Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22051/20.9T8PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRIGAÇÃO DE EFETUAR OBRAS DE CONSERVAÇÃO
Nº do Documento: RP2025101322051/20.9T8PRT.P2
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O art. 1074º nº1 do C. Civil – onde se prevê a ressalva de “estipulação em contrário” quanto à obrigação do senhorio ali prevista de efetuar obras de conservação no locado –, é aplicável quer aos contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados na vigência do RAU (aprovado pelo Dec.Lei 321-B/90, de 15/10), quer a esses mesmos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor (que ocorreu em 15/11/1990), como é o caso de contrato celebrado em 1987.
II – Ainda que a ilicitude ou invalidade da cláusula que integra a estipulação em contrário pudesse ser questionável antes da entrada em vigor do NRAU (aprovado pela Lei 6/2006, de 27/2, que entrou em vigor 120 dias depois da sua publicação) – pois nessa altura não estava em vigor para os contratos de arrendamento que vieram por ele a ser abrangidos o disposto no art. 1074º do C. Civil mas antes o disposto no art. 12º do RAU (aprovado pelo Dec.Lei 321-B/90, de 15/10), onde não se previa a “estipulação em contrário” prevista sob o nº1 daquele art. 1074º –, já após a entrada em vigor de tal diploma tal questão não se pode colocar, pois o NRAU manda expressamente aplicar o seu regime, onde se encontra aquele art. 1074º nº1 do C. Civil (introduzido pelo seu art. 3º), àqueles contratos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 22051/20.9T8PRT.P2

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: José Nuno Duarte

2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

AA propôs ação declarativa comum contra BB pedindo a condenação desta a:

- executar no imóvel locado as obras necessárias à sua recuperação total, no interior e áreas comuns, por forma a que a A. possa recuperar o total gozo do mesmo de acordo com o contrato de arrendamento, com condições de segurança, conforto e salubridade;

- reduzir para metade o valor da renda mensal do locado, até que a A. tenha o gozo integral da totalidade do arrendado, desde a data da citação da R. e até à data em que forem executadas as obras em falta, data em que deve a R. ser condenada no pagamento da diferença de renda mensal paga em excesso pela A. à R.;

- pagar à A. o montante de € 5,00 (cinco euros) por cada dia de atraso na execução de tais serviços / obras de reparação, a título de sanção pecuniária compulsória, a que deverá acrescer os juros de mora à taxa civil, desde a data da citação da presente petição inicial à R., e até integral e efetivo pagamento à A.;

- pagar à A. o montante de € 5.000,01 (cinco mil euros e um cêntimo), a título de prejuízos não patrimoniais / danos morais sofridos pela A, por viver numa habitação com reduzidas condições de habitabilidade, salubridade, conforto, higiene e segurança, a que deverá acrescer os juros de mora à taxa civil, desde a data da citação da presente petição inicial à R., e até integral e efetivo pagamento à A.;

- pagar juros sobre todas as quantias acima peticionadas, calculados à taxa legal, desde a citação para contestar a ação até integral e efetivo pagamento.

Alegou para tal, em síntese, o seguinte:

- que é inquilina da ré em contrato de arrendamento, que juntou como doc. nº1, da fração autónoma sita na rua ..., ..., 2º andar, ... Porto, da qual a ré é proprietária, arrendamento esse inicialmente celebrado com o seu marido em 1 de Outubro de 1987 e que para si se transferiu por morte deste, ocorrida a 23/04/2011;

- que o referido contrato foi celebrado pelo prazo certo de 1 (um) ano, tendo-se renovado por iguais períodos até ao presente, encontrando-se assim em vigor, sendo a renda mensal atual de € 261,51;

- que o locado em causa padece de anomalias graves e necessita de obras urgentes, motivo pelo qual por diversas vezes e verbalmente foi a ré interpelada pela autora nesse sentido, encontrando-se, atualmente, num estado em que o torna inabitável e configura um sério risco para a saúde da autora; é um imóvel muito antigo, tendo várias fissuras e rachadelas das quais resultam sempre infiltrações e imensa humidade, principalmente no Inverno; o referido imóvel não é alvo de quaisquer obras de manutenção ou conservação há muitos anos, apesar de a senhoria ser proprietária do prédio onde está inserido o locado; há infiltração e muita humidade tanto no interior da habitação como na parte comum (escadaria); a porta da rua do prédio encontra-se danificada há cerca de 11 anos, desde 2009, sem que a ré tenha procedido a qualquer reparação ou substituição da mesma; a “A..., E.M.” tenciona proceder à mudança do contador da água para um digital mas a ré opõe-se a que tal aconteça; as paredes do interior do bem locado estão em estado avançado de degradação, sendo visível o precário estado de conservação das mesmas;

