Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1480/13.0TYVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR OU GERENTE
LIQUIDAÇÃO
RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
Nº do Documento: RP202401161480/13.0TYVNG-A.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A responsabilidade imputada ao afectado pela qualificação da insolvência como culposa é subsidiária, ou seja, só pode ser efectivada após ter sido confirmada a insuficiência da massa insolvente para satisfazer os créditos reclamados no processo de insolvência.
II - A condenação genérica daquela responsabilidade carece de ser liquidada pelo administrador da insolvência ou pelo credor consoante estiver pendente ou o encerrado o processo.
III - Tendo o afectado pela condenação com fundamento na qualificação de insolvência como culposa, sido declarado insolvente, o credor está impossibilitado de reclamar o seu crédito neste processo de insolvência do afectado/devedor, sem a prévia liquidação do crédito (na hipótese de condenação genérica) e verificação do não pagamento integral ou parcial do respectivo montante indemnizatório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º1480/13.0TYVNG-A.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunta: Maria Eiró
Adjunta: Ana Lucinda Cabral
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO
“A..., Lda.” deduziu, em 26 de Setembro de 2022, o presente incidente de liquidação de sentença contra AA.
Para tanto alegou, em suma, que no âmbito do incidente de qualificação de insolvência que correu termos no apenso A) foi o Requerido condenado a “indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, cujo valor dever ser efetuado em liquidação de sentença.”, sendo que, no âmbito do processo de insolvência da “B... Lda.”, em 17-09-2014, foi proferida sentença que declarou a insolvência da sociedade e encerrou o processo por inexistência de bens.
Mais alega que forneceu à insolvente artigos do seu comércio melhor descritos nas faturas que identifica, sendo que o valor a título de capital ascendia a 1.688.97€.
As partes convencionaram, que na falta do pagamento do capital em dívida no prazo acordado, iria acrescer ao montante em dívida o pagamento da quantia de 25% sobre o seu valor global, com o valor mínimo de € 250,00, a título de cláusula penal, bem como de juros de mora à taxa legal acrescido da sobretaxa de 3%, também a título de cláusula penal, pelo que, acresce à respetiva importância o montante de 422.24€
A requerente deu entrada do procedimento de injunção o qual correu termos sob o nº6286/13.3YIPRT junto do Balcão Nacional de Injunções, sendo que à falta de oposição da sociedade insolvente foi aposta fórmula executória.
Em seguida, deu entrada de uma ação executiva para pagamento de quantia certa que corre termos sob o nº 867/13.2TBPNF junto do Juízo de Execução de Lousada - Juiz 2, permanecendo em aberto na presente data o montante de 5905.08€ considerando a nota de despesas e honorários da agente de execução nomeada.
Assim, deve ser o presente incidente admitido e liquidado o valor em que o Requerido foi condenado a pagar à Requerente nos dias de hoje em 5.905.08 €.
O requerido deduziu oposição, pedindo que seja absolvido por ocorrer causa de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Para tanto alegou que, por sentença proferida em 14/4/2021, já transitada em julgado, foi declarado insolvente no âmbito do processo n.º 179/21.8T8AMT que correu termos no 2.º juízo de comércio de Amarante.
Na presente data e nesse processo está a correr termos a exoneração do passivo restante. É entendimento do requerido que a requerente deveria ter reclamado o seu crédito nos seus autos de insolvência pessoal e/ou ter interposto uma ação de verificação ulterior de créditos, o que não fez. Assim, o seu direito precludiu.
Notificada a requerente para se pronunciar quanto ao teor da oposição, veio a mesma responder.
Para tanto alegou que o crédito que foi reconhecido no âmbito do processo de insolvência pessoal do aqui requerido é um crédito de natureza comum.
Ao invés, o crédito a constituir no presente incidente terá como base a responsabilidade civil por fatos ilícitos e não será, como bem sabe o requerido, afetado pela exoneração do passivo restante e nunca o requerente o poderia ter reclamado no processo de insolvência pessoal do aqui requerido na medida em que, conforme salienta a própria sentença, o valor a liquidar terá de ser fixado em sede de incidente de liquidação de sentença.
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Proferiu-se decisão que julgou verificada a exceção de erro na forma do processo, e absolveu o requerido da instância.
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Inconformada com a decisão, a Autora interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
A. A sentença padece de nulidade nos termos o artigo 615º/1 d) in fine do C.P.C., na medida que consta o seguinte da sentença proferida pelo tribunal da quo “Entende este tribunal que nada obstava que a requerente tivesse reclamado o crédito sobre o insolvente no processo de insolvência pessoal do requerido com base na sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência, alegando os factos necessários para o apuramento do valor do crédito”.
B. Note-se o que é dito na sentença de incidente de qualificação de insolvência sobre esta matéria “e) Condenar o afectado a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, cujo valor dever ser efectuado em liquidação de sentença.” (negrito nosso)
C. Pelo que, o tribunal ad quo conhece de matérias que já transitaram em julgada na medida em que sufraga um entendimento sob o qual o recorrente não teria de deduzir o presente incidente de liquidação de sentença.
D. Tal não poderia ser possível na medida em que iria violar o artigo 358º/2 e 609º/2 e 628º, sendo a decisão nula de acordo 615º/1 d) todos do C.P.C.
E. Apensa após a prolação de uma sentença é que seria constituir o crédito a favor do aqui recorrente, e não de uma mera reclamação de créditos e/ou ação de verificação ulterior de créditos.
F. A solução preconizada pelo tribunal ad quo na verdade é uma solução impossível o que integra na verdade uma verdadeira denegação de justiça.
G. O tribunal ad quo sabe de antemão que o processo de insolvência pessoal instaurado contra o recorrido foi encerrado por insuficiência de massa em 31-03-2023.
H. Necessariamente, a recomendação dada pelo tribunal ad quo, na medida em que o recorrente apresentasse uma reclamação de créditos e/ou acção de verificação ulterior de créditos tornar-se-ia impossível.
I. O que leva que na verdade coloca em crise o artigo 20º da C.R.P.
J. Por outro lado, mesmo no caso da exoneração do passivo restante a ser concedida ao aqui recorrido, o crédito peticionado sobre este não se extingue ao abrigo do artigo 245º do C.I.R.E.
K. Não se está perante um mero crédito, mas ao invés, o apuramento de uma eventual responsabilidade civil mesmo em caso de insolvência do aqui recorrido não podendo haver lugar à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
L. Neste mesmo sentido o Ac. do Tribunal da Relação do Porto proferido em 01/06/2010 disponível para consulta no site www.dgsi.pt
M.E ainda o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça proferido em 07-11-2019.
N. Pelo que, afigura-se que ao invés do que sucedeu a ação deveria ter prosseguido
O. Inexistindo qualquer erro na forma de processo.
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber, para além da nulidade apontada à decisão, se a liquidação da condenação no pagamento de uma indemnização aos credores emergente de responsabilidade por insolvência culposa, devia ter sido apresentada no processo de insolvência do afectado por aquela qualificação e não no presente processo no âmbito do qual correu o incidente de qualificação da insolvência da sociedade devedora.
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Da nulidade
A Recorrente aponta à decisão uma nulidade decorrente da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPCivil, ou seja, argumentando que o juiz pronunciou-se sobre uma matéria que já transitou em julgado ao sufragar o entendimento sob o qual o recorrente não teria de deduzir o presente incidente de liquidação de sentença.
O vício consistente na pronúncia indevida está estritamente conexionado com o princípio do dispositivo.
Como corolário do princípio do dispositivo, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras—v. art. 660.º, n.º 2 do C.P.Civil.
A nulidade prevista neste preceito legal, nas palavras de A. dos Reis[1], desenha-se assim: A sentença conheceu de questão que nenhuma das partes submeteu à apreciação do juiz.
A questão para efeito de julgamento alicerça-se na causa de pedir (factos concretos que sustentam o pedido) e/ou nas excepções invocadas pelo réu.[2]
Afigura-se-nos manifesto que a nulidade apontada não se verifica porquanto o tribunal, na decisão, limitou-se a explicar os motivos pelos quais entendia ocorrer erro na forma do processo, pelo que não se pronunciou indevidamente sobre qualquer matéria.
Pelo exposto, considera-se inteiramente válida a decisão, não incorrendo no vício invocado pela recorrente.
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III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)
1.Por sentença proferida em 13 de dezembro de 2015, transitada em julgado, proferida neste incidente de qualificação de insolvência, foi qualificada como culposa a insolvência de “B..., Lda.”, declarando-se afetado por essa qualificação o requerido AA, sendo este condenado a, entre outras coisas, indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos pela insolvente em valor a apurar em liquidação de sentença.
2.Por sentença proferida em 13 de abril de 2021 no processo de insolvência que corre termos sob o número 179/21.8T8AMT do J2 do tribunal de Comércio de Amarante foi declarada a insolvência do requerido AA.
3.Por despacho de 6 de outubro de 2021 foi encerrado o processo por insuficiência de bens e deferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo, aqui, requerido AA no processo de insolvência mencionado em 2. estando a decorrer o período da fidúcia.
4.A requerente reclamou no processo de insolvência mencionado em 2 créditos no valor de €4.035,91 nos termos da reclamação de créditos cuja cópia se encontra junta em 30/6/2023 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, os quais foram reconhecidos nesse processo de insolvência pela Sr. AI e posteriormente por sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em 26-10-2021.
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IV-DIREITO
A recorrente, no presente processo de insolvência da sociedade em causa, deduziu contra o afectado pela qualificação da insolvência como culposa, pedido de liquidação da indemnização a que foi condenado.
O tribunal a quo absolveu o requerido por se ter entendido que a requerente devia ter reclamado esse crédito no processo de insolvência do requerido/afectado que estava pendente na altura.
Portanto, a questão que cumpre dirimir resume-se a saber em qual dos processos de insolvência a requerente/credora devia apresentar o pedido de liquidação da condenação do requerido, na qualidade de afectado com a qualificação de insolvência: no presente processo no âmbito do qual foi proferida a condenação do requerido como responsável pelo prejuízo causado aos credores ou no seu processo de insolvência, posteriormente entrado em juízo.
A resolução desta questão implica a revisitação do regime legal aplicável.
O objectivo do incidente da qualificação como culposa, como esclarece Catarina Serra[3], é apurar se houve culpa de algum ou de alguns sujeitos na criação ou no agravamento da situação de insolvência e aplicar certas medidas (sanções) aos culpados.
Segundo o artigo 186.º, n.º 1 do CIRE a insolvência deve ser qualificada como culposa na hipótese de ter sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Os administradores, de direito ou de facto, afectados pela qualificação da insolvência como culposa, devem ser identificados na sentença, que fixará o respectivo grau de culpa, inibe-os para administrarem patrimónios de terceiros por um período de 2 a 10 anos e condena-os a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados (cfr. art. 189.º, n.º 2, als. a) e e) do CIRE na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11.11).
A alteração do artigo 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE (com a introdução das palavras até e máximo-até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos) teve como objectivo o esclarecimento sobre a quantificação da indemnização dos sujeitos afectados pela qualificação.
Segundo Catarina Serra[4] “O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (novo) critério, disponibilizado no artigo 189.º, n.º 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.”
Acrescenta, com interesse, que “ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização, o que significa que em nenhum caso (seja qual for o montante dos danos) a indemnização poderá ser superior àquele montante.”
Conclui que “com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (…) e reaproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo.”
A condenação no pagamento de uma indemnização das pessoas afectadas pela qualificação constitui, por um lado, um efeito imperativo, e por outro, o apuramento do quantum não obedece automaticamente ao critério do “montante não satisfeito dos créditos”.
A lei determina que o juiz fixe o valor das indemnizações devidas aos credores, ou, caso tal não seja possível em virtude de não dispor dos elementos necessários ao cálculo dos prejuízos sofridos, deverá estabelecer os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença (cfr. n.º 4).
Como sublinham Luis Carvalho Fernandes e João Labareda[5], o significado relevante do n.º 4 será o de permitir ao juiz referenciar factores que, designadamente em razão de circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas do passivo menos o resultado do activo, abrindo-se assim espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação da insolvência.
Nesta matéria, a jurisprudência, seguindo a orientação do Tribunal Constitucional, tem interpretado a conjugação da alínea e) do n.º 2 e o n.º 4 do art. 189.º do CIRE à luz dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso.
Com efeito, no Acórdão n.º 280/2015, de 20.5.2015[6], do Tribunal Constitucional, abordando lateralmente esta questão, declarou-se a este respeito o seguinte : “…a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.” (itálico nosso)
Assim, por se tratar de uma indemnização com uma das suas vertentes de natureza sancionatória, concluiu-se, no Acórdão desta Relação, de 29/06/2017[7], que o afectado pela qualificação deve ser condenado a indemnizar os credores da insolvente pela diferença entre aquilo que cada um deles recebe em pagamento pelas forças da massa insolvente, após liquidação, e o valor do seu crédito, não podendo a indemnização ser superior ao valor do prejuízo causado à massa com a prática dos factos fundamentadores da qualificação.
No caso concreto, o requerido foi condenado a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos pela insolvente em valor a apurar em liquidação de sentença.
