Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
268/24.7YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: RECONHECIMENTO PARA EXECUÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
LEI 158/2015
DE 17 DE SETEMBRO
ADAPTAÇÃO DA PENA
EXTINÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RP20241023268/24.7YRPRT
Data do Acordão: 10/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: RECONHECIDA A SENTENÇA ESTRANGEIRA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Mostrando-se preenchidos todos os requisitos para que seja decretado o reconhecimento da Sentença penal estrangeira que vem promovido, e assim também da sua exequibilidade em Portugal, impõe–se tomar em devida consideração o disposto no art. 39º da Lei 158/2015, de 17 de Setembro, relativo à necessidade de «Adaptação das medidas de vigilância ou das sanções alternativas» quanto à sua natureza e duração.
II - A medida de seguimento sócio-judicial durante 10 anos acompanhado de uma pena 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento, aplicada pelos tribunais penais franceses, não encontra, desde logo na sua natureza, correspondência na legislação penal portuguesa, constatando–se que a medida que, em sede de execução penal no âmbito da ordem jurídica nacional, mais semelhanças materiais denota com aquela, é a medida de liberdade condicional, tal como se mostra prevista prima facie nos arts. 61º a 64º do Cód. Penal.
III - Também no que à duração da medida em causa, a mesma se mostra desconforme com aquilo que é imposto em sede do instituto da liberdade condicional no Código Penal, pois que enquanto a medida de seguimento sócio-judicial que vem determinada tem uma duração de 10 anos e que este período é superior à pena de prisão (de 5 anos) que se mostra condicionada pelo aludido seguimento, em sede do instituto da liberdade condicional no regime penal português o período da mesma é sempre correspondente ao remanescente da pena de prisão que resta cumprir, como liminarmente decorre do disposto no nº5 do art. 61º do Cód. Penal, onde expressamente se dispõe que «Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena».
IV - Donde, consumando a devida adaptação da medida aqui em causa, na sua natureza e duração, à legislação penal portuguesa, temos que o período de liberdade condicional correspondente ao seguimento sócio-judicial adaptado, não pode exceder os 5 (cinco) anos, por ser essa a medida concreta da pena de prisão cuja execução se mostra pendente e, nesse âmbito, objecto de condicionamento – sendo inclusive que, coincidentemente, é até esse o período máximo de liberdade condicional legalmente permitido.
V - O que significa, e revertendo ao caso concreto, que tendo o período de seguimento sócio-judicial aqui em causa tido o seu início em 18/07/2019, o mesmo deverá ter–se por extinto desde 18/07/2024, o que cumpre declarar.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 268/24.7YRPRT.P1

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

O Ministério Público junto deste Tribunal veio requerer o reconhecimento para execução em Portugal da sentença penal estrangeira proferida no âmbito do processo n.º 2/2006 pelo Tribunal Criminal de Apelação de Menores de Haute–Corse, em 22/09/2006, tendo transitado em julgado, respeitante a:

AA,
de nacionalidade portuguesa, nascido a ../../1985, em ..., ..., França, filho de BB e de CC, residente actualmente na Rua ..., ..., ..., em Póvoa do Varzim, Portugal,

