Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | ARRESTO DECISÃO EUROPEIA DE ARRESTO REGULAMENTO (EU) N.º 655/2014 JUSTO RECEIO | ||
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Nº do Documento: | RP2023091469/23.0T8PRT-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Os requisitos para o decretamento da decisão europeia de arresto são, em princípio, apenas os definidos no Regulamento n.º 655/2014, e a sua interpretação e aplicação deve guiar-se pelo objectivo especificamente prosseguido pelo Regulamento, independentemente dos termos em que o direito interno regula o procedimento cautelar de arresto. II - Para poder emitir a decisão europeia de arresto, o tribunal necessita de concluir, em função do alegado pelo credor e das provas apresentadas por este, que existe um risco real de que, se o arresto não for ordenado, a execução subsequente do crédito será frustrada ou consideravelmente dificultada. III - O Regulamento assinala nos seus Considerandos que não são, por si sós, suficientes para a concessão da decisão «a simples falta de pagamento», a «contestação do crédito», «o facto de o devedor ter mais do que um credor», «o facto de a situação financeira do devedor ser precária ou estar a deteriorar-se». IV - O simples facto de o devedor ter mudado de domicílio de um Estado-Membro para outro Estado-Membro também não poderá ser considerado facto indiciário suficiente. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2023:69.23.0T8PRT.A.P1 * SUMÁRIO:……………………… ……………………… ……………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: A..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede na Avenida ..., ..., Lisboa, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra AA, contribuinte fiscal n.º ..., e BB, contribuinte fiscal n.º ..., indicando a residência deste em Portugal, com o objectivo de obter o pagamento da quantia de 9.596,05€ titulada pela livrança apresentada como título executivo. Tendo sido penhorado, na execução, somente um veículo automóvel, avaliado em 500€, a exequente, alegando não terem sido encontrados em Portugal outros bens dos executados susceptíveis de penhora e sendo de presumir que os executados que entretanto fixaram residência no Luxemburgo, aí possuirão conta ou contas bancárias, veio apresentar um procedimento de decisão europeia de arresto de contas estabelecido pelo Regulamento (UE) n.º 655/2014 do Parlamento europeu e do Conselho, de 15 de Maio de 2014. O pedido foi indeferido pelo tribunal a quo com o fundamento de não estarem os pressupostos para a concessão da decisão de arresto, mais especificamente o justo receio de perda da garantia patrimonial. Do assim decidido, a requerente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: a. Ao contrario do alegado pelo tribunal ad quo e em obediência ao despacho datado de 12/07/2023, com a referência nº 450464359, veio a aqui apelante juntar atempadamente o DUC e comprovativo de pagamento da respectiva taxa de justiça no valor de 306,00€ de acordo tom a tabela II anexa ao RCP, atenta a regra especial estabelecida no artigo 7º; b. A referida documentação seguiu para o tribunal através de correio registado no dia 27-07-2023 uma vez que foi impossível juntar através da aplicação do citius por erro inesperado, que foi devidamente reportado pelo mandatário do processo conforme doc. nº 2 que aqui se juntou. c. Atento que o valor da causa se cifra no montante de 9 596,05 (nove mil quinhentos e noventa e seis euros e cinco cêntimos) e que nos processos cautelares, o valor da taxa de justiça é o resultante da Tabela II, atendendo se ao valor da base tributaria, conforme decorre do n.º 1 do artigo 6º e dos n.ºs 1 a 3 do artigo 13º ambos do RCP. d. O valor da taxa de justiça é de 3 UC, uma vez que nos casos em que a base tributaria é igual ou inferior a 300.000.00€, ou de 8 UC quando superior. e. Motivo pelo qual foi paga pela aqui apelante a quantia de 306.00€ ou seja o equivalente a 3 UCs. f. Assim, dúvidas não restam que a aqui apelante pagou e juntou aos respectivos autos tempestivamente e no montante prescrito por lei, a taxa de justiça devida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7º do RCP atento que o valor da causa se cifra no montante de 9596,05€, ou seja, 3 UCs 306,00€. g. Por outro lado, para efeitos de decretamento de uma providencia cautelar de arresto, a mesma tem vindo a obedecer a dois requisitos fundamentais, o fumus boni iuris e o periculum in