- que não obstante as diversas interpelações, a situação do imóvel manteve-se inalterada;

- que tais vícios de que padece o imóvel locado estão a impedir a autora de o usar condignamente para os fins a que se destina, ou seja, habitação, apesar de pagar a renda na íntegra, de forma mensal e sucessiva;

- que as obras de que o locado necessita caem no conceito de “conservação ordinária” e são da responsabilidade da ré, como senhoria, por integrarem o dever de assegurar à autora, inquilina, o gozo do prédio em condições idênticas àquelas que se verificavam quando o arrendou, até porque a renda tem sido sempre actualizada e paga;

- que viver num imóvel com as condições precárias de salubridade, segurança e conforto que o bem locado apresenta representa um grande incómodo, risco e perigo para a saúde da autora, que sofre de asma, e sofre desgosto com toda esta situação; anda ainda preocupada, ansiosa, irritada e angustiada.

A ré deduziu contestação na qual, reconhecendo a existência do contrato de arrendamento, impugna os factos alegados pela autora no sentido da sua pretensão.

Alegou ainda, nomeadamente, que a autora nunca a interpelou sobre a pretensa necessidade de serem efetuadas concretas e específicas obras no locado e que consta clausulado no contrato de arrendamento (junto pela autora com a petição inicial), sob a cláusula 9ª, que “Todas as obras indispensáveis à conservação e limpeza dos interiores do prédio ficam a cargo do inquilino, incluindo a colocação dos vidros que se partirem”, pelo que a existirem situações de humidade e de má conservação no interior do locado os mesmos devem-se ao manifesto incumprimento contratual da mesma em efetuar todas as obras de conservação do prédio que habita.

Por despacho de 11/2/2021, a autora foi convidada a corrigir a petição inicial no sentido da “enunciação descriminada das obras de que o locado carece”.

Na sequência de tal despacho, veio a autora apresentar requerimento no qual, sob o seu ponto 5º, refere:

Enunciação das obras que o locado carece:
Reparação das fissuras e rachadelas existentes na área comum, das quais acarretam infiltrações e humidade (escadaria que dá acesso às fracções autónomas e na própria habitação da Autora);
Reparação da porta do prédio que não fecha e coloca em causa a segurança de quem lá vive e está deteriorada);
Executar as obras necessárias para permitir a colocação de um contador digital por parte das A..., E. M.,
Reparar e pintar as paredes interiores da habitação da Autora, uma vez que a sua deterioração é proveniente da humidade e infiltrações decorrentes da área comum, e não de qualquer comportamento da Ré, em virtude de a proprietária nunca ter realizado qualquer obra de reparação, manutenção ou conservação na área comum;
Reparar o chão do interior da habitação da Autora que está a levantar, uma vez que a sua deterioração é proveniente da humidade e infiltrações decorrentes da área comum, e não de qualquer comportamento da Ré;
Pintura de toda a área comum (escadarias);
Reparação das caleiras do prédio e demais equipamentos associados, uma vez que as infiltrações das águas pluviais estão a danificar o recheio da habitação da A., bem como a sua saúde, bem-estar e qualidade de vida.

A ré, notificada daquele requerimento, veio impugnar a matéria ali alegada.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, subsequente despacho sob a epígrafe “Objecto do litígio”, onde apenas se faz referência aos pedidos formulados pela autora na petição inicial, despacho a admitir os documentos e os róis de testemunhas apresentados pelas partes e ainda despacho a marcar data para julgamento.

