Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1397/13.8TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRIVAÇÃO DO USO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP201406301397/13.8TJPRT.P1
Data do Acordão: 06/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Quando o fundamento da impugnação da decisão da matéria de facto tenha por base a prova gravada o recorrente deve indicar, sob pena de rejeição, com exactidão as passagens da respectiva gravação.
II- A “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.
III- Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor, não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.
IV- Bastará, no entanto, que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, para que o dano exista e a indemnização seja devida.
V- Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1397/13.8TJPRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, 1º Juízo Cível
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
Sumário:
I- Quando o fundamento da impugnação da decisão da matéria de facto tenha por base a prova gravada o recorrente deve indicar, sob pena de rejeição, com exactidão as passagens da respectiva gravação.
II- A “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.
III- Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor, não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.
IV- Bastará, no entanto, que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, para que o dano exista e a indemnização seja devida.
V- Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua …, N.º ., º .º, …, Maia veio instaurar a presente acção declarativa de condenação, para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, sob a forma sumária, contra a C…-Companhia de Seguros, S.A. com sede no …, .., Lisboa peticionando que a presente acção seja julgada totalmente provada e procedente e, em consequência ser a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 7.039,09 (sete mil e trinta e nove euros e nove cêntimos), acrescida de juros legais desde a citação até total e efectivo pagamento.
Alega para tanto, em resumo que na sequência de acidente de viação ocorrido no dia 13 de Setembro de 2010, pelas 22:40 horas, no cruzamento entre a Estrada Nacional .. (…) e a Rua …, Porto, no qual foram intervenientes os veículos ligeiros de passageiros com as matrículas ..-..-RQ e ..-JA-.., aquele primeiro sua propriedade e conduzido por si na altura do acidente, sofreu danos de origem patrimonial e não patrimonial.
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Válida e regularmente citada a Ré, contestou alegando ser o Autor, condutor RQ, o único responsável pelo acidente dos autos, pugnando, por isso, pela improcedência da acção.
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Teve lugar a audiência prévia onde foram fixados os temas de prova e se proferiu despacho saneador.
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Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.
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A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de 1.839,54 € (mil oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos), relativos à reparação do veículo (1.833,17 €) e da certidão (6,37 €), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1.ª - O presente recurso visa (i) a alteração da matéria de facto e (ii) a alteração da fixação dos danos;
2.ª - Entende o recorrente que determinada matéria dada como não provada deverá passar a provada, com as legais consequências.
3.ª - Desde logo quanto aos alegados aborrecimentos, perdas de tempo, transtornos e angústias sofridas pelo recorrente com a perda desse veículo.
4.ª - Salvaguardando o disposto no artigo 640º do CPC o ora recorrente vem especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mormente viciados por erro de julgamento, ao considera-los como não provados:
- Que o A. ao utilizar os transportes públicos, perdeu “imenso tempo”;
- Que o A. não raras vezes, ficava em casa, abstendo-se de se deslocar porque não tinha meio de transporte;
- Que o A. no período que o veículo esteve na oficina, ficou impossibilitado de dar os seus passeios com a família, a visitar amigos e familiares, a ir às compras aos hipermercados, de ir ao médico;
- Que por virtude do presente sinistro, a vida diária do autor sofreu grandes transtornos, deixando de executar certas tarefas e actividades ligadas ao seu prazer pessoal;
- Que o A. sofreu incómodos consideráveis com a privação da sua viatura, angustia e ansiedade, assim como todo o estado de espírito de alguém, como o autor, tem a propriedade e o uso de algo de que se vê privado sem contar;
5.ª - Sobre a matéria supra referida, depôs a testemunha D…, solteira, jurista, que prestou juramento legal e aos costumes disse ser amiga do Autor desde 2001, ficando o seu depoimento registado através de gravação.
6.ª - Compulsemos o seu depoimento, a mesma referiu que o autor: “ Não tinha mais nenhum carro”, que “vivia com a mãe que não tinha carro”, que “ É no Porto que tem escritório”, que “ Tinha muitos julgamentos. Eu cheguei a leva-lo a Campanhã e à camioneta.”, que “Ia de transportes públicos ou eu ia com ele aos julgamentos” , que a privação do veículo causou muitos transtornos e incómodos ao recorrente, que “Foi um transtorno na vida do B…. Ai isso foi…”, que “(o Autor) vive na Maia mais mas a estação E… fica a amais de quinze minutos.” E que “ (o Autor) pôs em cogitação alugar um automóvel, mas era muito caro.”
7.º - Entendemos que o depoimento da referida testemunha se mostrou natural, imparcial, credível e conhecedora directa dos factos. Este depoimento, apreciado em toda à sua extensão, e sem imposição de ónus injustificados, levam à conclusão segura da prova positiva dos seguintes factos:
- Que o A. ao utilizar os transportes públicos, perdeu “imenso tempo”;
- Que o A. não raras vezes, ficava em casa, abstendo-se de se deslocar porque não tinha meio de transporte;
- Que o A. no período que o veículo esteve na oficina, ficou impossibilitado de dar os seus passeios com a família, a visitar amigos e familiares, a ir às compras aos hipermercados, de ir ao médico;
- Que por virtude do presente sinistro, a vida diária do autor sofreu grandes transtornos, deixando de executar certas tarefas e actividades ligadas ao seu prazer pessoal;
- Que o A. sofreu incómodos consideráveis com a privação da sua viatura, angustia e ansiedade, assim como todo o estado de espírito de alguém, como o autor, tem a propriedade e o uso de algo de que se vê privado sem contar; (admitindo-se aqui que este facto possa levar uma resposta restritiva ou explicativa, atenta alguma matéria conclusiva).
8.ª - A privação do veículo acarretou para o autor perdas de tempo e aborrecimentos que se traduzem numa agressão à sua saúde, de acordo com a definição da Organização Mundial de Saúde.
