Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2367/20.5T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
COMODATO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202401252365/20.5T8VLG.P1
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Segundo o entendimento maioritário, as declarações de parte reconduzem-se a um início de prova, a valer apenas como fator corroborante da prova de um facto, mas não sendo suficientes para estabelecer, por si só, qualquer prova.
II - Nesta medida, as declarações de parte, principalmente quando referidas a factos que sejam favoráveis ao declarante só devem fundamentar a convicção do juiz quando corroboradas por outros meios de prova, ou regras de experiência, que lhes confiram um grau de confirmação adequado.
III - Numa relação jurídica de comodato, há que distinguir as relações comodante-comodatário, das relações comodatário com qualquer outro terceiro. Nestas, comodatário-terceiro, já não se aplicam os artigos 1135º e 1136º do CC.
IV - O art.º 1133ºº nº 2 do CC faculta ao comodatário o exercício de ações de prevenção, manutenção ou restituição de posse da coisa objeto do comodato, mas já não lhe confere o direito a ser indemnizado pelos prejuízos causados na própria coisa por um terceiro, permanecendo este direito na esfera jurídica do proprietário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2367/20.5T8VLG.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. AA interpôs ação contra Condomínio ..., do prédio da Rua ..., pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 7.525,00, acrescidos de juros desde a citação.
Fundamentou o seu pedido alegando ser comodatário de uma fração desse Condomínio desde 2014, onde exerce atividade comercial de tatuagens e pircings.
Aquando da celebração do contrato de comodato, realizou obras no imóvel, de forma a dotá-lo dos requisitos necessários ao desenvolvimento daquela atividade comercial, pertencendo-lhe o recheio que se encontra no interior.
No dia 2/11/2019, o Autor foi confrontado com uma inundação naquele espaço, proveniente da casa de banho. O Autor contactou de imediato uma empresa de desentupimentos, que o informou que aquela inundação foi provocada pelo facto de o condomínio do prédio não ter procedido ao desentupimento e manutenção da rede aérea/suspensão dos esgotos que se situam na garagem do prédio, pelo que não poderia proceder ao desentupimento da sanita existente naquele espaço.
O Autor contactou a empresa administradora do condomínio. No dia 08/12/2019 voltou a ocorrer outra inundação, dado a empresa que administra o condomínio, nada ter feito para debelar e evitar que aquele problema se voltasse a repetir.
O montante peticionado corresponde aos danos que sofreu.
Em contestação, o Réu suscitou a sua ilegitimidade (por o contrato de comodato não lhe ter sido comunicado) e impugnou a factualidade alegada.
Foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade, fixou o objeto do processo e enunciou os temas da prova, o qual não foi objeto de reclamações.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que julgou a ação totalmente improcedente.

2. Para assim julgar, foi considerada a seguinte factualidade:
«Factos provados:
1. Com data de 2 de janeiro de 2014, o autor e BB outorgaram documento particular, designado “Contrato de Comodato”, através do qual, esta cedeu ao autor, o uso temporário e gratuito da fração destinada a estabelecimento comercial, sita na Rua ..., com entrada pelo nº ..., na freguesia ..., concelho de Valongo, identificada pela Loja ..., conforme documento nº 1 junto com a petição inicial.
2. Consta, designadamente, do documento aludido em 1, que “a primeira outorgante cede, pelo presente contrato, todos os seus direitos como proprietária do imóvel ao segundo, podendo este fazer as obras que entender necessárias à prossecução da sua atividade, podendo igualmente reclamar do condomínio os seus direitos de condómino, bem como de terceiros que violem o direito de propriedade da primeira”.
3. Desde data não apurada, o autor passou a ocupar o referido imóvel, ali exercendo a sua atividade comercial de tatuagens e piercings.
4. Em dia não apurado de novembro de 2019, quando o autor chegou ao estabelecimento para abri-lo ao público, foi confrontado com uma inundação naquele espaço.
5. A referida inundação era proveniente da casa de banho.
6. O chão do espaço comercial estava alagado com água e dejetos, provenientes da casa de banho daquele espaço, pelo entupimento da rede aérea/suspensa da garagem do prédio.
7. Perante aquele cenário, o autor não abriu o espaço comercial ao público e contactou a administradora do condomínio, informando do sucedido.