Por requerimento de 18/1/2022, a autora, em termos que ali alegou, veio requerer ampliação do pedido no sentido de o pedido formulado passar a ser a condenação da ré no seguinte:

a) A executar no imóvel locado as obras necessárias à sua recuperação total, no interior e áreas comuns, que não estejam contemplados nos orçamentos juntos, por forma a que possa recuperar o total gozo do mesmo de acordo com o contrato de arrendamento, com condições de segurança, conforto e salubridade;

b) A reduzir para metade o valor da renda mensal do locado, até que a Autora tenha o gozo integral da totalidade do arrendado, desde a data da citação da Ré e até à data em que forem executadas as obras em falta, data em que deve a Ré ser condenada no pagamento da diferença de renda mensal paga em excesso pela Autora à Ré;

c) A pagar à Autora o montante de € 5,00 (cinco euros) por cada dia de atraso na execução dos serviços/obras de reparação, a título de sanção pecuniária compulsória, a que deverá acrescer os juros de mora à taxa civil, desde a data da citação e até integral e efetivo pagamento;

d) A pagar à Autora o montante de € 5.000,01 (cinco mil euros e um cêntimo), a título de prejuízos não patrimoniais/danos morais sofridos pela Autora, por viver numa habitação com reduzidas condições de habitualidade, salubridade, conforto, higiene e segurança, a que deverá acrescer os juros de mora à taxa civil, desde a data da citação e até integral e efetivo pagamento à Autora.

e) Ser a R. condenada a pagar aos AA. a quantia de € 1.000,00, a título de compensação pelo consumo excessivo de água ocorrido nos últimos meses, pelo prejuízo patrimonial sofrido devido às fugas de água na canalização e problemas no abastecimento de água na residência da A.;

f) Ser a R. condenada a pagar à A. a quantia de € 3.062,70 (€ 738,00 do 1º orçamento e € 2.324,70 do orçamento adicional), para que seja possível à A. efectuar as obras e os trabalhos previstos nos orçamentos juntos nestes autos, com todas as consequências legais.

A ré, por requerimento de 28/1/2022, opôs-se àquela ampliação do pedido, defendendo que o pedido agora formulado não deriva nem é o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

A referida ampliação do pedido foi admitida por despacho proferido a 2/2/2022.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Em face do exposto, tendo em conta as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a Ré BB a executar no locado as obras necessárias à sua recuperação total, no interior e áreas comuns, por forma a que a Autora AA, arrendatária, possa recuperar o total gozo do mesmo de acordo com o contrato de arrendamento, com condições de segurança, conforto e salubridade, com a limitação do valor do(s) pedido(s) formulado pela Autora a este nível, sendo a Ré, no mais, absolvida.


***

Custas da ação a cargo das partes, na proporção do decaimento e que se fixa, respetivamente, em 30% e 70% – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

De tal sentença veio a ré interpor recurso, pugnando neste, designadamente, pelo indeferimento da ampliação do pedido e pela revogação da decisão recorrida.

A autora apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida.

Na sequência de tal recurso, foi por este tribunal proferido acórdão em 22/5/2023 no qual se decidiu nos seguintes termos:

Por tudo o exposto, acorda-se no seguinte:

- em revogar a decisão, proferida em 2/2/2022, que deferiu a ampliação do pedido e, por consequência, não considerar nesta acção quer o alegado quer o peticionado naquela sede;

- em anular a sentença proferida pela 1ª instância, com vista a ser ampliada a matéria de facto de modo a esta abranger e explicitar a factualidade alegada no artigo 19 da petição inicial, quanto à propriedade da prédio onde se situa a fracção autónoma que integra o locado, e quanto à discriminação de obras alegada pela autora na sequência de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

Baixados os autos à primeira instância, o processo seguiu os termos que se tiveram por adequados e procedeu-se à reabertura da audiência de julgamento.

Nesta sequência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Em face do exposto, tendo em conta as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a Ré BB a executar as seguintes obras, por forma a que a Autora AA, arrendatária, possa recuperar o total gozo do mesmo de acordo com o contrato de arrendamento, com condições de segurança, conforto e salubridade, com a limitação do valor do(s) pedido(s) formulado pela Autora a este nível:

i) reparação da porta do prédio, que não fecha;

ii) reparação e pintura das paredes interiores da habitação da Autora; e

iii) reparação do chão do interior da habitação da Autora que está levantado.

No mais, absolve-se a Ré.