mora. h. O tribunal ad quo considerou que não restam duvidas que exista o fumus boni iuris, quando refere na sentença objecto de recurso que «Pese embora a existência do titulo executivo - livrança - levem à conclusão da existência do direito que tem o por ameaçado». i. Quanto ao requisito do periculum in mora cumpre salientar que ao contrário do que é dito na sentença proferida pelo tribunal ad quo, no formulário acessível no portal europeu da justiça para efeitos de propositura da presente providência em juízo, foram alegados pela aqui apelantes factos concretos dos quais se pode concluir pela verificação do pressuposto da existência de um receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito que pretende fazer valer na acção principal. j. Ora, encontra se a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Processo 69/23.0T8PRT, Juízo de Execução do Porto - Juiz 3 acção executiva interposta a 29-12-2022, com base no titulo executivo que consta de livrança; k. Durante as diligências de penhora não foi possível encontrar os apelados, tendo a aqui apelante encetado todos os esforças para ser ressarcida do seu crédito. l. Foi, contudo, possível apurar, que ambos os apelados se encontram a residir em ..., Rue ..., ..., Localidade: ..., País: ... do Luxemburgo, tendo ambos os apelados abandonado Portugal de forma definitiva sem dar conhecimento aos credores da sua saída, com intenção de não preceder ao pagamento das dividas. m. Assim, a aqui apelada viu no procedimento de arresto de contas bancárias internacionais um meio absolutamente essencial para que seja ressarcida do seu crédito. n. Tendo sido peticionado pela aqui apelante no formulário próprio, nos termos do artigo 7.º do Regulamento nº 655/2014 que para a garantia da quantia descrita no valor da acção, conforme prevê o artigo 15º do Regulamento nº 655/2014, o arresto devesse recair sobre saldos à ordem e aplicações financeiras detidas pelos aqui apelantes junto de Banco(s) que operem em Luxemburgo. o. E solicitou para o efeito que o Tribunal do Estado Membro de Execução que obtivesse as informações necessárias para permitir que sejam identificados o Banco ou os Bancos e a conta ou contas. p. Tendo sido demonstrado nos termos do ponto 10.1 do anexo I do formulário do Pedido de Decisão de Arresto de Contas pela aqui apelante que «o devedor encontra-se a residir em estado membro, diferente daquele em que decorre a acção judicial não conseguindo a credora satisfazer o seu crédito por inexistência de bens em Portugal» e ainda no ponto 10.2 do formulário, veio ainda a aqui apelante esclarecer que «Já há decisão judicial - sem tais informações não haverá ressarcimento do credor por presumivelmente todos os bens estarem sediados no Luxemburgo». q. Pelo que, por um lado, todos estes factos alegados pela aqui apelante, não auguraram nada de promissor no que tange a solvabilidade dos aqui apelados e consequentes perspectivas de sucesso na recuperação do crédito. r. E, por outro lado, a cumular com as idas de ambos os aqui apelados para o estrangeiro conjugadas com a falta de garantia patrimonial foram e são motivos mais do que válidos alegados pela apelante justificar o justo receio da perda de garantia patrimonial. s. Ora, a não concessão desta medida leva a que exista um risco real de a execução subsequente quanto aos apelados seja consideravelmente dificultada ou frustrada de acordo com o artigo 7º/1 do Regulamento. t. Conforme salienta o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 28-11-2017: «Colocado perante este quadro fáctico, qualquer pessoa de são critério, em face do modo de agir e propósitos do requerido teme vir a perder a possibilidade de cobrar, efectivamente o seu crédito. Com efeito a solvabilidade do requerido é - segundo o alegado - nula, o seu património é escasso e o requerido evidencia um propósito reiterado de não cumprir que será facilitado pela sua ausência no estrangeiro, sendo que esta dificulta a recuperação do crédito. Este quadro fáctico é suficiente para demonstrar o periculum in mora». u. No Ac do STJ de 20-01-2000 (citado in A Geraldes, Temas da Reforma, página 188, nota 318) cujo sumário consta do boletim de sumários do Supremo Tribunal de Justiça (in dgsi também), considerou-se entre outras situações, podem justificar o arresto a sonegação de bens ou ocultação e a existência de situação deficitária e ainda o receio de fuga do devedor. v. Pelo que, da alegação como