8. Por força daquela inundação, as paredes da fração e outros bens sofreram estragos.
9. No dia 8 de dezembro de 2019, voltou a ocorrer uma inundação proveniente da sanita do espaço, causada pelo entupimento da rede aérea/suspensa da garagem do prédio.
10. Tendo o espaço ficado alagado com água e dejetos.
11. O autor chamou as autoridades policiais ao local, para tomarem conta da ocorrência.
12. Quando as autoridades policiais chegaram ao local, já ali se encontrava uma empresa de desentupimentos, a pedido da administração do condomínio, a proceder ao desentupimento da rede aérea/suspensa do prédio.
13. A inundação também estragou o soalho flutuante.
14. O autor pediu um orçamento para proceder à reparação das paredes e soalho da fração, no valor de € 4.275,00 (quatro mil duzentos e setenta e cinco euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
15. O autor, até ao momento, ainda não procedeu à reparação das paredes e soalho, bem como à substituição de móveis.
16. O autor procedeu à limpeza do espaço, logo após as mencionadas inundações.
17. Após ter sido informado pelo autor da ocorrência de uma inundação na aludida fração proveniente do “entupimento da sanita”, o Condomínio, aqui réu, de imediato fez deslocar ao local a empresa “A...” que providenciou pela desobstrução da conduta de saneamento.
18. O técnico que procedeu à desobstrução constatou que a causa do entupimento foi a existência de dezenas de toalhetes, no interior da canalização.
Factos não provados:
1. Aquando da celebração do acordo mencionado em 1 dos factos provados, o autor realizou obras no imóvel, de forma a dotá-lo dos requisitos necessários ao desenvolvimento daquela atividade comercial.
2. Aquando da primeira inundação, o autor contatou de imediato uma empresa de desentupimentos, que informou o autor que aquela inundação foi provocada pelo facto de o condomínio do prédio não ter procedido ao desentupimento e manutenção da rede aérea/suspensão dos esgotos que se situam na garagem do prédio e que por esse motivo não poderia proceder ao desentupimento da sanita existente naquele espaço.
3. Nessa ocasião, a empresa que administra o condomínio, nada fez para debelar e evitar que aquele problema se voltasse a repetir.
4. O autor pediu orçamento para a reparação de móveis.
5. O autor não procedeu à reparação e substituição uma vez que não reúne condições económico-financeiras para o fazer.
6. O valor da reparação ascende ao indicado em 14 dos factos provados.
7. O cheiro nauseabundo, decorrente daquelas inundações, manteve-se por várias semanas, agravando-se sempre que o autor ligava o aparelho do ar condicionado.
8. Por força daquelas inundações e pelos motivos acima aduzidos, o autor teve o espaço comercial encerrado ao público até ao dia 7 de janeiro de 2020.
9. Num total de 65 dias.
10. O autor fatura diariamente uma quantia nunca inferior a € 50,00 (cinquenta euros).
11. A administração do condomínio providencia pela manutenção e limpeza periódica da conduta de saneamento.
12. O entupimento deveu-se ainda à existência de compressas e gazes não dissolúveis na canalização, materiais descartáveis que, a par dos toalhetes, o autor utiliza na sua atividade.

3. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Réu, formulando as seguintes conclusões:
(…)
4. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
● Reapreciação da matéria de facto
● Se existiu erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito

5.1. Reapreciação da matéria de facto
Pretende o Autor que o facto não provado 1, seja considerado provado, nos seguintes termos:
“Aquando da celebração do acordo mencionado em 1 dos factos provados, o autor realizou obras no imóvel, de forma a dotaì-lo dos requisitos necessários ao desenvolvimento daquela atividade comercial.”
A M.mª Juíza fundamentou assim este facto não provado: «No que se refere ao vertido em 1 dos factos não provados, apenas o autor se referiu a tal factualidade, que não foi corroborada por qualquer depoimento. Pelo contrário, foi referido que na fração já funcionaram outras atividades comerciais, o que significa que a mesma já teria características para o exercício do comércio, nada indicando que estivesse nas condições referidas pelo autor».
Concordamos com a Recorrente que o facto de outras atividades ali terem sido exercidas não obstaria a que o Autor tivesse de ter feito obras de adaptação da fração ao seu ramo de negócio. É, aliás, a situação mais comum dado que atividades diferentes necessitam por norma de obras de adaptação.