Na hipótese do tribunal proferir uma condenação genérica da indemnização, como sucedeu no incidente de qualificação da insolvência, incumbe ao credor deduzir o competente incidente de liquidação nos termos do artigo 358.º, n.º 2 e 609.º, n.º 2 do C.P.Civil e a instância considera-se renovada.
Segundo Vaz Serra [8] “A aplicabilidade do nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil não depende de ter sido formulado um pedido genérico; mesmo que o autor tenha deduzido na acção um pedido de determinada importância indemnizatória, se o tribunal não puder averiguar o exacto valor dos danos, deve relegar a fixação da indemnização, na parte que não considerar ainda provada, para execução de sentença…”.
Por conseguinte, no incidente de liquidação o tribunal irá fixar o quantum da indemnização que é devida ao requerente/credor em conformidade com os pressupostos legais e quadro factual apurado.
Após a fixação do montante indemnizatório, e obtido o pagamento à custa do património do afectado, Soveral Martins[9] observa que “o CIRE não esclarece a quem deve ser efetuado pagamento: à massa ou a cada um dos credores?” E conclui, acompanhando o raciocínio de Maria do Rosário Epifânio[10], que “apesar de no art. 189º, 2, e), se ler que as pessoas afetadas serão condenadas ‘a indemnizarem os credores do devedor’, o pagamento direto a cada credor na pendência do processo de insolvência iria permitir que surgissem violações ao princípio da igualdade ou à graduação de créditos realizadas. As indemnizações devem, por isso, integrar primeiro a massa insolvente e, só depois, servir para pagar aos credores. É, também, possível invocar o regime do art. 82º, 3, b), cuja aplicação por analogia parece fazer sentido. Este preceito atribui exclusiva legitimidade ao administrador da insolvência para, na pendência do processo de insolvência, propor e fazer seguir as ‘ações destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência. (...)”
Neste sentido, consignou-se no Acórdão desta Relação do Porto, de 21/01/2020[11]: “Por isso, concluímos que, na pendência do processo de insolvência, devendo a indemnização integrar a massa insolvente, qualquer ação judicial, de natureza declarativa ou executiva, que tenha que ser intentada para tornar efetiva tal indemnização, seja para liquidar o seu montante seja para o cobrar, deve ser intentada pelo administrador da insolvência, na sua qualidade de órgão da insolvência, a quem compete, entre outras funções, a de administração e liquidação da massa insolvente. Por conseguinte, na pendência do processo de insolvência, a legitimidade ativa para intentar as aludidas ações pertence ao administrador da insolvência e não ao credor individual.”
Com o encerramento do processo de insolvência, acrescenta o referido autor, cessam em regra as atribuições do administrador da insolvência (art. 233.º, 1, b)) e os credores da insolvência e da massa podem exercer os seus direitos nos termos do art. 233.º, 1, c) e d) e, por maioria de razão, contra o afectado pela qualificação culposa da insolvência.
Portanto, nas palavras de Maria do Rosário Epifânio[12] “Esta responsabilidade aquiliana é subsidiária, pois só quando a massa é insuficiente para a satisfação de todos os credores é que ela é acionada- fica, por isso, sujeita a uma condição suspensiva. (sublinhado nosso)
Ora, estando o tribunal sujeito, na fixação da indemnização, ao limite máximo do montante dos créditos não satisfeitos e sendo a responsabilidade do afectado meramente subsidiária, terá de se aguardar pela liquidação do activo para apurar o valor total dos créditos que falta satisfazer.
Sem a quantificação do crédito emergente da responsabilidade por factos ilícitos imputada ao afectado pela qualificação da insolvência como culposa, o credor, aqui recorrente, estava impossibilitado de apresentar reclamação de créditos no processo de insolvência respeitante àquele.
Acresce que nesse processo de insolvência do afectado pela condenação, o aqui recorrente reclamou o seu crédito com fundamento na responsabilidade do insolvente/afectado como fiador do crédito que era da responsabilidade da sociedade insolvente.
Este processo foi declarado encerrado em 30 de Março de 2023 por insuficiência de bens.
O presente incidente de liquidação foi deduzido em 26 de Setembro de 2022, por apenso ao processo de insolvência da sociedade devedora.
Ou seja, quando o processo de insolvência do afectado foi encerrado ainda não estava sequer liquidada a condenação a que foi sujeito pela situação de insolvência culposa da sociedade.
Deste quadro factual e do regime legal acima exposto estamos agora em condições de concluir da seguinte forma:
-a fixação do montante indemnizatório decorrente da responsabilidade do afectado, na medida em que estava dependente do apuramento do crédito da recorrente, eventualmente não satisfeito nos dois processos de insolvência (da sociedade e do afectado pela condenação) impossibilitava a apresentação da reclamação de crédito no âmbito do processo de insolvência deste último por se desconhecer o seu quantum.
-considerando a responsabilidade subsidiária do afectado, a dedução do incidente de liquidação no momento em que ocorreu determinava que fosse suspensa a instância em razão da reclamação do crédito contra o fiador/afectado no respectivo processo de insolvência justamente para se saber se iria receber, nesse processo, o pagamento do crédito.
Assim sendo, por falta de liquidação do crédito emergente da condenação do requerido pela insolvência culposa, o caso não é subsumível à norma consagrada no art. 128.º do CIRE que obriga os credores a reclamar a verificação dos seus créditos por requerimento ou através de ação para verificação ulterior de créditos ou de outros direitos, nos termos dos artigos 146º a 148º do C.I.R.E., sendo que a operação de fixação do quantum do crédito em dívida dependia ainda do encerramento do processo de insolvência do requerido.
Mesmo que se aceite como admissível a liquidação prévia do crédito na reclamação dirigida ao processo de insolvência do requerido, não era possível sequer ao credor alegar os factos destinados a fixar o seu crédito com fundamento na insolvência culposa sem saber antecipadamente qual o valor exacto que faltava satisfazer uma vez que tinha reclamado o crédito com fundamento na garantia dada pelo requerido na qualidade de fiador.
Por outro lado, na hipótese de se obrigar o credor a reclamar o seu crédito, não liquidado, no processo de insolvência do requerido, ocorria evidente duplicação de pedidos pois já tinha reclamado o seu (e mesmo) crédito invocando a qualidade de fiador do afectado.
Em suma, independentemente da questão de saber qual o processo em que devia ter sido deduzido o incidente de liquidação do crédito cuja causa de pedir consiste na condenação do afectado no pagamento de uma indemnização aos credores (como apenso do processo de insolvência da sociedade ou do processo de insolvência do próprio afectado) a verdade é que tal só seria possível após o encerramento dos dois processos insolvenciais mais concretamente do segundo instaurado contra o requerido.
Aqui chegados, podemos seguramente alinhar o seguinte raciocínio:
A responsabilidade imputada ao afectado pela qualificação da insolvência como culposa é subsidiária, ou seja, só pode ser efectivada após se ter confirmado a insuficiência da massa insolvente para satisfazer os créditos reclamados no processo de insolvência.
Ademais, a condenação genérica daquela responsabilidade carece de ser liquidada pelo administrador da insolvência ou pelo credor consoante estiver pendente ou o encerrado o processo.
Tendo o afectado pela condenação, no incidente de qualificação da insolvência, sido declarado insolvente, o credor está impossibilitado de reclamar o seu crédito neste processo de insolvência do afectado/devedor, sem a prévia liquidação do crédito (na hipótese de condenação genérica) e verificação do não pagamento integral ou parcial do respectivo montante indemnizatório.
Por todos os motivos aduzidos, o recurso merece provimento.
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V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a decisão e determinam a admissão do incidente de liquidação e tramitação subsequente.
Custas pelo Recorrido.
Notifique.

Porto, 16/1/2024
Anabela Miranda
Maria Eiró
Ana Lucinda Cabral
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[1] v. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág.143.
[2] Neste sentido cfr. Freitas, José Lebre de, A Acção Declarativa Comum, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 334.
[3] Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 156.
[4] Julgar, n.º 48, O Incidente de Qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2002-Algumas observações ao regime com ilustrações da jurisprudência, pág. 27.
[5] Ob. cit., pág. 698, nota 16.
[6] Disponível em www.dgsi.pt
[7] Disponível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, v. Ac.Rel.Porto de 23/02/2017, de 15/01/2019 e de 24/09/2019 e Ac. Rel. Coimbra de 16/12/2015.
[8] RLJ, 114.º, págs. 309/310.
[9] Um Curso do Direito da Insolvência, 2015, pág. 388.
[10] Manual do Direito da Insolvência, 2015, 6.º edição, Almedina, pág. 142.
[11] v. ainda os Acs. do TRC de 16/12/2015 e do TRG de 22/09/2022 disponíveis em www.dgsi.pt.
[12] Ob. cit. pág. 141.