9.ª - Ora, estes danos assim considerados merecem a tutela do direito, como danos não patrimoniais, os quais se devem fixar em € 750,00, sem prejuízo do recurso à equidade por parte do Tribunal, o que se requer.
10.ª - Ao não decidir assim, o Tribunal recorrido violou, entre outras disposições legais, o disposto nos art.ºs 483.º e 496.º do Código Civil.
11.ª - Quanto ao dano decorrente da desvalorização do veículo, o ora recorrente vem especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, mormente viciados por erro de julgamento, ao considera-los como não provados:
- Que o RQ à data do sinistro estava em perfeito estado de conservação, nunca antes tinha sofrido um sinistro;
- Que o RQ esteve sempre guardado em garagem privativa e alvo de uma “manutenção invejável”;
- Que por mais bem reparado que seja, sempre se notará que se trata de um veículo sinistrado, o que o torna menos atraente na troca/venda e implica uma desvalorização do seu valor comercial em quantia nunca inferior a cerca de 750,00;
12.ª - Sobre esta concreta matéria, prestou depoimento a testemunha F… depoimento devidamente gravados através do sistema de gravação digital da plataforma em uso no Tribunal, que, Inquirida pelo mandatário do autor, referiu o seguinte: “pintei a frente toda do carro” “o veículo entrou em meados de Setembro e saiu no final de Dezembro.”
Inquirido se já conhecia este veiculo antes do acidente referiu que:
“Sim.”
À Pergunta se o veículo do autor era uma veículo em perfeito estado de conservação, comodidade e segurança respondeu que:
“Era completamente novo”
“Só foi a frente pintada.”
“O carro nunca ficou o mesmo a 100%.”
“o carro tem sempre umas pequenas… que a gente não consegue fazer, como que ele vem de fabrica feito. Isso é uma realidade.”
“ Há pessoas que notam que o carro foi batido”.
À pergunta se ao nível da pintura nota-se uma diferença da pintura entre, respondeu
que:
“nota-se um bocado.”
Respondeu ainda que:
“ Porque é assim, uma pintura nova numa coisa que já tem uns anos fica com uma destoação”.
Inquirida se há uma destoação, respondeu que:
“exactamente”
Perguntado à testemunha se a pintura não é rigorosamente a mesma, respondeu que:
“não é uma pintura. É uma repintura. Chama-se uma repintura”
Perguntado ainda se há alguma diferença entre a pintura original e a nova pintura,
respondeu que:
“exactamente”
E perguntado se isso nota-se, respondeu que:
“como é nova…”
Inquirida a testemunha, qual era em termos efectivos essa desvalorização, qual era a diferença de ter esse carro naquelas condições, depois de reparado, e o mesmo carro se não tivesse nenhum acidente, respondeu que:
“ há uma desvalorização cerca de € 1.000,00, anda a volta disso”
Perguntado o porquê de dizer que essa desvalorização era de € 1.000,00, e qual era o valor deste carro, o mesmo referiu que:
“ o carro na altura valia cerca de € 6.000,00, á volta de € 5.500,00 € 6.000,00”.
Perguntado à testemunha se entende que uma desvalorização, por exemplo, que aqui esta pedida de € 750,00, é uma desvalorização justa, a mesma respondeu:
“Exactamente”
12.ª - o depoimento da testemunha indicada, que revelou conhecimentos quanto ao valor do carro antes do acidente, referindo que o mesmo se encontrava em muito bom estado antes do acidente e referiu, concretamente, que o carro iria, com a pintura apenas da frente, sofrer uma descoloração, porquanto se tratava de uma repintura. Obviamente, esta testemunha não é um perito–mas nos dias de hoje quem o será–mas revelou, de forma espontânea e sem hesitação, conhecimentos, quer do valor da viatura antes do acidente quer depois da reparação.
13.ª - Obviamente, uma pintura original com 11 anos não terá a mesma cor que uma pintura recente, tratando-se, como refere a testemunha, de uma repintura. Este é um facto da vida…
14.ª - Assim, aqui também entendemos que o depoimento da referida testemunha se mostrou natural, imparcial, credível e conhecedor directo dos factos. Este depoimento, apreciado em toda à sua extensão, e sem imposição de ónus injustificados, e sempre recorrendo às regras que a experiencia da vida nos dá, levam à conclusão segura da prova positiva dos seguintes factos:
- Que o RQ à data do sinistro estava em perfeito estado de conservação;
- Que o RQ foi sempre alvo de uma “manutenção invejável”;
- Que por mais bem reparado que seja, sempre se notará que se trata de um veículo sinistrado, o que o torna menos atraente na troca/venda e implica uma desvalorização do seu valor comercial em quantia nunca inferior a cerca de 750,00;
15.ª - Deste modo, deveria ter o tribunal recorrido condenado a recorrente na importância de 750,00 euros, a título de desvalorização da viatura.
16.ª - Ao assim não decidir, o tribunal recorrido violou, entre outras disposições legais, o estipulado nos art.ºs 483.º, 562.º e 564.º do Código Civil.
17.ª - Quanto aos danos da privação do veículo e revertendo ao caso dos autos, com interesse para a questão que nos ocupa, resultaram provados os seguintes factos:
v) O RQ ficou impedido de circular, e a sua reparação apenas ficou concluída em 30/12/2010, período durante o qual o A. se viu privado do seu veículo.
x) O veículo em causa, de cinco lugares, era o único veículo que o Autor possuía.
w) O RQ é utilizado diariamente pelo Autor para as deslocações pessoais, e para as deslocações profissionais.
y) Sendo usado pelo A. e seus familiares para as deslocações profissionais, pessoais, para ir às compras, para actividades de lazer.
z) Na falta do veículo, o A. pediu por vezes veículos emprestados.
aa) Utilizando também os transportes públicos.