***

Custas da ação a cargo das partes, na proporção do decaimento e que se fixa, respetivamente, em 50% para cada uma delas – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

De tal sentença veio a ré interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. A sentença recorrida considerou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a aqui Recorrente a executar no locado as obras de reparação da porta do prédio, que não fecha, reparação e pintura das paredes interiores da habitação da Autora e reparação do chão do interior da habitação da Autora que está levantado, sendo a Ré, no mais, absolvida e decidiu que as custas da ação a cargo das partes, seriam na proporção de 50% para cada uma das partes.

2. Ora a aqui recorrente não pode aceitar o entendimento do tribunal recorrido.

3. Senão vejamos, a aqui Autora na sua petição inicial apresentada em juízo em 23 de Dezembro de 2020 alegando como factos concretos os seguintes: “22) Há infiltração e muita humidade tanto no interior da habitação como na parte comum (escadaria) no andar de A. (2º andar), motivos que levaram a A. a apresentar uma reclamação na Delegação de Saúde; 23) A porta da rua do prédio encontra-se danificada há cerca de 11 anos, desde 2009, sem que a R. tenha procedido a qualquer reparação ou substituição da mesma, não configurando a devida segurança. A porta não fecha, sendo certo que as caixas de correio estão no interior do prédio.; 24) Cumpre ainda referir que a entidade A..., E.M., tenciona proceder à mudança do contador da água para um digital, no entanto, a R. opõe-se a que tal aconteça. 25) As paredes do interior do bem locado estão em estado avançado de degradação, sendo visível o precário estado de conservação das mesmas; 26) O bem locado tem humidade num avançado estado, claramente prejudiciais à saúde e bem-estar da A., situação que se mantém inalterável, apesar das constantes interpelações da A. junto da R.. 27) Anomalias e vícios do bem locado bem visíveis nas fotografias que se juntam como documentos nºs 7 a 13, e se dão por reproduzidas, cuja reparação é urgente. 28) Não obstante as diversas interpelações, a situação do imóvel manteve-se inalterada. 29) Assim, nada justificando que esta situação se mantenha ou se prolongue por muitos mais anos, e por ser obrigação da R. manter o locado em bom estado e habitável, com condições dignas de segurança, habitabilidade e salubridade, a A. pretende, por esta via, pôr fim ao estado em que se encontra o imóvel onde vive.

4. A aqui Recorrente na sua contestação negou os factos constantes da petição inicial, tendo referido que nunca tinha sido interpelada pela Autora sobre a pretensa necessidade de serem efectuadas obras no locado (vidé artigo 9º da contestação ) mais referindo que na petição inicial a Autora não especifica que obras necessitaria o locado (artigo 12º da contestação ).

5. O Tribunal a quo, analisada a petição inicial e a contestação proferiu despacho em 9 de Fevereiro de 2021, em que ao abrigo do artigo 590º nº 2 alínea b) do CPC convidou a Autora a corrigir o articulado “ o que passará pela enunciação descriminada das obras de que o locado carece”.

6. Através de articulado de 14 de Abril de 2021 a Autora apresenta novo articulado em que refere o seguinte no seu artigo 5º - Enunciação das obras de que o locado carece: Reparação das fissuras e rachadelas existentes na área comum, das quais acarretam infiltrações e humidade (escadaria que dá acesso às fracções autónomas e na própria habitação da Autora); Reparação da porta do prédio que não fecha e coloca em causa a segurança de quem lá vive e está deteriorada); Executar as obras necessárias para permitir a colocação de um contador digital por parte das A..., E. M.; Reparar e pintar as paredes interiores da habitação da Autora, uma vez que a sua deterioração é proveniente da humidade e infiltrações decorrentes da área comum, e não de qualquer comportamento da Ré, em virtude de a proprietária nunca ter realizado qualquer obra de reparação, manutenção ou conservação na área comum; Reparar o chão do interior da habitação da Autora que está a levantar, uma vez que a sua deterioração é proveniente da humidade e infiltrações decorrentes da área comum, e não de qualquer comportamento da Ré; Pintura de toda a área comum (escadarias); Reparação das caleiras do prédio e demais equipamentos associados, uma vez que as infiltrações das águas pluviais estão a danificar o recheio da habitação da A., bem como a sua saúde, bem-estar e qualidade de vida.

