a sociedade como sujeito (…)
(…) pode suceder que, depois de extinta a sociedade, se descubra a existência de bens que a esta pertenciam e não foram partilhados, bens que tanto podem consistir em direitos reais como em direitos de crédito (…)”
12. É esta a doutrina que preside à norma do artº 164º do C. S. Comerciais, quanto ao crédito da sociedade dissolvida, conhecido depois de encerrada a liquidação, de onde resulta, designadamente do seu nº 2, a legitimidade ativa da A., ora recorrente, na qualidade de cessionária final dos direitos sobre o crédito superveniente daquela sociedade B..., S.A..
13. E isto porque nada impede a realização da cessão de crédito dos autos, tanto mais que se traduz no cumprimento do que é devido à cessionária, ora recorrente.
14. Daí que ao conhecer que a recorrente não demonstra ser titular do direito do crédito que se expressa na escritura pública de cessão dos direitos junta à p.i. sob o doc. nº 12, a douta sentença recorrida violou o disposto nos citados artºs 151º-8 e 164º-2 do C. S. Comerciais, bem como nos artºs 577º-1 e 581º-c) do C. Civil, também supra referidos.
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Notificada a ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a questão a decidir é a de saber de a autora detém, ou não, legitimidade processual para a presente ação.
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III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para efeito de decisão do objeto do presente litígio é a que dimana do antecedente relatório.
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IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se viu, na decisão sob censura foi a ré absolvida da instância por se ter considerado que a autora carece de legitimidade ativa para a propositura da presente ação, sendo que em sustentação desse juízo decisório o juiz a quo entendeu que «no caso dos autos, demonstrando-se que a credora [B..., S.A] se encontra dissolvida e liquidada desde o ano de 2011, a cessão de créditos entre a sociedade “B..., S.A.” e a autora tinha necessariamente de ser celebrada antes de tal data, e não o foi.
A declaração, prestada pelo sócio no âmbito do procedimento administrativo de extinção imediata da sociedade, de que “não existe ativo ou passivo a liquidar”, consubstancia renúncia a todos os créditos que possam emergir da atividade societária – uma remissão abdicativa (…). Assim, uma vez que a autora não demonstra ser titular do direito que se arroga, resta concluir pela sua ilegitimidade ativa».
A apelante insurge-se contra esse segmento decisório, argumentando ter legitimidade processual para demandar a ré, porquanto, no caso, «está em causa um direito de crédito que apenas foi conhecido depois da sociedade “B..., S.A.” ter sido extinta, pelo que os liquidatários dela têm legitimidade para exercer os direitos relativos a esse crédito, incluindo o de o ceder em cumprimento de obrigações resultantes de negócios celebrados pela sociedade dissolvida, contraídos antes da dissolução, com a recorrente».
Que dizer?
Como é consabido, a legitimidade em sentido processual (a lei emprega, por vezes, o termo legitimidade num outro sentido, dito material[1]) repre­senta, ao contrário do que ocorre com os demais pressupostos processuais subjetivos relativos às partes (personalidade, capacidade, patrocínio judiciários) - os quais assistem ou faltam à parte em todos os processos ou, pelo menos, num grande número de processos, sendo, portanto, qualidades processuais do sujeito em si - uma posição da parte em relação a certo processo em concreto, rectius, em relação a certo objeto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa. Portanto, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, é antes uma qualidade posicional da parte face à ação, apurando-se em função da titularidade dos interesses emergentes da relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor no momento da sua propositura.
Isso mesmo se encontra presentemente vertido em letra de forma no art. 30º, nºs 1 a 3 do Código de Processo Civil, nos termos do qual o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar (exprimindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da ação), enquanto o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer (o que se exprime pelo prejuízo que dessa procedência advenha), sendo, na falta de indicação da lei em contrário, considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (na petição inicial).
No caso vertente, a autora articula que, na sequência de contrato de cessão de créditos outorgado com os sócios/liquidatários da sociedade “B..., S.A.”, adquiriu um direito de crédito sobre as heranças abertas por óbito dos pais da ré (universal herdeira dos mesmos).