e que o condenou – pela prática de um crime de Violação com tortura ou acto de barbárie, previsto e punido no art. 222-26 AL I, art. 222-23 AL, art. 222-44, art. 222-45, art. 222-47 AL. I, art. 222-48-1 AM/I, art. 131-26-2, art. 131-30 AL I, todos do Código Penal Francês –, na pena de 15 anos de reclusão criminal com um período de segurança de 10 anos, a que acresce uma medida de seguimento–sócio–judicial durante 10 anos em acompanhamento de mais 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento.
O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Por acórdão de 22/09/2006, transitado em julgado em 30/09/2006, proferida no processo nº 2/2006 do Tribunal Criminal de Menores de Haute-Corse, em recurso da sentença do Tribunal Criminal de Menores de Course du Sud, França, foi o requerido AA condenado na pena de 15 anos de reclusão criminal com período de segurança de 10 anos pela autoria de crime de violação com actos de tortura ou de barbaria traduzido na seguinte factualidade:
(…)
2. O referido crime de violação com tortura ou acto de barbaria encontra-se previsto e punido pelo art. 222-26 AL I, art. 222-23 AL, art. 222-44, art. 222-45, art. 222-47 AL. I, art. 222-48-1 AM/I, art. 131-26-2, art. 131-30 AL I do Código Penal Francês.
3. Nos termos daquela decisão judicial, o requerido foi ainda condenado na medida de seguimento sócio-judicial durante 10 anos acompanhado de uma pena 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento.
4. O requerido AA esteve presente no seu julgamento e cumpriu já a pena de 15 anos de reclusão criminal com período de segurança de 10 anos, faltando-lhe agora cumprir a pena complementar de seguimento socio-judicial.
5. Por sentença datada de 27/06/2019, o Juiz de Aplicação de Penas TULLE adicionou ao seguimento socio-judicial as seguintes obrigações:
- estabelecer a sua residência num local determinado;
- imposição de tratamento.
6. Por sentença datada de 16/05/2022, o juiz de aplicação de penas de Toulouse encarregado do seguimento socio-judicial adicionou à medida de seguimento as obrigações de:
- exercer uma actividade profissional ou seguir um ensino ou uma formação profissional;
- estabelecer a sua residência em França e no domicílio da sua irmã, ..., ... ... ... ...;
- reparar na totalidade ou em parte, segundo as suas faculdades de contribuição, os danos causados pela infracção;
- abster-se de comparecer em qualquer local, qualquer categoria de local ou qualquer zona especialmente designados, no caso em apreço, no domicilio de suas irmãs DD e EE e em ... (local onde foi cometida a infracção);
- não frequentar certos condenados, em particular os autores ou cúmplices da infracção, no caso em apreço FF;
- abster-se de entrar em relações com certas pessoas, no caso em apreço com a vítima, GG;
- obter autorização prévia do Juiz de Aplicação das Penas para qualquer deslocação no estrangeiro.
7. O requerido interpôs recurso dessa decisão e, por acórdão proferido a 20/10/2022, a secção de aplicação de penas do Tribunal de Apelação de Toulouse fixou as seguintes obrigações:
- exercer uma actividade profissional ou seguir um ensino ou uma formação profissional;
- abster-se de comparecer em qualquer local, qualquer categoria de local ou qualquer zona especialmente designados, no caso em apreço, no domicilio de suas irmãs DD e EE e em ..., França (local onde foi cometida a infracção);
- não frequentar certos condenados, em particular os autores ou cúmplices da infracção, no caso em apreço FF;
- abster-se de entrar em relações com certas pessoas, no caso em apreço com a vítima, GG.
8- O seguimento socio-judicial começou a 18/07/2019 e termina a 18/07/2029.
9- A factualidade e os crimes acima indicados constam da certidão e da decisão judicial que se anexam, e que foram transmitidas a este tribunal para reconhecimento e execução em conformidade com o disposto na Decisão-Quadro 2008/947/JAI de 27 de Novembro de 2008, transposta para o direito interno pela citada Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro.
10- A certidão, devidamente transmitida em língua portuguesa, foi emitida em conformidade com o formulário cujo modelo constitui o anexo III deste diploma, encontrando-se devidamente preenchida.
11- Apresenta-se oferecida com a sentença traduzida para português – artigo 30.º, n.º2, da Lei n.º 158/2015.
12- O crime acima indicado faz parte do art.º 3, n.º1, al. bb), da Lei 158/2015, de 17/09.
13- O condenado requerido tem também nacionalidade portuguesa, reside, agora, em Portugal, na Rua ..., ..., ..., Póvoa do Varzim, com HH, com quem casou a 27/12/2021, e exerce actividade profissional por conta da empresa A..., nas bombas de combustível em ....
14- Verifica-se, deste modo, que a vigilância em território nacional dos deveres acima referidos e que lhe foram fixados pela autoridade judiciária do Estado de emissão contribuirá para atingir o objectivo de facilitar e zelar pela sua reinserção social, nos termos do artigo 1 da Decisão-Quadro 2008/947/JAI - (A presente decisão-quadro visa facilitar a reinserção social da pessoa condenada…), e artigo 1, n.º2, da Lei 158/2015.
15- Este tribunal é o territorialmente competente para reconhecer a sentença, de acordo com o disposto no artigo 34.º, n.º 1, da dita Lei 158/2015, referida.
16- Não se mostram verificados quaisquer motivos de recusa do reconhecimento da sentença e da execução da condenação previstos no artigo 36.º da Lei n.º 158/2015 citada.
Pelo exposto, se requer a V.Ex.ª que, D. e A.:
a) Seja designado defensor ao requerido;
b) Sejam notificados deste requerimento o defensor e o requerido, nos termos e
para os efeitos do art.º 16-A, n.º1 e do art.º 35-A da Lei 158/2015;
c) Seja comunicado ao Estado emissor a instauração deste procedimento de cooperação judiciária penal – artigo 43, al. a) da Lei n.º 158/2015;
d) Seja proferida decisão de reconhecimento da sentença;
e) Seja ordenada a sua transmissão, oportunamente, ao Juízo Local Criminal de Póvoa do Varzim, de acordo com o disposto no artigo 34, n.º 2 da Lei n.º 158/2015 – “2 - É competente para executar a sentença que aplique sanções alternativas à pena de prisão e para fiscalizar as sanções alternativas o juízo local com competência em matéria criminal na área em que a pessoa condenada tenha residência, nos termos do número anterior.”.