7. A aqui Recorrente impugnou de forma especificada o vertido nos artigos 5º e 6º desse articulado de aperfeiçoamento da petição inicial.

8. Através de despacho de 29 de Abril de 2021, o Tribunal a quo solicita que a Autora em face do novo articulado que apresentou informe se pretende alterar o valor da causa. E a aqui Autora através de requerimento de 12 de Maio de 2021 considera que o valor das obras é de € 738,00 e que o valor dos danos morais é de € 5.000,01.

9. Entende a Recorrente que não pode de todo ser condenada ainda que parcialmente no pedido de realização de obras. Na verdade, conforme consta da matéria de facto considerada como provada a senhoria nunca foi interpelada pela arrendatária para a realização de quaisquer obras no locado.

10. Um dos deveres do senhorio na relação locatícia é do fazer obras. E preceitua o artigo 1074.º do Código Civil sob a epígrafe “Obras” que: “1-Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário. 2- O arrendatário apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizada, por escrito, pelo senhorio. 3-Exceptuam-se do disposto no número anterior as situações previstas no artigo 1036.º, caso em que o arrendatário pode efectuar a compensação do crédito pelas despesas com a realização da obra com a obrigação de pagamento de renda.4- / Revogado). 5- Salvo estipulação em contrário, o arrendatário tem direito, no final do contrato, a compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa-fé.

11. Resulta deste preceito que a referida obrigação pode ser afastada por vontade das partes e nos termos do contrato de arrendamento celebrado e que a Autora junta com a sua petição inicial consta expressamente da sua cláusula 9º que “Todas as obras indispensáveis à conservação e limpeza dos interiores do prédio ficam a cargo do inquilino, incluindo a colocação dos vidros que se partirem”.

12. Isto é, a existirem situações de humidade e de má conservação no interior do locado da Autora os mesmos devem-se ao manifesto incumprimento contratual da mesma em efectuar todas as obras de conservação do prédio que habita.

13. Entende assim a Recorrente que estando estipulado contratualmente que as obras cabem à arrendatária, não poderia a sentença recorrida condenar a Ré em qualquer tipo de obras, por violação expressa do vertido no artigo 1074º nº 1 do Código Civil.

14. O que existe de facto é um comportamento omissivo e ilegal da autora ao não avisar o senhorio do estado em que se encontra o locado. Prescrevendo o artigo 1038º do Código Civil na sua alínea h) que é obrigação do locatário “avisar imediatamente o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa... “

15. Violou assim a sentença recorrida o vertido no artigo 1038º do Código Civil.

16. Por último, não se percebe que a manter-se a condenação da Ré esta possa ser condenada em 50% das custas.

17. Atente-se que o pedido da Autora era o seguinte: Reduzir para metade o valor da renda – FOI INDEFERIDO; Condenar a Ré a pagar à Autora € 5,00 por dia de atraso na execução das obras – FOI INDEFERIDO; Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 5.000,01 de danos morais – FOI INDEFERIDO; Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.000,00 de compensação pelo consumo excessivo de água – FOI INDEFERIDO; Condenar a Ré a pagar à A. a quantia de € 3.062,70 – FOI INDEFERIDO.

18. Ou seja, todos os pedidos quantificados da aqui Ré foram indeferidos com excepção de obras no valor de € 738,00 pelo que é fácil concluir que o decaimento da Autora será de 85% e o da Ré de 15%, pelo que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 527º do CPC.

TERMOS em que deve revogar-se a

sentença recorrida por tal ser de justiça.”

A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar:

a) – da responsabilidade da ré por obras no locado;

b) – da repartição das custas relativas à ação.


**

II – Fundamentação

É a seguinte a matéria de facto a ter em conta [a da sentença recorrida, que não foi objeto de impugnação, com o aditamento ao seu nº1 da menção de que se dá por reproduzido o conteúdo do contrato de arrendamento nele aludido e junto pela própria autora com a petição inicial, o que se faz ao abrigo do disposto nos arts. 663º nº2 e 607º nº4, 2ª parte, do CPC]:

Factos provados

1. A Ré é dona e legítima proprietária do 2º andar da rua ..., ..., ... Porto, tendo cedido o seu gozo a CC por contrato de arrendamento habitacional com prazo certo de um ano e com início a 1/10/1987, o qual foi junto aos autos com a petição inicial e cujo respetivo teor aqui se dá por reproduzido.