foi feita pela aqui apelante, do abandono do país para o estrangeiro, e a cumular com a falta de bens dos apelados em território nacional susceptíveis de ressarcimento do montante da divida é suficiente para demonstrar o justo receio da perca da garantia patrimonial, periculum in mora. w. Portanto, no plano da alegação, cremos ser a alegação de uma causa idónea para o fim em vista que se demonstra. x. Na verdade, no caso sub judicio, a alegada situação concreta da ausência dos apelantes para ir residir para o estrangeiro, sem património susceptível de ressarcimento do valor em divida, necessariamente dificulta a recuperação do crédito, e facilita e evidencia um propósito reiterado de não cumprir. y. Dal tendemos a concordar com a jurisprudência neste sentido, Acórdão da RL de 28-11-2017: «Colocado perante este quadro fáctico. qualquer pessoa de são critério, em face do modo de agir e propósitos do requerido teme vir a perder a possibilidade de cobrar, efectivamente o seu crédito. Com efeito a solvabilidade do requerido é - segundo o alegado - nula, o seu património é escasso e o requerido evidencia um propósito reiterado de não cumprir que será facilitado pela sua ausência no estrangeiro, sendo que esta dificulta a recuperação do crédito. Este quadro fáctico é suficiente para demonstrar o periculum in mora. Perante este quadro fáctico é desnecessária a alegação demonstração de actos especificados de dissipação do património do requerido porquanto, nos termos alegados, tal património é escasso. Também não é necessária a alegação demonstração da existência de outros credores, tanto mais que - sendo o crédito de montante não elevado (inferior) € 8.000 (no nosso caso em apreço é cerca de 10.409€) o seu reiterado não pagamento evidencia, de forma clara e mais sintomática a insolvabilidade e/ou o propósito de não cumprir. z. A não concessão desta medida leva a que exista um risco real de a execução subsequente quanto aos devedores apelados seja consideravelmente dificultada ou frustrada de acordo com o artigo 7º/1 do Regulamento. aa. Devendo ao invés do que sucedeu ser proferido uma decisão europeia de arresto de contas bancarias ou caso assim não se entenda designada uma data para inquirição de testemunhas para efeitos de produção de prova. bb. Ao decidir como decidiu o tribunal ao que violou o estatuído nos artigos 6º, 7º, 12º do Regulamento 655/2014 e artigo 590º/2, b), 3 e 4 do Código de Processo Civil. Nestes termos e nos demais de direito devem as presentes alegações de recurso serem consideradas procedentes por provadas e, em conformidade, ser revogada a sentença proferida sob a ref.ª 450830487, e, em sua consequência ser decretada a decisão europeia de arresto de contas bancárias, fazendo-se assim a devida e acostumada justiça. O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se estava em falta o pagamento da taxa de justiça. ii. Se a requerente alegou factos suficientes para o preenchimento dos requisitos da concessão da decisão europeia de arresto. III. Fundamentação de facto: Os factos que relevam para a decisão são os que constam do relatório antecedente. IV. Matéria de Direito: A recorrente instaurou um procedimento de decisão europeia de arresto de contas, meio processual estabelecido pelo Regulamento (UE) n.º 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Maio de 2014. A decisão requerida foi recusada pelo tribunal a quo com o fundamento de que «não foram invocados factos concretos dos quais se poderia concluir pelo preenchimento do requisito … - justo receio de perda da garantia patrimonial dos requeridos». A recorrente insurge-se contra essa decisão sustentando que alegou factos bastantes para o preenchimento desse requisito. É essa questão que constitui o objecto do presente recurso. Previamente importa analisar a questão do pagamento da taxa de justiça inicial correspondente ao procedimento. Na decisão recorrida começa por se fazer referência à falta de pagamento dessa taxa. Todavia, como resulta da decisão recorrida, o indeferimento do pedido de decisão de arresto não foi justificado por essa falta, mas sim, apenas, do não preenchimento do requisito acima indicado. Como quer que seja, ainda dentro do prazo assinalado no anterior despacho que a convidou a comprovar o pagamento da taxa de justiça inicial, a requerente juntou aos autos documento a comprovar o pagamento daquela, justificando igualmente a impossibilidade técnica de praticar os