Foi nomeado defensor ao requerido.

Notificado o requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 16º–A/1 da Lei 158/2015, de 17 de Setembro, não foi deduzida oposição – antes tendo o mesmo vindo aos autos manifestar expressamente o seu acordo ao reconhecimento e execução promovidos.

Colhidos os vistos, procedeu-se à conferência.
*
Este Tribunal da Relação do Porto é material e territorialmente competente para o presente reconhecimento de sentença.
O requerente Ministério Público tem legitimidade para formular o pedido.
*
II. Fundamentação

II.A. Da matéria de facto relevante

Da prova documental constantes dos autos, designadamente certificação da decisão condenatória e decisões subsequentes, com que vem instruído o requerimento inicial, e do pedido apresentado pelo requerido às autoridades judiciárias francesas – elementos cuja autenticidade não suscita quaisquer dúvidas –, mostram-se provados os seguintes factos com relevo para a presente decisão:

1. No âmbito do processo nº 2/2006, pelo Tribunal Criminal de Apelação de Menores de Haute–Corse, em 22/09/2006 (tendo transitado em julgado) foi proferido Acórdão condenando AA, nascido a ../../1985, de nacionalidade portuguesa, pela prática um crime de Violação com tortura ou acto de barbárie, previsto e punido no art. 222-26 AL I, art. 222-23 AL, art. 222-44, art. 222-45, art. 222-47 AL. I, art. 222-48-1 AM/I, art. 131-26-2, art. 131-30 AL I, todos do Código Penal Francês, na pena de 15 anos de reclusão criminal com um período de segurança de 10 anos, a que acresce uma medida de seguimento sócio–judicial durante 10 anos em acompanhamento de mais 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento ;
2. É a seguinte, e na parte aqui relevante, a matéria de facto dada como assente no acórdão condenatório proferido:
- No dia 8/09/2003, a mãe de GG aparecia perante uma patrulha de polícia que circulava em ..., em ..., para alertar os agentes de polícia sobre factos de violação dos que acabava de ser vitima o seu filho de 13 anos e meio de idade.
- Transportado ao centro hospitalar para receber os cuidados requeridos pelo seu estado, explicou durante a tarde que se tinha deslocado para um apartamento que ocupava ilegalmente com II, JJ, KK e LL, todos menores de idade.
- Pelas 15 horas, juntou-se-lhes AA, chamado AA, MM, ambos maiores de idade, e NN.
- AA propôs ao grupo deslocar-se para outro apartamento do imóvel que ocupava ilegalmente. Lá, os jovens beberam álcool e logo o AA propôs ao GG uma bebida de sua fabricação. Bebeu um primeiro copo que não lhe gostou. AA insistiu então e o ameaçou para que bebesse três outros copos.
- Face à recusa de GG, AA agarrou numa faca que posicionou sobre o seu punho. GG tentou resistir, mas a lâmina cortava a sua pele e aceitou então beber mais dos copos.
- Começou então a vomitar. AA transportou-lhe no quarto de banho onde lhe fez despir-se e entrar na banheira. Espalhou-lhe no corpo água fria e produtos domésticos entre os quais detergente para louça, forçando-lhe a beber um produto lixivioso.
- Acompanhou-lhe para outro quarto onde lhe agarrou, pernas juntas e mãos em cruz atadas a pés de móveis. Espalhou insecticida na sua cara na presença de MM, II e NN logo lhe amordaçou e dirigiu para a sua cara um maçarico. Exausto, GG caiu no sono.