2. A morte do inquilino primitivo, em 23/4/2011, implicou que o contrato de arrendamento fosse transferido para a cônjuge com residência no locado, a aqui Autora, a qual ainda reside no locado, mantendo-se o contrato em vigor.

3. O valor atual da renda cifra-se em € 265,87/mês.

4. A Autora e a Ré sempre reconheceram reciprocamente as respetivas posições, de locatária e locadora, ao longo deste vínculo.

5. A Autora recebeu uma carta, datada de 29/5/2013, que a Ré lhe dirigiu, junta aos autos como documento nº 6 apresentado com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por reproduzido.

6. O imóvel apresentou fissuras e rachadelas na escadaria que dá acesso ao locado.

7. A porta da rua encontra-se danificada desde 2009.

8. Existem infiltrações e humidades no locado, que parte do chão do locado está levantado e que algumas paredes do locado estão degradadas.

9. O descrito em 8) está a danificar o recheio do locado.

10. A área comum do 3º andar, onde o filho da Ré trabalha, foi objeto de reparação.

11. O imóvel onde se situa o locado foi construído nos anos 60.

12. As fissuras e rachadelas existentes na área comum acarretam infiltrações e humidades na escadaria e na habitação da Autora.

13. A porta da rua – não fecha – encontra-se danificada desde 2009.

14. A deterioração das paredes interiores e do chão do interior da habitação da Autora é proveniente da humidade e infiltrações decorrentes da área comum.

15. As infiltrações estão a danificar o recheio da habitação da Autora.

16. As caleiras foram reparadas.

17. A Ré é proprietária do prédio e o mesmo, ainda que com unidades suscetíveis de utilização independente, não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal.

Factos não provados

Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados - discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) -, resultaram não provados, designadamente:

1. A Ré opõe-se à mudança do contador da água existente para um digital.

2. A Autora interpelou várias vezes a Ré para o descrito em 7), 8) e 9) dos factos provados.

3. Que a Autora sofre de asma e tem piorado devido às infiltrações, que anda preocupada, ansiosa, irritada e angustiada e que demonstra falta de paciência e irritabilidade junto dos seus familiares e amigos.

4. Que a proprietária nunca realizou qualquer obra de reparação, manutenção ou conservação na área comum.


*

Vamos à primeira questão enunciada.

Como se vê da sentença recorrida, na sequência de ali se dizer na sua fundamentação de direito (a págs. 20 de tal peça) que “impõe-se julgar procedente, ainda que de forma parcial, o primeiro pedido formulado – condenação da Ré a executar no locado as obras necessárias à sua recuperação total, no interior e áreas comuns, por forma a que a Autora, arrendatária, possa recuperar o total gozo do mesmo de acordo com o contrato de arrendamento, com condições de segurança, conforto e salubridade –, descriminando-se de seguida as concretas obras a que a Ré está obrigada”, condenou-se a ré a executar as seguintes obras:

i) reparação da porta do prédio, que não fecha;

ii) reparação e pintura das paredes interiores da habitação da Autora; e

iii) reparação do chão do interior da habitação da Autora que está levantado.”

Considerando que o locado se situa no 2ª andar do prédio identificado sob o nº1 dos factos provados e que a ré é proprietária de todo o prédio – o qual, ainda que com unidades suscetíveis de utilização independente, não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal (nº17 dos factos provados) – a obra referida sob o primeiro item da condenação (na porta desse prédio que dá para a rua) é a efetuar numa parte comum desse prédio.

A responsabilidade por tal obra é da ré, como proprietária do prédio e senhoria no contrato de arrendamento daquele 2ª andar, pois visando-se com a mesma acautelar a segurança e privacidade no acesso ao edifício – e por essa via, àquele 2º andar –, ela decorre da sua obrigação prevista na alínea b) do art. 1031º do C. Civil de, como locadora, assegurar à locatária o gozo da coisa para o fim (habitação) a que esta se destina.

Passemos às obras referidas sob o segundo e terceiro itens da condenação.

Como deles se vê, estão em causa obras a efetuar no interior do locado, sendo de as qualificar como de conservação ordinária[1].