É certo que na data da formalização do aludido negócio translativo a sociedade “B..., S.A.” já se encontrava extinta o que, por princípio, implicaria que o passivo e o ativo estariam liquidados. No entanto, casos existem em que pode vir a ser “descoberta”, após a extinção, alguma relação jurídica que não haja sido objeto de liquidação e partilha.
É precisamente para esse tipo de situações que rege o regime estabelecido nos arts. 163º e 164º do Código das Sociedades Comerciais, sendo que, sob a epígrafe “Ativo superveniente”, preceitua o nº 1 deste último normativo que «[V]erificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie».
Malgrado a letra da lei apenas se refira a “bens”, mostram-se igualmente abrangidos pelo seu âmbito de previsão os direitos, não se exigindo que os mesmos se hajam constituído após a extinção da sociedade, bastando, como sublinha CAROLINA CUNHA[2], que «a sua “existência” seja “verificada” após essa extinção». Assim, para efeitos de se operar a qualificação como “crédito superveniente”, nos termos do citado art. 164º, o que releva não é a data da constituição do crédito, ou dos factos que estão na origem do direito que se vem reclamar, mas tão-somente que no património da extinta sociedade existia esse direito e não foi exercido até ao encerramento da liquidação, podendo após a extinção da sociedade ser exercido pelo liquidatário ou os sócios.
Deste modo, ao invés do que se afirma no ato decisório sob censura, extinto o ente societário tal não implica a inviabilidade de exigência de satisfação de direito creditório de que aquele fosse titular, sendo que, nessas circunstâncias, o inciso normativo transcrito atribui a titularidade dessa situação jurídica ativa ao conjunto dos antigos sócios, em termos que sejam compatíveis com o estado de indivisão. É que, como escreve RAÚL VENTURA[3] precisamente por que esses bens [ou direitos] não foram partilhados, não pode pensar-se em titularidade individual de cada sócio, sendo forçoso que sobre eles fiquem existindo direitos compatíveis com a indivisão. Assim, tratando-se de direito de propriedade, haverá uma compropriedade; tratando-se de direitos de crédito, haverá uma contitularidade».
Portanto, na presença de uma situação jurídica ativa surgida após a extinção da sociedade titular da mesma, haverá que proceder-se à partilha ou divisão entre os (antigos) sócios que podem ou não dispensar a intervenção do liquidatário (que, em caso de intervenção, atua já não como órgão da sociedade, mas antes como representante legal da generalidade dos sócios), sendo que nesse ato divisório não está excluída a possibilidade de, por acordo unânime[4], cederem o seu direito a terceiros, face ao princípio geral de livre circularidade dos direitos de crédito enunciado no art. 577º do Cód. Civil.
Por outro lado, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que, no caso, não pode validamente entender-se ter ocorrido uma remissão abdicativa do direito que a demandante pretende fazer valer na presente demanda. E isto por uma dupla ordem de razões: primeiro, e fundamentalmente, porque assumindo essa remissão abdicativa natureza de causa extintiva do (eventual) direito reclamado e tratando-se processualmente de uma exceção perentória de direito material (que não é de conhecimento oficioso), competiria, naturalmente, à ré o ónus de alegação da respetiva materialidade na contestação, por mor do princípio da concentração da defesa (cfr. arts. 571º, nº 2 e 573º do Cód. Processo Civil), ónus esse que, no entanto, não foi observado, posto que em lugar algum dessa peça processual foi articulada factualidade destinada a densificar os pressupostos normativos estabelecidos no art. 863º, nº 1 do Cód. Civil; depois, porque a mera declaração vertida em ata da assembleia da sociedade B..., S.A. de que “a sociedade não tem ativo nem passivo” não pode, sem mais (tanto mais que essa declaração foi emitida num momento em que ainda não havia sido afirmada a existência do ajuizado direito creditório que, de acordo com a alegação vertida na petição inicial, somente surgiu na sequência da decisão proferida na ação declarativa que, sob o nº 9779/19.5T8PRT, correu seus termos pelo Juízo Central do Porto e que transitou em julgado em 21 de junho de 2021), valer como remissão abdicativa[5], já que esta, no seu desenho legal, assume natureza contratual, pressupondo, para além de uma manifesta expressa[6] por banda do credor no sentido de remover o crédito da sua esfera jurídica, a existência de acordo (ainda que tácito) do devedor[7], o que, de igual modo, se mostra sequer alegado.