- Ao despertar, as suas mãos estavam livres e AA recobria a sua cara, barriga e sexo de cera para sapatos enquanto MM e II escreviam com marcador nas suas pernas.
- II sugeriu logo que fosse “desflorado” o adolescente. Foi quando o AA e o MM introduziram o cabo de uma colher no ânus de GG com a ajuda do detergente para louça.
- Depois disto, os dois implicados o trataram como um animal e logo como uma bola.
- AA pediu também que lhe dissesse “Maitre” (mestre/dono) e beijar-lhe os pés logo de lhe masturbar, o que a vítima não estava com capacidade de fazer.
- AA levou-lhe logo para a casa de banho onde lhe impôs uma felação antes de urinar na sua boca.
- As investigações conduzidas e as audições dos que participaram os factos corroboraram as declarações da vítima.
8. O requerido esteve presente no seu julgamento e cumpriu já a pena de 15 anos de reclusão criminal com período de segurança de 10 anos, faltando cumprir a pena complementar de seguimento socio-judicial ;
5. Por sentença datada de 27/06/2019, o Juiz de Aplicação de Penas adicionou ao seguimento socio-judicial as seguintes obrigações:
- estabelecer a sua residência num local determinado;
- imposição de tratamento.
6. Por sentença datada de 16/05/2022, o juiz de aplicação de penas de Toulouse encarregado do seguimento socio-judicial adicionou à medida de seguimento as obrigações de:
- exercer uma actividade profissional ou seguir um ensino ou uma formação profissional;
- estabelecer a sua residência em França e no domicílio da sua irmã, ..., ... ... ... ...;
- reparar na totalidade ou em parte, segundo as suas faculdades de contribuição, os danos causados pela infracção;
- abster-se de comparecer em qualquer local, qualquer categoria de local ou qualquer zona especialmente designados, no caso em apreço, no domicilio de suas irmãs DD e EE e em ... (local onde foi cometida a infracção);
- não frequentar certos condenados, em particular os autores ou cúmplices da infracção, no caso em apreço FF;
- abster-se de entrar em relações com certas pessoas, no caso em apreço com a vítima, GG;
- obter autorização prévia do Juiz de Aplicação das Penas para qualquer deslocação no estrangeiro.
7. O requerido interpôs recurso dessa decisão e, por acórdão proferido a 20/10/2022, a secção de aplicação de penas do Tribunal de Apelação de Toulouse fixou as seguintes obrigações:
- exercer uma actividade profissional ou seguir um ensino ou uma formação profissional;
- abster-se de comparecer em qualquer local, qualquer categoria de local ou qualquer zona especialmente designados, no caso em apreço, no domicilio de suas irmãs DD e EE e em ..., França (local onde foi cometida a infracção);
- não frequentar certos condenados, em particular os autores ou cúmplices da infracção, no caso em apreço FF;
- abster-se de entrar em relações com certas pessoas, no caso em apreço com a vítima, GG.
8. O período de seguimento socio-judicial começou a 18/07/2019 e termina a 18/07/2029 ;
9. O condenado/requerido reside actualmente em Portugal, na Rua ..., ..., ..., Póvoa do Varzim, com HH, com quem casou a 27/12/2021, e exerce actividade profissional por conta da empresa “A...”, nas bombas de combustível em ....