18.ª - Mesmo considerando só este acervo factual, temos, assim, que o A. alegou e provou que se viu privado do uso e fruição das utilidades do seu veículo automóvel de matricula ..-..- RQ, utilidades essas que normalmente até á data do acidente retirava da aludida viatura, pois que a utilizava na sua vida corrente e profissional.
19.ª-. É, pois, de concluir que, no caso, se verifica o dano resultante da privação do uso.
20.ª - Não se tendo provado o montante directo e concreto dos prejuízos efectivos resultantes para o A. da privação do uso do veículo, deverá a avaliação do dano em causa ser determinado pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566.º, n.º 3 do C.C. (cfr. cit. Acs. da R.C. de 15/05/2011, proc. 686/10.8TBCNT.C1 e de 06/03/2012, proc. 86/10.0T2SVV.C1; Ac. da R.P. de 17/03/2011, proc. 530/09.9TBPVZ.P1; Acs. do S.T.J. de 03/05/2011, proc. 324/10.9TBMAI.P1 e de 11/12/2012, proc. 549/05.9TBCBR-A.C1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.).
21.ª - Ora, no caso dos autos e como acima se referiu, provou-se que o A. utilizava o RQ, diariamente, designadamente, nas deslocações para o trabalho, sendo aquele o seu único meio de transporte próprio.
22.ª- Neste contexto factual, em termos de equidade e considerando as decisões jurisprudenciais que sobre esta matéria têm vindo a ser proferidas, entendemos que será de atribuir ao A. uma indemnização equivalente a €20,00 (vinte euros) por cada dia de privação do uso do dito veículo.
23.ª - Assim sendo, o valor da indemnização a título de dano de privação de uso será o correspondente à multiplicação do número de dias decorridos desde a paralisação da viatura até 30 de Dezembro de 2012, correspondente a uma indemnização de € 2.160,00 (108 dias x €20,00), que deverá ser atribuída ao autor, aqui recorrente.
24.º - Ora, dos autos não resultou provado que: (i) que tenha sido entregue ao lesado um veículo com as características semelhantes, (ii) que lhe tenha sido facultado a sua utilização durante o período de privação, (iii) que lhe tenha sido atribuído quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo semelhante, (iv) que lhe tenha sido posto à disposição qualquer quantia em dinheiro e que o autor tenha recusado.
25.ª - Quanto a esta ultima questão, apenas resultou provado que u) A Ré não assumiu a totalidade da responsabilidade pelo sinistro, pretendendo uma responsabilidade de 50/50 para cada um dos condutores, tendo o A. procedeu à reparação a expensas sua, com a qual despendeu a quantia de € 3.366,34
26.ª - Ora, não basta que a Ré tenha assumido a responsabilidade. Deveria ter alegado e provado que, em determinada data, pôs à disposição do autor determinada quantia e que este ilegitimamente, recusou.
27.ª - Ao assim não decidir, o Tribunal recorrido, violou, entre outras disposições legais, o disposto nos art.ºs 483.º, 562.º e 564.º, todos do Código Civil.
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Devidamente notificada a Ré contra-alegou, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
b)- decidir em conformidade tendo em conta a decisão que venha a recair sobre a impugnação da matéria de facto.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A.1) FACTOS PROVADOS
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pela primeira instância:
a) No dia 13 de Setembro de 2010, pelas 22h40m, ocorreu um acidente de viação no cruzamento entre a Estrada Nacional .. (…) e a Rua …, no concelho e comarca do Porto
b) No qual foram intervenientes os veículos ligeiros de passageiros com as matrículas ..-..-RQ e ..-JA-...
c) O primeiro veículo, propriedade do A., era conduzido pelo mesmo, e o segundo veículo era conduzido pelo seu proprietário G….
d) No momento imediatamente anterior ao embate, o RQ circulava na Estrada Nacional .. (…), no sentido …/…o.
e) No local do acidente a Estrada Nacional n.º .. (…) forma um cruzamento com a Rua …, estando este cruzamento regulado por sinalização semafórica vertical e horizontal.
f) Nesta Estrada Nacional n.º .. (…) em ambos os sentidos, existem dois semáforos verticais, colocados do lado direito da via, no passeio, um que se refere a quem segue em frente, e outro que se refere a quem vira à direita para a Rua …, quer para quem pretende circular no sentido de …, quer no sentido de ….
g) E existem dois semáforos horizontais paralelos para quem circule na Estrada Nacional .. (…), em ambos os sentidos, um para quem segue em frente e outro que se destina a quem pretende mudar de direcção à esquerda para a Rua …, quer para quem pretende circular no sentido de …, quer no sentido de ….
h) Nesta Estrada Nacional .. (…) em ambos os sentidos, existem ainda dois semáforos verticais, colocados do lado esquerdo da via, bem como dois sinais de trânsito de STOP, no separador central, onde se forma uma terceira hemi-faixa de rodagem para quem pretende virar à esquerda para a Rua …, quer para quem pretende circular no sentido de …, quer no sentido de ….
i) Tanto o semáforo horizontal como o semáforo vertical da Estrada Nacional .. (…) para quem segue em frente, em ambos os sentidos, apresentam as cores verde, amarelo e vermelhas alternadas, sendo que o semáforo vertical para quem vira à direita para a Rua … só apresenta cor amarela quando os outros dois sinais supra referidos têm cor verde, não apresentando qualquer cor nas restantes situações.
j) Os semáforos verticais e horizontais existentes no local, para quem pretende virar à esquerda para a Rua … só passam a verde quando os semáforos para quem circule em ambos os sentidos da Estrada Nacional .. (…) passa para vermelho, ou seja, funcionando os semáforos da seguinte forma: os sinais verticais e horizontais abrem para verde na Estrada Nacional .. (…) nos dois sentidos para quem seguir em frente, ou seja, …/… e …/…, e para quem virar à direita para a Rua …, quer para quem pretende circular no sentido de …, quer no sentido de …, e quando estes fecham, isto é, quando passam para vermelho, abrem os sinais para verde nos dois sentidos para quem pretende mudar de direcção à esquerda, para quem pretende circular na Rua ….