actos através da plataforma Citius e, em consequência, a sua prática através dos documentos escritos que enviou por correio registado. Por conseguinte, independentemente de, como referimos, a decisão recorrida não se fundamentar nessa falta, encontra-se demonstrado o pagamento da taxa de justiça e, como tal, excluída a possibilidade de esse vício poder servir de fundamento de recusa da decisão de arresto requerida. Passemos, pois, à apreciação do objecto do recurso. Constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o entendimento segundo o qual as exigências da aplicação uniforme do direito da União e o princípio da igualdade exigem que os termos de uma disposição do direito da União que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance, devam ser, em princípio, ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União, tendo em conta não só os seus termos mas também o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (cf. Acórdão de 23 de Maio de 2019, WB, C‑658/17, EU:C:2019:444, n.º 50 e jurisprudência referida, citado no Acórdão de 7 de Novembro de 2019, C-555/18, ECLI:EU:C:2019:937, proferido precisamente em sede de interpretação do Regulamento de que nos vamos ocupar). Nesse sentido, os requisitos para o decretamento da decisão europeia de arresto são, em princípio, apenas os definidos no Regulamento n.º 655/2014, e a interpretação e aplicação dos mesmos deve guiar-se pelo objectivo especificamente prosseguido por este Regulamento, tal como ele mesmo o identifica, independentemente dos termos em que o direito interno regula o procedimento cautelar de arresto do direito processual civil nacional. Conforme estabelece o respectivo artigo 1.º, o Regulamento n.º 655/2014 institui um procedimento da União que permite a um credor obter uma decisão europeia de arresto de contas, em alternativa às medidas de arresto previstas no direito nacional, que impeça que a subsequente execução do crédito seja inviabilizada pela transferência ou pelo levantamento de fundos, até ao montante especificado na decisão, detidos pelo devedor ou em seu nome numa conta bancária aberta num Estado‑Membro. No Considerando 7, o Regulamento assinala que: «um credor deverá poder obter uma medida cautelar sob a forma de uma decisão europeia de arresto de contas («decisão de arresto» ou «decisão») que impeça o levantamento ou a transferência de fundos que o seu devedor possui numa conta bancária mantida num Estado-Membro se existir o risco de, sem essa medida, a subsequente execução do seu crédito sobre o devedor ser frustrada ou consideravelmente dificultada. O arresto de fundos mantidos na conta do devedor deverá ter como efeito impedir que não apenas o próprio devedor, mas também as pessoas por este autorizadas a fazer pagamentos através dessa conta, por exemplo, por meio de uma ordem permanente, através de débito directo ou da utilização de um cartão de crédito, utilizem os ditos fundos.» Depois, no Considerando 14, assinala-se que: «As condições de concessão da decisão de arresto deverão proporcionar um equilíbrio adequado entre o interesse do credor em obter uma decisão e o interesse do devedor em prevenir abusos da decisão. Por conseguinte, quando o credor apresentar um pedido de decisão de arresto antes de obter uma decisão judicial, o tribunal ao qual é apresentado o pedido deverá certificar-se, com base nos elementos de prova apresentados pelo credor, de que é provável que este obtenha ganho de causa no processo principal contra o devedor. Além disso, o credor deverá ter a obrigação de, em todas as circunstâncias, mesmo quando já tiver obtido uma decisão judicial, demonstrar suficientemente ao tribunal que o seu crédito tem necessidade urgente de protecção judicial e que, sem a decisão, a execução da decisão judicial existente ou futura pode ser frustrada ou consideravelmente dificultada por existir um risco real de que, na altura em que o credor vir esta decisão executada, o devedor possa ter delapidado, ocultado ou destruído os bens ou tê-los alienado abaixo do seu valor, com uma amplitude inabitual ou de modo pouco habitual. O tribunal deverá avaliar as provas da existência desse risco apresentados pelo credor. Tais provas poderão ter a ver, por exemplo, com o comportamento do devedor em relação ao crédito do credor ou num anterior litígio entre as partes, com o historial de crédito do devedor, com a natureza dos bens do devedor e com qualquer acto recentemente