II.B. Enquadramento jurídico

Nos termos do disposto no art. 234º do Cód. de Processo Penal, integrado no Título II «Revisão e confirmação de sentença penal estrangeira», a sentença penal estrangeira só poderá ter eficácia em território nacional desde que a lei, tratado ou convenção assim o estipulem e após processo de revisão e confirmação.
Os requisitos para a confirmação de sentença penal estrangeira estão fixados no art. 237º do Cód. de Processo Penal, sendo que, nos termos do disposto no nº1 dessa disposição legal, são condições gerais de procedência da confirmação da sentença:
«a) que, por lei, tratado ou convenção, a sentença possa ter força executiva em território português;
b) que o facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa;
c) que a sentença não tenha aplicado pena ou medida de segurança proibida pela lei portuguesa;
d) que o arguido tenha sido assistido por defensor e, quando ignorasse a língua usada no processo, por interprete.
e) que, salvo tratado ou convenção em contrário, a sentença não respeite a crime qualificável, segundo a lei portuguesa ou a do país em que foi proferida a sentença, de crime contra a segurança do Estado.».
Por sua vez, a força executiva, no nosso país, de uma sentença penal proferida num outro país da União europeia depende da prévia revisão e confirmação dos seus efeitos penais em conformidade com quanto resulta da Lei 158/2015, de 17 de Setembro, a qual veio, precisamente, «Aprova[r] o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade, para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, bem como o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças e de decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, transpondo as Decisões-Quadro 2008/909/JAI, do Conselho, e 2008/947/JAI, do Conselho, ambas de 27 de novembro de 2008», implementando um procedimento específico mais simples e célere, que se insere no âmbito da cooperação internacional em matéria penal, visando concretamente o reconhecimento da sentença penal estrangeira e a execução, em Portugal, da condenação.
O reconhecimento da sentença transmitida para Portugal incumbe, invariavelmente, ao Tribunal da Relação do distrito judicial onde o arguido tivera a sua residência (ou a última conhecida) – cfr. arts. 13º/1 e 34º/1 da Lei 158/2015, em correspondência, aliás, com quanto prevê o art. 235º do Cód. de Processo Penal –, e sempre sob promoção do Ministério Público junto do mesmo Tribunal (cfr. arts. 16º/1 da Lei 158/2015).

Não tendo sido deduzida oposição ao promovido (cfr. art. 16º–A/3 Lei 158/2015) Cumpre, pois, apreciar do mérito do pedido formulado, e assim se o mesmo deve ser admitido – e em que termos ou com que configuração.

Uma primeira nota que se afigura relevante na economia da presente decisão.
O presente reconhecimento para execução tem por objecto amplo, como acima se relatou, o Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Criminal de Apelação de Menores de Haute–Corse, em 22/09/2006, e pelo qual o requerido AA foi condenado – pela prática um crime de Violação com tortura ou acto de barbárie – na pena compósita (em conformidade com a legislação penal francesa) de 15 anos de reclusão criminal (com um período de segurança de 10 anos), a que acresce uma medida de seguimento sócio–judicial durante 10 anos em acompanhamento de mais 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento.
Ora, o requerido cumpriu já a pena de 15 anos de reclusão criminal (com, incluso, o período de segurança de 10 anos), faltando apenas cumprir a pena complementar de seguimento socio-judicial por 10 anos –condicionando o eventual cumprimento de mais 5 anos de prisão –, cujo período teve o seu início em 18/07/2019.
Entretanto, por decisões (datadas de 27/06/2019 e de 16/05/2022), o tribunal de Aplicação de Penas determinou, no âmbito do aludido período de seguimento socio-judicial, o cumprimento de determinadas obrigações pelo requerido, as quais vieram a ser definitivamente fixadas (após recurso do mesmo ora requerido), por acórdão proferido a 20/10/2022 pela secção de aplicação de penas do Tribunal de Apelação de Toulouse.

Pois bem, neste conspecto, e no que à exacta determinação da natureza e objecto da presente decisão, ter–se–á em conta que a mesma tem, afinal, em vista o remanescente período de seguimento socio-judicial de 10 anos – actualmente em curso –, condicionante do cumprimento de 5 anos de prisão pelo requerido –, donde, será de seguir o regime do «Reconhecimento e execução de sentenças ou de decisões relativas à liberdade condicional emitidas por outro Estado-Membro», previsto nos arts. 34º e segs. da mesma lei 158/2015, sendo que, nos termos do art. 2º/2/a)/i)ii)/i) do mesmo diploma, « Para efeitos do disposto no título III, entende-se por:
a) «Decisão relativa à liberdade condicional», a sentença ou a decisão definitiva de uma autoridade competente do Estado de emissão proferida com base nessa sentença:
i) Que concede liberdade condicional; ou
ii) Que impõe medidas de vigilância;
(…)
i) «Condenação condicional», a sentença em virtude da qual a aplicação de uma pena é suspensa condicionalmente, mediante a imposição de uma ou mais medidas de vigilância, ou por força da qual são impostas uma ou mais medidas de vigilância em substituição de uma pena de prisão ou medida privativa de liberdade;».
Como se constata, aliás, o Ministério Público promove o reconhecimento em causa com base nesta última vertente do regime de reconhecimento previsto na Lei 158/2015.
Será, pois, nessa perspectiva que o pedido será analisado, considerando ademais que, como fica dito, após o cumprimento do período de 15 anos de prisão, novas decisões do tribunal de aplicação de penas configuraram o regime de seguimento socio-judicial nos termos acima referenciados, e sendo ademais seguro prever o nº3 do citado art. 2º da Lei 158/2015, que «As medidas de vigilância previstas na alínea i) do número anterior podem estar previstas na própria sentença ou ser determinadas numa decisão relativa à liberdade condicional tomada separadamente por uma autoridade competente».
Não obstante, adverte–se, não poderá deixar–se, na presente decisão, de ter bem presente a concreta configuração daquela condenação penal inicial, referenciada no ponto 1. do elenco acima efectuado – como melhor mais adiante se verá.

Isto dito, prossigamos.

In casu, e avaliando a verificação dos requisitos e pressupostos de viabilidade do ora promovido reconhecimento para execução, previstos na Lei 158/2015, de 17 de Setembro – diploma ao qual se reportarão doravante todas as disposições legais mencionadas, salvo indicação em contrário –, temos que a certidão da sentença foi devidamente transmitida com tradução em língua portuguesa, acompanhando competente formulário de requisição (cfr. arts. 35º/1 e 30º/1/2).
O requerido tem nacionalidade portuguesa e residência em Portugal, não se tendo oposto ao promovido, verificando-se assim que o reconhecimento em causa contribuirá para atingir o objectivo de facilitar a sua reinserção social – cfr. arts. 1º/1, 34º/1 e 35º/1.

Depois, temos também que o crime pelo qual o requerido foi condenado – e punível no Estado de emissão (França) com pena privativa da liberdade de máximo não inferior a 3 anos – respeita a infracção criminal a que se refere o art. 3°/1/bb), isto é, a crime de «violação», não se mostrando necessária, por conseguinte, a verificação da dupla incriminação.
Sempre se diga que, de todo o modo, os factos acima elencados também consubstanciariam o preenchimento dos pressupostos típicos do crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 171º/1/2 e 177º/5 do Cód. Penal – crime punível com pena de prisão entre um mínimo de 4 anos e 6 meses e um máximo de 15 anos –, donde também a dupla incriminação, caso fosse aqui condição necessária (cfr. nº2 do art. 3º), estaria salvaguardada.

Mais se constata que, percorridos os potenciais motivos de recusa do reconhecimento promovido, e prevenidos no art. 36º, não se verifica qualquer desses motivos – assinalando–se, em especial, e por referência ao nº1 da aludida disposição legal, que o requerido esteve presente no julgamento (al. h)), os factos pelos quais foi condenado ocorreram fora do território nacional (al. k)), e constituem, como já acima vimos, uma infracção criminal também nos termos da legislação nacional portuguesa (al. d)) ; ademais, a duração da medida de vigilância que resta por cumprir (e cujo termo se prevê venha a ocorrer em 18/07/2029) é superior a seis meses (al. j)).
Este tribunal é o territorialmente competente para reconhecer a sentença – cfr. art. 34º/1.

Em suma, mostram-se preenchidos todos os requisitos consignados nos preceitos supra referidos para que seja decretado o reconhecimento da Sentença que vem promovido, e assim também da sua exequibilidade em Portugal.

Porém, aqui chegados, impõe–se tomar em devida consideração o disposto no art. 39º da Lei 158/2015, onde, sob a epígrafe «Adaptação das medidas de vigilância ou das sanções alternativas», se previne o seguinte:
«1 - Se a natureza ou a duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa em questão, ou a duração do período de vigilância, forem incompatíveis com a legislação nacional portuguesa, a autoridade portuguesa competente pode adaptá-las à natureza e duração da medida de vigilância e da sanção alternativa, ou à duração do período de vigilância, aplicáveis na legislação nacional para infrações semelhantes, procurando que correspondam, tanto quanto possível, às que são aplicadas no Estado de emissão.
2 - Caso a medida de vigilância, a sanção alternativa ou o período de vigilância tenham sido adaptados por a sua duração exceder a duração máxima prevista na legislação nacional do Estado português, a duração da medida de vigilância, sanção alternativa ou período de vigilância resultantes da adaptação não pode ser inferior à duração máxima prevista na legislação portuguesa para infrações semelhantes.
3 - A medida de vigilância, sanção alternativa ou período de vigilância resultantes da adaptação não podem ser mais severos nem mais longos do que a medida de vigilância, sanção alternativa ou período de vigilância inicialmente impostos. ».
Pois bem, constata–se que a medida de seguimento sócio-judicial durante 10 anos acompanhado de uma pena 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento, não encontra, desde logo na sua natureza, correspondência na legislação penal portuguesa.
E também facilmente (crê–se) se constata que a medida que, em sede de execução penal no âmbito da ordem jurídica nacional, mais semelhanças materiais denota com aquela – considerando desde logo estarmos em presença de uma medida de acompanhamento, durante determinado período, de um agente condenado criminalmente, e colocado em liberdade na imediata sequência do cumprimento de um determinado período de prisão efectiva, acompanhamento esse sujeito a determinadas obrigações comportamentais por parte do mesmo sob pena de ter de cumprir um remanescente período de reclusão – é a medida de liberdade condicional, tal como se mostra prevista prima facie nos arts. 61º a 64º do Cód. Penal.
Donde, não oferece grandes dúvidas a necessária adaptação da medida punitiva de seguimento sócio-judicial, cominada pelos Tribunais franceses ao abrigo da respectiva legislação penal, e cuja execução se pretende por via do reconhecimento que vem promovido, aos pressupostos e requisitos aplicáveis à medida de liberdade condicional prevista desde logo no Código Penal português.