k) A Estrada Nacional n.º .. (…) antes do cruzamento, trata-se de uma recta em patamar, e após o cruzamento apresenta uma inclinação ascendente, no sentido de marcha do RQ.
l) No local do acidente a referida artéria pública tem dois sentidos de marcha, é formada por três hemi-faixas de rodagem, sendo o seu piso em asfalto em bom estado de conservação.
m) Sendo constituída por duas hemi-faixas de rodagem, para cada um dos sentidos, isto é, …/… e …/…, e antes do cruzamento, em cada um dos sentidos junto ao separador central, forma-se uma terceira hemi-faixa de rodagem à esquerda destinada para quem pretende virar à esquerda para a Rua …, quer para quem pretende circular no sentido de …, quer no sentido de ….
n) Os sentidos de marcha …/… e …/… encontram-se devidamente divididos por um separador central o) Quando o RQ se encontrava a fazer a travessia do cruzamento, o seu condutor, aqui A. foi surpreendido pelo surgimento do veículo JA, proveniente da Estrada Nacional n.º .. (…), sentido …/…, a fazer a mudança de direção à esquerda, no intuito de aceder à Rua … em direcção a ….
p) O embate deu-se com a frente do RQ na lateral direita do JA. Quando o RQ já havia percorrido mais de metade da zona de cruzamento.
q) O local é bem iluminado e na altura do acidente, apesar de ter ocorrido de noite, a visibilidade era boa.
r) O proprietário do ..-JA-.. havia transferido a responsabilidade civil extracontratual por danos causados pelo seu veículo a terceiros para a Ré, mediante contrato de seguro válido e eficaz à data do sinistro, titulado pela apólice n.º ……….
s) O veículo RQ após o embate apresentava danos nas ópticas e faróis e farolins dianteiros; radiador, tubos, ventiladores, resguardos, lâmpadas, longarinas, para-choque, capot, cava, grelha da frente, emblema, frente da viatura, reforço do para-choques, grelhas do para-choques, reflectores, spoiler, chapas de matrícula, capa, suportes, molas, braço de suspensão.
t) Tendo sido apurado que, para se proceder à reparação do RQ eram necessárias as peças e a mão-de-obra descritas na factura/recibo juntas com a petição inicial como documento n.º 3.
u) A Ré não assumiu a totalidade da responsabilidade pelo sinistro, pretendendo uma responsabilidade de 50/50 para cada um dos condutores, tendo o A. procedeu à reparação a expensas suas, com a qual despendeu a quantia de € 3.366,34.
v) O RQ ficou impedido de circular, e a sua reparação apenas ficou concluída em 30/12/2010, período durante o qual o A. se viu privado do seu veículo.
x) O veículo em causa, de cinco lugares, era o único veículo que o Autor possuía.
w) O RQ é utilizado diariamente pelo Autor para as deslocações pessoais, e para as deslocações profissionais.
y) Sendo usado pelo A. e seus familiares para as deslocações profissionais, pessoais, para ir às compras, para actividades de lazer.
z) Na falta do veículo, o A. pediu por vezes veículos emprestados.
aa) Utilizando também os transportes públicos.
bb) O A. para obter a certidão da Participação do Acidente de Viação teve que pagar na PSP a quantia de € 12,75.
cc) O RQ à data do sinistro estava em bom estado de conservação.
dd) Trata-se de um ligeiro de passageiros, de marca Peugeot, modelo …, do ano de 2001, de cor metalizada, com jantes especiais, faróis de nevoeiro, demais extras, sempre guardado em garagem privativa e alvo de uma manutenção invejável.
ee) O veículo RQ deixou no pavimento um rasto de travagem de 11,40 metros até embater com violência e ser detido pela lateral direita do veículo JA.
ff) A peritagem aos danos do veículo do Autor foi concluída em 07.10.2010.
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A.2)- FACTOS NÃO PROVADOS

O tribunal recorrido deu como não provados os seguintes factos:
- Que o A., chegar ao cruzamento, entre a Estrada Nacional n.º .. e a Rua …, verificou que o semáforo para o seu sentido de marcha apresentava a cor verde, motivo pelo qual prosseguiu a sua marcha, ingressando no cruzamento;
- Que quando o RQ se encontrava a fazer a travessia do cruzamento, o seu condutor, aqui Autor é surpreendido pelo surgimento repentino do veículo JA;
- Que o condutor do JA circulava completamente distraído, de forma desatenta e negligente, em desrespeito das regras estradais.
- Que o condutor do JA seguia em velocidade superior a 50 km/h.
- Que o condutor do JA imobilizou o veículo que tripulava, antes de ingressar no cruzamento em causa, desrespeitando o sinal luminoso vermelho que se lhe apresentava e que regulava o tráfego, para quem pretende mudar de direção à esquerda, no sentido que o JA levava;
- Que o A. não dispunha de meios económicos suficientes para proceder de imediato à reparação do veículo, não podendo dar ordem de reparação, ficando este a aguardar na oficina;
- O que só aconteceu no final de Novembro, altura em que o Autor conseguiu através de ajudas de familiares arranjar dinheiro para proceder ao pagamento da reparação do RQ;
- Que o A. sofreu “graves prejuízos” com a privação do veículo;
- Que o A. ao utilizar os transportes públicos, perdeu “imenso tempo”;
- Que o A. não raras vezes, ficava em casa, abstendo-se de se deslocar porque não tinha meio de transporte;
- Que o A. no período que o veículo esteve na oficina, ficou impossibilitado de dar os seus passeios com a família, a visitar amigos e familiares, a ir às compras aos hipermercados, de ir ao médico;
- Que o aluguer de uma viatura similar importaria num custo diário não inferior a € 50,00;
- Que por virtude do presente sinistro, a vida diária do autor sofreu grandes transtornos, deixando de executar certas tarefas e actividades ligadas ao seu prazer pessoal;
- Que o A. sofreu incómodos consideráveis com a privação da sua viatura, angustia e ansiedade, assim como todo o estado de espírito de alguém, como o autor, tem a propriedade e o uso de algo de que se vê privado sem contar;
- Que em consequência do sinistro, o A. foi forçado a perder tempo, deslocando-se à sua companhia de seguros, à oficina reparadora, à PSP, para obter o respectivo auto de ocorrência, ao escritório do seu mandatário;
- Que o A. despendeu elevadas quantias em cartas e telefonemas para a Ré na tentativa de alcançar uma resolução rápida e amigável do presente litígio, a qual não logrou obter.