praticado por este a respeito dos seus bens. Ao avaliar as provas, o tribunal poderá considerar que os levantamentos efectuados das contas e os gastos em que o devedor incorre para exercer a sua actividade profissional habitual ou para despesas familiares recorrentes não são, em si mesmos, inabituais. A simples falta de pagamento ou contestação do crédito, ou o simples facto de o devedor ter mais do que um credor não deverá, por si só, ser considerado prova suficiente para justificar a emissão de uma decisão. O simples facto de a situação financeira do devedor ser precária ou estar a deteriorar-se também não deverá, por si só, constituir um fundamento suficiente para proferir uma decisão. No entanto, o tribunal poderá ter em conta estes factores na avaliação global da existência do risco.» Em consonância com estes objectivos, as disposições do Regulamento estabelecem o seguinte no respectivo artigo 7.º, sob a epígrafe «condições de concessão de uma decisão de arresto»: 1. O tribunal profere a decisão de arresto quando o credor tiver apresentado elementos de prova suficientes para o convencer de que há necessidade urgente de uma medida cautelar sob a forma de uma decisão de arresto, porque existe um risco real de que, sem tal medida, a execução subsequente do crédito do credor contra o devedor seja frustrada ou consideravelmente dificultada. 2. Caso não tenha ainda obtido num Estado-Membro uma decisão judicial, uma transacção judicial ou um instrumento autêntico que exija que o devedor lhe pague o crédito, o credor apresenta também elementos de prova suficientes para convencer o tribunal de que é provável que obtenha ganho de causa no processo principal contra o devedor. Existe uma aparente (?) diferença entre o texto do Considerando 14 e o texto do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento. No Considerando a urgência da medida de arresto parecer ser um requisito distinto e cumulativo (“e que”) do risco real de frustração ou agravamento considerável da possibilidade de satisfação do crédito. No articulado, este risco é a expressão e medida daquela urgência (“porque”) razão pela qual se trata do mesmo requisito. Como quer que seja, podemos concluir que para poder emitir a decisão europeia de arresto, o tribunal necessita, sempre, de concluir, em função do alegado pelo credor e das provas apresentadas por este, que existe um risco real de que, se o arresto não for ordenado, a execução subsequente do crédito será frustrada ou consideravelmente dificultada. Como vimos, no seus Considerandos, depois de assinalar a necessidade de estabelecer um equilíbrio adequado entre o interesse do credor em obter a decisão e o interesse do devedor em prevenir abusos da decisão», o Regulamento fornece ao juiz nacional orientações sobre os critérios que ele deve seguir na aplicação do disposto do artigo 7.º, rectius, na verificação dos requisitos estabelecidos pelo próprio Regulamento para a concessão da decisão do arresto, indicando, por um lado, actos ou atitudes nos quais o juiz deve fundamentar os indícios do risco que se procura evitar, e, por outro lado, considerando como insuficientes para o efeito determinados actos ou comportamentos. O texto do Regulamento tem o cuidado, quanto aos primeiros, de assinalar que o seu elenco é meramente exemplificativo e, quanto aos segundos, de destacar que a sua insuficiência só se coloca se os actos ou comportamentos descritos funcionarem por si sós. O que significa que o juiz nacional está autorizado a fundamentar o risco em indícios de outra natureza, tal como está autorizado a concluir pela suficiência dos actos ou comportamentos descritos quando estes se verificarem de forma cumulativa entre si ou conjuntamente com indícios de natureza diversa. O Regulamento estabelece, assim, não serem, por si sós, suficientes para a concessão da decisão «a simples falta de pagamento», a «contestação do crédito», «o facto de o devedor ter mais do que um credor», «o facto de a situação financeira do devedor ser precária ou estar a deteriorar-se». Embora o Regulamento não o refira, por manifesta desnecessidade, parece óbvio que o simples facto de o devedor ter mudado de domicílio de um Estado-Membro para outro Estado-Membro também não poderá ser considerado facto indiciário suficiente do mencionado risco real de frustração ou agravamento considerável da possibilidade de satisfação do crédito. Com efeito, um dos objectivos prosseguidos pelo