De acordo com as regras probatórias de direito material, recai sobre o Autor o ónus de provar os factos atinentes aos pressupostos da responsabilidade civil que pretende assacar ao Réu, porque factos constitutivos do seu direito, seja na vertente da ocorrência do sinistro, seja dos danos causados: art.º 342º nº 1 e 487º nº 1 do Código Civil (CC).
O Réu, não tendo deduzido qualquer exceção atinente aos factos (suscitou apenas a ilegitimidade), fica desonerado de qualquer prova; pode, porém, oferecer contraprova destinada a criar a dúvida no tribunal sobre os factos alegados pela contraparte e, conseguindo-o, a decisão é tomada contra o Autor: art.º 346º.
Ora, sobre a realização de obras, o Autor, a quem incumbia o ónus, apenas apresentou as suas declarações de parte.
As declarações de parte, apesar de meio de prova admitido no nosso sistema jurídico, levantam dificuldades quanto à avaliação da sua força probatória, principalmente quanto aos factos que lhe sejam favoráveis.
Segundo o entendimento maioritário, as declarações de parte reconduzem-se a um início de prova, a valer apenas como fator corroborante da prova de um facto, mas não sendo suficientes para estabelecer, por si só, qualquer prova.
Nesta medida, as declarações de parte, principalmente quando referidas a factos que sejam favoráveis ao declarante só devem fundamentar a convicção do juiz quando corroboradas por outros meios de prova, ou regras de experiência, que lhes confiram um grau de confirmação adequado.
«É assim admissível a produção e a valoração das declarações da parte, mesmo que respeitem a factos probatórios que lhe sejam favoráveis, contanto que o tribunal não se tenha baseado exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre os factos controvertidos que deu como provados.
Não existe uma proibição de valoração dessas declarações (pois não existe uma proibição de produção), se e quando elas forem enquadradas com outros elementos probatórios, mesmo os que podem formar a convicção do tribunal e sejam extraídos das regras da experiência que o tribunal pode usar para fundamentar a sua convicção sobre a os factos controvertidos.» [1]
Nas suas declarações, o Autor já de si foi muito vago (“Na altura em que eu fiquei com a loja, fui eu que fiz as obras todas, não tinha chão, as paredes faltava rebocar, estava em cru a loja, pronto”).
Assim como foi vago noutras questões que não podia deixar de ter melhor conhecimento. Assim, sobre se tinha a loja por empréstimo ou arrendamento, respondeu “cedeu-me a loja”; se fizeram contrato ou se foi cedência gratuita, respondeu “pago as despesas todas, pago o condomínio, pago as obras do condomínio”.
Acresce que foram detetadas várias outras incongruências entre o alegado na PI e as suas declarações em audiência. Assim, admitiu que nunca chamou a empresa de desentupimentos; o valor de € 50,00 a € 100,00 que dizia faturar por dia, não é o que indicou na declaração de IRS, o tempo em que esteve fechado por causa das inundações afinal foi bem menor…
A credibilidade das declarações de parte do Autor infirma-se só por si.
Nenhum outro elemento de prova foi apresentado para corroborar a afirmação de o Autor ter realizado obras na fração.
O Autor é um sujeito processual diretamente interessado no objeto em litígio e, de acordo com a velha máxima, “ninguém é bom juiz em causa própria”.
Concluindo, não existem fundamentos para alterar o facto não provado nº 1, que assim se mantém.

5.2. Erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito
§ 1º - Uma relação humana assume relevância jurídica na medida em que for disciplinada pelo Direito. «Num sentido amplo pode designar-se por relação jurídica toda a situação ou relação da vida real (social) que é juridicamente relevante, de modo que é disciplinada pelo direito» [2]
No processo civil discutem-se apenas interesses privados, ou seja, é na esfera jurídica dos pleiteantes que se irão repercutir as consequências ou efeitos das decisões judiciais.
Por outro lado, a decisão a proferir pelo Tribunal fica limitada pelo pedido e pela causa de pedir invocada.

§ 2º - O Autor estribou a sua pretensão na responsabilidade civil por factos ilícitos (art.º 483º do CC) pretendendo ser ressarcidos dos danos que lhe advieram em resultado de 2 inundações.
Alegou que detém o uso da fração inundada com base num contrato de comodato e que sofreu os seguintes danos:
● € 4.275,00, correspondente ao valor para a reparação das paredes e soalho do espaço e substituição dos móveis danificados com as inundações.