Como assim, perante a extinção da sociedade “B..., S.A”, tendo o ajuizado direito de crédito (alegadamente detido sobre as heranças abertas por óbito dos progenitores da ré, sua única herdeira) surgido já após essa extinção e face à alegação de que os seus (antigos) sócios decidiram ceder esse direito de crédito à demandante, não pode concluir-se existir discrepância entre as pessoas titulares da relação material controvertida tal como esta é alegada pela autora e as partes processuais.
Donde, independentemente da sorte que possa merecer a ação, temos que, à luz do critério enunciado no citado art. 30º do Código de Processo Civil, a autora possui legitimidade processual (que, como se referiu, não se confunde com a legitimidade substantiva ou material) para a causa, tendo em conta que o interesse em demandar se exprime “pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação” tendo-se em consideração o pedido e a causa de pedir nos termos em que esses elementos objetivos da instância foram por si configurados. Se a causa de pedir e o respetivo pedido estão ou não bem configurados no sentido de poderem permitir à demandante o reconhecimento do direito a que se arroga é questão de mérito, que não cabe apreciar em sede de conhecimento da legitimidade enquanto pressuposto processual. É que no âmbito dessa apreciação não se põe a questão de saber se a relação material existe ou não validamente, e qual a sua relevância, importando tão só aferir a função de cada uma das partes, na relação material, tal como a autora a apresenta e dela faz emergir o direito creditório que pretende ver reconhecido sobre as heranças dos falecidos progenitores da ré.
Impõe-se, por isso, a procedência do recurso.
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, determinam a sua substituição por outra que assegure o prosseguimento dos autos, contanto inexistam outras razões que a tal obstem.

Custas do recurso pela parte vencida a final na proporção em o for.


Porto, 9.10.2023.
Miguel Baldaia de Morais
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
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[1] Sobre a questão, vide, entre outros, CASTRO MENDES in Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, págs. 174 e seguintes.
[2] In Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. II, 2ª edição, Almedina, pág. 763.
[3] In Dissolução e liquidação de sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 1999, Almedina, pág. 492.
[4] Note-se que, contrariamente ao que advoga a apelada, não pode haver neste caso uma deliberação de sócios, pela simples razão de que já não há sociedade (neste sentido se pronuncia RAÚL VENTURA, ob. citada, pág. 493).
[5] Sendo de ressaltar outrossim que, conforme tem sido decidido na casuística (vide, entre todos, acórdãos do STJ de 28.04.2021 [processo nº 3/05.9TTALM-B.L1.S1] e de 12.3.2013 [processo nº 7414/09.9TBVNG.P2.S1], acessíveis em www.dgsi.pt), a declaração feita na ata da assembleia geral de uma sociedade de que a mesma não tem ativo nem passivo e de que não há bens a partilhar não tem força vinculativa, porque não coberta pela força probatória material que, no art. 371º do Cód. Civil, é reconhecida aos documentos autênticos.
[6] Isso mesmo é sublinhado no acórdão desta Relação de 12.09.2019 (processo nº 6320/18.0T8VNG-B.P1), acessível em www.dgsi.pt, onde se se escreve que «para ocorrer a remissão abdicativa é fundamental que a declaração negocial tenha precisamente caráter remissivo, ou seja, que com ela o credor declare, sem margem para dúvidas, que renuncia à prestação em dívida pelo devedor, e que o devedor preste o seu consentimento».
[7] Para uma análise circunstanciada da figura, vide, por todos, ANTUNES VARELA, in Direito das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª edição, Almedina, págs. 232 e seguintes, MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 211 e seguintes e ALMEIDA COSTA, in Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, págs. 952 e seguintes.