Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1645/23.6T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ATIVIDADE PERIGOSA
RESPONSABILIDADE DO SUBEMPREITEIRO
DEVER DE VIGIAR A EXECUÇÃO DA OBRA
Nº do Documento: RP202509151645/23.6T8VFR.P1
Data do Acordão: 09/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Impugnada a decisão da matéria de facto o tribunal ad quem apenas deve anular a sentença a não constarem do processo os elementos que permitam decidir. De contrário, o conhecimento processar-se-á no tribunal ad quem, pressupondo que sobre a matéria em causa foi produzida prova com a observância do contraditório. Assim, sempre que estejam ao dispor do tribunal superior os elementos que permitam decidir a impugnação a decisão processar-se na segunda instância, sem que tal determine a anulação da decisão recorrida e a devolução à 1ª instância.
II - São pressupostos da responsabilidade civil subjetiva o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, tendo a culpa de ser provada, tal como os restantes pressupostos, cumulativos, da responsabilidade civil, salvo havendo presunção de culpa (nº1, do art. 342.º, n.º 1, do art. 487.º e art. 350.º, todos do CC), o que sucede em específicas situações que o legislador considerou, entre elas as concretizadas nos artigos 491º a 493º, de tal diploma legal).
III - Inscrevem-se na responsabilidade civil extracontratual as violações de deveres de segurança no tráfego, deveres estes cujo fundamento jurídico-positivo se encontra: i) - nos previstos nos artigos 491º a 493º, em interpretação extensiva; e ii) - no princípio geral de controlo do perigo (por quem o tenha criado ou por quem tenha meios para o controlar) que decorre do Código Civil e de leis extravagantes (nº1, do art. 483º, art. 486º, ambos do CC, e, ainda, previsões específicas).
IV - A atividade de soldar telas asfálticas com um maçarico, a lançar chama alimentada por gás configura-se como perigosa para os efeitos do nº2, do art. 493º, do referido diploma, dada a especial perigosidade e o concreto risco de originar incêndio e, mesmo, explosão.
V - O subempreiteiro que no exercício da atividade de soldar telas asfálticas com um maçarico a lançar chama alimentada por gás provoca incêndio responde pelos danos causados a terceiros, a não provar ter realizado as diligências necessárias a evitá-los, afastando a presunção de culpa (nº1, do art. 483º e nº2, do art. 493º, todos do CC).
VI - A responsabilidade do subempreiteiro perante terceiro lesado (a poder implicar se convoque o nº1, do art 500º a existir uma relação de comissão entre empreiteiro e subempreiteiro, mas não o nº1, do art. 800º, específico da responsabilidade contratual) é, em regra, dada a autonomia com que o subempreiteiro atua em relação ao empreiteiro, no caso de atividade perigosa, solidária com a do empreiteiro por sobre este impender o dever de vigiar a execução da obra subcontratada (exercendo um certo grau de supervisão, fiscalização técnica e controle sobre o trabalho do subempreiteiro e sobre a feitura da obra), a estarem preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - nº1, do art. 497º, nº1, do art. 483º, 486º e nº1, do art. 493º, todos do CC.
VII - Não se verificando circunstância da lesada a concorrer, real e efetivamente, para a ocorrência ou agravamento dos danos (falta de demonstração de factos a densificar culpa da lesada) o dever de indemnizar do subempreiteiro e do empreiteiro não se mostra excluído - cfr. nº2, do art. 570º, do CC -, sequer sofre redução (nº1, de tal preceito), antes de impõe nos termos dos art. 562º e segs, de tal diploma legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1645/23.6T8VFR.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)

Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3


Relatora: Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Des. Ana Olívia Esteves Silva Loureiro
2º Adjunto: Des. Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

………………………………

………………………………

………………………………


*

I. RELATÓRIO

Recorrentes de dada um dos recursos: a 2ª Ré, A..., S.A., e o 3º Réu, AA;

Recorrida: a Autora, B..., Lda.;

Co-Réus: o 1º Réu, Condomínio ..., e a 4ª Ré, C... – Companhia de Seguros, S.A.; interveniente principal: D..., S.A.; interveniente acessório: Condomínio 1....


*

B..., Lda propôs ação declarativa comum contra Condomínio ..., A..., S.A., AA e C... – Companhia de Seguros, S.A. pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe a quantia global de € 130.658,93, acrescida dos juros legais até efetivo e integral pagamento.

Alega, para tanto, os danos que lhe advieram do incêndio no prédio sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, ocorrido no dia 29 de maio de 2020, na sequência das obras de impermeabilização que o 1.º Réu contratualizou com a 2.ª Ré que esta subcontratou ao 3.º Réu, tendo o incêndio deflagrado em virtude do uso de maçarico na atividade de colocação de tela de isolamento na parede das traseiras daquele prédio e sendo a execução da obra da responsabilidade de todos eles. Alega, ainda, ter a 2.ª Ré celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil com a 4.ª Ré. Mais alega ter-se tal incêndio propagado à fração por si ocupada por força de contrato de arrendamento, começando por destruir uma parte destinada a armazém que ocupava parte do terraço, atingindo, ato contínuo, todo o interior das instalações do café-restaurante que a Autora, então, explorava e, em consequência, sofreu prejuízos que totalizam o valor de € 170.810,98, correspondendo € 63.321,39 a danos com equipamentos, € 11.236,44 a danos com mobiliário, € 6.466,98 a danos com existências, € 29.269,42 a danos com edifício, € 31.266,75 a gastos fixos e € 29.250,00 a perdas de exploração, tendo desse valor sido ressarcida pela sua seguradora, a E..., da quantia de € 40.152,05, reclamando o pagamento da diferença.

O 1.º Réu contestou, defendendo-se por exceção, ao invocar a sua ilegitimidade passiva, e por impugnação, pugnando pela improcedência da ação. Alega que a empreitada foi contratada entre a 2ª Ré, o 1.º Réu e o Condomínio 1..., correspondendo no contrato de empreitada a área total intervencionada a 395 m2 e, apenas, 60 m2 correspondem à área propriedade do 1.º Réu, aquando do incêndio, não era o 1.º Réu quem executava a obra, desconhecendo a subcontratação do 3.º Réu, não lhe podendo ser assacada responsabilidade. Mais alega que celebrou com a D... contrato de seguro do edifício e das partes comuns destinado a cobrir eventuais danos no edifício e, ainda, com cobertura da responsabilidade civil do imóvel e requereu a intervenção principal do referido Condomínio e Companhia de Seguros.

A 2.ª Ré contestou alegando que o 3.º Réu executava os referidos trabalhos de impermeabilização do terraço por sua própria conta e em cumprimento do contrato de subempreitada consigo celebrado, que desconhece as circunstâncias em que ocorreu o incêndio, tendo o 3.º Réu informado que, quando se encontrava em local oposto ao do anexo onde deflagrou o incêndio e distante do mesmo, foi alertado por um empregado seu de que estava a deflagrar um incêndio naquele mesmo anexo, junto à parede e a ser verdade o 3.º Réu não terá tido contribuição causal para o incêndio e não podendo ele ser responsabilizado também o poderá ser a 2.ª Ré. Na hipótese de se concluir que foi o 3.º Réu que culposamente causou o incêndio no restaurante durante a execução dos trabalhos de impermeabilização e que a 2.ª Ré como empreiteira daquele é, também, responsável terá direito de regresso sobre o 3.º Réu e, nessa hipótese, deve ser admitida a exercer o seu direito de regresso, peticionando seja o 3.º Réu condenado a pagar o que a 2.ª Ré vier a ser condenada a pagar e que venha efetivamente a pagar, acrescido dos juros a contar do pagamento.

O 3.º Réu contestou alegando que o incêndio ocorreu na churrasqueira do estabelecimento inexistindo maçarico a trabalhar e estando a empreitada a ser executada com todas as cautelas.

A 4.ª Ré contestou pugnando pela improcedência da ação, pois, apesar de à data do sinistro vigorar entre a 2.ª Ré e a 4.ª Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil exploração – construção, titulado pela apólice ..., desconhecendo como ocorreu o incêndio, o certo é que, não se encontrando na altura a 2.ª Ré a executar quaisquer trabalhos, caso se venha a apurar que se ficou a dever a ato ou omissão do 3.º Réu, a apólice não garante o pagamento de indemnizações emergentes da responsabilidade civil deste.

Admitida a intervenção principal da D..., S.A. e a intervenção acessória do Condomínio 1..., veio a interveniente principal D..., S.A. contestar, invocando desconhecer o alegado na petição inicial e pugnando pela improcedência da ação, pois, vigorando à data do sinistro o seguro do ramo “D... Condomínio”, titulado pela apólice n.º ..., o sinistro é imputado ao 3.º Réu, não sendo imputada qualquer conduta culposa ao segurado da Interveniente, aderindo à defesa do 1.º Réu, e o interveniente acessório Condomínio 1... contestou defendendo a improcedência da ação.

A Autora respondeu, pugnando pela improcedência das exceções deduzidas e pela procedência da ação nos termos alegados e peticionados, atribuindo aos Réus a responsabilidade pelos danos por si sofridos, por eles causados na execução dos trabalhos de impermeabilização que refere.


*

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a exceção da ilegitimidade passiva do 1.º Réu e despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, não tendo sido apresentada reclamação.

A 2.ª R. veio apresentar articulado superveniente a que a Autora respondeu.


*

Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.

*

Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:

“Pelo exposto:

1. Julga-se parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

1.1. Condenam-se solidariamente a 2.ª Ré A... e o 3.º Réu AA a pagarem à Autora a quantia que vier a ser liquidada a título de danos com equipamentos, mobiliário, existências, edifício, gastos fixos e perdas de exploração, deduzida da quantia referida em 17.;

1.2. Absolvem-se a 2.ª Ré e o 3.º Réu do demais peticionado;

1.3. Absolvem-se o 1.º Réu, a 4.ª Ré e o Interveniente principal de todo o peticionado;

2. Indefere-se o pedido deduzido pelo 2.º Réu.


*

Custas da acção a cargo da Autora e dos 2.º e 3.º Réus, provisoriamente, na proporção de metade”.

*
Apresentou a 2ª Ré, A..., recurso de apelação, pugnando por que se ordene a baixa do processo à 1ª instância, para correta motivação dos factos não provados das alíneas k), l), s) e t), anulando-se a sentença recorrida, e, a assim se não entender, se anule o facto 10 da “Matéria provada” e, como consequência, por falta de verificação de facto imputável gerador do dever de indemnizar, seja absolvida do pedido, formulando, para tanto, as seguintes