● € 3.250,00, referente ao valor que deixou de faturar entre o dia da primeira inundação (02/11/2019) e o da segunda (08/01/2020), por força do encerramento forçado do espaço.
Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir: art.º 1129º do CC.
Se este for privado dos seus direitos, ou perturbado no respetivo exercício, o comodatário pode usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes: art.º 1133º nº 2 CC.
«É mais um caso em que a um mero detentor ou possuidor precário (o comodatário é, como o locatário, um possuidor em nome alheio) se atribuem os meios de defesa da posse, ou sejam, os regulados nos artigos 1276º e seguintes, mesmo contra o comodante. Esses meios são: a acção de prevenção, a acção directa, a acção de manutenção e restituição e os embargos de terceiro» [3]
«Simplesmente, nestes casos, a posse que estes defendem não é a do possuidor em nome próprio, mas a sua posse precária, e tanto que a podem defender mesmo contra o proprietário. Eles não agem como pessoas qui alienae possessioni prastant ministerium, mas gerindo o seu próprio interesse.» [4]
Estamos, portanto, e apenas, no domínio de ações de prevenção, manutenção ou restituição de posse da coisa (objeto do comodato). O preceito não confere ao comodatário o direito a ser indemnizado pelos prejuízos causados na própria coisa, já que são direitos exclusivos do proprietário.
À semelhança do que ocorre na locação, os estragos causados por um terceiro na coisa locada, originam 2 feixes de responsabilidade civil:
● uma, na esfera jurídica do proprietário, no tocante aos estragos na coisa locada (questão atinente ao estatuto de direito real);
● outra, na esfera jurídica do locatário, relativamente aos seus danos pessoais (sede obrigacional, de proteção do gozo da coisa locada).
No que se refere aos danos na fração aqui em causa, estamos no domínio das obrigações/direitos propter rem, cujo titular [5] sempre seria o proprietário. [6]
Resulta da factualidade provada a existência de estragos nas paredes e no soalho (factos provados 8 e 13), mas nada resultou quanto à sua identificação em concreto, designadamente a dimensão. Também não se provou o respetivo valor, o que não seria obstáculo dado poder relegar-se o apuramento do seu montante para liquidação em execução de sentença.
Porém, tal não deve acontecer dado que o pretendido valor de € 4.275,00 (correspondente ao valor para a reparação das paredes e soalho do espaço) não constitui um direito do Autor.
Tratando-se de um direito pertencente à esfera jurídica do proprietário da fração, só a ele pode ser atribuído.

§ 3º - Acabamos de ver que o direito de crédito à indemnização pelos danos nas paredes e no soalho pertenciam ao proprietário da fração, e não ao Autor comodatário.
Sucede que, como ficou provado no facto 2, ficou consignado no contrato de comodato que a comodante “cede, pelo presente contrato, todos os seus direitos como proprietária do imóvel ao segundo, podendo este fazer as obras que entender necessárias à prossecução da sua atividade, podendo igualmente reclamar do condomínio os seus direitos de condómino, bem como de terceiros que violem o direito de propriedade da primeira”.
Esta cláusula causa perplexidade e dificuldades de interpretação, que tentaremos dilucidar.
O direito a fazer as obras é consensual, e até muito comum nos contratos em que se transfere para outrem o uso de um imóvel.
Já no que toca à cedência de todos os seus direitos como proprietária do imóvel [7], tal cláusula seria, desde logo, nula por contrária à lei e violadora do princípio da tipicidade dos direitos reais. Tal implicaria uma renúncia ao direito de propriedade, o que a lei não admite.
«No plano do direito constituído, porém, a interpretação sistemática da lei não fornece apoio para a livre renunciabilidade do domínio sobre imóveis. Embora o artigo 1305º declare, em termos genéricos, que o proprietário tem o poder de dispor das coisas que lhe pertencem, existem outros preceitos de onde claramente se infere que o legislador não admite a extinção do direito de propriedade sobre imóveis pela via da renúncia.» [8]
Por fim, a possibilidade conferida ao Autor de reclamar do condomínio os seus direitos de condómino, bem como de terceiros que violem o direito de propriedade da primeira”. Como interpretar?
De mandato não se pode falar dado que o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar atos jurídicos em nome de outrem (art.º 1157º do CC). No caso, nem o comodatário, nem o comodante se obrigaram a nada. A cláusula confere um “direito de reclamar” e não uma obrigação.