- Que, na sequência do sinistro e da disposição da quantia de € 3.366,34, tal implicou diversas restrições, nomeadamente tendo o A. e o seu agregado familiar ficado privados de fazer o seu dia-a-dia como faziam, ficando privados de passeios, ficando privados gozar férias nos anos de 2010, 2011 e 2012, como anteriormente lhes era habitual, o que acarretou perdas de tempo, aborrecimentos e tensão nervosa;
- Que o RQ à data do sinistro estava em perfeito estado de conservação, nunca antes tinha sofrido um sinistro.
- Que o RQ esteve sempre guardado em garagem privativa e alvo de uma “manutenção invejável”;
- Que por mais bem reparado que seja, sempre se notará que se trata de um veículo sinistrado, o que o torna menos atraente na troca/venda e implica uma desvalorização do seu valor comercial em quantia nunca inferior a cerca de 750,00;
- Que o A. seguia a uma velocidade superior a 70 km/H;
- Que o A. avançou com o RQ quando os semáforos lhe indicavam a proibição de avançar.
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III. O DIREITO
A primeira questão que importa decidir é, como se referenciou:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Refere neste segmento o Autor recorrente que o tribunal recorrido deveria ter dado como provados os seguintes factos:
- Que o A. ao utilizar os transportes públicos, perdeu “imenso tempo”;
- Que o A. não raras vezes, ficava em casa, abstendo-se de se deslocar porque não tinha meio de transporte;
- Que o A. no período que o veículo esteve na oficina, ficou impossibilitado de dar os seus passeios com a família, a visitar amigos e familiares, a ir às compras aos hipermercados, de ir ao médico;
- Que por virtude do presente sinistro, a vida diária do autor sofreu grandes transtornos, deixando de executar certas tarefas e actividades ligadas ao seu prazer pessoal;
- Que o A. sofreu incómodos consideráveis com a privação da sua viatura, angustia e ansiedade, assim como todo o estado de espírito de alguém, como o autor, tem a propriedade e o uso de algo de que se vê privado sem contar;
- Que o RQ à data do sinistro estava em perfeito estado de conservação, nunca antes tinha sofrido um sinistro.
- Que o RQ esteve sempre guardado em garagem privativa e alvo de uma “manutenção invejável”;
- Que por mais bem reparado que seja, sempre se notará que se trata de um veículo sinistrado, o que o torna menos atraente na troca/venda e implica uma desvalorização do seu valor comercial em quantia nunca inferior a cerca de 750,00.
Analisando.
Vejamos, então se deve ou não ser conhecido este segmento recursório.
Estabelece o artigo o artigo 640.º do Novo Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto” que:
1- Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na al. b) do número anterior observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados incumbe ao recorrente sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Esta norma impõe rigor e precisão, onerando o recorrente com o dever de especificar os factos e os meios probatórios que, em concreto, questiona, sendo que, quando os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados incumbe ao recorrente, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Portanto, neste novo regime, o legislador concretiza a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo.
Sob pena de se desvirtuar a letra da norma, que vincula o intérprete nos termos do artigo 9.º do C. Civil, e a sua ratio, considerando a evolução legislativa no sentido da alteração do regime do recurso da matéria de facto, (D. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro, D. Lei 183/200 de 10 de Agosto e o D. Lei 303/2007 de 24 de Agosto) e Lei 41/2013 de 26/06, este regime, ainda que convertendo em maior facilidade o ónus de todos os intervenientes, impõe a sua observação estrita, compatível com a sanção prescrita em função da enunciada omissão-a rejeição do recurso, no que a esta impugnação respeita.
Por outro lado, também o legislador no seguimento da orientação dos anteriores diplomas, que estatuíam sobre esta matéria, continua a não prever o prévio aperfeiçoamento das conclusões de recurso, quando o apelante não respeita o ónus que a lei impõe.
Desta forma, o efeito de rejeição não é precedido de despacho de aperfeiçoamento, o que se explica pelo facto da possibilidade de impugnação da decisão de facto resultar de uma alteração reclamada no domínio do processo civil e estar em causa a impugnação de decisão de matéria de facto que resultou de um julgamento em relação ao qual o tribunal “ad quem” não teve intervenção e por isso, só a parte interessada estará em condições de poder impugnar essa decisão.[1]
Ora, no caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante vem impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos respectivos concretos.
Todavia, com o devido respeito, as alegações são omissas no que àquela exacta indicação dos depoimentos diz respeito, tendo-se o Autor recorrente limitado a indicar o nome das testemunhas e a transcrever parte dos depoimentos por elas prestados, mas sem indicar com precisão as passagens da gravação em que se funda o recurso e que imporiam decisão diversa.
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Consequentemente, em obediência ao preceituado no artigo 640.º, nº 2 al. a) do NCPCivil, impõe-se rejeitar o recurso, no que à matéria de facto respeita.
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Mantendo-se inalterada a matéria factual que o tribunal recorrido deu como assente cumpre então apreciar:

b)- se o tribunal recorrido fez a correcta subsunção jurídica do factos.

No que tange ao montante indemnizatório referente à desvalorização do veículo do Autor recorrente e aos danos não patrimoniais por ele sofridos decorrentes da privação do uso daquele, evidentemente que, permanecendo inalterada a matéria factual que o tribunal recorrido deu como provada, o recurso terá que improceder, já que falha, desde logo, a respectiva base factual que poderia levar à sua atribuição, provada que estivesse facti species da respectiva norma (artigo 496.º, nº 1 do CCivil).
Já assim, porém, não o entendemos no que concerne aos danos decorrentes da privação do uso do veículo.
Efectivamente, não obstante permaneça inalterada a decisão da matéria, pensamos, salvo o devido respeito, que se não pode sufragar o entendimento feito na decisão recorrida, quanto à subsunção jurídica da factualidade que se deu como provada quanto a essa concreta questão.
Analisando.
O problema da ressarcibilidade do dano da privação do uso está longe de merecer uma resposta jurisprudencial unânime. Desde logo quanto à exacta natureza desse dano: enquanto algumas decisões sustentam que se trata de um dano não patrimonial outras concluem pela sua patrimonialidade.
A distinção entre o dano patrimonial e não patrimonial assenta na natureza do interesse afectado, sendo, por isso, possível que da violação de direitos patrimoniais resultem danos não patrimoniais, da mesma maneira que da violação de direitos ou bens de personalidade podem derivar danos patrimoniais.
A privação de uso de um bem pode, portanto, dar origem tanto a um dano patrimonial como a um dano não patrimonial; quando ocorra esta última espécie de dano, ele será indemnizável de harmonia com os critérios específicos de valoração e mensurabilidade desse tipo de dano.
Contudo, a clivagem jurisprudencial, não se limita à qualificação da natureza do dano de privação do uso. Mesmo quando se aceita a sua patrimonialidade, verifica-se uma nítida fractura entre as decisões para as quais basta, para que seja reparável, a demonstração do não uso do bem atingido[2] e aquelas que julgam insuficiente essa demonstração, sendo ainda necessária a prova de um autónomo ou específico dano patrimonial.[3]
Na doutrina, sustentam a reparabilidade do dano de privação do uso, António dos Santos Abrantes Geraldes[4], Luís Manuel Teles Menezes Leitão[5], e Júlio Gomes[6].
Por nossa parte entendemos que a privação do gozo de uma coisa pelo titular do respectivo direito constitui seguramente um ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte da obrigação de indemnizar, pois que, impede o respectivo proprietário de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza–arts. 483.º nº 1 e 1305.º C. Civil.
Pensamos, porém, que a questão da ressarcibilidade da “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa.[7]
Na verdade, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.
Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor.
Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.
É que bem pode acontecer que alguém seja titular de um bem, móvel ou imóvel, e apesar de privado da possibilidade de os usar durante certo tempo, não sofra com isso qualquer lesão por não se propor aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades, como pode suceder com o dono de um automóvel que o não utiliza ou utiliza em circunstâncias que uma certa indisponibilidade não afecta, ou com o proprietário de um terreno que lhe não dá qualquer utilização.
Bastará, no entanto, que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, para que o dano exista e a indemnização seja devida.
Por isso se tem entendido que não basta a simples privação, em si mesma, sendo necessário ainda que se alegue e prove a frustração de um propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando o lesado que a pretenderia usar, dela retirando utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação dela pela actuação ilícita de outrem, o lesante.[8]
Postos estes considerandos cumpre, então, analisar a situação concreta dos autos.
E, para o fazer, importa convocar o quadro factual que dos autos resultou assente neste particular e que é, o que se segue:
- A Ré não assumiu a totalidade da responsabilidade pelo sinistro, pretendendo uma responsabilidade de 50/50 para cada um dos condutores, tendo o A. procedeu à reparação a expensas sua, com a qual despendeu a quantia de € 3.366,34.
- O RQ ficou impedido de circular, e a sua reparação apenas ficou concluída em 30/12/2010, período durante o qual o A. se viu privado do seu veículo.
- O veículo em causa, de cinco lugares, era o único veículo que o Autor possuía.
- O RQ é utilizado diariamente pelo Autor para as deslocações pessoais, e para as deslocações profissionais.
- Sendo usado pelo A. e seus familiares para as deslocações profissionais, pessoais, para ir às compras, para actividades de lazer.
- Na falta do veículo, o A. pediu por vezes veículos emprestados.
- Utilizando também os transportes públicos [factos descritos em u) a aa)].
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Como resulta desta factualidade o veículo sinistrado era o único que o Autor possuía e que utilizava diariamente para as sua deslocações profissionais, pessoais e de lazer, sendo que, durante o tempo que dele esteve privado teve que pedir veículos emprestados e utilizar os transportes públicos.
Ou seja, não fora a sua privação decorrente do acidente, o Autor fazia uso do seu veículo, dele retirando, pois, todas as utilidades que o mesmo normalmente lhe proporcionaria, usando-o diariamente nas deslocações para o seu local de trabalho, nas suas necessidades pessoais.
Portanto, se o bem lesado satisfazia uma necessidade de uso do sujeito e deixou de a satisfazer, porque a lesão o tornou impróprio para esse fim, há aqui, sem dúvida um dano e, só assim não será se porventura essa necessidade, por qualquer razão, terminou definitivamente ou ficou suspensa na ocasião da lesão ou, ainda, se a necessidade não era assegurada exclusivamente por aquele bem e pôde continuar a ser satisfeita através de outros meios do lesado ou de terceiro, sem que tivesse ocorrido qualquer diminuição na satisfação das suas restantes necessidades.