CONCLUSÕES:
“Quanto à insuficiente motivação dos factos das alíneas k), l), s) e t) da “Matéria não provada”:
1ª.- Nos termos do disposto no número 4 do artigo 607º do CPC, o juiz deve expor a análise crítica das provas que foram produzidas, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório de não provado, por cada facto que considere como tal.
2ª.- No contexto da presente acção, atenta a causa de pedir e o alegado nas diversas contestações, os factos das alíneas k), l), s) e t) da “Matéria não provada” da douta sentença, são essenciais, quer indirectamente, para imporem a exclusão de factos provados que foram determinantes para o julgamento da acção, como sucede com o facto 10, quer directamente para a decisão de mérito, especialmente quanto à responsabilidade da ora recorrente, como empreiteira, pela vigilância da actividade do 3º R., como seu subempreiteiro, conforme se expôs a págs. 3 das anteriores alegações.
3ª.- Considerando que sobre os factos das referidas alíneas foi produzida prova testemunhal, designadamente a invocada a págs 2 das conclusões anteriores, a fórmula de texto a que o Mmo Juiz recorreu, quanto à motivação de “não provado” àqueles factos, no sentido de que “No que concerne à matéria não provada, tal ficou a dever-se à sua insuficiente demonstração, ponderada toda a prova produzida, como resulta, até, do acima exposto.” não satisfaz o grau de exigência da norma legal referida na conclusão 1ª, quanto à necessidade de exposição dos motivos que o levaram a formular o juízo probatório de não provado, incorrendo em violação da norma do nº 4 do art. 607º, com o sentido que lhe vem dando a jurisprudência e a doutrina.
4ª.- Deve, por isso, na procedência desta questão, este douto Tribunal da Relação determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de o Mmo Juiz preencher a referida omissão – quanto à motivação do julgamento das referidas quatro alíneas, como não provadas -, para efeitos de inserção da motivação e fundamentação da decisão sobre o julgamento de “não provado” dos factos daquelas 4 concretas alíneas.
Quanto, concretamente, à anulação do facto 10 da “Matéria provada”:
5ª.- Este facto, só por si, é determinante para o destino da acção, na medida em que atribui ao terceiro réu a prática efectiva, material e directa do “facto” gerador, que teria sido a origem direta do incêndio, pelo que a sua prova teria - terá - de ser segura e inequívoca, sem deixar margem para alternativa.
6ª.- Não obstante a motivação escolhida para este facto, que ficou a constar de págs 9 a 14 da douta sentença, essa prova não é inequívoca e suficientemente segura, como se demonstrou a págs 6 e seguintes das anteriores alegações, e, além disso, deixa de fora outros elementos de prova, expostos a págs 8 e seguintes, que, sendo analisados fria, racional e criticamente, se não forem capazes, só por si, para ilidir aquele facto, são seguramente suficientes para criar uma dúvida razoável e muito séria sobre a sua probabilidade, levando a afastá-lo do elenco dos factos provados.
7ª.- Esses factos são de três ordens de razões: (i) por um lado, no sentido da impossibilidade efetiva de, neste caso em concreto, o fogo ter passado da chama do maçarico para o interior dos anexos, assim provocando o incêndio, dada a barreira física que se interpunha entre o terraço onde decorriam os trabalhos do 3º R. e o interior dos anexos onde ocorreu o incêndio, e, (ii) por outro lado, no sentido de, à hora a que ocorreu o incêndio, o maçarico andar a ser utilizado em local afastado dos anexos, e, (iii) finalmente, no sentido de, também com grande probabilidade, o incêndio ter sido provocado a partir do interior dos próprios anexos, por fagulhas ou chispas de fogo a partir do carvão em madeira utilizado na churrasqueira que aí era utilizada.
8ª.- Ora, conforme evidencia a doutrina e a jurisprudência citadas a págs 6/7 das anteriores alegações, a análise da prova, para, como é o caso, nos levar a passar de um facto conhecido, neste caso o incêndio, para a aquisição de um facto desconhecido, neste caso o facto causador do incêndio, deve ser abrangente, no sentido de (essa análise) incidir, de modo crítico e racional, segundo as regras da experiência e sem juízos ou tendências prévias, as várias “pistas” ou probabilidades disponíveis nos autos que apontem para a verosimilhança ou para a improbabilidade, à luz da compatibilidade com o sentido, tendo por finalidade, alcançar a certeza subjectiva da realidade desse facto.
9ª.- E quando, inexistindo, como é o caso presente, prova directa (do facto 10), não for possível, a partir da consideração racional e crítica dessas várias “pistas” ou probabilidades que os autos evidenciam, alcançar aquela certeza subjectiva sobre a realidade do facto, este não deve ser considerado provado.
10ª.- Tomando em consideração, de um lado, a análise da motivação da sentença ora recorrida, e, do outro lado, as provas produzidas nos autos e as várias pistas que a partir delas é possível admitir – ou, até, excluir -, importa aferir se os elementos de convicção probatória referidos naquela sentença, que levaram à formação da “certeza subjectiva” do Mmo Juiz a quo, foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pela norma legal do nº 5 do art. 607º do CPC, abrangendo todas aquelas provas e as várias pistas que a partir delas é possível admitir ou devem mesmo ser excluídas.
11ª.- Conforme se expõe a págs 7/8 das anteriores alegações, o Mmo Juiz a quo deu um valor decisivo aos elementos de prova em que motivou o facto 10, mas deixou de dar qualquer valor a depoimentos e dados de facto objectivos que, à luz das regras da experiência, o deveriam ter levado a, no mínimo, pôr de parte aquela certeza subjectiva que o levou a considerar provado aquele facto 10.
12ª.- Como a referida certeza subjectiva tem de ser alcançada, também, pela 2ª instância, quando esta, como agora sucede, é chamada a pronunciar-se sobre o facto em causa – o facto 10 -, então, a ora recorrente crê que este mui douto Tribunal da Relação, analisando as várias probabilidades da origem do incêndio, não se deixará cair na tentação fácil do recurso ao maçarico a gás doméstico que, vindo mesmo a calhar, até andava a ser utilizado ali ao lado, e acabará por, pelo menos, não formar a sua “certeza subjectiva” no sentido de que aquele instrumento foi, sem dúvida razoável, o causador do incêndio que ocorreu no interior dos anexos ao lado.
13ª.- Há elementos factuais e depoimentos que não foram considerados na motivação do facto 10, mas que, pela sua importância, não podem deixar de, pelo menos, suscitar dúvida – e uma dúvida, no mínimo, muito razoável – quanto à possibilidade de o incêndio ter sido “provocado” ou causado pelo maçarico a gás utilizado pelo 3º R.: ou seja, de fora para dentro, isto é, a partir do terraço para o interior dos anexos, sem deixar de ter em conta que os anexos onde ocorreu o incêndio eram a cozinha do restaurante (facto 21), na qual existiam, além do mais, duas churrasqueiras, uma eléctrica e outra a carvão (facto 21), que tinha funcionado até às 14/14,30 h. desse dia (facto 24) e com carvão nos dois anexos (facto 22).
14ª.- O primeiro desses elementos é o facto de as paredes exteriores dos anexos em que ocorreu o incêndio, que confinavam com o terraço que andava a ser impermeabilizado pelo 3º R., serem formadas por umas chapas onduladas em fibra de vidro, ou policarbonato, que não eram combustíveis.
15ª.- Esse facto foi-nos revelado pelo réu AA e confirmado pelas testemunhas BB, subscritor do relatório da F..., CC, engenheiro civil, técnico de segurança e de incêndio da A..., DD, nos seus depoimentos a que se referem os extractos referenciados e transcritos a págs 9 e 10 das anteriores alegações.
16ª.- O segundo elemento factual é que essas chapas onduladas de fibra de vidro que constituíam as paredes exteriores dos anexos e que, fisicamente, separavam os anexos do terraço em impermeabilização (i) estavam aplicadas à volta (portanto lateralmente) de um murete, na sua base, e (ii) não eram inflamáveis, isto é, não ardiam – é o que foi informado pela testemunha BB, no extracto do seu depoimento referido na conclusão anterior, e, bem assim, pela testemunha CC, engenheiro civil, técnico de segurança e de incêndio, no extracto do seu referenciado depoimento parcialmente transcrito a págs. 11, 12 e 13 das anteriores alegações.
17ª.- Sendo as chapas referidas nas conclusões anteriores não inflamáveis – podendo apenas derreter –, elas não podiam ser atravessadas directamente pela chama do maçarico e, por essa via, permitir a transmissão do fogo do maçarico para o interior dos anexos.
18ª. E, estando tais chapas apoiadas num murete, encostadas a um murete que existia pelo seu interior, na sua base, a chama do maçarico (maçarico de uso doméstico, como notou a testemunha CC, portanto com pouca potência), para poder ir incendiar o interior dos anexos, teria de (i) passar por baixo da chapa, (ii) subir o murete em que tal chapa se apoiava lateralmente, (iii) e, depois disso, ir incendiar o que existisse para lá do murete, o que, em seu entender, era inviável – o que, como sublinhou a testemunha CC, era inviável.
19ª.- Logo, das anteriores conclusões 14ª a 18ª, não pode extrair-se, com a segurança necessária e exigível, que o incêndio foi provocado pelo maçarico a gás utilizado pelo 3º Réu, como indevidamente se fez constar do facto 10.
20ª.- Logo também, mesmo a admitir-se, como resulta da motivação, que o 3º R. e a testemunha DD tentaram enganar o tribunal, quando disseram, nos seus depoimentos, que, da parte da tarde desse dia, andavam a trabalhar em local afastado dos anexos, mesmo assim, repete-se, não há prova suficiente para dar como provado o que consta do facto 10.
21ª.- Esse facto, mesmo que só considerando as questões técnicas reveladas pelas duas referidas testemunhas – o facto de as chapas não serem inflamáveis, e o facto de ser improvável que a chama pudesse ter passado por baixo das chapas, subindo o murete que se seguia e indo depois provocar o incêndio no que existisse para lá do murete, não - não pode manter-se.
Porém, além disso,
22ª.- As razões pelas quais o Mmo Juiz a quo disse não dar crédito ao depoimento do DD, designadamente a propósito da questão da existência, por evidentes razões de segurança, de extintores ao alcance do 3º R., subempreiteiro - (i) porque optou (quedou-se) pela versão da Autora (ii) porque o incêndio ocorreu em virtude do uso do maçarico e (iii) porque o R. AA e os seus funcionários não tinham quaisquer extintores – não são, pelas razões que se expõem a págs 14 das anteriores alegações, justificação relevante para não dar crédito a tal depoimento, à luz da exigência do nº 5 do art. 607º, de acordo com os critérios anteriormente expostos a pág. 6/7 destas alegações, pelo que este douto Tribunal da Relação não se encontra (como nunca se encontraria) vinculado a um tal juízo.
23ª.- Sendo o facto de existirem ou não extintores, no local dos trabalhos, relevante para, caso o facto 10 se mantivesse, uma vez que isso, dada a natureza dos trabalhos, era uma regra de cuidado mínima a respeitar, tanto pelo subempreiteiro como pela empreiteira, interferindo com a responsabilidade desta, deve, com fundamento não só no depoimento do 3º R. e da testemunha DD (nos tempos do registo dos seus depoimentos referidos a págs 17 das anteriores conclusões), mas também com fundamento nos extractos do referenciado depoimento da testemunha CC transcritos a págs 17 e 18 das anteriores alegações, deve entender-se e considerar-se assente que aquele 3º R., durante a execução dos seus trabalhos de colagem das telas de impermeabilização, dispunha de dois extintores de incêndio.
Por último, mas não menos importante, pelas razões que se expuseram a págs 19 e 20 das anteriores alegações,
24ª.- Não resultando o facto 10 de prova directa, mas sim de uma mera probabilidade, alicerçada num contexto de natural confusão, emoção e alarido que o fogo, especialmente em meio urbano, como o presente, sempre suscita nas pessoas, e de que são bom exemplo os depoimentos das testemunhas EE e FF, invocados na motivação que foi dada àquele facto, o Mmo Juiz não ponderou uma outra probabilidade: a de o incêndio, que – nota-se bem - deflagrou no estabelecimento de restaurante e churrascaria (factos 9, ex vi dos factos 1, 2 e 21 a 25) e, concretamente, nos anexos a que se referem os factos 21 e seguintes), ter nascido e sido provocado no interior da cozinha industrial, com churrascaria a carvão, que funcionava nos anexos do próprio restaurante, conforme alegou o 3º R. nos artigos 5º, 6º e 7º da sua contestação, transcritos a págs 20 das anteriores alegações, e que fora encerrada apenas cerca de meia hora antes da descoberta do fogo no seu interior.
25ª.- Pela dimensão dos equipamentos e tubagens de exaustão que são visíveis nas fotografias 5 e 6 do relatório da G... e na 4ª fotografia do relatório da F..., percebe-se que – como resulta dos factos 21 e seguintes - o que funcionava no interior dos anexos era uma cozinha industrial a sério, a partir de duas churrasqueiras, uma eléctrica e outra a carvão, duas fritadeiras, um fogão e um grelhador a gás.
26ª.- É um dado da experiência comum que a churrasqueira a carvão liberta – e deixa cair pela sua base, por onde respira – pequenas fagulhas ou “chispas” de fogo para o exterior, sendo, portanto, possível (e até muito provável) que essas fagulhas “saltassem” para o carvão que se encontrava nos dois anexos e ou para alguma peça de tecido ou de roupa aí naturalmente existente.
27ª.-Tendo o restaurante fechado, após o almoço, às 14/14,30h., e o incêndio sido detectado meia hora depois, por volta das 15 h, em termos de probabilidade – e é de probabilidade que se fala quando se diz o que consta do facto 10, na medida em que ninguém presenciou o que aí se diz -, bem pode acontecer que o incêndio tenha sido provocado a partir do interior dos anexos, onde se encontravam todos os elementos adequados à sua ocorrência e deflagração.
28ª.- Em termos de risco, olhando agora, à distância do tempo, para o contexto que conhecemos, o risco de o incêndio ter deflagrado a partir do interior dos anexos – da cozinha e ou da churrasqueira a carvão e do carvão aí existente – por exemplo, não é, razoavelmente, inferior ao de ter sido provocado pela chama de um maçarico doméstico a gás, chama essa que teria, necessariamente, de passar por baixo das chapas de vibra de vidro, contornando-as, subir pelo murete ao lado do qual aquelas se encostavam, e ir depois aceder, para além do murete, a um qualquer elemento inflamável que aí se encontrasse.
29ª.- Ora, a realidade desse risco não foi, manifestamente – porque não consta da sua motivação - ponderada pelo Mmo Juiz, na elaboração lógico-racional do raciocínio que o levou a dar como provado o facto 10; e, salvo melhor opinião, devia ter sido – porque o Tribunal deve fazer apelo à sua experiência vivencial, usando de prudência e de bom senso na interpretação dos sinais, como os que se estão a analisar, transmitidos pelo processo e pelas testemunhas - e, se o tivesse sido, visto que o que se alega naqueles arts 5º, 6º e 7º da contestação do 3º Réu, em termos de risco de incêndio, é um dado da experiência geral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 607º, 5 do CPC, a resposta ao “facto do facto 10” seria substancialmente diferente.
30ª.- Os referidos sinais apontam no sentido de que o incêndio não foi – não podia ter sido – causado pelo maçarico, mas sim, com toda a probabilidade de o incêndio ter tido a sua origem na churrasqueira a carvão (e, em geral, na cozinha) que funcionara até meia hora antes de o incêndio ter sido descoberto pelo 3º R. e pelo seu empregado, através do clarão visível através das chapas de fibra de vidro, conforme afirmaram a testemunha DD, na parte do seu depoimento transcrito a págs 10 das anteriores alegações (aos minutos 00:04:14 e 00:04:31 e o 3º R., no seu depoimento igualmente transcrito a págs 10 das anteriores alegações (aos minutos 00:20:15 e seguintes e 00:24:43 e segs).
31ª.- Foi, pelo juízo que fez nesse sentido que a comunicação social do próprio dia, como o JORNAL ..., noticiava que este “fogo terá deflagrado na zona do fogão e exaustão da cozinha do restaurante.”, conforme a fotografia da notícia que constitui o ANEXO 9 do relatório da G....
Aliás,
32ª.- Segundo o referido depoimento da testemunha CC, na parte transcrita a págs 15, 16 e 17 (do minuto 00:09:10 ao minuto 00:18:39), no momento em que deflagrou o incêndio, o 3º R. (e os seus trabalhadores) andavam a trabalhar no lado do terraço oposto àquele em que se situavam os anexos onde ocorreu o incêndio, pelo que não podiam ter sido eles a provocar tal ocorrência.
Enfim,
33ª.- Perante a ausência de prova directa que suporte o facto 10, tomando em consideração a análise conjunta não só da que serviu de motivação, pelo Mmo Juiz, àquele facto, mas também de todos os demais elementos de prova evidenciados pelos autos, em conjugação com os elementos existentes no local do incêndio, analisados nas alegações e nas conclusões anteriores, sempre em conformidade com o princípio legal consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, impõe-se a conclusão de que o teor daquele facto carecia da prova e segurança jurídica necessárias para que pudesse ser considerado provado, devendo, por isso, ser anulado.
34ª.- Em resultado da anulação do facto 10, deixa de existir o facto gerador da Responsabilidade civil por factos ilícios do 3ºR., como primeiro e essencial elemento desencadeador dessa responsabilidade, o que bastará para que a acção improceda, quer quanto ao 3º R. quer quanto à 2ª R., ora recorrente.
Sem conceder, quanto ao DIREITO:
Pelas razões expostas a págs 21 e segs das anteriores alegações,
35ª.- O uso do maçarico doméstico a gás, a colar as telas sobrepostas sobre o terraço, num contexto físico (revelado pelas fotografias juntas aos autos e referidas a págs 22 das anteriores alegações) completamente despido de elementos inflamáveis, a céu aberto, apenas com cimento e construção civil (sem madeiras) em toda a volta, e, do lado dos anexos, as paredes destes em chapa de fibra de vidro, que não eram inflamáveis nem combustíveis, mesmo em dia de muito calor, não era apto a causar este incêndio nos anexos da cozinha da Autora.
36ª.- Assim, nesse contexto físico e nas concretas circunstâncias de facto anteriormente referidas, sem elementos inflamáveis ou susceptíveis de incendiar, já que as chapas de fibra de vidro, como demonstrado pelos depoimento testemunhais, em especial o de CC, técnico de incêndios da ANPC, o não eram, e também não o eram as janelas, em alumínio, conforme é visível nas referidas fotografias, o mero e simples trabalho manual de soldar telas asfálticas (elas próprias não inflamáveis, como resulta evidente) através de um maçarico doméstico que efectua uma combustão de gás, a céu aberto, ou seja, ao ar livre, mesmo quando está sol e faz muito calor, pode exponenciar a perigosidade e a possibilidade de provocar queimaduras no corpo da pessoa que utiliza aquele instrumento, podendo ser qualificada, para esse efeito, como uma actividade perigosa para efeitos do artigos 493º, nº 2 do CC.
37ª.- Mas já não pode tal trabalho manual ser qualificado como actividade perigosa para efeitos do caso concreto do presente processo, uma vez que do contexto e das circunstâncias físicas em que tal trabalho era executado (como se disse, ao ar livre e sem quaisquer elementos inflamáveis nem combustíveis à sua volta), não obstante estar muito calor, não evidenciava, muito menos exponenciava, qualquer risco, perigosidade ou possibilidade de provocar um incêndio, designadamente no prédio confinante, que é do que trata este mesmo processo.
38ª.- Por isso, neste caso em concreto, ou seja, para os fins específicos do presente processo, não há lugar à presunção de culpa prevista naquela norma legal, em razão do que, não se tendo provado a culpa da Ré, ora recorrente, cujo ónus, por falta da presunção daquela norma legal, competia à Autora, não podia aquela ser condenada, ainda que se mantivesse o facto 10.
39ª.-Admitindo, por mera hipótese de raciocínio, que o trabalho de colar telas aqui em causa fosse qualificado como actividade perigosa para efeitos do número 2 do artigo 493º do código civil, à semelhança do que foi entendido pela douta sentença recorrida, ainda assim, no presente caso em concreto, a ora recorrente, como empreiteira, e não obstante o dever de vigilância, da actividade do subempreiteiro, que essa qualidade lhe impunha (segundo o entendimento jurisprudencial referido quer na douta sentença recorrida, quer a págs 22 das anteriores alegações), não podia vir a ser responsabilizada pelos danos eventualmente causados a terceiros pelo subempreiteiro.
40ª.- Ainda naquela hipótese, esse dever de vigilância teria por fim, como é natural, evitar que o 3º R. (ou um seu trabalhador), ao manipular o maçarico, fosse provocar um incêndio, designadamente, e se fosse o caso, aquele a que se refere o facto 10.
41ª.- Um acto dessa natureza, susceptível de queimar e provocar um incêndio, é sempre – basta que seja, como é natural e óbvio - um acto instantâneo na inadequada manipulação do maçarico quando este está a queimar o gás, seja por simples descuido pessoal, por distracção, falta de destreza ou firmeza no manuseamento do maçarico - bastaria que, com o maçarico na mão, em chama, o executante, momentaneamente e “por simples descuido pessoal”, deixasse que aquele fosse atingir e queimar o material que não se sabe bem qual foi, mas que, na tese da douta sentença, teria provocado o incêndio.
42ª.- Mas o acto de evitar um infortúnio desses, justamente por ser – ter mesmo de ser - um acto instantâneo, não era uma coisa que fosse exigível à R., ora recorrente, no âmbito do cumprimento do seu referido especial dever de vigilância.
43ª.- Na linha de entendimento do acórdão desta Relação do Porto citado a págs 24 das anteriores alegações, a ora recorrente, como empreiteira, não tinha que exercer uma vigilância permanente sobre as acções e omissões do subempreiteiro, 3º R., na execução do seu referido trabalho, uma vez que “Não é exigível ao empreiteiro (neste caso à ora recorrente) que vigie permanentemente todos os movimentos e todos os trabalhos do subempreiteiro … em todas as suas frentes, mas apenas e tão só “uma vigilância razoável e do dever de se assegurar, através de visitas regulares, que as normas estão a ser cumpridas.”
44ª.- Porém, sendo o presente caso – sempre na hipótese condicional acima pré-figurada - um caso fortuito, e não lhe sendo exigível, como acima se refere, uma vigilância permanente de todos os movimentos do maçarico, não podia a ora recorrente ser responsabilizada pelos danos causados a terceiros, tendo, por isso, de ser absolvida, ainda que naufragassem todas as suas outras questões jurídicas aqui submetidas a julgamento.
45ª.- A douta sentença recorrida fez, quer no que respeita à motivação da matéria de facto, quer quanto ao julgamento da matéria de facto (quanto ao facto 10), ou no que respeita à matéria de direito, uma inadequada e ou incorrecta interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis (de processo e do CC), designadamente as que foram invocadas ao longo das precedentes alegações”.