Prevê-se no art. 1074º nº1 do C. Civil que “Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”.

Quanto a obras de conservação, consta do contrato de arrendamento (dado por reproduzido no nº1 dos factos provados), sob a sua cláusula 9ª, o seguinte: “Todas as obras indispensáveis à conservação e limpeza dos interiores do prédio ficam a cargo do inquilino, incluindo a colocação dos vidros que se partirem”.

O contrato dos autos foi celebrado em 1987 e, ainda que a ilicitude ou invalidade de tal cláusula pudesse ser questionável antes da entrada em vigor do NRAU (aprovado pela Lei 6/2006, de 27/2, que entrou em vigor 120 dias depois da sua publicação) – pois nessa altura não estava em vigor para os contratos de arrendamento que vieram por ele a ser abrangidos o disposto no art. 1074º do C. Civil mas antes o disposto no art. 12º do RAU (aprovado pelo Dec.Lei 321-B/90, de 15/10), onde não se previa a “estipulação em contrário” prevista sob o nº1 daquele art. 1074º –, já após a entrada em vigor de tal diploma tal questão não se pode colocar, pois o NRAU manda expressamente aplicar o seu regime, onde se encontra aquele art. 1074º nº1 do C. Civil (introduzido pelo seu art. 3º), quer aos contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados na vigência do RAU, quer aos contratos de arrendamento para fins habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU (que ocorreu em 15/11/1990), como é o caso do contrato dos autos [arts. 26º nº1, 27º, 28º nº1 e 59º nº1 do NRAU; nesta última norma preceitua-se mesmo que tal diploma “aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, sendo que, por sua vez, tais normas transitórias são as constantes dos arts. 26º a 58º e delas não consta qualquer disposição da qual decorra a inaplicabilidade a tais contratos do art. 1074º nº1 do C. Civil].

Isto é, a cláusula acima referida aplica-se ao contrato dos autos e, integrando ela a estipulação em contrário prevista naquela norma, ficam por via dela a cargo da arrendatária – no caso, a autora – as obras daquela natureza.

Assim, concluindo, a obra referida sob o primeiro item da condenação é da responsabilidade da ré e as obras referidas sob os segundo e terceiro itens são da responsabilidade da autora.

Como tal, há que julgar parcialmente procedente o recurso quanto a tal e revogar a decisão recorrida na parte em que condena a ré nas obras referidas sob aqueles segundo e terceiro itens (reparação e pintura das paredes interiores do locado e reparação do chão do interior do locado).

Passemos à segunda questão enunciada.

Como resulta da conjugação do decidido na sentença da primeira instância e do agora decidido nesta sede de recurso, a ré apenas veio a decair no que diz respeito à sua condenação na execução da obra de reparação da porta do prédio onde se situa o locado, pois em tudo o mais quem decaiu foi a autora.

Não temos na matéria de facto provada qualquer valor que nos permita indexar o valor daquele decaimento da recorrente.

Atenta a exiguidade da sua condenação em relação ao discutido na ação, fixa-se a proporção do seu decaimento em 5% e a proporção do decaimento da autora em 95% do valor da ação (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).

Igual proporção, pelo mesmo motivo, é de aplicar ao recurso.


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acordando-se em julgar parcialmente procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida na parte em condena a ré a executar as obras referidas sob o segundo e terceiro itens dos do seu dispositivo final (reparação e pintura das paredes interiores do locado e reparação do chão do interior do locado), dela se absolvendo a ré, e mantendo-se aquela mesma sentença quanto ao restante.

Custas da ação e do recurso por autora/recorrida e ré/recorrente, fixando-se a proporção do decaimento da primeira em 95% e a proporção do decaimento da segunda em 5%.


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Porto, 13/10/2025
Mendes Coelho
José Nuno Duarte
Ana Paula Amorim
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[1] Pois são consideradas como tais, além das impostas pela administração, as de reparação e limpeza do prédio e suas dependências, assim como todas as intervenções destinadas a manter o nível de habitabilidade que o prédio tinha à data da celebração do contrato [como se definia no art. 11º nº2 do RAU (aprovado pelo Dec.Lei 321-B/90, de 15/10) e referem Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, volume II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 381].