Regulamento, como por qualquer outra norma de direito europeu, é o estabelecimento de um espaço de livre circulação de pessoas e bens no âmbito da União Europeia, razão pela qual seria absolutamente contraditório com esse objectivo e, afinal de contas, com os próprios objectivos da União Europeia, facilitar o arresto dos bens de um devedor só porque este transferiu o seu domicílio para outro Estado-Membro. Isso mesmo é afirmado no Considerando 1 do Regulamento ao afirmar-se que «a União atribuiu-se como objectivo manter e desenvolver um espaço de liberdade, segurança e justiça em que seja assegurada a livre circulação das pessoas. A fim de criar gradualmente esse espaço, a União deverá adoptar medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil que tenham incidência transfronteiriço, nomeadamente quando tal seja necessário para o bom funcionamento do mercado interno». Não é, por isso, de estranhar que ao indicar o tipo de actos ou comportamentos nos quais o juiz nacional deve buscar os indícios do risco, o Regulamento assinale «o comportamento do devedor em relação ao crédito» ou «num anterior litígio entre as partes», «o historial de crédito do devedor», a «natureza dos bens do devedor», qualquer «acto recentemente praticado por este a respeito dos seus bens», alertando logo que entre estes actos não podem ser considerados «os levantamentos efectuados das contas e os gastos em que o devedor incorre para exercer a sua actividade profissional habitual ou para despesas familiares recorrentes». No caso concreto, no ponto 10.1 do formulário que constitui o anexo I do Regulamento de Execução (UE) 2016/1823 da Comissão de 10 de Outubro de 2016 que estabelece os formulários a que se refere o Regulamento (UE) n.º 655/2014, destinado precisamente à indicação pelo credor do motivo por que «há necessidade urgente da decisão de arresto e, nomeadamente, um risco real de que, sem tal decisão, a execução subsequente do crédito contra o devedor seja frustrada ou consideravelmente dificultada», a credora limitou-se exclusivamente a escrever: «Devedor encontra-se a residir em Estado Membro diferente daquele em que decorre acção judicial não conseguindo a credora satisfazer o seu crédito por inexistência de bens em Portugal». No ponto 10.2 do mesmo formulário, destinado, contudo, já à apresentação dos motivos do pedido de informação sobre contas - que é distinto do pedido de decisão de arresto, possuindo requisitos específicos, embora seja tramitado no mesmo procedimento e a informação seja instrumental do arresto -, a credora menciona exclusivamente que: «Já há decisão judicial. Sem tais informações não haverá ressarcimento do credor por presumivelmente todos os bens estarem sediados no Luxemburgo». Ora esta indicação é, desde logo, factualmente incorrecta. De acordo com o que consta do presente procedimento e do processo executivo principal, não há qualquer decisão judicial sobre o crédito. Este encontra-se somente titulado por uma livrança; não foi objecto de reconhecimento por nenhuma «decisão judicial», «transacção judicial», ou «instrumento autêntico», na definição que no respectivo artigo 4.º o próprio Regulamento estabelece para estes conceitos. Esta deficiência na indicação das circunstâncias do crédito repete-se, aliás, no preenchimento de vários outros pontos do formulário do pedido de arresto, o qual por esse motivo não reunia condições para ser aceite tal como se encontra (questão que, todavia, não é objecto do recurso). Aquela indicação é igualmente tendenciosa. Com efeito, tal como Portugal, o Luxemburgo é um país da União Europeia na qual existe um edifício jurídico robusto que permite a cobrança de créditos noutros Estados-Membros, ultrapassando a dificuldade da limitação da soberania dos Estados e dos respectivos Tribunais. O que se pode aceitar é que nessas circunstâncias a cobrança do crédito possa ser mais morosa ou demandar a prática de mais actos pelo credor, mas isso é uma circunstância que tem de se considerar irrelevante no espaço de livre circulação de pessoas e bens em que a União Europeia se transformou e pretende ser. Nesse contexto, interpretando o artigo 7.º do Regulamento 655/2014 (como devemos, sob pena de haver a obrigação de colocar ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a título de questão prejudicial, a questão da interpretação do artigo 7.