*
Apresentou o 3º Réu, AA, recurso de apelação, pugnando por que, na procedência do mesmo, seja revogada a sentença recorrida e, consequentemente, o recorrente absolvido de todos os pedidos, e, a manter-se a responsabilização, se exclua ou determine a diminuição da indemnização a prestar pelo recorrente, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:
“I – O aparecimento, num processo de averiguação de responsabilidade por um incêndio, de uma alegada confissão, prestada por quem se encontrava a trabalhar no local e hora da sua deflagração, pouco depois desmentida pelo seu autor, constante de um auto elaborado e manuscrito pela GNR, no local do dito incêndio e enquanto este ainda decorria, deve ser visto com todas as cautelas e nunca levar ao descuido da averiguação das demais circunstâncias que rodearam o sinistro, as quais devem ser analisadas e avaliadas como se o mencionado auto não existisse.
I.1 – Procedimento que, levado pela dita confissão, ignore ou descuide as investigações pertinentes viola os princípios da verdade material, da investigação, da segurança jurídica e da confiança nas Instituições, mormente nos Tribunais, emergentes, desde logo, do n.º 1 e da primeira parte, do n.º 2, do art. 202. °, da Constituição da República Portuguesa,
II – O vício da falta de fundamentação bastante, cominado na al. b), do n.º 1, do art. 615.º, do CPCivil, mormente no que ao elemento fulcral do objecto do processo concerne, que é a responsabilidade pelo início do incêndio cujos alegados danos fundam o pedido de ressarcimento da recorrida, inquina todo o processo lógico dedutivo que permitiria chegar à verdade material e à consequente realização da justiça por ela ditada.
II.1 – Mostra-se violado o n.º 1, do art. art. 205.º, da Constituição da República Portuguesa e o n.º 4, do art. 607.º, do CPCivil, cuja correcta interpretação e cumprimento obrigaria a apreciar todas as provas com outro rigor, sustando à tentação de uma apreciação da prova perfunctória e conformista com a visão mais fácil da questão, o que esse Alto Tribunal suprirá na reapreciação que aqui se lhe roga.
III – Existindo contradição entre os factos provados 10. e 21., 1.º segmento, poderá configurar-se a nulidade cominada na al c), do n.º1, do CPCivil, obrigando a uma reapreciação da questão para a sua eliminação, o que, salvo melhor opinião, V. Exas poderão sempre fazer, ao abrigo do princípio da celeridade processual que terá presidido ao estabelecimento da regra da substituição ao tribunal recorrido, consagrada no art. 665.º, do CPCivil, e, in casu, procedendo à correcta exegese do iter causal-naturalístico da produção do incêndio, determinando a alteração do fp 10. para não provado e a manutenção do 1.º segmento do fp 21.º como provado, ficando vigente ter o incêndio deflagrado no anexo/barraco ali descrito.
IV – A procedência das duas antecedentes conclusões determinará, consequentemente, a alteração da decisão, sendo bastante para a total procedência do recurso.
Não obstante,
V – A alegação, por vários demandados, da inexistência de licenciamento ou autorização para o funcionamento de uma cozinha industrial, onde ocorreu um incêndio de grandes dimensões, sem as mínimas condições de segurança, ou sequer ventilação, bem como o envio de uma carta, dirigida e recebida pela recorrida, em que se lhe imputam as descritas atitudes, sem terem obtido qualquer impugnação ou resposta desta, integram os factos mencionados nos n.º/s 2 e 3, do art. 574.º, do CPCivil, devendo por isso terem sido considerados confessados e logo, dados como provados.
V.1 – A consideração dos aludidos factos como não provados violou frontalmente o disposto naqueles n.º/s 2 e 3, do art. 574.º, do CPCivil;
VI – Os factos mencionados na anterior conclusão evidenciam, ainda que, sem conceder, se admita a ignição do incêndio provocada por facto do recorrente, uma enorme culpa da recorrida e a injustiça da imolação deste desgraçado, prestador de serviços, com os seus dois assalariados, sem seguro, certamente por motivos económicos, o que frontalmente contraria os cânones de uma interpretação actual, à luz dos mais hodiernos critérios de justiça, enquanto justiça que se pensa e se revê no seu resultado.
VI.1 – Mostra-se violado, desde logo, o n.º 2, do art. 570.º, do C.Civil, pois, a manter-se a responsabilização vigente, expressamente fundada na previsão de culpa, como consta do 1.º §, de págs. 23, da decisão recorrida e sendo manifesta a culpa do lesado, sempre o eventual dever de indemnizar do recorrente seria excluído;
VI.2 – Ainda que seja alterada a fonte da responsabilização do recorrente, mostrar-se-ia sempre violado o n.º 1 deste mesmo art. 570.º, do C.Civil, cuja correcta interpretação postula a consideração da enorme culpa da recorrida na produção e agravamento dos danos, determinando a drástica diminuição da indemnização a prestar por aquele”.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.

*

Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

*

II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1. Da anulação da sentença/modificabilidade da decisão da matéria de facto:

1.1 - a impugnação da 2ª Ré (quanto aos itens dos factos não provados das alíneas k), l), s) e t) e ponto 10, dos factos provados);

1.2 - a impugnação do 3º Réu (quanto a contradição entre o ponto 10 e a 1ª parte do ponto 21 dos factos provados e mostrarem-se confessados factos julgados não provados (conclusões V e V.1);

2. Da modificabilidade da decisão de mérito:

2.1 - Da (in)verificação dos pressupostos de responsabilidade civil subjetiva do Réu/Apelante e da obrigação de indemnizar os danos sofridos pela lesada na sequência do incêndio alegadamente provocado no exercício da atividade de soldar telas asfálticas com recurso à chama de maçarico, alimentada a gás;

2.2 - Da (in)verificação de responsabilidade civil da empreiteira, que subcontratou os trabalhos ao referido Réu/subempreiteiro, pelos referidos danos, em que termos e com que limites;

2.3 - Da culpa da lesada e da redução da indemnização.


*

II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição):

1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à restauração, nomeadamente restaurante, churrascaria, pizzaria e snack bar,

2. A Autora é arrendatária de uma fração do prédio sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, composto de edifício de cave para armazém, rés-do-chão para dois estabelecimentos comerciais, e 1.º, 2.º e 3.º andares para habitação;

3. O 1.º Réu, Condomínio ..., e o Interveniente acessório, Condomínio 1..., adjudicaram à R. A... a realização de obras de impermeabilização de um terraço, com a área total de 395 m2, correspondendo 60 m2 à área afeta ao 1.º Réu e 335 m2 à área afeta ao Interveniente acessório;

4. A 2.ª R., A..., celebrou com o 3.º R., AA, contrato de subempreitada, junto pela A. em 24/04/2024 e aqui dado por integralmente reproduzido, através do qual o último se obrigou para com a primeira a executar as obras de impermeabilização referidas em 3.;

5. A 2.ª R. A... celebrou com a R. C... contrato de seguro de “Responsabilidade civil exploração – construção”, titulado pela apólice n.º ..., em vigor à data dos factos, com as condições gerais, especiais e particulares juntas com a contestação da R. C... e aqui dadas por reproduzidas;

6. Tal contrato de seguro garantia o pagamento de indemnizações emergentes da responsabilidade civil extracontratual da R. A... por danos resultantes do exercício da sua atividade de isolamento e proteção de edifícios, tetos e telhados, com o capital seguro de € 500.000,00 e a franquia de 10% sobre o valor de indemnização por prejuízos indemnizáveis, no mínimo de € 250,00 e um máximo de € 1.250,00, tendo ainda a cobertura de atividades complementares de construção civil;

7. De acordo com al. t) do n.º 1 do art.º 6.º das condições gerais, o seguro nunca garante os danos indiretos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e direta do ato ou omissão do Segurado;

8. Nesse seguro, não foi subscrita/contratada a cobertura de subempreiteiros, correspondente à condição especial 005, que garantiria o pagamento de indemnizações emergentes da responsabilidade civil extracontratual exigíveis à R. A... por danos causados a terceiros com a atividade exercida por subempreiteiros, contratados pela R. A..., durante os trabalhos a seu cargo;

9. No dia 29 de maio de 2020, por volta das 15 h 00 m, deflagrou um incêndio no estabelecimento explorado pela A. no prédio sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis;

10. O incêndio foi provocado por um maçarico alimentado a gás que estava a ser usado pelo 3.º Réu ou um dos seus funcionários para soldar telas asfálticas no terraço do prédio do 1.º Réu sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, na execução da obra referida em 3. e 4.;

11. Tal incêndio começou por destruir uma parte destinada a armazém que ocupava parte do terraço, atingindo ato contínuo todo o interior das instalações do café-restaurante que A. então explorava;

12. Em consequência, ficaram destruídos equipamentos, mobiliário e existências da Autora;

13. A Autora teve, também, de suportar obras para a reconstrução do edificado, que ficou destruído;

14. E, esteve impedida de exercer a sua atividade desde 29/05/2020 até 29/09/2020;

15. Durante esse período, teve que continuar a suportar custos fixos mensais, nomeadamente massa salarial, contribuições para a Segurança Social, seguro de acidentes de trabalho, seguro de multirriscos, energia elétrica, comunicações, rendas, contrato de fornecimento de café, crédito bancário, serviços de assessoria, contabilidade e terceiros;

16. E, durante esse período, perdeu toda a sua possibilidade de faturação, sofrendo, consequentemente, perdas de exploração;

17. Em virtude dos danos sofridos com o incêndio, a Autora foi ressarcida pela sua seguradora, a E..., através de seguro de multirriscos, no montante global de € 40.152,05, assim discriminado: - € 27.333,40, com equipamentos; - € 4.618,38, com mobiliário; - € 5.700,27, com existências; e - € 2.500,00, com edifício;

18. Aquando do sinistro, a 2.ª R. não estava a executar quaisquer trabalhos, não tendo qualquer dos seus trabalhadores na obra;

19. No dia do incêndio, estava sol e muito calor;

20. O 1.º Réu celebrou com a interveniente D... contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... do ramo “D... Condomínio”, em vigor à data do sinistro, com a cobertura “Responsabilidade Civil Proprietário do Imóvel” com o capital seguro de € 50.000.000,00, com uma franquia de 10% do valor do sinistro, no mínimo de € 250,00, junto com a contestação da Interveniente e aqui dado por integralmente reproduzido;