Significa, portanto, que quando alguém é privado de um automóvel, que usava, existe na generalidade dos casos um dano, na medida em que se trata de um bem que satisfazia várias e mutáveis necessidades quotidianas do seu proprietário, familiares ou amigos, principalmente as relativas à circulação da pessoa entre locais, às resultantes da sua utilização nas sua vida profissional, às de lazer ou de qualquer outro tipo.
É certo que, não está demonstrado nos autos que o Autor apelante tenha sofrido danos advenientes daquela privação.
Porém, se a privação do uso do veículo durante determinado tempo originou a perda de utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição (não está demonstrado nos autos que Ré a recorrente tenha disponibilizado ao Autor veículo de substituição) impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente.
Condicionar a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis directamente a essa privação é solução que, como refere Abrantes Geraldes[9], “pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspondente a benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do artigo 564.º do C.Civil, ou às despesas acrescidas que o evento determinou, já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes”.
Importa ainda ter em conta que a simples detenção do veículo, tendo um determinado valor intrínseco, determina encargos que se mantêm independentemente da utilização que lhe é dada ou do facto de ficar paralisado por razões não imputáveis ao titular.[10]
Portanto, em conclusão, a falta de prova de despesas casualmente realizadas depois do sinistro não determina necessariamente a ausência de prejuízos, os quais não deixam de ser representados pelo desequilíbrio de natureza material correspondente à diferença entre a situação que existiria e aquela que é possível verificar depois de se constatar a efectiva privação do uso do bem, sendo isso o bastante para se determinar o ressarcimento através da única via possível, isto é, mediante a atribuição de uma compensação em dinheiro, se necessário recorrendo à equidade para se alcançar a ajustada quantificação.[11]
Defender-se a tese oposta, redundará na adopção de soluções diversas a partir do mesmo evento, tudo dependendo da opção que o lesado faça pelo aluguer directo de um veículo de substituição, sendo evidente que, nesta situação, as despesas correm por conta do responsável, não sendo, porém, aceitável que este fique isento de qualquer compensação nas situações em que o lesado, por opção ou por ignorância dos seus direitos, aguarde pela conclusão da reparação.[12]
*
Todavia, a questão que agora se coloca é como fixar o respectivo montante indemnizatório.
Trata-se, de questão cuja solução não se afigura linear, pois que, a teoria da diferença (artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil) que serve de critério para encontrar o quantum da indemnização não é operacional nestes casos.
Com efeito, se aquela privação do uso não se traduzir numa diferença patrimonial quantificável entre a situação que existiria se não ocorresse a privação e aquela que existe por causa dela, ficamos carecidos de valores para calcular a diferença, não obstante a existência de um dano que tem, como é evidente, de ser indemnizado.
Como refere Menezes Leitão[13] a atribuição da quantia indemnizatória pode ter como referencial o valor locativo do veículo.
É claro que, a indemnização pela indisponibilidade do veículo nunca se poderá pautar, exactamente-nem mais, nem menos-pelo preço praticado pelas empresas de rent-a-car e para o aluguer de um automóvel da mesma classe do acidentado.
Com efeito, como avisadamente se pondera no Ac. do STJ de 5.03.2002[14] “basta pensar que neste custo [de aluguer] entram as mais diversas componentes, incluindo as despesas de exploração da empresa de aluguer e o seu lucro que a partir do momento em que o autor de facto não procedeu ao aluguer não têm de ser suportadas pela ré, cuja responsabilidade vai apenas até onde for o dano provocado“.
Se pretendermos calcular o valor de uso do veículo para o próprio, podemos aproximar-nos desse valor se somarmos o preço de aquisição e as despesas de manutenção médias ao longo do período previsível da sua utilização (revisões, reparações e seguros), dividindo a soma pelo número de dias de vida média calculada para o veículo.[15]
Porém, ainda assim, este valor difere do preço de aluguer de um veículo, já que neste caso, além do preço do automóvel e despesas de manutenção, entram outras componentes, como o lucro do empresário e os custos gerais da empresa (impostos, salários e custos com trabalhadores, seguros, etc.).
Portanto, o valor do aluguer tem se ser, por conseguinte, superior ao valor de uso digamos, doméstico e dai que não se mostre adequado, salvo se corrigido.
Paulo Mota Pinto[16] propõe o seguinte critério: “Pensamos que o dano da privação do uso deverá ser quantificado num valor que pode ser obtido de uma de duas formas; ou (como de “cima para baixo”) a partir dos custos de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, mas “depurados”–bereinigte Mietkosten que excluem o lucro do locador, e custos gerais como os gastos com a manutenção da frota, as provisões para períodos de paragem dos veículos, as amortizações, etc. (no direito alemão os valores constantes das referidas tabelas rondam cerca de um terço dos custos de aluguer normalmente praticados); ou (como que “de baixo para cima”), designadamente, para viaturas de profissionais e empresas, a partir dos custos de capital imobilizado necessário para obter a disponibilidade de um bem, como aquele durante o período de tempo necessário (por ex., os custos necessários para constituir uma reserva de um bem como o que está em causa)”.
Evidentemente que, para se usarem estes mecanismos, as partes têm de fornecer factos para que o tribunal possa chegar a alguma conclusão.
Ora, se as partes não oferecem os factos, o tribunal ficará impedido de utilizar estes critérios, pois o tribunal tem de se cingir aos factos articulados pelas partes (artigo 5.º do CPCivil) e aos factos instrumentais que resultem da discussão da causa [nº 2 al. a) do mesmo normativo].
Todavia, ainda que o tribunal não disponha de elementos suficientes para calcular a diferença patrimonial entre a situação actual e a que o lesado teria se não tivesse ocorrido o evento, como ocorre no presente caso, sempre o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar uma indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3 do CCivil.[17]
Reportado especificamente à quantificação da indemnização através de juízos de equidade, Larenz[18] afirma que se exige do juiz a formulação de “juízos de valor devendo orientar-se em primeiro lugar por casos singulares e sua apreciação na jurisprudência, mas seguindo para além disso, a sua própria intuição axiológica”.