Na perspetiva de integrar um direito de representação (art.º 258º e 260º do CC), o aqui Autor teria de ter invocado a sua qualidade de “representante” da proprietária da fração, o que não aconteceu. Sendo ainda que os feitos da representação voluntária se produzem diretamente na esfera jurídica do representado (o comodante), e não do representante (Autor), o que nos levaria à mesma solução do ponto de vista prático: qualquer montante indemnizatório por danos na fração, seriam pertença do comodante e não do Autor.
De qualquer forma, esses “poderes de representação” só poderiam ser equacionados para exercício de reclamação perante o Condomínio, pelo que são totalmente inoperantes para a instauração de uma ação em Tribunal.
Na hipótese de se considerar uma autorização constitutiva [9], teríamos de concluir trata-se de uma autorização omnibus (na medida em que se concede autorização para “todos” os direitos de proprietária e “todos” os direitos de condómina), pelo que também teria de ser considerada nula e/ou ineficaz.
Donde ser de concluir que o teor da cláusula em análise não altera o que se concluiu no antecedente § 2º - tratando-se de um direito pertencente à esfera jurídica do proprietário da fração, só a ele pode ser atribuído.
O Autor carece de legitimidade substantiva para o efeito de acionar o ressarcimento dos danos causados na fração.

§ 4º - Resta a abordagem do valor referente aos lucros cessantes, o que o Autor deixou de faturar por causa das inundações e do encerramento forçado do espaço (€ 3.250,00 peticionados).
Aqui sim, trata-se de um direito da esfera jurídica do Autor, porque atinente à atividade comercial que exercia na fração.
Sucede que não se provaram os factos demonstrativos da existência do dano, nem o número de dias de encerramento, nem o apuramento médio diário que lhe rendia o estabelecimento.
Como é sabido, os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos são de verificação cumulativa (art.º 483º do CC). não se demonstrando a existência de danos, não se pode responsabilizar o Réu pela correspondente obrigação de indemnizar.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Autor, face ao decaimento.

Porto, 25 de janeiro de 2024
Isabel Silva
Isabel Rebelo Ferreira
Ernesto Nascimento
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[1] João Paulo Remédio Marques, “A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte”, revista Julgar, on line, nº 16, 2012, pág. 171, disponível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2012/01/07-DEBATER-A-aquisi%C3%A7%C3%A3o-e-a-valora%C3%A7%C3%A3o-probat%C3%B3ria-de-factos-desfavor%C3%A1veis.pdf
No mesmo sentido, Elizabeth Fernandez, “Um Novo Código de Processo Civil?: Em busca das diferenças”, Vida Económica, 2014, pág. 72/73, ao assinalar que o próprio legislador não foi muito claro quanto à força probatória das declarações de parte dado que, se por um lado lhes deu um cunho supletivo ao permitir o seu requerimento tardio, notando que a sua função probatória será, essencialmente, complementar, por outro lado permitiu a sua livre valoração pelo julgador parecendo propor, a contrario, um meio de prova autónomo e não complementar.
[2] Heinrich Ewald Hörster, “A Parte Geral do Código Civil Português”, Almedina, 2003, pág. 159.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, Coimbra Editora, em anotação ao art.º 1133º.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, em anotação ao art.º 1181º.
[5] «Uma pessoa é titular de uma posição jurídica quando é o sujeito da situação jurídica na qual se integra essa posição, independentemente de esta ser ativa ou passiva. Ser titular é o mesmo que ser sujeito numa situação jurídica, ou ocupar uma posição jurídica. Ser titular é ter título jurídico.» - Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “A Autorização”, Coimbra Editora, 2012, pág. 72.
[6] Cf. Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações reais e Ónus Reais”, Almedina, 1990, pág. 308/309.
[7] Sendo que o direito de propriedade compreende os direitos de usar, fruir e dispor/alienar (art.º 1305º do CC).
[8] Manuel Henrique Mesquita, obra citada, pág. 376.
[9] Nas palavras de Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 152, «A autorização constitutiva é o ato destinado especificamente a provocar, em conjunto com a autonomia privada do autorizado, a aquisição de legitimidade por este, através da paralisação dos meios de defesa da situação jurídica do autorizante e da reflexa constituição, na esfera jurídica do autorizado, de uma posição jurídica de beneficiário dessa paralisação, o que possibilita a sua autuação.»