º do Regulamento em apreço, sendo que até ao momento aquele tribunal ainda não teve de se debruçar sobre a questão) à luz do que se estabelece no respectivo Considerando (14) e do «equilíbrio adequado entre o interesse do credor … e o interesse do devedor» almejado pela disciplina do Regulamento (cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2023, C-291/21, ECLI:EU:C:2023:299), parece forçoso entender que o simples facto de os devedores não terem em Portugal bens suficientes para o pagamento do crédito e terem mudado entretanto o respectivo domicílio para outros Estado-Membro não é suficiente para permitir afirmar a existência de um risco real de que, se o arresto não for ordenado, a execução subsequente do crédito resulte frustrada ou consideravelmente dificultada. Sublinhe-se desde logo que, como vimos, foi apenas isto que o credor alegou no formulário para justificar a existência desse risco: a ausência de bens em Portugal e o domicílio actual dos devedores no Luxemburgo. É certo que, desconsiderando o modo como preencheram o formulário, a credora refere nas alegações do recurso que os devedores terão «abandonado Portugal de forma definitiva, sem dar conhecimento aos credores da sua saída, com intenção de não proceder ao pagamento das dividas». Estes factos foram alegados a destempo, fora do formulário com que é obrigatoriamente instruído o pedido de decisão de arresto, assumindo por isso a natureza de factos novos que por virem referidos somente nas alegações de recurso e não na peça (o formulário) sobre a qual recaiu a decisão recorrida, estão excluídos do poder de cognição deste tribunal de recurso. Acresce que factos são subjectivos, situados ao nível do intelecto e da vontade do agente, motivo pelo qual são indemonstráveis directamente (a natureza definitiva da mudança de domicílio, a intenção subjacente a essa mudança), só podendo ser demonstrados através da alegação e prova de outros factos objectivos ou comportamentos que permitissem deduzir, por presunção natural ou de acordo com as regras da experiência, tais estados de espirito, resoluções ou vontades. Ora a verdade é que é a própria credora a referir que os devedores não apenas têm residência conhecida no Luxemburgo, como a mesma foi por eles indicada para constar das bases de dados nacionais onde se encontra anotado o domicílio dos cidadãos em causa. Essa circunstância é perfeitamente demonstrativa de que os devedores não fugiram, não se esconderam e continuam a ter com o seu país ligações. A alegação da credora é, alias, expressão de uma ideia feita que assenta num puro preconceito. Em regra, as pessoas emigram por necessidade, porque não conseguem no país da sua nacionalidade as condições que desejam para viver ou que lhes permitem levar a vida que desejam ou que pretendem ter. Normalmente essas condições são condições económicas ou financeira. Por isso as pessoas normalmente emigram para países ondem conseguem obter rendimentos inalcançáveis no seu país e dos quais necessitam para fazer face às despesas do respectivo agregado familiar ou a dívidas que, entretanto, contraíram e que não conseguem pagar com os rendimentos que têm. Portanto, quem emigra normalmente não está a fugir de nada, … excepto da pobreza, da ausência de rendimentos, da incapacidade de levar uma vida digna. E não procura fugir às dívidas, … procura recursos para as poder pagar. Não ignoramos que também existem pessoas que emigram sem necessidade, apenas porque aspiram a mais do que já têm ou até para fugir de algo, como uma circunstância da sua vida pessoal, profissional. Mas essas situações exactamente por serem a excepção e a anormalidade necessitam de ser devidamente caracterizadas e justificadas. O que não se pode é, como faz a credora, apenas porque um casal de cidadãos portugueses já com uma idade avançada e com dívidas que não consegue pagar por ausência de bens ou rendimentos bastantes, emigra para o Luxemburgo afirmar que o fizeram definitivamente e para desse modo evitar o pagamento da dívida! Sobretudo não é possível sustentar essa afirmação quando o domicílio dessas pessoas no Estado-Membro de acolhimento é perfeitamente conhecido e consta mesmo das bases de dados nacionais, o que os coloca absolutamente ao alcance de todos os meios jurídicos disponíveis na União Europeia para o credor obter o pagamento do seu crédito, podendo mesmo afirmar-se que se algo pode antever-se nessa mudança é a melhoria das condições económicas dos devedores e o aumento da sua capacidade financeira para pagar a dívida, em claro favorecimento da credora. A recorrente cita em seu apoio o douto Acórdão da Relação de Lisboa de 28-11-2017, processo n.