21. Na parte traseira do restaurante há dois anexos comunicantes entre si através de uma porta:

- um anexo destinado a arrumos e vestiário para funcionários, onde deflagrou o incêndio; e

- outro anexo destinado a cozinha, onde se encontravam, à data do sinistro, duas churrasqueiras, uma delas elétrica e a outra a carvão, bem como duas fritadeiras, um fogão, um grelhador a gás;

22. Também existia carvão nos dois anexos;

23. A churrasqueira a carvão também era utilizada na confeção das refeições servidas no restaurante;

24. No dia do incêndio, o legal representante da Autora fechou o restaurante após o almoço, pelas 14/14.30 h;

25. A 2.ª Ré acompanhava a execução da obra, assumindo a sua orientação técnica e verificando se estavam a ser corretamente colocados os materiais;

26. Os anexos não estavam licenciados.


*

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Considerou o Tribunal de 1ª instância que nenhuns outros factos ficaram demonstrados, nomeadamente que:

a) O valor dos equipamentos destruídos ascende a € 63.321,39;

b) O valor do mobiliário destruído ascende a € 11.236,44;

c) O valor das existências destruídas ascende a € 6.466,98;

d) O valor suportado com obras ascendeu a € 29.269,42;

e) A Autora esteve impedida de exercer a sua atividade até meados de novembro de 2020;

f) O valor com os custos fixos mensais referidos em 15. ascendeu a € 31.266,75;

g) No período em que esteve impedida de exercer a sua atividade, a A. deixou de faturar € 45.000,00, sendo que a média diária de faturação diária era de € 300,00, num total mensal de € 9.000,00;

h) Atenta a situação pandémica vivida naquele período, a Autora pôde prever que não fora os danos ocorridos no seu estabelecimento e tendo podido continuar a trabalhar com as restrições emergentes daquela situação, sofreria uma redução na sua faturação correspondente a 35% do que era normal e que foi efetivamente faturado no ano anterior à data da ocorrência;

i) Sendo que, por via disso, a faturação previsível no período a que foi obrigada a estar encerrada seria no valor de perdas de exploração e outros: € 29.250,00;

j) Aquando do incêndio, soprava vento moderado do Nordeste;

k) O 3.º Réu encontrava-se a soldar a tela no canto lateral esquerdo (nascente) do terraço, em lado oposto ao do anexo onde deflagrou o incêndio e distante desse mesmo anexo, quando foi alertado por um empregado seu de que estava a deflagrar um incêndio no interior daquele mesmo anexo, junto à parede;

l) E, de imediato, tentou apagar as chamas com o extintor que tinha ao seu lado, por precaução, sem sucesso;

m) A Autora tinha no anexo onde inicialmente deflagrou o incêndio um esquentador sem cumprir os requisitos de ventilação, bem como uma fritadeira industrial, um tanque, e ligações elétricas e de água que não foram autorizadas pelo 1.º R., nem eram do seu conhecimento;

n) O anexo passou a ser utilizado como cozinha sem condições para o efeito e sem autorização do 1.º R.;

o) O 3.º R. rodeou-se de todas as cautelas exigidas pelas condições no local, ao tempo;

p) A Autora processava o churrasco no barraco onde deflagrou o incêndio com carvão incandescente sem quaisquer condições de segurança;

q) O incêndio teve origem na churrasqueira/cozinha, tendo o curso do fogo ocorrido de baixo para cima e não o contrário, não havendo qualquer maçarico a trabalhar, ou sequer aceso, há algum tempo;

r) O 3.º R. estava a cortar tela, com um funcionário, no lugar precisamente oposto àquele em que o fogo surgiu;

s) O 3.º R. empregou todas as medidas, como o uso de extintores, para prevenir a ocorrência de qualquer incêndio;

t) O incêndio deflagrou na zona interior do anexo a partir do funcionamento da churrasqueira e da combustão do carvão nela existente;

u) A churrasqueira de carvão foi utilizada à hora do almoço do dia do incêndio;

v) No dia do incêndio, após fechar o restaurante, o legal representante da A. deixou, no interior da churrasqueira, os restos do carvão que aí fora utilizado na confeção dos almoços;

w) Deixando ainda à volta dessa churrasqueira diversas quantidades de carvão em sacos;

x) O incêndio deflagrou no interior da referida divisão anexa, manifestando-se por fumos que saíam para o seu exterior através das juntas de união das chapas onduladas de fibra de vidro que serviam de paredes dessa mesma divisão, provocado por restos de carvão em brasa que havia sido utilizado na confeção dos almoços e aí deixados pelo dono do restaurante quando se ausentou.


*

II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


1. Da anulação da sentença/modificabilidade da decisão da matéria de facto
Conclui a Apelante 2ª Ré dever o Tribunal da Relação determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de o tribunal a quo motivar a omissão de fundamentação das quatro alíneas que refere, solicitando, ainda, que perante a ausência de prova direta do facto 10, seja tal ponto dos factos provados “anulado”. Por sua vez, o Apelante 3º Réu, apontando à sentença o vício de “falta de fundamentação bastante”, que refere previsto na al. b), do n.º 1, do art. 615.º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, solicita a este Tribunal que reaprecie a prova e altere a decisão da matéria de facto, por contradição entre o facto provado 10 e o 1º segmento do 21, a configurar a nulidade prevista na al. c), e, ainda, que considere provados factos - referidos na conclusão V, dados como não provados (v. conclusão V.1) -, por confissão.
Cumpre apreciar.
Analisando a decisão da matéria de facto constata-se que, ao contrário do referido, a sentença não padece de nulidade, por de falta de fundamentação, pois que da sua simples leitura se constata existir fundamentação, não podendo escassa ou desacertada motivação da convicção do julgador gerar nulidade da sentença, por se não enquadrar nos, taxativos, vícios previstos no nº1, do referido artigo 615º, que apenas a ausência de fundamentação se reporta (falta do compósito fáctico ou de fundamentação jurídica), não podendo, também, integrar, vício gerador de nulidade contradição entre factos, podendo, contudo, a existir contradição entre factos, configurar-se erro de julgamento a gerar alteração da decisão, quer de facto quer de direito, erro este que irá ser apreciado.
Com efeito, estatui o nº1, do art. 662º, do CPC, a regular a “Modificabilidade da decisão da matéria de facto”:
1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
E o nº2, de tal artigo, consagra:
“2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…)
c) Anular a decisão proferida em 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Deste modo, nos termos do disposto na referida alínea c), do nº 2, do artigo 662º, a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida em 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Contudo, o tribunal ad quem apenas deve anular a decisão proferida em 1ª instância a não constarem do processo os elementos que permitam decidir. De contrário a apreciação processar-se-á no tribunal ad quem, pressupondo que sobre a matéria em causa foi produzida prova, com a devida observância do contraditório [1].
E, vigorando a “Regra da substituição ao tribunal recorrido”, sempre que disponha dos elementos necessários para o efeito, nos termos do nº1, do art. 665º, do CPC, e mesmo que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
Analisemos, pois, da alteração da decisão da matéria de facto, começando-se pela impugnação da decisão da matéria de facto da 2ª Ré e passando-se, de seguida, à do 3º Réu, para que, ante a definitiva definição dos contornos fácticos do caso, possamos entrar na reapreciação da decisão de mérito.
Verifica-se que, para tanto, os Réus apresentaram alegações, observando, o ónus de alegar e de formular conclusões, consagrados no nº 1, do artigo 639º, do CPC, e deram cumprimento aos ónus impostos pelo nº1 e 2, do artigo 640.º, do referido diploma legal, referindo os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados (e tal é efetuado nas conclusões, assim delimitado estando o âmbito do recurso na vertente da impugnação da matéria de facto), indicando as razões e os elementos probatórios a conduzirem à alteração dos pontos impugnados nos termos si propugnados e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida e exarando, ainda, as passagens da gravação em que fundamentam o recurso, preenchidos se mostrando os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, os requisitos habilitadores a tal conhecimento.
Tem de se entender que os Recorrentes, ao cumprirem esses ónus, circunscreveram o objeto dos recursos no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador e interpretados pelos Tribunais Superiores, sendo, por isso, de apreciar, os recursos, na vertente de mérito, da impugnação.


*
Vejamos, agora, os parâmetros e balizas do julgamento a efetuar por este tribunal, para melhor perceção do âmbito da decisão a proferir.
Em matéria de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, para o caso de erro, estatui o nº1, do art. 662º, do CPC, com a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, como vimos, que Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto: “… se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, podendo, como referido, ainda, a decisão da matéria de facto sofrer alterações no caso de divergência na apreciação probatória, sendo que, “dentro dos limites definidos pelo recorrente, a Relação goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais. Ou seja, (…) a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413º), sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão (cf. Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 288-293)”.[2].
Os objetivos visados pelo legislador com o duplo grau de jurisdição em matéria de facto “designadamente quando esteja em causa decisão assente em meios de prova oralmente produzidos, determinam o seguinte: reapreciação dos meios de prova especificados pelo recorrente, através da audição das gravações (…); conjugação desses meios de prova com outros indicados pelo recorrido ou que se mostrem acessíveis, por constarem dos autos ou da gravação; (…) formação de convicção própria e autónoma quanto à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão da matéria de facto que se considere erradamente julgada as modificações que forem consideradas pertinentes (cf. STJ 14-5-15, 260/70, STJ 29-10-13, 298/07, STJ 14-2-12, 6823/09 e STJ 16-12-10, 170/06). Cf. ainda Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, pp. 187-189, no sentido de que a Relação pode fazer uso de presunções judiciais que o Tribunal de 1ª instância não utilizou, bem como que alterar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida com base em presunções judiciais”[3].
Deste modo, “a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o Tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levaram a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância[4], sendo que “a Relação goza dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 607º, nº5, e a que especificamente se alude no arts. 349º (presunções judiciais), 351º (reconhecimento não confessório), 376º, nº3 (certos documentos), 391º (prova pericial) e 396º (prova testemunhal), todos do CC, bem assim nos arts. 466º, nº3 (declarações de parte) e 494º, nº2 (verificações não qualificadas) do CPC”[5].
Cumpre referir que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve obedecer ao seguinte: i) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente (a menos que se venha a revelar necessária a pronúncia sobre facticidade não impugnada para que não haja contradições); ii) sobre essa matéria, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento; iii) nesse novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes). Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, como verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, e, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas se distinguindo dele quanto a fatores de imediação e de oralidade.
Assim, deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação a, após audição da prova gravada e da reanálise de toda a prova convocada para a decisão dos concretos pontos impugnados, concluir, com a necessária segurança, no sentido de os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova, apontarem para direção diversa e justificarem, objetivamente, outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
E cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação com os demais, sendo que o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida, pelo que toda ela tem de ser revisitada.

Ponderando os critérios e balizas que deverão conduzir o julgamento da Relação, os argumentos apresentados pelos apelantes e debruçando-nos sobre a parte da sentença onde vem motivada a decisão de facto, entendemos não se justificar alterar a decisão de facto pelas razões que se passam a expor.