A equidade, nas judiciosas considerações feitas no Ac STJ de 10/2/98[19] “é a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei devendo o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.
Assim, tendo em conta a justa medida das coisas e a criteriosa ponderação das realidades da vida, para utilizar as palavras do citado acórdão, parece-nos que a indemnização a atribuir ao proprietário tenha alguma correspondência relativamente ao investimento feito por si na aquisição e manutenção do veículo.
Na posse deste valor, necessariamente aproximado, pode o mesmo ser fraccionado em dias de utilização considerando o período médio de vida do automóvel, multiplicando-se, depois, o valor encontrado por dia de utilização pelo número de dias de paralisação.
Tendo em conta o cálculo a que se fez referência na nota 15 e fazendo apelo a outras decisões judiciais sobre a matéria[20], afigura-se que a quantia de € 12,00 (doze euros) diários é adequada a título de indemnização pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as necessidades básicas diárias do lesado.
Como assim, tendo em conta o período de paralisação [108 dias-factos descritos em a) e v)] chega-se ao valor de € 1.296,00 (mil duzentos e noventa e seis euros) (108x €12,00).
Sobre tal verba, porém, a apelada responde apenas por 50%, por ser essa a proporção à culpa que lhe cabe fixando-se, pois, o valor da indemnização a atribuir ao lesado a esse nível em € 648,00 (seiscentos e quarenta e oito euros).
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Destarte, procedem assim, em parte as conclusões formuladas pelo apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, alterando-se a decisão recorrida condena-se a Ré a pagar ao Autor apelante a quantia de € 2.487,54 (dois mil quatrocentos e oitenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos) acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, mantendo-se quanto ao mais a decisão recorrida.
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Custas por apelante e apelada na proporção do decaimento (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 30 de Junho de 2014.
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
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[1] Abrantes Geraldes Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, pág. 128.
[2] Cfr. Acs. do STJ de 05.07.07, da RL de 04.10.07 e 18.09.07 e da RC de 20.03.07 e 12.02.08 www.dgsi.pt..
[3] Cfr. Acs. do STJ de 22.06.05,12.01.06 e 04.10.07, da RL de 22.06.06 e da RC de 13.03.07.
[4] Indemnização do Dano de Privação do Uso, Almedina, Coimbra, 2001,págs. 30 e ss.
[5] Direito das Obrigações, 3ª Edição, Vol. I, Almedina, Coimbra, págs. 338/339 e nota 686.
[6] RDE, nº 12, 1986, págs. 169 e ss.
[7] Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, pág. 594/596. Coimbra Editora, 2008, entende que o dano só se concretiza ao nível das privações concretas das vantagens que a coisa proporciona e não antecipadamente ao nível da perturbação (ilícita) das possibilidades abstractas de uso que resultam para o proprietário derivadas do «jus utendi et fruendi» inerente ao direito de propriedade.
Sustenta este autor que “O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem–a qual (mesmo que resultante de uma ofensa directa ao objecto, e não apenas de uma lesão no sujeito) pode não ser concretizável numa determinada situação”.
[8] Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 9/12/2008, proc. 3401/08 in www.dgsi.pt
[9] Obra citada pág. 34.
[10] Antunes Varela inclui precisamente no dano emergente “não só o prejuízo directamente causado nas coisas destruídas, como os danos reflexos e as próprias despesas frustradas (imposto automóvel, arrendamento de garagem, seguro etc.) correspondentes ao período em que o veículo não pôde ser utilizado”-Das Obrigações em Geral, 10ª Ed. Vol. I, pág. 909, nota 2.
[11] Abrantes Geraldes, obra citada pág. 47.
[12] Como salienta Menezes Leitão obra citada pág. 338 nota 686, “É manifesto, no entanto, que a conduta poupadora por parte do lesado não pode servir para obstar à indemnização do dano verificado, havendo por isso que proceder ao seu cálculo em termos gerais”.
[13] Obra citada nota 685.
[14] Proferido no Proc. nº 3968/01, e transcrito in Temas da Responsabilidade Civil, I Vol.: Indemnização do Dano da Privação do Uso, de António S. Abrantes Geraldes, 2 ª ed., Almedina, pp. 119 e ss..
[15] Veja-se neste sentido o Ac. da Relação de Coimbra de 06-03-2012 in www.dgsi.pt onde se faz o seguinte cálculo: Exemplo–Para um veículo que tivesse custado € 25.000,00 euros e estimando um período de vida de 10 anos, somando as despesas com revisões, reparações e seguros durante esses 10 anos, que se calculam em ¼ relativamente ao preço de compra, teríamos um valor diário de € 8,56 euros [(€25 000,00 + €6 250,00) : (365 x10)]. Se o preço de compra tivesse sido de € 40.000,00 euros o valor subiria para € 13,70 euros; se tivesse sido de € 60.000,00 euros subiria para € 20,55 euros, etc.
[16] Obra citada, pág. 592, nota 1699.
[17] Como se refere no Ac. do STJ de de 3/05/2011 in www.dgsi.ptA avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art. 566.º, n.º 3, do CC”.
[18] Metodologia da Ciência do Direito, pág. 335
[19] Col. Jur. Ano VI, Tomo I, pág. 65.
[20] A título de exemplo, pode verificar-se que no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Março de 2010, no processo n.º 1247/07.4TJVNF, o valor considerado foi de € 10,00 euros diários; no acórdão da Relação do Porto de 7 de Setembro de 2010, no processo n.º 905/08.0TBPFR, considerou-se também o valor de €10,00 euros por dia de paralisação; no acórdão da Relação de Coimbra, de 2 de Março de 2010, no processo n.º 27/08.4TBVLF, foi fixada a quantia de €8,00 por dia de privação (ver em www.dgsi.pt).