Pois bem, e isso fazendo, mais se evidencia que, também no que à duração da medida em causa, a mesma se mostra desconforme com aquilo que é imposto em sede do instituto da liberdade condicional no Código Penal.
Efectivamente, enquanto a medida de seguimento sócio-judicial que vem determinada tem uma duração de 10 anos e que este período é superior à pena de prisão (de 5 anos) que se mostra condicionada pelo aludido seguimento – ou seja, a qualquer momento daquele período, portanto mesmo depois de decorridos 5 anos sobre o início do mesmo, e em caso de incumprimento das obrigações impostas, poderia o condenado ser chamado a cumprir a pena de prisão em causa –, em sede do instituto da liberdade condicional no regime penal português o período da mesma é sempre correspondente ao remanescente da pena de prisão que resta cumprir, como liminarmente decorre do disposto no nº5 do art. 61º do Cód. Penal, onde expressamente se dispõe que «Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena».

Donde, consumando a devida adaptação da medida aqui em causa, na sua natureza e duração, à legislação penal portuguesa, temos que o período de liberdade condicional correspondente ao seguimento sócio-judicial adaptado, não pode exceder os 5 (cinco) anos, por ser essa a medida concreta da pena de prisão cuja execução se mostra pendente e, nesse âmbito, objecto de condicionamento – sendo inclusive que, coincidentemente, é até esse o período máximo de liberdade condicional legalmente permitido, como acabamos de verificar.
O que significa, e revertendo ao caso concreto, que tendo o período de seguimento sócio-judicial aqui em causa tido o seu início em 18/07/2019, o mesmo deverá ter–se por extinto desde 18/07/2024.
O que cumpre declarar.

Aliás, diga–se, em bom rigor nem sequer o requerido poderia ter ainda por cumprir qualquer período de privação de liberdade à luz da legislação penal portuguesa, pois que – e retomando aqui as considerações supra exaradas quanto ao teor da sua originária condenação criminal e à correspondência típica dos factos pelos quais foi condenado à mesma legislação –, já teria cumprido um período de prisão correspondente à pena máxima que lhe seria aplicável pelos mesmos factos à luz do Código Penal português.
Na verdade, e como vimos, a pena máxima aplicável ao requerido seria a de 15 anos de prisão (pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 171º/1/2 e 177º/5 do Cód. Penal), pelo que, tendo ele cumprido integralmente a pena inicial de 15 anos de prisão (com período de segurança de 10 anos), não haveria sequer qualquer medida de pena remanescente à qual aplicar adaptadamente o instituto da liberdade condicional.

Em suma, e para concluir, sendo embora de determinar o reconhecimento do Acórdão em matéria penal proferido em 22/09/2006 (e transitado em julgado em 30/09/2006) no processo nº 2/2006 do Tribunal Criminal de Menores de Haute-Corse, cumpre porém, e nessa sequência, declarar extinta, pelo cumprimento, a pena que ali foi aplicada ao ora requerido.
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III. Decisão

Em face de tudo o exposto, e ao abrigo das disposições legais supra citadas, o Tribunal de Relação do Porto, julgando o pedido do Ministério Público de reconhecimento e execução de sentença e decisão relativa a liberdade condicional parcialmente procedente nos termos que ficam expostos, decide:
1º, reconhecer o Acórdão em matéria penal proferido em 22/09/2006 (e transitado em julgado em 30/09/2006) no processo nº 2/2006 do Tribunal Criminal de Menores de Haute-Corse, que ali condenou o requerido AA na pena de 15 anos de reclusão criminal com um período de segurança de 10 anos, a que acresce uma medida de seguimento–sócio–judicial durante 10 anos em acompanhamento de mais 5 anos de prisão em caso de incumprimento das obrigações impostas no quadro desse seguimento, e assim concedendo o exequatur necessário à sua execução em Portugal,
2º, declarar integralmente já extintas, pelo seu cumprimento, tais penas ali aplicadas.

Informe de imediato a presente decisão à autoridade competente do Estado de emissão, identificada no requerimento inicial, e em conformidade com o disposto no art. 37º/1 Lei 158/2015, de 17 de Setembro.

Registe e notifique.

Sem custas (art. 5º da Lei 158/2015, de 17 de Setembro).
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Porto, 23 de Outubro de 2024
Pedro Afonso Lucas
Maria Joana Grácio
Raúl Esteves

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)