*

1.1 – Da impugnação da matéria de facto da 2ª Ré/Apelante
Pretende a 2ª Ré/Apelante a alteração da decisão relativamente aos factos julgados não provados das alíneas k), l), s) e t) e se anule o facto 10 da matéria provada.
Têm as alíneas k), l), s) e t) dos factos não provados a seguinte redação:
k) O 3.º Réu encontrava-se a soldar a tela no canto lateral esquerdo (nascente) do terraço, em lado oposto ao do anexo onde deflagrou o incêndio e distante desse mesmo anexo, quando foi alertado por um empregado seu de que estava a deflagrar um incêndio no interior daquele mesmo anexo, junto à parede”;
“l) E, de imediato, tentou apagar as chamas com o extintor que tinha ao seu lado, por precaução, sem sucesso;”
s) O 3.º R. empregou todas as medidas, como o uso de extintores, para prevenir a ocorrência de qualquer incêndio”;
“t) O incêndio deflagrou na zona interior do anexo a partir do funcionamento da churrasqueira e da combustão do carvão nela existente”.
Ao facto provado nº 10 foi dada a redação:
10. O incêndio foi provocado por um maçarico alimentado a gás que estava ser usado pelo 3.º Réu ou um dos seus funcionários para soldar telas asfálticas no terraço do prédio do 1.º Réu sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, na execução da obra referida em 3. e 4.”.
Fundamentou o Tribunal a quo a resposta à matéria de facto na globalidade da prova produzida conjugada com as regras da experiência, tendo considerado, o teor dos documentos juntos aos autos, os depoimentos de parte e os depoimentos prestados pelas testemunhas, concretizando com detalhe no que releva para a decisão das impugnações, a ter por objeto os factos anteriormente citados e a 1ª parte, do 21.:
“… Quanto aos pontos …. e 10.: Sendo pacífica a ocorrência do incêndio, conforme consta, aliás, do auto de ocorrência e do auto de notícia juntos, a questão fulcral consistia em apurar a sua origem.
É certo que, o inquérito-crime veio a ser arquivado.
Porém, conforme consta do auto de notícia e do auto de inquirição de testemunha ao aqui 3.º R., elaborados por órgão de polícia criminal e juntos aos autos, “segundo informações de AA, proprietário da empresa de impermeabilização que efectuava o trabalho no terraço onde se deu o início do foco de incêndio”, “Pelas 15H00 do presente dia encontrava-se a soldar telas asfálticas do terraço onde decorreu a ocorrência. Verificando que a chama do maçarico entrou dentro de um barracão ateando de imediato fogo no seu interior.”.
Nos relatórios de peritagem elaborados pela Dulperi, na sequência de solicitação efectuada pela E... e juntos por esta em 06/03/2024, conclui-se pela probabilidade da origem do incêndio no uso do maçarico a gás pelo 3.º Réu. Tais conclusões, de forma objectiva e coerente, foram confirmadas pela testemunha BB, engenheiro que elaborou tais relatórios e explicou as conclusões a que a empresa de peritagem chegou.
Também no relatório da H..., S.A., elaborado a solicitação da R. C... e junto aos autos por esta, se conclui ter sido essa a causa do incêndio.
E, nos relatórios de peritagem da G..., elaborados a solicitação da D... e juntos por esta, de igual modo, também se conclui que o uso do maçarico pelo subempreiteiro foi a causa do sinistro aqui em questão. Tais conclusões foram confirmadas em sede de julgamento pelo perito que procedeu à sua elaboração, GG.
A testemunha EE, possuidora de um salão de cabeleireiro no rés-do-chão do condomínio, de forma objectiva, coerente e pormenorizada, explicou que, “ao início da tarde, estava a trabalhar no salão e ouviu uns murros na porta, tendo aparecido o 3.º Réu a pedir socorro porque aquilo tinha começado a arder.”. “O AA, aflito, em pânico, disse-me para ligar para os Bombeiros”. Mais lhe disse o 3.º Réu, a chorar, que “estava desgraçado com vida dele … que aquilo estava tudo a arder”.
Quando a testemunha viu as chamas também bloqueou e foi para a rua e começou aos gritos. Então, a vizinhança pegou nos extintores do salão de cabeleireiro para tentar apagar o fogo. Depois chegaram os Bombeiros. Não viu o 3.º Réu com extintor, nem a combater o incêndio.
Sabia que estavam a decorrer obras de impermeabilização do terraço, já andavam há dias a fazer isso.
Na altura, “Eles (o 3.º Réu e seus funcionários) andavam no terraço junto ao sítio onde ocorreu o incêndio, nas traseiras”.
“Só vi o AA a chorar e os Bombeiros obrigaram-no a sair do salão”. “Os Bombeiros apagaram o incêndio através do meu salão”.
“Na altura (antes da chegada dos Bombeiros) não vi outros extintores além dos meus”. Os Bombeiros chegaram cerca de 10/15 minutos depois.
E, a testemunha FF, dono de um estabelecimento comercial em frente ao estabelecimento da Autora, afirmou que, aquando do sinistro, estava do lado de fora do seu estabelecimento e “viu umas senhoras sair do cabeleireiro e estava tudo em pânico e viu que era por trás e viu os senhores que a pôr a tela desesperados”. Ajudou a tentar a combater o incêndio antes da chegada dos Bombeiros. Foram usados extintores da cabeleireira e de outros estabelecimentos comerciais. Estando o restaurante fechado, chamou o dono.
“Estavam duas pessoas a fazer a impermeabilização e, pelo que me apercebi, o mais velho a discutir com o mais novo, dizendo-lhe para não chegar o maçarico tão perto da cobertura e o mais novo nem sequer falava”. Depois, chegaram as autoridades.
Assim, o Tribunal quedou-se pela versão da Autora, nos termos dados como demonstrados, não dando como provada a versão dos Réus, nem do uso de extintores pelo 3.º Réu, pois, caso existissem, o mesmo ou algum dos seus funcionários não deixaria de os utilizar para tentar combater o incêndio.
É também certo que, a testemunha DD, funcionário do R. AA, referiu que (o R. AA, ele – DD e outro funcionário do R. AA) possuíam dois extintores. Porém, tal depoimento não mereceu credibilidade. Para além da relação de dependência laboral face ao R. AA, revelou manifestas incoerências e contradições. Inicialmente referiu que tentaram apagar o incêndio com dois extintores. Já num segundo momento afirmou que apenas o R. AA usou um extintor. Apesar de referir que tentou apagar o fogo, afinal não usou o extintor, o que resulta incompreensível pois que, caso tivesse o extintor, não deixaria de o usar para tentar apagar, como afirma ter tentado, o fogo. Apesar de, como vimos (depoimentos de EE e FF), terem aparecido outras pessoas para combater o incêndio antes da chegada dos Bombeiros não tendo notícia de que R. AA e seus funcionários ajudassem com extintores nesse combate, nem do uso de quaisquer extintores pertencentes ao último, a testemunha DD, quando questionada se apareceram pessoas para acudir, referiu não saber, não se lembrar disso. Assim, e apesar da testemunha DD ter referido que andavam a cerca de 15 e mais metros do local onde deflagrou o incêndio, tendo este o seu início dentro dos anexos, o certo é que, face aos elementos acima referidos (auto de notícia e auto de inquirição de testemunha elaborados pelas autoridades policiais, relatórios de peritagens e depoimentos das testemunhas EE e FF), o tribunal quedou-se pela versão da Autora, tendo o incêndio ocorrido em virtude do uso do maçarico, não tendo o R. AA e seus funcionários quaisquer extintores;
(…) Quanto aos pontos 21. (…): As fotos e relatórios de peritagens juntos aos autos em conjugação com o depoimento prestado pela testemunha HH, que confirmou a existência dos dois anexos comunicantes, tendo o incêndio deflagrado no anexo destinado a arrumos e vestiário, bem como a existência das duas churrasqueiras e demais equipamento no outro anexo destinado a cozinha, referindo ainda a existência de carvão nos dois anexos. O legal representante da A. também reconheceu a existência das churrasqueiras, das fritadeiras, do fogão e do grelhador, bem como de carvão no anexo destinado a arrumos onde deflagrou o incêndio;
(…) No que concerne à matéria não provada, tal ficou a dever-se à sua insuficiente demonstração, ponderada toda a prova produzida, como resulta, até, do acima exposto”.

Conclui a 2ª Ré/apelante que o acabado de referir não satisfaz o grau de exigência legal de fundamentação, devendo ser determinada a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de o M.mo Juiz preencher a omissão quanto à motivação do julgamento das referidas quatro alíneas e, a assim se não entender, seja anulado o facto 10 da matéria provada, que atribui ao terceiro réu a prática, efetiva, do facto gerador do incêndio, sendo que a prova produzida quanto ao mesmo não é suficientemente segura, pelo que deve ser afastado do elenco dos factos provados. Sustenta verificar-se impossibilidade de o fogo ter passado da chama do maçarico para o interior dos anexos, que o maçarico andava a ser utilizado em local afastado dos anexos e que o incêndio foi provocado a partir do interior dos próprios anexos, por fagulhas ou chispas de fogo a partir do carvão em madeira utilizado na churrasqueira que aí era utilizada.
Ora, assim se não verifica. Não cabe remeter os autos à 1ª instância, para melhor fundamentação, fundamentadas se encontrando, e bem, as respostas negativas, que são de manter, sendo-o, também, a resposta dada ao ponto 10 dos factos provados.
Com efeito, não cabe anular a sentença, pois que fundamentada se encontra a decisão da matéria de facto quanto aos referidos factos não provados e, também, quanto ao provado ponto 10º, e cabe manter a decisão por resultar efetuada a prova, direta, de ter sido, efetivamente, o maçarico, que estava a ser utilizado na execução dos trabalhos, pelo 3ª Réu e seus colaboradores, a causar o incêndio, tendo este tido origem/início no exterior do anexo e não no interior do mesmo. Bem resultou de toda a prova produzida, referida pelo tribunal a quo, que, no momento em que o incêndio deflagrou, o Réu AA, auxiliado pelos seus trabalhadores, se encontrava a realizar obra de impermeabilização do terraço usando, para tanto, um maçarico com chama e que foi essa chama a causar o incêndio. Resultou, de igual modo, que o 3º Réu não tinha consigo extintores que lhe permitissem apagar, de imediato, o fogo que fez deflagrar.
Tal ressaltou, de modo seguro, credível e convincente, do sereno, lógico e isento depoimento idóneo das seguintes testemunhas, que se encontravam no local e que a tudo assistiram:
- EE, cabeleireira que tem o salão de cabeleireiro no local e que nele estava a trabalhar no momento em que o incêndio deflagrou, que assistiu aos factos, sendo que deixou claro ter-lhe o Réu AA aparecido no salão, em pânico, a dizer que estava a arder, a pedir socorro e a mencionar que estava desgraçado na sua vida. Deixou claro que não viu nenhum extintor no local, tendo sido os seus, do salão de cabeleireiro, que foram utilizados, pelos vizinhos, no combate às chamas. Mais esclareceu ter visto as labaredas, tendo visto o exterior do anexo (armazém) em chamas, e que o Sr. AA andava a trabalhar na zona onde o incêndio começou; e
- FF, que mostrou ter conhecimento pessoal e direto dos factos por, tendo na altura do incêndio um estabelecimento comercial em frente ao restaurante que ardeu, “I...”, e, no momento em que o mesmo deflagrou, se encontrar lá, mal dele se apercebeu dirigiu-se ao cabeleireiro e viu que os senhores que realizavam a impermeabilização do terraço - um mais velho e outro mais novo -, que estavam a colocar a tela com um maçarico, estavam desesperados. Esclareceu que foi o mais novo que provocou o incêndio com o dito maçarico, que estavam a usar, afirmando, que ouviu o mais velho (3º Réu), no momento, dizer ao mais novo: “Eu disse-te para não chegares tanto o maçarico perto da cobertura.”. Mais deixou claro que os extintores que foram usados foram os seus (da testemunha), os da cabeleireira (da anterior testemunha) e os de outro estabelecimento do local.
Também as testemunhas BB, Engenheiro mecânico que realiza peritagens de seguros, e GG, perito avaliador, bem revelaram e explicaram com detalhe, que a causa do incêndio se encontra nos trabalhos que estavam a ser realizados pelo Réu AA, de colocação da tela asfáltica com recurso a um maçarico, e que o mesmo começou, devido a tal, junto ao anexo nas traseiras do restaurante, sendo que o primeiro bem observou, na peritagem realizada que resultou que as maiores marcas de destruição, devido ao incêndio, provocado pela chama do maçarico, se encontravam junto ao anexo.
Nenhuma credibilidade mereceu o depoimento, inverosímil, interessado e parcial, do Réu AA e o depoimento, contraditório, como bem refere o Tribunal a quo, da testemunha DD, que para o referido Réu trabalha, nada sabendo dos factos em causa as demais testemunhas dos Réus, que ao deflagrar do incêndio não assistiram, limitando-se a emitir juízos e opiniões e a extrair conclusões, infundadas, bem tendo resultado que a origem do incêndio esteve na chama do maçarico que estava a ser utilizado no serviço de impermeabilização, atividade que estava a ser executada pelo 3º Réu, e que, despoletado o incêndio pela chama do maçarico, o referido 3º Réu não tinha consigo quaisquer extintores que lhe permitissem diligenciar por apagar o incêndio que provocou.
Bem considerou o Tribunal a quo que as respostas negativas à matéria não provada se ficaram a dever a falta de prova de tais factos, tendo resultado, como expõe e supra se exarou, prova da versão contrária.
Assim, improcede o recurso da 2ª Ré no atinente à impugnação da matéria de facto.
*
1.2 – Da impugnação da decisão da matéria de facto do 3º Réu/Apelante
Entrando no conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto efetuada pelo 3º Réu constata-se ter a mesma de improceder quer por se não verificar a apontada contradição entre o facto provado 10 e o 1.º segmento do facto provado 21, quer face ao que consta já dado como provado – cfr. o f.p. nº 26 (“26. Os anexos não estavam licenciados”) –, nada mais do referido nas conclusões das alegações do 3º Réu pode ser considerado confessado, contrariamente ao que tal Réu afirma, sendo que a Autora alegou, a fundamentar o direito que atua, factos contrários aos referidos.
Com efeito, tendo o facto provado nº 10 a seguinte redação: “10. O incêndio foi provocado por um maçarico alimentado a gás que estava ser usado pelo 3.º Réu ou um dos seus funcionários para soldar telas asfálticas no terraço do prédio do 1.º Réu sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, na execução da obra referida em 3. e 4.”, não se verifica contradição com o segmento em causa do facto provado 21 (“21. Na parte traseira do restaurante há dois anexos comunicantes entre si através de uma porta: - um anexo destinado a arrumos e vestiário para funcionários, onde deflagrou o incêndio; …”).
Na verdade, resultando, como acabamos de analisar, que o incêndio foi provocado por um maçarico alimentado a gás que estava a ser usado nos trabalhos que o 3.º Réu estava a executar, de soldar telas asfálticas no terraço do prédio do 1.º Réu, sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, na execução da obra referida em 3. e 4., provou-se, sem que contradição se verifique que na parte traseira do restaurante há dois anexos comunicantes entre si através de uma porta e que o incêndio deflagrou no destinado a arrumos e vestiário para funcionários. O deflagrar deste incêndio, no anexo em causa, foi provocado por aquela atividade do 3º Réu, tendo sido a chama do maçarico a provocá-lo, a dar-lhe origem, e não outra circunstância.
E não se mostram confessados os factos que o 3º Réu refere nas suas alegações julgados não provados, antes a Autora apresenta oposta versão, alegando factos contrários aos que o referido apelante pretende fazer valer, não provados por falta de prova que permita dar resposta positiva ao pretendido pelo apelante.
Integralmente revisitada a prova e vista a fundamentação da decisão da matéria de facto, ficou-nos a convicção de a matéria de facto ter sido fundada, livremente e bem decidida, sendo que cada elemento de prova de livre apreciação, não pode ser considerado de modo estanque e individualizado. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada de toda a prova produzida, e com base nas regras de experiência comum, não pode este Tribunal, com segurança, divergir do juízo probatório do Tribunal a quo, não havendo elementos probatórios produzidos no processo que justifiquem decisão diversa (cfr. nº1, do art. 662.º, do CPC) como pretendem os apelantes.
Destarte, tendo-se procedido a nova análise da prova, ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, que não foram validamente contraditados por quaisquer outros meios de prova, pode este Tribunal concluir que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova produzida, de livre apreciação, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém, na íntegra.
E, na verdade, não obstante as críticas que são dirigidas pelos Recorrentes, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência. Tendo a convicção do julgador apoio nos ditos meios de prova produzidos e na ausência de prova que permita fundar resposta diversa, é de manter a factualidade tal como decidido pelo tribunal recorrido.
Correspondendo a convicção livre e adequadamente formada pelo julgador (ante a prova prestada perante si e, por isso, com oralidade e imediação), que também é, como vimos, a nossa, havendo concordância entre a apreciação probatória do Tribunal de 1ª instância e o Tribunal da Relação, tem de se concluir pela improcedência das apelações, nesta parte.
*
Improcedem, pois, na totalidade, os recursos, na vertente das impugnações da matéria de facto.

*

2. Da modificabilidade da decisão de mérito

Entrando na apreciação substancial, cumpre analisar:

- da violação de direito absoluto da lesada pelo 3º Réu ao causar o incêndio e da inscrição da responsabilidade civil subjetiva do Réu lesante, por inobservância de dever de segurança no tráfego, na responsabilidade civil extracontratual;

- da responsabilidade subjetiva, solidária, da Ré/Apelante, que o encarregou de efetuar os trabalhos da empreitada de impermeabilização (por violação do dever de vigiar); e

- da obrigação de indemnizar o terceiro, lesado, pelos danos causados, em que termos e com que limites.

Conheçamos, pois, do objeto de ambos os recursos.

2.1. Do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, na modalidade de responsabilidade extracontratual, do 3º Réu e da sua constituição em obrigação de indemnizar

Insurge-se cada um dos Apelantes contra a sentença que o condenou, solidariamente, com o outro, a pagar à Autora a quantia que vier a ser liquidada a título de danos nos equipamentos, mobiliário, existências, edifício, gastos fixos e perdas de exploração, deduzida da quantia referida no f.p. 17, com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, cujos pressupostos, cumulativos, considerou verificados, entendendo cada um deles não existir fundamento para lhe ser efetuada a imputação dos danos sofridos pela Autora lesada.
Vigorando, em matéria de imputação de danos, a regra de os mesmos serem suportados por quem os sofre[6], cabe analisar da verificação do invocado fundamento de atribuição de danos aos Réus Apelantes com base no instituto da responsabilidade civil.
Comecemos por referir-se que em sede de responsabilidade civil subjetiva cabe distinguir, no que para o caso releva, as modalidades clássicas, expressamente consagradas na lei, sendo elas:
- a responsabilidade civil contratual, a que decorre da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos;
- a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, a que advém da violação de direitos absolutos.
O Código Civil, diploma a que doravante nos referimos, ocupa-se da matéria da responsabilidade civil:
- no capítulo sobre fontes das obrigações, sob a epígrafe responsabilidade civil - artigos 483º a 510º;
- no capítulo sobre modalidades das obrigações, sob a epígrafe obrigação de indemnizar - artigos 562º a 572º;
- e no capítulo sobre cumprimento e não cumprimento das obrigações, sob a epígrafe falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor - artigos 798º a 812º.
Alicerça a Autora a sua pretensão em responsabilidade civil extracontratual por violação, pelos Réus Apelantes, de direitos absolutos seus.
Na verdade, a responsabilidade civil contratual distingue-se da extracontratual ou aquiliana pelo facto de naquela estar em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários, e esta emergir da violação de deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado.
Estas duas categorias de responsabilidade civil - porque diferentes - foram tratadas pelo Código Civil em secções distintas quanto à regulação da sua fonte (nos artigos 483.º ss para a responsabilidade civil extracontratual e nos artigos 798.º e ss para a responsabilidade contratual), ainda que seja hoje dominante uma corrente que considera não ser esta repartição estanque, existindo normas no sector reservado à responsabilidade delitual que se aplicam, manifestamente, à responsabilidade contratual, como é o caso das referentes à obrigação de indemnizar, que foi objeto de um tratamento unitário pelo legislador nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.
São pressupostos da responsabilidade civil, qualquer que seja a modalidade:
i)- a prática de um facto voluntário (por ação ou omissão, praticado pelo autor, representante, comissário, auxiliar, subempreiteiro, …);
ii - a ilicitude de tal facto (que é a infração de um dever jurídico, por violação direta de um direito de outrem e violação da lei que protege interesses alheios - por violação de um direito subjetivo ou por inobservância de normas de proteção -, na extracontratual, ou por violação de obrigação contratualmente assumida, na contratual);
iii - a verificação de um nexo de imputação do facto ao agente (culpa – por dolo ou mera culpa -, implicando uma ideia de censura ou reprovação da conduta do agente);
iv) - o dano (perda que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses materiais, espirituais ou morais, que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar);
v) - o nexo de causalidade entre o facto e o dano (tendo o facto de constituir a causa do dano).
Na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado o ónus de provar todos os referidos pressupostos, consagrados no nº1, do art. 483º[7], entre eles, como vimos, a culpa do autor da lesão, nos termos dos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, salvo existindo presunção especial de culpa, já que a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, só existe nos casos especificados na lei - v. nº 2 do artigo 483º - contando-se entre aqueles casos o consagrado no artigo nº2, do art. 493º, convocado nos autos.
Assim, a responsabilidade civil pressupõe, em regra, a culpa do agente, por dolo ou mera negligência, impendendo sobre o lesado o ónus de provar a culpa. Ciente, contudo, o legislador de que em muitos casos essa prova pode ser difícil, estabeleceu o mesmo situações de inversão do ónus da prova, em que a responsabilidade continua a depender da culpa do agente, mas essa culpa se presume, sendo um desses casos o de exercício de atividade tida por perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, consagrado no nº2, do artigo 493º. Nesta situação dispensada se encontra a prova do facto presumido, ou seja, a culpa. Porém, só se passa à culpa (que se presume) depois de verificada a ilicitude do facto.
Vejamos, pois, se se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, consequentemente, da obrigação de indemnizar.
Da prova produzida resulta, sem margem para dúvidas, o facto: a autora ter sido atingida pelo fogo que o Réu AA fez deflagrar com a chama do maçarico, incêndio no estabelecimento da Autora.
Não basta, porém, que alguém pratique um facto prejudicial aos interesses de outrem para que seja obrigado a indemnizar o lesado.
É necessário que o facto seja ilícito.
E o facto, praticado pelo referido Réu (incêndio), foi, indubitavelmente, ilícito numa dupla vertente: viola diretamente a lei, sendo ilícito fazê-lo deflagrar, e viola um direito subjetivo da lesada (o seu património). Como vimos, a ilicitude do facto é, desde logo, a infração de um dever jurídico, por violação direta de um direito de outrem e violação da lei que protege interesses alheios, englobando violação de deveres do tráfego ou de deveres de segurança no tráfego, deveres de prevenção do perigo.
Com efeito, a responsabilidade aquiliana pode decorrer da violação de deveres de tráfego, que derivam do nº1, do art.º 483.º, deveres de atuação que surgem, na prática, quando alguém crie ou controle uma fonte de perigo, situação em que lhe cabe, então, empreender as medidas necessárias a prevenir ou evitar danos.
Abarcadas pela responsabilidade aquiliana podemos encontrar diversas situações, sendo enumeradas as seguintes:
- pela criação de perigo (aquele que dê azo ao perigo deve tomar as medidas adequadas); - pelo espaço (quem controle um espaço deve prevenir os perigos que lá ocorram ou possam ocorrer; quem tem a vantagem do lugar deve assumir os deveres que daí decorram); - pela abertura do tráfego, quem tenha um local aberto ao tráfego deve garantir a sua segurança); - pela assunção de uma tarefa, o arquiteto e o construtor não respondem apenas perante o parceiro no contrato por vício da obra, garantem a segurança de quaisquer terceiros); - pela introdução de bens no tráfego, o seu autor responde pelos danos daí resultantes, subespécie atualmente dotada de regime explícito é a responsabilidade do produtor); - pelas omissões do Estado, danos causados por coisas sob controlo público ou em relações de especial proximidade; - pelo governo da casa, quem o tenha deve assegurar-se que, daí, não resultam danos (o pai de família responde pelos danos causados pela mulher ou filho maior, atingidos por doença psiquiátrica). Têm, assim, os deveres de tráfego um conteúdo multifacetado e a determinar em função do caso concreto, constituindo exemplos de tais deveres: - de aviso e de proibição de acesso ao local do perigo; - de instrução das pessoas sujeitas à fonte do perigo; - de controlo do perigo, tomando medidas físicas para a sua confinação; - de escolha criteriosa de colaboradores e de organização; - de formação profissional; - de avisar e pedir auxílio, em tempo útil, às autoridades públicas competentes; - de assistência e de cuidado reportados a pessoas (não servir vinho a um convidado excitável, que reaja agressivamente ao álcool; não convidar, em simultâneo, pessoas que estejam travadas de razões; evitar levar um activista descontrolado a uma acção de protesto, quando seja de esperar incidentes; não entregar uma arma de fogo a um apaixonado ciumento, etc);
sendo que o fundamento jurídico positivo dos deveres do tráfego, cuja inobservância gera responsabilidade civil, se encontra:
i) - nos casos específicos previstos nos artigos 491º a 493º, em interpretação extensiva;
ii) - na existência de um princípio geral de controlo do perigo por quem o tenha criado ou tenha meios para o fazer, que decorre do Código Civil, seja com base nos arts 483º, nº1 e 486º seja em previsões específicas (quer do CC quer de leis extravagantes) [8].
Assim o considerando a Doutrina, também a jurisprudência (cfr. referida obra) vem a entender que, no domínio da responsabilidade extracontratual, a obrigação de indemnizar se pode fundar no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos: os deveres do tráfego[9] e que aos deveres do tráfego que constam dos artigos 491º, 492º e 493º, subjaz a ideia de incentivar a tomada das devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, os riscos dos danos, radicando no instituto da responsabilidade civil extracontratual a obrigação de reparar os danos causados a terceiros decorrentes do incumprimento dos referidos deveres[10]. A violação dos deveres do tráfego verifica-se quando alguém que controla uma fonte de perigo não toma as medidas necessárias para prevenir o dano[11], sendo que o princípio geral dos deveres de prevenção do perigo, deveres no tráfego ou deveres de segurança no tráfego, determina que quem cria ou controla uma situação de perigo tem de tomar as medidas necessárias, de acordo com as circunstâncias, para proteção de terceiros, seja da sua pessoa seja da propriedade[12], sob pena de incorrer em responsabilidade civil.
Deste modo, a responsabilidade pelos danos causados no exercício de atividades perigosas, constitui concretização da responsabilidade pela violação dos deveres no tráfego ou deveres de prevenção do perigo, a subsumir à responsabilidade extracontratual. E o “sujeito que exerce uma atividade perigosa introduz perigos no tráfego que, em virtude da valia social da atividade subjacente, o legislador escolheu não proscrever. No entanto, uma vez que aquele é o beneficiário dessa atividade, deve prevenir os perigos que introduz no tráfego, cabendo-lhe tomar as medidas necessárias para evitar a produção de danos na esfera de terceiros, e encontrando-se, para além do mais, numa situação favorável para demonstrar que eventuais danos não resultaram da insuficiência dessas medidas, graças à sua conexão com a concreta fonte de perigo. O perigo intrínseco dessas atividades justifica o regime mais severo da presunção de culpa/ilicitude, bem como a irrelevância da causa virtual, numa clara tentativa de prevenção da proliferação de danos”[13].
Para que se gere responsabilidade é necessário, além do facto ilícito, praticado por ação ou por omissão, que o lesante tenha agido com culpa. Age com culpa aquele que, tendo capacidade, face às circunstâncias concretas, podia e devia ter agido de outro modo.
Ora, dos factos provados resulta demonstrada a culpa, efetiva, do 3º Réu, pois o mesmo, no dia 29 de maio de 2020, por volta das 15 horas, fez deflagrar um incêndio no estabelecimento explorado pela A. no prédio sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, provocado por um maçarico, alimentado a gás, que estava a usar para soldar telas asfálticas no terraço do prédio. Estando sol e muito calor, a chama do maçarico que o Réu utilizava fez deflagrar o incêndio no estabelecimento da Autora, assim provada se encontrando a culpa – dada a violação de deveres de cuidado, tanto mais dado o calor e a hora do dia, de grande intensidade do mesmo - que, de qualquer modo, resulta presumida por lei.
Vejamos.
Como referimos, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (cfr. art.ºs 342.º, n.º 1, 487.º, n.º 1, e 350.º), o caso das situações expressamente consagradas nos artigos 491º a 493º (as de responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem (art.º 491.º), as por danos causados por edifícios ou outras obras (art.º 492.º) e as por danos causados por coisas, animais ou atividades (art.º 493.º)), situações a envolver violações deveres de segurança no tráfego ou deveres de prevenção do perigo [14] [15].
Nos termos do disposto no nº2, do artigo 493º:
“2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Este preceito constitui uma das exceções ao princípio geral enunciado no n.º 1, do artigo 487.º, prevendo a inversão do ónus da prova, ou seja, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma atividade perigosa, em consequência da qual ocorre o dano. A lei presume a culpa, impondo ao agente que demonstre ter empregue todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, ou seja, por outras palavras, ter atuado com a devida diligência[16].
Consagra uma presunção de culpa quanto aos danos decorrentes de atividades perigosas seja “por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados”.
Como refere Ana Prata “Não se foi além disto, isto é, a um princípio geral de responsabilidade pelo risco quanto a estas atividades. Tratou-se, contudo, dentro da sua limitação, do acolhimento de uma conceção do risco/atividade, em detrimento da de risco/proveito, que é de aplaudir… Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 495, opinam que “este preceito (…) é dos que mais claramente revelam o caráter excecional da responsabilidade pelo risco, na medida em que, mesmo quanto às actividades dessa natureza, onde a teoria do risco mais tende a afirmar-se, a lei admite a prova da falta de culpa como causa de exclusão da responsabilidade do agente”.[17]
A lei não fornece “um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos dessa norma e também não fornece um critério em função do qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade como a natureza dos meios utilizados.
A perigosidade é apurada caso a caso, em função das características casuísticas da actividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida. Trata-se afinal de um conceito indeterminado e amplo a preencher pelo intérprete e aplicador da norma na solução do caso concreto, o que deve ser feito tendo por base a «directriz genérica» indicada pelo legislador.
Deve ser considerada perigosa a actividade que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes”[18].
E se é certo que o n.º 2, do artigo 493.º não indica o que deve entender-se por “atividade perigosa”, admitindo apenas, ainda que de forma genérica, que a perigosidade deriva da própria natureza da atividade, ou da natureza dos meios utilizados, revela-se pacífico na jurisprudência o entendimento de que a atividade de soldar telas com recurso a um maçarico alimentado a gás é inquestionavelmente uma atividade perigosa pela sua própria natureza[19], sendo que a atividade aqui em causa, que recorre a calor e chama, alimentada por gás, perigosa para efeitos deste preceito, dado criar uma situação de especial perigo (de incêndio e de explosão).
Não definindo a lei o que deve entender-se por atividade perigosa, apenas conexiona, genericamente, essa perigosidade com a própria natureza da atividade ou dos meios utilizados pelo agente, como acontece com a queima de fogo de artifício a que é aplicável o disposto no nº2, do art. 493.°, ou seja, o da responsabilidade assente na culpa, embora presumida, não se regendo pelos princípios da responsabilidade objetiva ou independentemente de culpa, em que o agente suportaria as consequências do facto ilícito sem que se demonstrasse a culpa.
Uma atividade será perigosa, nos termos e para os efeitos do n.º2, do art.º 493.º, quando, por força da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tem ínsita uma maior probabilidade de causar danos do que a verificada no geral das atividades.
A qualificação de uma atividade perigosa, para efeitos do nº2 do art. 493, aferida pela própria natureza da atividade ou da natureza dos meios utilizados, não se compadece com uma construção apriorística, emergindo do “facto concreto”, só casuisticamente podendo ser aferida, mas como critério geral de orientação tem-se adotado o da “maior probabilidade dos danos” em comparação com as restantes atividades em geral. Este preceito, além de determinar a inversão do ónus da prova, agrava a medida da normal diligência segundo o padrão de conduta exigível, pelo que o lesante só pode exonerar-se da responsabilidade “se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”, e, assim, para afastar a responsabilidade, o agente carece de demonstrar que levou a própria diligência “não menos que ao extremo limite”, pois “a previsibilidade do dano está re ipsa”, sendo, por isso, rigorosa a prova liberatória[20].
A inversão do ónus da prova, ou seja, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma atividade perigosa, consagrada pelo art. 493.°, n.°2, não altera o princípio de que a responsabilidade depende da culpa, salvo nos casos especificados na lei, portanto se trata de responsabilidade delitual e não de responsabilidade pelo risco ou objetiva, embora se encontre agravado o dever normal de diligência. Para afastar a responsabilidade necessário é que o lesante prove ter agido sem culpa, sendo necessário demonstrar que adotou todas as providências destinadas a evitar o dano.
Tratando-se do exercício de uma atividade perigosa, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade pelos danos causados a outrem no contexto desta atividade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar.
As providências a adotar pelo agente, idóneas a evitar os danos são ditadas pelas particulares normas técnicas ou legislativas inerentes às especiais atividades, ou pelas regras da experiência comum[21].
Atentando nos factos provados, torna-se necessário concluir, pela responsabilidade do Réu AA que, como vimos, juridicamente deriva da previsão do art. 483º. Tinha, este Réu, obrigação de se assegurar, previamente ao recurso ao maçarico, com chama alimentada por gás, do preenchimento das necessárias condições de segurança, dada a perigosidade da atividade de impermeabilização com recurso àquele meio, que produz chama e calor, mesmo com risco de explosão do gás de que o maçarico é alimentado, em situação de grande calor, a surgir um foco de incêndio. E para que a segurança estivesse assegurada era, no mínimo, exigível que dispusesse de extintores e que os tivesse consigo para combater um foco de incêndio mal ele surgisse. Ao atuar do modo que agiu, fazendo deflagrar incêndio e não diligenciando pela sua imediata extinção, como faria uma pessoa minimamente prudente, fê-lo com culpa.
Assim, não demonstrando o Réu que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, por eles responde.
O arquivamento do processo crime não significa que o Réu não seja civilmente responsável pelos danos que, efetivamente, causou à Autora.
Deste modo, preenchidos se mostram os pressupostos, cumulativos, da responsabilidade civil extracontratual e, verificando-se todos eles, acima apontados, constitui-se o 3º Réu, Apelante, na obrigação de indemnizar. Do facto ilícito e culposo praticado pelo referido Réu decorreram danos para a Autora e tais danos advieram, como causa adequada, da conduta ilícita e culposa já referida, sendo evidente a relação de causalidade entre o facto e os danos.
Estando-se, na verdade, perante manifestação de violação, pelo 3º Réu, de deveres de prevenção de perigo, não pode tal Réu deixar de incorrer em responsabilidade civil subjetiva, responsabilidade por violação de deveres de tráfego, e de incorrer em obrigação de indemnizar os danos que causou à Autora. Sobre o 3º Réu, que criou e manteve uma fonte de perigo, impendia o dever de adotar as medidas necessárias a prevenir ou evitar os danos e não o tendo feito, permitindo a verificação dos mesmos, incorre em obrigação de indemnizar, presumindo-se a culpa, presunção que não logrou ilidir.
Bem considerou, pois, a sentença recorrida que os art.ºs 491.º a 493.º constituem manifestações legais de deveres de prevenção do perigo, os quais tem origem em relações jurídicas específicas (legais ou negociais), que tais deveres de tráfego se enquadram na responsabilidade civil extracontratual, sendo que entre as exceções abrangidas pelo n.º 1 do art.º 487.º, se encontra a prevista no n.º 2, do art.º 493.º, e, não definindo a lei o que é uma atividade perigosa, cabe ao tribunal averiguar no caso concreto se se está perante tal tipo de atividade, supondo o referido preceito o “dever de não expor os outros a mais riscos ou perigos de danos do que aqueles que são, em principio, inevitáveis” (Brandão Proença, in “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, pág. 467) e que, por isso, devem ser qualificadas como “perigosas” as atividades que criam para terceiros um estado de perigo, ou seja, a possibilidade ou a maior probabilidade de ocorrência de danos (Vaz Serra, in BMJ 850, pág. 378), não podendo deixar de se entender, face às concretas circunstâncias, ser esse o caso.
Analisando o Tribunal a quo concretizações que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem entendido de atividades perigosas: “a prática de patinagem (Ac. STJ de 11/09/2012, Proc. nº 8937/09.5T2SNT.L1.S1); a prática de equitação (Ac. TRE de 02/06/2011, Proc. nº 141/04.5TBGDL.E1) e as corridas de cavalos a galope (Ac. STJ 18/09/2012, Proc. nº 498/08.9TBSTS.P1.S); as corridas de karting (Ac. STJ 06/06/2002, Proc. nº 02B1620) e a exploração de kartódromos (Ac. TRG de 03/12/2009, Proc. nº 2321/05.7TBVCT.G1); a circulação de motas de água (Ac. TRL de 25/06/2013, Proc. nº 467/11.1TBPNI.L1-7); a exploração de parques aquáticos (Ac. STJ de 17/01/2012, Proc. nº 291/07.6TBLRA.C1.S1 e Ac. TRP de 22/11/2011, Proc. nº 1400/04.2TBAMT.P1) (mas já não a exploração normal de uma piscina, Ac. STJ de 06/05/2010, Proc. nº 864/04.9YCGMR); o abate de árvores (Ac. TRG de 29/11/2012, Proc. nº 863/10.1TBVCT.G1 e Ac. TRC de 13/12/2011, Proc. nº 94/10.0TBSCD.C1); a gestão da infraestruturas de caminhos-de- ferro (Ac. TRC de 07/05/2013, Proc. nº 2582/7.7TBCBR.C1); o transporte e a condução de energia elétrica, em alta tensão (Ac. TRC de 07/05/2013, Proc. nº 2582/7.7TBCBR.C1); o fornecimento de energia elétrica, em geral (Ac. TRG de 26/03/2009, Proc. nº 2426/08-2; Ac. TRL de 28/02/2008, Proc. nº 10832/2007-6; Ac. TRL de 17/03/2005, Proc. nº 332/2005-2 e Ac. TRP de 03/02/2004, Proc. nº 0326588), e a inspeção de instalações eléctricas (Ac. TRP de 23/04/2012, Proc. nº 12/09.9T2AVR.C1.P1); o uso de explosivos (Ac. TRP de 26/05/2009, Proc. nº 97/1998.P1) e o lançamento de foguetes ou de fogo-de-artifício (Ac. TRP de 17/03/2014, Proc. nº 1593/07.7TBPVZ.P1; Ac. TRP de 21/04/2005, Proc. nº 0531936; Ac. STJ de 17/06/2004, Proc. nº 04B1675 e Ac. STJ de 04/11/2003, Proc. nº 03A3038); a utilização de máquinas que, através de fricção e atentas as suas características, provoquem o aquecimento, com ignição, que possa dar origem a incêndios (Ac. TRE de 20/01/2010, Proc. nº 10/08.0TBRDD) e o comércio e armazenamento de inflamáveis (Ac. STJ de 28/02/2002, Proc. nº 01B3472)” e na construção civil: “a obra de construção civil de prédios urbanos (Ac. TRP de 27/05/2014, Proc. nº 264/12.7TBVLG.P1 e Ac. TRC de 09/12/2003, Proc. nº 3481/03) e, em geral, qualquer obra de construção civil que implique trabalhos de escavação (Ac. STJ de 15/11/2011, Proc. nº 5486/09.5TVLSB.L1.S1 e Ac. TRP de 09/01/2007, Proc. nº 0621929), operações de soldadura (Ac. STJ de 31/10/2006, Proc. nº 06A2388), a remoção de inertes, a utilização de máquinas retroescavadoras (Ac. TRL de 14/01/2010, Proc. nº 967/2001.L1-8), de máquinas escavadoras giratórias, de martelos pneumáticos, de compressores (Ac. STJ de 06/04/1995, Proc. nº 086568), de camiões, de gruas, ou o recurso a explosivos (Ac. TRG de 05/12/2013, Proc. nº 2121/11.5TBVCT.G1), ou que tenha em vista a construção de um armazém num terreno situado numa encosta, em plano mais elevado que outro (Ac. TRP de 20/01/2005, Proc. nº 0433561), bem afirmou ser, também, para efeito do nº2, do art. 493º, de qualificar como atividade perigosa a que o Réu levava a cabo.
Apreciando, nas circunstâncias do caso, a responsabilidade do Réu Apelante, por, na execução de impermeabilização, para soldar telas asfálticas no terraço do prédio em propriedade horizontal, usando um maçarico a gás, no dia 29 de maio de 2020, dia de sol e muito calor, ter causado incêndio, constata-se que a referida atividade de soldadura com recurso a um aparelho que efetua uma combustão de gás, ao ar livre, com sol e muito calor, não pode deixar de ser qualificada de perigosa, para efeitos do nº2, do art. 493º, configurando-se como tal dada a possibilidade de originar, como, mesmo, originou, incêndio.
Tal como se entendeu no Ac. da RP de 25/1/2021, proc. 3130/16.3T8AVR.P1, relatado pela ora relatora[22], relativamente a atividade de cortar e triturar vegetação com capinadeira, também, a atividade de soldar telas asfálticas com maçarico a lançar chama alimentada por gás em dia e hora de sol e muito calor, é uma atividade perigosa para os efeitos do nº2, do art. 493º, dadas as características da atividade que gerou os danos e o contexto em que ela se mostra exercida, possuindo especial aptidão produtora de danos, por especial perigo, especial suscetibilidade de provocar incêndio, atenta a chama alimentada por gás e o calor que é produzido no ato de soldadura, acrescido face ao dia e hora (de grande calor).
Bem considerou, pois, o Tribunal a quo verificada responsabilidade civil subjetiva do 3.º Réu/Recorrente pelos danos sofridos pela Autora atendendo a que se provou que o incêndio que causou os danos foi por ele provocado, violando deveres de prevenção do perigo, impondo-se a condenação do mesmo a ressarcir a Recorrida dos danos patrimoniais por esta sofridos em consequência do sinistro, (deduzidos dos montantes relativamente aos quais já foi ressarcida pela sua Seguradora e referidos no ponto 17 dos factos provados), estando preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual em que o caso se inscreve.

*
2.2- Da responsabilidade civil da empreiteira (Ré Apelante) pelos danos causados pelo subempreiteiro

Tendo as obras de impermeabilização sido subcontratadas, não se estando a apreciar questão de responsabilidade contratual, por violação de deveres contratualmente assumidos para com o dono da obra (a que seria aplicável o nº1, do art. 800º, com a epígrafe “Atos dos representantes legais ou auxiliares”), cumpre analisar se a empreiteira, que subcontratou os serviços ao 3º Réu, lesante, é, também, responsável perante terceiros, sendo que o seria, desde logo, nos termos do artigo 500º - Responsabilidade do comitente -, a estarmos perante uma relação de comissão.
Será a empreiteira que subcontratou a execução dos serviços ao Réu, lesante, responsável pelos danos por ele causados a terceiros? Tem a Autora direito a ser indemnizada pelos danos que sofreu, também, por esta Ré? Em que termos?
Respondendo a empreiteira apenas se o subempreiteiro que praticou o facto danoso for, em concreto, responsável, e apurada que se encontra a responsabilidade deste, por facto ilícito e culposo, analisemos da responsabilidade da 2ª Ré (empreiteira), em que termos e com que limites.
Comecemos por deixar claro que o empreiteiro, além da responsabilidade contratual, para com o dono da obra, pelo incumprimento das obrigações emergentes do contrato de empreitada, é, também, responsável pelos danos causados a terceiros, durante a execução dos trabalhos quando viole, ilicitamente e com culpa, os direitos de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, nos termos do nº1, do art.º 483.º, incluindo-se na responsabilidade extracontratual, como vimos, as violações de deveres de segurança no tráfego. E responde civilmente quer pelos danos provocados a outrem, não parte no contrato, em consequência dos atos ilícitos e culposos por si cometidos no exercício da sua atividade, quer pela atuação de terceiro que empregue na execução da obra, tanto trabalhadores, como subempreiteiros, desde que sobre estes recaia igualmente essa responsabilidade[23].
Vejamos em que termos.
Nesta matéria cabe ponderar:
i) - entre o empreiteiro e o subempreiteiro não existe, em regra, uma relação de comissão, que se possa subsumir ao art. 500º[24] [25], pois o subempreiteiro atua com autonomia em relação ao empreiteiro, não estando sujeito às suas instruções diretas, como sucede naquela relação. Podem, contudo, existir situações em que o empreiteiro exerça um certo grau de supervisão ou coordenação sobre o trabalho do subempreiteiro, mas tal não altera a especifica natureza da relação contratual;
ii) - o artigo 800.º, que tem aplicação no domínio da responsabilidade contratual, vale no âmbito das relações entre o empreiteiro e o dono da obra, podendo este demandar aquele com fundamento na responsabilidade do subempreiteiro, mas não pode o âmbito do referido normativo ser extrapolado do alcance contratual por forma a, por ele, serem tutelados interesses de terceiro perante o empreiteiro;
iii) – havendo dever de vigilância da obra cabe enquadrar a responsabilidade do empreiteiro por violação de tal dever no nº1, do art. 493º, em casos de responsabilidade do subempreiteiro por danos causados por atividades perigosas, nos termos do nº 2, do art. 493º, por sobre o empreiteiro recair um especial dever de vigilância sobre a execução da subempreitada, não uma mera faculdade ou direito de fiscalização da obra como a que assiste ao dono da obra em relação ao empreiteiro, impendendo sobre este uma obrigação de fiscalização técnica e funcional do subempreiteiro[26].
Ora, verifica-se que à 2.ª R., A..., que celebrou com o 3.º R., AA, um contrato de subempreitada, através do qual este se obrigou para com ela a executar as obras de impermeabilização, cabia acompanhar a execução da obra, tendo a sua orientação técnica e o acompanhamento da correta colocação dos materiais - cfr. f.p. nº4 e 25 -, e, a não se poder configurar relação de comissão, resulta, contudo, provado que a 2ª Ré detinha a fiscalização da obra, impendendo sobre ela o dever de a acompanhar e vigiar.
O empreiteiro, mesmo nos casos em que deu a obra de subempreitada, continua obrigado à sua vigilância, porque continua a impender sobre si o dever de supervisão técnica da sua feitura. O dever de vigilância não transita para o subempreiteiro, sem prejuízo de sobre este impender idêntico dever. O nº1, do art.º 493º, estabelece uma presunção de culpa, no caso, do empreiteiro, fundamentada na violação daqueles deveres, que subsiste enquanto ele não comprovar que não houve culpa da sua parte.
E sendo a obra perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios empregues, aquela presunção de culpa só se mostra ilidida se o empreiteiro demonstrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, não sendo suficiente a alegação e a prova de que os danos se teriam verificado por uma outra causa, mesmo que ele tivesse adotado todas aquelas providências[27].
Bem considerou, pois, o Tribunal a quo verificar-se responsabilidade civil do empreiteiro por falta de observância do dever de vigilância em situação de atividade perigosa e, assim, que entre o 3º Réu (subempreiteiro) e a 2ª Ré (empreiteira) existe responsabilidade solidária, sendo estes dois Réus responsáveis pelos danos, ambos incorrendo em obrigação de indemnizar, nos termos do art. 497º.
Com efeito, à 2ª Ré, que encarregou o 3º Réu de executar os serviços de impermeabilização, cabia acompanhar a execução da obra. Assumiu a mesma a sua orientação técnica e cabia-lhe verificar se os materiais estavam a ser corretamente colocados, não podendo deixar de lhe ser imputada a responsabilidade por omissão do dever de vigilância (nº1, do art. 493º).
Como bem se analisa no Ac. do STJ de 22 de junho de 2021, as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando haja, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o ato omitido, necessária sendo, nos termos do art. 486º, a verificação dos seguintes “requisitos específicos: (i) a existência do dever jurídico de praticar o acto omitido, (ii) e que o acto omitido tivesse seguramente ou com maior probabilidade, obstado ao dano (cf. VAZ SERRA, BMJ 84, pág.108; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 369). (…) o nosso direito aceita ainda o princípio geral do dever de prevenção do perigo. Este princípio foi, há muito, objecto de especial atenção pela jurisprudência e doutrina alemãs ao admitirem vários deveres de tráfego baseados na ideia de quem abrir uma fonte de perigos tem o dever jurídico de adoptar as precauções para o evitar (cf. VAZ SERRA, BMJ 84, pág.109 e segs.).
O dever geral de prevenção do perigo encontra a sua base de sustentação em razões de natureza ética, no princípio geral do “neminem laedere” e tem vindo enfatizar-se cada vez mais no plano dogmático este princípio geral do direito civil, o qual, embora não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do Código Civil, no sentido de que “a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados” (cf., ANTUNES VARELA (RLJ ano 114, pág.77 e segs.). (…) O acórdão recorrido, socorrendo-se da orientação jurisprudencial prevalecente (cf., por ex., ac STJ 25/3/2010, proc. 428/1999.P1.S1, ac STJ de 28/6/2012, proc. 1894/06.1TBOVR.C1.S1, disponíveis em www dgsi.t) responsabilizou também a Ré … (empreiteira) com base no art. 493 nº1 CC (violação do dever de vigilância) porque, sendo este o tópico essencial, na subempreitada, não obstante a autonomia de ambos os contratos, o empreiteiro não mantém apenas o poder de fiscalização, resultante do art. 1209 CC, como o dono da obra, mas conserva deveres acrescidos, tais como ainda o dever de vigilância, consubstanciado, além do mais, nos deveres de controle, direcção e supervisão técnica” [28].
E no caso, verificado se encontra o nexo de causalidade da omissão (tendo a empreiteira podido e devido evitar a produção do dano, desde logo lançando mão dos meios de segurança necessários para evitar os danos) e todos os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva.
Tinha a Ré Apelante a orientação técnica da obra, que estava a ser realizada sob a sua vigilância, respondendo, por isso, como se analisou, solidariamente com o Réu por violação, por este, do dever de segurança, que sobre si impendia. Incorreu em responsabilidade civil, pois, tendo o dever de acompanhar e verificar da sua correta execução, omitiu o dever de vigilância que concretamente se impunha.
Como vem a ser decidido pela jurisprudência - cfr., entre outros, o Ac. Rel. Lisboa de 8 de fevereiro de 2022[29] e o referido Acórdão do STJ -, em situação de danos causados por atividades perigosas, nos termos do n.º 2, do artigo 493º, recaindo sobre o empreiteiro um especial dever de vigilância sobre a execução da subempreitada, na violação de tal dever, é o mesmo responsável, nos termos do nº1, do art. 493º, pelos danos que forem causados a terceiros, sendo a sua responsabilidade solidária com a do subempreiteiro, que subcontratou os trabalhos (art. 497º).
E para efeitos do nº1, do art. 493º (violação do dever de diligência), numa subempreitada de uma obra, apesar da autonomia de ambos os contratos, o empreiteiro não mantém apenas o dever de fiscalização, como o dono da obra (art.1209º), mas conserva deveres, como o de vigilância, consubstanciado pelos deveres de controle, direção e supervisão técnica.
Assim, pelos danos causados a terceiros, em virtude de não terem sido tomadas todas as necessárias medidas de segurança, respondem solidariamente o subempreiteiro e o empreiteiro, sendo que o art. 497º, ao estabelecer a regra da solidariedade na responsabilidade civil, pressupõe serem vários os responsáveis pelos mesmos danos, independentemente do grau de ilicitude e de culpa de cada um e não se exigindo que haja uma atuação conjugada ou concertada para a responsabilização ser solidária no domínio da responsabilidade civil extracontratual, cada um dos autores responde perante o lesado pelo pagamento integral da indemnização[30].
Omitindo a 2.ª R., ilícita e culposamente, o cumprimento de dever de vigilância, para prevenir danos a terceiros, na verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, não logrando a Ré a prova liberatória, responde a mesma pelos danos sofridos pela Autora, que bem podia e devia ter impedido. É, pois, civilmente, responsável por eles, impendendo, também, sobre si a obrigação de indemnizar, nos termos considerados pelo Tribunal recorrido.
*
2.3 - Da culpa da lesada e da redução/exclusão da indemnização

Consagra o nº1, do art. 570º: “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
E o nº2, de tal artigo, estatui que, a basear-se a responsabilidade numa presunção de culpa, a culpa do lesado que se verifique exclui o dever de indemnizar, na falta de disposição em contrário.
Ora, apesar de os anexos não se encontrarem licenciados, não resultou provada qualquer circunstância da lesada a concorrer, real e efetivamente, para o desencadear do incêndio e para a produção ou agravamento dos danos. E não se verificando factos que permitam concluir por culpa da autora não se encontra excluído o dever de indemnizar e nenhum limite existe ao direito que a Autora se apresentou a exercer.
Nenhuma contribuição da Autora houve para os danos que sofreu, causados, sim, pela atuação ilícita e culposa do Réu apelante (subempreiteiro) que, num dia e hora de sol e grande calor, executava a atividade de soldagem de telas com recurso a chama de maçarico, alimentado a gás, fazendo deflagrar o incêndio. Na verdade, resulta que a autora nada fez para dar causa ao incêndio e nada podia fazer para evitar o sucedido, com que não podia contar. Ao invés os Réus/Apelantes bem vendo os anexos existentes no local, não adotaram as necessárias medidas de segurança para evitar os danos.
A autora não previu, como o não teria previsto uma pessoa diligente, que das obras que o condomínio havia contratado com a Ré apelante e que esta havia subcontratado ao 3º Réu pudesse resultar o incêndio, nenhum facto tendo praticado a concorrer para a produção ou o agravamento dos danos, pelo que a indemnização não é de excluir, sequer de reduzir.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões das apelações, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelos apelantes, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.

*

As custas de cada um dos recursos são da responsabilidade de cada um dos recorrentes dada a total improcedência das suas pretensões recursórias (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

*

III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar as apelações totalmente improcedentes e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


*

Custas de cada uma das apelações pelo respetivo apelante.


Porto, 15 de setembro de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Ana Olívia Loureiro
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
_________________
[1] Neste sentido vejam-se: Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, Almedina 2022, António Santos Abrantes Geraldes, primeiro parágrafo da página 358 e nota 564.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 823 e seg.
[3] Ibidem, págs 824 e seg.
[4] Ibidem, pág, 825.
[5] Ibidem, pág, 825.
[6] Na verdade, em matéria de suportação de danos, a regra básica é ser o lesado quem acarreta com os prejuízos por si sofridos, sendo a responsabilidade civil, consistente numa fonte de obrigações, baseada no princípio do ressarcimento dos danos, uma exceção (cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I, 2017, 14ª edição, Almedina, pág. 275 e Ana Prata, Código Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Almedina, pág. 662).
[7] Dispõe o artigo 483°, sob a epigrafe "Princípio geral":
1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independente de culpa nos casos especificados na lei”.
[8] António Meneses Cordeiro (Coordenação), Código Civil Comentado, II - Das obrigações em Geral, CIDP Faculdade de Direito Universidade de Lisboa, pág. 424.
[9] Ac. RG de 12/3/2020, proc. 3526/16 (Relator: Fernando Freitas).
[10] Ac. RG de 30/4/2020, proc. 1441/16 (Relator: Fernando Freitas).
[11] Ac. RL de 18/6/2019, proc. 8543/10 (Relatora: Micaela Sousa).
[12] Ac. do STJ de 24/10/2019, proc. 128/11 (Relator: Nuno Pinto Oliveira).
[13] Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, anotação ao artigo 493º, pág. 325.
[14] Refere o Tribunal a quo:
A responsabilidade por violação de deveres de tráfego foi abordada por Vaz Serra, que afirma que “aquele que abre uma fonte de perigos tem o dever de adoptar as cautelas indispensáveis para os impedir, mesmo que não sejam impostas por regulamentos administrativos” (cfr. Serra, Adriano Vaz, “Obrigação de indemnização (Colocação. Fontes. Conceito e Espécies de Dano. Nexo Causal. Extensão do Dever de Indemnizar. Espécies de Indemnização). Direito de Abstenção e Remoção”, in BMJ, 84 (1959), pág. 126), e, mais tarde, Antunes Varela, o qual, partindo do disposto nos art.ºs 492.º, 493.º, 502.º, 1347.º, 1348.º, 1350.º e 1352.º do CC, considera-os afloramentos especiais de um princípio geral de prevenção de perigo nas situações em que se mantenha ou crie uma situação especialmente perigosa, semelhante ao que tem sido aceite pela doutrina e jurisprudência alemãs (cfr. Varela, Antunes, in RLJ, Ano 114.º, págs. 77 a 79).
“Os deveres do tráfego “advêm não da boa fé, com objectivos de, pela positiva, assegurar riqueza: antes emanam da responsabilidade aquiliana, visando reforçar os bens nela em jogo. Tais deveres são específicos: mas são muito gravosos para a liberdade das pessoas, escapando totalmente à sua vontade: directa (contrato) ou indirecta (contacto social e paracontratualidade). Por isso, apesar da sua especificidade, quem, por eles e pela sua alegada inobservância, queira ser indemnizado, terá de provar a sua existência, a ilicitude da sua violação e a culpa do agente”. Os art.ºs 491.º a 493.º do CC constituem manifestações legais concretas de deveres de prevenção do perigo, os quais tem a sua génese em relações jurídicas específicas, legais ou negociais (Cfr. Cordeiro, António Menezes, in “Tratado de Direito Civil Português”, Vol. II, Direito das Obrigações, Tomo I, Almedina, 2009, págs. 372 a 376, e Vol. II, Direito das Obrigações, Tomo III, págs. 403 e 571 a 589)”.
[15] Ac. do STJ de 14/6/2018, proc. 8543/10 (Relatora: Maria da Graça Trigo).
[16] Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, 1995, pág. 88
[17] Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, vol I, Almedina, 2017, pág 439 e seg.
[18] Ac. do STJ de 17/5/2017, proc. 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, in dgsi.net
[19] Neste sentido: Ac.s do STJ de 4.11.2003, proc. 03A3038, de 9.10.2008, proc. 08A2669, de 5.07.2012, proc. 1451/07.5TBGRD.C1.S1 e de 19/1/2017, proc. 167/07.7TBVNC.G1.S1, todos in dgsi.net
[20] Ac. do STJ de 22/6/2021, proc. 151/19.8T8AVR.P1.S1 (Relator: Jorge Arcanjo), acessível in dgsi.pt
[21] Ac. do STJ de 7/3/2017, proc. 6091/03.5TVLSB.L1.S1, in dgsi.net
[22] Ac. da RP de 25/1/2021, proc. nº 3130/16.3T8AVR.P1, acessível in dgsi,
[23] Ac. da RL de 30/10/2014, proc. 3861/08.1TBALM.L1-6 (Relator: Tomé Almeida Ramião), acessível in dgsi.pt
[24] Estatui o nº1, do art. 500º, este com a epígrafe “Responsabilidade do comitente”:
1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar”.
[25] Traduz esta um serviço ou atividade realizada por conta e sob a direção de outrem, sendo “essencial que o comitente disponha de um poder de controlo sobre o comissário e que este por sua vez se encontre numa situação de subordinação ou dependência em relação àquele” Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, idem, anotação ao artigo 500º, pág. 386 e segs. Quanto aos requisitos da responsabilidade do comitente cfr. ob. e págs. cit. Aí se afirma “… é o facto de o comitente dispor da faculdade de controlar a atuação dos seus comissários, através da emissão de ordens ou instruções, que constitui como que o “eixo” da sua responsabilização; se tal faculdade não for, em concreto, utilizada o comitente não fica isento das consequências que nascem do regime da responsabilidade por facto de terceiro” e ser ainda requisito o facto danoso ter sido praticado pelo comissário no exercício das funções que lhe foram cometidas. (M. Graça Trigo, 2009: 266-269)”.
[26] Ac. RL de 21/9/2010, proc. 2726/03.8TBMTJ.L1-7 (Relator: Tomé Gomes), acessível in dgsi.pt
[27] Ac. RP de 11/2/2021, proc. 151/19.8T8AVR.P1 (Relator: Filipe Caroço), acessível in dgsi.pt
[28] Ac. STJ de 22/6/2021, proc. 151/19.8T8AVR.P1.S1 (Relator: Jorge Arcanjo), acessível in dgsi.pt
[29] A decidir “Não obstante a inexistência de uma relação de comissão, cabendo ao empreiteiro a orientação técnica e a responsabilidade perante o dono da obra pela sua boa execução, quando aquele assuma a concepção e execução da obra em termos tais que a margem de autonomia do subempreiteiro seja menor, não fica o empreiteiro dispensado do dever de vigilância da actuação do seu subcontratado e, bem assim, do dever de vigilância e fiscalização da coisa onde decorre a sua intervenção” e “O dever de vigilância do empreiteiro não afasta a responsabilidade do próprio subempreiteiro sobre quem impende também, nessa qualidade, um dever de vigilância e guarda da coisa onde está a executar o trabalho” v. Ac. RL de 8/2/2022, proc. n.º 11718/19.4T8LSB.L1-7, acessível in dgsi.pt
[30] Ac. do STJ de 22/6/2021, proc. 151/19.8T8AVR.P1.S1 (Relator: Jorge Arcanjo), acessível in dgsi.pt.