º 22649/17.2T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt, no qual alegadamente se teria considerado suficiente para integrar o periculum in mora um quadro fáctico semelhante ao dos autos. Ora manifestamente não é assim. Basta ler o citado Acórdão para concluir que ali foi alegado pelo credor que o devedor é um cidadão francês que celebrou um contrato de arrendamento em Portugal cujas rendas não pagou ao longo de um ano, que não lhe são conhecidos rendimentos nem actividades em Portugal, que fez promessas de pagamento que não cumpriu, que está iminente a ida definitiva do requerido para o seu país. Portanto, nessa situação, temos um devedor nacional de outro país que não quele onde contraiu a dívida e onde pende a execução, que ensaia o regresso ao seu país, que fez promessas de pagamento que não cumpriu e temos um credor pessoa singular que certamente terá mais dificuldade em recorrer aos meios jurídicos do direito europeu. No caso, nada é referido quanto ao que se passou antes no sentido de obter o pagamento da dívida, os devedores são cidadãos portugueses, país ao qual naturalmente terão tendência para regressar, o crédito parece corresponder a um financiamento pelo sistema bancário, e a credora que se apresenta a tentar cobrar o crédito é, após sucessivas transmissões do crédito, uma sociedade de titularização de créditos que naturalmente possui meios e recursos para desenvolver aquilo que é afinal de contas o seu exclusivo objecto social: a cobrança de créditos já antes considerados incobráveis. Daí que nos parece mais próximo do caso em apreço o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-09-2020, processo n.º 1525/20.7T8VCT.G1, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma que «a mera impossibilidade de cobrança, nomeadamente em acção executiva instaurada para o efeito, do crédito em questão, sem que esteja associado a qualquer outro índice, não chega para demonstrar o “periculum in mora”, não sendo esta exigência violadora de qualquer princípio europeu ou norma constitucional». Neste sim está em causa, tal como presente processo, uma execução pendente em Portugal contra um cidadão Português que mudou o seu domicílio para Espanha, sabendo-se apenas que ele não tem em Portugal bens suficientes para o pagamento da dívida. Note-se que no Acórdão de 16-02-2023, processo n.º 2854/17.2T8GMR-A.G1, in www.dgsi.pt, a mesma Relação já manifestou que não obstante «a alegação de que o requerido abandonou definitivamente Portugal e foi residir para o estrangeiro com intenção de não proceder ao pagamento das dívidas é uma causa idónea a provocar num homem normal aquele receio, constituindo periculum in mora». Todavia, no texto do Acórdão assinala-se que isso é assim quanto à alegação que incumbe ao credor, o qual está, no entanto, obrigado a provar essa intenção para que a decisão do arresto possa ser proferida. Ora, para além de, como vimos, no caso essa intenção não ter sido sequer alegada no momento oportuno e só vir mencionada nas alegações de recurso, o que impede a sua consideração, já tivemos oportunidade de explicar que para prova da mesma teriam de ser invocados factos objectivos relativos ao comportamento do devedor que permitissem a prova indirecta desse desígnio intelectual do devedor, o que igualmente não foi feito. Em suma e concluindo, tal como se encontram apresentadas no formulário, as razões apresentadas pelo credor para justificar a necessidade da decisão europeia de aresto não colhem e são insuficientes para preencher o requisito daquela decisão, mais concretamente o risco real de que, sem tal medida, a execução subsequente do crédito do credor contra o devedor seja frustrada ou consideravelmente dificultada. Por isso, independentemente das muitas outras deficiências que se vislumbram no preenchimento do formulário com que foi apresentado aquele pedido, este podia e devia ter sido recusado. Nesse sentido cumpre confirmar a decisão recorrida. V. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida que rejeitou o pedido de decisão europeia de arresto. Custas do recurso pela recorrente * Porto, 14 de Setembro de 2023.* Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 767)Os Juízes Desembargadores António Carneiro da Silva Isabel Silva [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |