Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14392/23.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
GARANTIA BANCÁRIA À PRIMEIRA SOLICITAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
MEIOS DE PROVA
Nº do Documento: RP2024011114392/23.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A garantia à primeira solicitação permite em situações excepcionais a alegação e prova de que o seu acionamento é abusivo e violador das regras da boa fé.
II - Mas a necessidade dessas circunstâncias serem demonstradas de forma evidente e líquida não pode impedir o requerente de apresentar, e produzir outros meios de prova, que não apenas os documentais.
III - Desde logo, não existe qualquer restrição legal neste caso ao princípio da prova livre. IV - Depois, está-se a deslocar e antecipar um problema de valoração da prova produzida não limitada pelo legislador, para o momento da sua admissão.
V - Acresce que as partes sempre estariam impedidos de limitar a admissão dos meios legais de prova, por convenção, nos termos do art. 345, do CC.
IV - Por fim, isso seria a criação judicial de um novo sistema de prova tarifada ou legal, que ao impedir o acesso pleno à tutela judicial violaria o art. 20º, da CRP.
VII - Logo, com esse único fundamento, não deve ser rejeitada uma providência cautelar, que visa obstar ao uso de uma garantia autónoma á primeira solicitação, quando a prova dessa causa de pedir dependa da produção de qualquer outro meio de prova legal e admissível, para além do documental.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 14392/23.0T8PRT.P1


Sumário:
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1. Relatório
A..., LDA., veio requerer procedimento cautelar comum contra R. B..., Lda., e contra C... - Sociedade de Garantia Mútua, S.A., com fundamento, em síntese, na celebração de um contrato de empreitada a primeira requerida, cujo cumprimento é garantido por garantia bancária à primeira solicitação, ou on first demand como é conhecido.
No requerimento inicial descreve o contrato de empreitada, obrigações contratuais entre as partes e o seu cumprimento/incumprimento nomeadamente no que se refere a trabalhos executados ou não executados e prazos, acrescentando que a 1.ª requerida acionou a 08/08/2023 a garantia bancária mencionada, formulando os seguintes pedidos:
a) ordenar-se à 2.ª requerida que até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal de que este procedimento cautelar é dependente não pague à 1.ª requerida nenhuma quantia por conta da garantia bancária
b) ordenar-se à 1.ª requerida que se abstenha de praticar qualquer ato com vista ao acionamento ou ao pedido de pagamento de quaisquer quantias junto da 2.ª requerida relativas à sobredita garantia bancária.
As requeridas foram citadas tendo a primeira deduzido oposição a requerida pugnando pela improcedência do procedimento cautelar, com vários fundamentos que não foram apreciados.
Foi, depois da citação, proferido despacho liminar, nos termos do qual foi indeferida liminarmente o procedimento, argumentando-se, em suma que:
Estamos perante uma garantia autónoma entendida como “como aquela que não oferece a menor dúvida por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante, ainda em casos de fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, de ofensa da ordem pública ou dos bons costumes pelo contrato garantido e, por fim, na existência de prova irrefutável de que o contrato base foi cumprido”.
“Esta prova, pronta e líquida, deve ser tida como indispensável, uma vez que está em causa o cumprimento de um contrato de garantia cuja característica dominante é a autonomia e será pronta, líquida e inequívoca quando permite a perceção imediata e segura do abuso, isto é, quando o torna óbvio, para isso não se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares, proceder a medidas de instrução ou ouvir terceiros para estabelecer o abuso do beneficiário”.
Neste sentido, não há abuso ou má fé manifestos se houver necessidade de proceder a medidas de instrução.
Inconformada veio a requerente recorrer, recurso esse que foi admitido como sendo “(…) o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (artigos 644.º, 1, a), 645.º, 1, d) e 647.º, 3, d) do CPC)”.
Por despacho do relator foi alterado esse efeito do recurso, passando este a ser suspensivo nos termos do mesmo art. e 647.º, 3, d) do CPC).
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2.1. A apelante apresentou as seguintes conclusões:
1. Não se conforma a Recorrente com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu a providência cautelar rogada, a concretizar: uma providência cautelar inibitória que impedisse a execução da garantia bancária prestada pela 2.ª Requerida a favor da 1.ª Requerida.
2. O Tribunal a quo indeferiu a providência cautelar requerido sem ter produzido a prova rogada pelas partes, a concretizar: as declarações de parte e a inquirição das testemunhas.
3. Fê-lo por considerar que o decretamento da providência cautelar requerida está dependente da apresentação de prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni iuris) e que só a prova documental pré-constituída pode, eventualmente, constituir tal prova.
4. Concluindo o Tribunal a quo que, in casu, inexiste a aludida prova.
5. Todavia, consideramos, com o devido respeito, que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo não é correto, pois a prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni iuris) pode ser obtida com recurso a qualquer um dos meios de prova admitidos para as providências cautelares não especificadas, mormente, a prova testemunhal.
6. Assim, a sentença proferida deve ser revogada, prosseguindo os autos para produção da prova requerida pelas partes, a concretizar: declarações de parte das Requerente e 1.ª Requerida e inquirição testemunhal.
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2.2. A requerida contra-alegou, nos seguintes termos:
A. A suspensão da decisão que não ordena a prestação de um facto negativo traduz-se já, em si mesma, numa atuação positiva indesejada e, no caso, ilegal – quase como na regra matemática dos sinais em que menos com menos dá mais, em razão que se apela aos Venerandos Juízes Desembargadores desta Relação do Porto que procedam a uma interpretação restritiva da norma contida no artigo 647.º, n.º 3, al. d), do CPC, pelas razões acima melhor explicitadas, e atribuam ao presente recurso efeito meramente devolutivo;
B. Independentemente do efeito do recurso, sempre o mesmo deve ser indeferido, porque a Recorrente incumpriu o seu ónus de identificação das normas jurídicas violadas, e bem assim a indicação do sentido com que o Tribunal a quo devia ter interpretado ou aplicado o direito;
C. Certo é que o tribunal recorrido não incumpriu qualquer norma legal, tendo-se limitado a decidir com base nos factos alegados e com base na prova que considerou relevante;
D. Bem andou o Tribunal ao ter considerado desnecessária a produção de prova testemunhal, porque da mesma não iria resultar a prova pronta, líquida e irrefutável de um abuso de direito da Recorrida R B..., uma vez que, dos factos articulados e dos documentos juntos para os demonstrar, já era evidente que esse abuso inexistia por completo;
E. Na verdade, não está alegado, nem, naturalmente, demonstrado pela documentação junta à petição inicial que é ilícita e abusiva a conduta da Recorrida R B..., verificando-se ao invés, pela leitura da oposição e documentos nela juntos, que existe um litígio entre as partes acerca da execução do contrato garantido, do seu incumprimento, e a quem se deve imputar o incumprimento do mesmo, pelo que a providência sempre teria de ser indeferida, sob pena de se subverter a finalidade para a qual a garantia foi configurada;
F. E com isto não há qualquer compressão do direito de produção de prova por parte da Recorrente:
G. Assim, a sentença está em conformidade com aquela que se julga ser a melhor interpretação da lei vigente aplicável e bem fundamentada, pelo que deve ser mantida, julgando-se improcedente o recurso interposto.
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3. questões a decidir
1. Fixado o efeito do recurso por despacho prévio, resta apenas determinar se pode ou não o tribunal limitar em abstracto e previamente a natureza da prova necessária aos fundamentos alegados pela requerente exigindo um meio de prova específico, o documental.
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4. Matéria de facto indiciado com base nos documentos dos autos
1. A requerente e a primeira requerida celebraram entre si um acordo escrito denominado TURNKEY CONTRACT FOR THE SUPPLY, ASSEMBLY, ERECTION AND COMMISSIONING OF A PHOTOVOLTAIC SYSTEM, junto com o requerimento inicial e cujo restante teor se dá por reproduzido.
2. Nos termos desse acordo e para garantia do bom cumprimento das obrigações dele resultantes, foi prestada em benefício da 1.ª Requerida uma garantia bancária, emitida pela 2.ª Requerida, no valor de € 93.854,72, conforme Garantia Bancária n.º ...79 e Respetiva prorrogação, conforme docus nºs 2 e 3, juntos com o requerimento inicial.
3. A 1.ª Requerida acionou, em 08/08/2023, essa garantia bancária.
4. A qual segunda alegação da requerente é abusiva porque “os atrasos na obra não lhe são imputáveis (…)
5. “uma resolução contratual que desrespeita a oportunidade de a Requerente poder concluir o contrato de empreitada, quando pretendia e tem capacidade para o fazer, não pode ser outra coisa que não seja ilegítima, abusiva e violadora da regra de que a resolução deve ser uma medida de última ratio”.
6. “a 1.ª Requerida tem vindo a incumprir as suas obrigações para com a Requerente, sendo aliás manifestos os graves prejuízos financeiros já sofridos pela Requerente”
7. Depois: “a 1.ª Requerida deve à Requerente, a quantia de € 38.134,80, a título de cláusula penal (cfr. Cláusula 4.5, §6 do contrato), por conta da mora na emissão da Notice to Proceed: devia ter sido emitida, o mais tardar, em 31/05/2022, mas só a emitiu em 03/08/2022, conforme Notice to Proceed junto supra, sob o DOC. 7. A 1.ª Requerida deve à Requerente, a quantia de € 88.389,43, a título de trabalhos executados, mas não pagos.”
8. E, as demais quantia referidas nos arts. 34 a 45 cujo teor se dá por reproduzido.
9. Depois “o accionamento da garantia é abusiva por violar frontalmente o estatuído na própria garantia bancária e os termos que aí se estabeleceram para o seu acionamento”.
10. E, que, “o acionamento da garantia bancária tenha sido instruído com “(…) the opinion of a court expert specifying the scope of non- performance or improper performance of the Contact including the value thereof.”
11. A requerente juntou 9 documentos e arrolou 5 testemunhas.
12. A requerida apresentou oposição, cujo teor se dá por reproduzido, juntando ainda relatório subscrito pela entidade D... relativos aos prejuízos existentes na realização da obra referido em 1) (doc nº7 desse articulado, cujo teor se dá por reproduzido).
13. os termos dessa garantia são “garante irrevogavelmente e incondicionalmente ao Beneficiário [E...] pagar, nos termos e condições estipulados nesta Garantia, pelas obrigações da Parte Obrigada [A...] emergentes do Contrato [datado de 27.04.2022] durante o prazo da garantia, excluindo penalidades contratuais e juros, até ao valor de €128.269,20, em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso do objeto do contrato”.[1]
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5. Motivação jurídica
A tese do tribunal a quo, corroborada naturalmente pela apelada, pode em suma resumir-se a que, no caso presente existe uma restrição à admissibilidade dos meios de prova, nos termos da qual apenas uma prova documental (se esta puder ser qualificada como clara e límpida) pode desencadear o efeito pretendido, ou seja, a suspensão do pagamento da garantia autónoma à primeira solicitação.

Salvo o devido respeito não podemos subscrever esta conclusão.

Desde logo, o despacho de indeferimento está limitado aos casos taxativamente fixados na lei.
Nos termos do art. 186º, nº2, do CPC, diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Para além destes motivos podemos acrescentar, entre outros, o da manifesta improcedência (provada a matéria alegada esta nunca poderá desencadear a procedência do pedido).
Mas, não é este o caso presente.
O que, o tribunal a quo defende é que face aos factos alegados, que até indiciam uma causa legítima em abstracto de não acionamento da garantia, o requerente nunca poderá obter a providência requerida porque não tem, ou juntou prova documental.
Não estamos, pois, perante qualquer ineptidão mas meramente uma questão de inconcludência ou inviabilidade.
Porque, “não encerra o juízo de ineptidão a afirmação de que, perante os fundamentos fáticos invocados e a pretensão deduzida o autor não pode obter ganho de causa. Aí a ponderação é feita, ao nível do fundo da questão”.[2]
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2. Da garantia autónoma
A garantia bancária autónoma é um contrato, socialmente típico, mas legalmente não regulamentado, que é frequentemente usado entre nós ao abrigo da liberdade contratual (art. 405º do CC).
Este consiste num acordo trilateral, nos termos do qual um terceiro (entidade bancária ou financeira) se compromete a pagar à primeira solicitação uma determinada quantia resultante do incumprimento do contrato.
Existem assim três negócios jurídicos: “o contrato base, em que são partes, o dador da ordem e o beneficiário; o contrato pelo qual o banco se obriga para com o beneficiário – contrato de garantia; o contrato pelo qual o banco se obriga para com o dador da ordem mediante certa retribuição, a prestar-lhe o serviço consistente em fornecer a garantida.” [3]
A particularidade dessa garantia é que deve ser prestada à primeira solicitação. Daí decorre que são (ou devem ser) limitadas as excepções que se podem invocar pra impedir esse pagamento, “que praticamente se reconduzem à extinção da garantia por cumprimento, resolução ou caducidade, e ainda à existência de fraude manifesta e abuso de direito por parte do credor”.
A doutrina e jurisprudência exigem uma prova líquida, evidente[4].
Pois, como afirma o Ac. STJ de 20.03.2012 “Não é excessivo sublinhar este ponto: para que o banco/garante deixe de pagar é necessário que seja colocada à sua disposição prova “líquida e inequívoca” da “má-fé patente”, da “fraude evidente” ao ponto de “entrar pelos olhos dentro”.

3. Das consequências processuais dessa posição
Sendo esta posição consensual, a sua processualização, em especial, no âmbito de procedimentos cautelares deu causa a duas correntes jurisprudenciais.
A primeira, que podemos qualificar como minoritária, e mais frequente na RL, entende que devido a essa exigência só é permitido ao requerente da providência produzir prova documental dessa situação de abuso e/ou má fé.
Os argumentos desta posição, são basicamente os já referidos, ou seja, que se o juízo valorativo tem de ser evidente, claro, e límpido então a única prova adequada será a documental e (nalguns casos) pré-constituída[5].

4. Das razões de discordância dessa posição.
Mesmo os arestos que fazem essa exigência probatória, não põem em causa o recurso e utilização do procedimento cautelar, o qual, diga-se ad latere, é até mais premente neste caso, face à convenção de arbitragem estabelecida entre as partes.
Ora, se é aplicável o procedimento cautelar comum é evidente que das suas regras gerais não resulta qualquer restrição probatória estabelecida pelo legislador, que não regulou esta situação.
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2. Em segundo lugar, essa posição, cria na realidade um meio de prova judicialmente vinculativo, ou seja, exige nesta situação um meio que prova apenas documental.
Ora, as vastas citações doutrinais nesta matéria raramente não vão tão longe, defendendo apenas um grau de apreciação da prova mais exigente e não qualquer restrição efectiva à admissão de meios de prova[6], dizendo que esta deve ser documental por ser esta uma prova “qualificada”.

Salvo o devido respeito, não vislumbramos como se pode deslocar o critério de valoração da prova para o da sua prévia admissão, nem como, no fundo, a jurisprudência pode criar uma limitação aos meios de prova admissíveis num procedimento cautelar.
Desde logo, vigora entre nós o princípio da prova livre precisamente como afirmação da intenção legislativa de por termo ao principio da prova legal.
A adopção do sistema da prova legal ou tarifada baseava-se no estabelecimento prévio dos critérios de valoração da prova, com ausência de liberdade do magistrado na valoração da prova. Neste sistema são relevantes os elementos probatórios de valor inalterável e prefixado, estando a ponderação e valoração das provas já efectuada com uma hierarquia legalmente instituída.
Segundo Michele Taruffo [7], durante muitos séculos, a história dos sistemas jurídicos da civil law baseou-se no sistema da prova legal para resolver os dilemas com a realidade da prova. E, nesta fase[8], era proibido ao juiz valorar as provas de acordo com seus critérios pessoais e subjetivos, contra o que foi determinado em lei[9]. Existia, por isso, uma hierarquia nítida entre as provas, com tabelas prévias de valoração de provas, e dependendo da natureza do fato ou da qualidade da pessoa acusada, a lei previa o tipo e a qualidade de provas que deveriam ser consideradas pelo juiz.
Em resumo, estes sistemas:
a) regulavam de forma taxativa os meios de prova admissíveis e o seu procedimento;
b) estabeleciam exclusões probatórias de meios ou de pessoas;
c) determinavam de forma prévia o valor de cada meio de prova
d) proibiam o juiz de considerar provados os fatos por provas diversas das especificamente previstas em lei[10].
Elementos deste sistema existem ainda entre nós nos arts. 364º, do CC e 393º, do mesmo diploma.
Mas estes são uma excepção no sistema da prova livre, pois, fundamentalmente no art. 607º, nº5, do CPC : “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Ora, no presente caso não existe qualquer disposição legal que exija que a prova da atuação abusiva da requerida e da sua má fé seja efectuada apenas por documento. Deste logo, note-se mesmo que se trate de uma declaração negocial e não de um conjunto de comportamentos, nunca estaremos perante a previsão do art. 393º, do CC, já que os actos dizem respeito ao cumprimento de um contrato de empreitada celebrado entre dois particulares, para cuja prova nenhuma forma legal está prevista.
Note-se aliás, que todos os arestos e autores referidos parecem esquecer que esses factos são passíveis de confissão judicial e, parece que esta, caso venha a ser obtida, terá a natureza (mais do que qualquer documento) de ser líquida e segura (veja-se o art. 354º, do CC quanto aos limites da confissão).
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Depois, a discricionariedade judicial quanto ao direito à prova está limitada à sua valoração.
Impor assim uma restrição prévia ao meio de prova é deslocar o juízo valorativo para o momento da admissão e, no fundo, concluir algo, antes da efectiva produção de prova ter sido iniciada.
Tal realidade poderia restringir de forma inadmissível a aplicação do art. 20º, do CRP que, recorde-se exige um juízo de adequação e proporcionalidade na restrição do acesso à actividade jurisdicional, incluindo o da produção de prova.
Note-se aliás que as partes foram livres para convencionar essa restrição aos meios de prova, no seu acordo e não o fizeram.
E que, mesmo que o fizessem, nos termos do art. 345º, nº2, do CC a restrição absoluta da utilização de prova testemunhal: “É nula, nas mesmas condições, a convenção que excluir algum meio legal de prova ou admitir um meio de prova diverso dos legais; mas, se as determinações legais quanto à prova tiverem por fundamento razões de ordem pública, a convenção é nula em quaisquer circunstâncias”.

Ou seja, se estamos perante uma providência cautelar comum, à qual são aplicáveis as regras gerais não tendo o legislador estabelecido quaisquer restrições probatórias, não caberá à jurisprudência impor um limite à admissão de prova que, encerra em si mesmo, um pré-juízo sobre o resultado valorativo a obter.
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Por causa disso é que a posição que admite a produção da prova testemunhal é, pelo menos maioritária, entre nós.
Assim o Ac da RP de 28.4.11, desta mesma secção, nº 171/11.0TVPRT.P1 (Filipe caroço) é claro ao admitir o uso dos procedimentos cautelares nesta situação, sem qualquer tipo de prova específica, quando decidiu “Não obstante a autonomia do contrato de garantia bancária on first demand relativamente à obrigação garantida, em situações excepcionais, o devedor pode recorrer ao procedimento cautelar comum, onde deverá alegar e demonstrar os factos que fundamentam o pedido de paralisação daquela garantia. São de admitir como integrantes daquelas situações factos relacionados com o cumprimento do contrato-base, designadamente a excepção de não cumprimento, o incumprimento definitivo por parte do beneficiário da garantia ou a extinção da obrigação garantida, desde que a situação seja manifesta, evidente, concludente ou inequívoca.”[11] [12]
Nos mesmos termos o Ac da RL de 18.1.2020, nº 2720/09.5TVLSB.L1-7 (Roque Nogueira), também citado pela requerente foi dito que “pretendendo o devedor lançar mão de medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a garantia, o êxito final dessas medidas, que constituem, inquestionavelmente, um excepcional meio de defesa, dependerá da prova inequívoca do comportamento manifestamente fraudulento ou abusivo do beneficiário”, mas a tramitação processual foi: Inquiridas as testemunhas indicadas pelas partes, foi dada a palavra ao ilustre mandatário da requerente para, querendo, se pronunciar quanto ao pedido de litigância de má fé formulado pela 1ª requerida, tendo o mesmo dito que contesta tal pedido”. (nosso sublinhado).
O terceiro aresto citado pela requerida Ac da RL de 12.7.18, nº 761/18.0T8LSB.L1-2 (Ondina Alves), considera “admissível o recurso a medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia, impendendo sobre o respectivo requerente o ónus de alegar e provar, não só o risco de prejuízos graves que sofrerá na ausência de tal medida cautelar, mas também apresentar prova pronta (pré-constituída, i.e, documental, sem recurso a produção de prova suplementar) e líquida, ou seja, prova inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura da invocada fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário”. Neste aresto, a decisão que exigiu a produção de prova documental confirmou assim a decisão da 1º instância, mas com um fundado voto de vencido (Jorge Leal).
Acresce que são vários os arestos em sentido contrário, afirmando expressamente a possibilidade de se produzir prova testemunhal, nestes casos.
Assim Ac da RP de 23.02.2012, processo 598/11.8TVPRT.P1 (Maria Eiró) “Em sede de procedimento cautelar, é admissível o recurso à prova testemunhal com o objectivo de demonstrar a falta de fundamento material da solicitação de pagamento, feita pelo beneficiário, da garantia autónoma à 1ª solicitação.”
O Ac da RL de de 21.2.2013, nº 863/12.7TVLSB-A.L1-2 (EZAGÜY MARTINS): exige (em sede de valoração) a não utilização de um critério de probabilidade sumária, mas admite “ a audição de terceiros”.
Ac da RL de 09.6.2016, (nº 29163-15.9T8LSB.L1-6 “Quanto à prova do alegado, deverá ser inequívoca, mas tal inequivocidade deverá, salvo o devido respeito por opinião contrária, ser aferida a final, no saldo da produção dos meios de prova legalmente admissíveis (entre os quais se inclui a prova testemunhal) e do debate que se suscite entre as partes, perante o tribunal, no contraditório a que houver lugar”.
Ac da RL de 6.5.21, nº 3962/21.0T8LSB.L1-8 (Teresa Sandiães): “A prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário da garantia bancária on first demand pode ser efetuada pelos meios legalmente admissíveis, designadamente documental e testemunhal”.
E, na doutrina, Miguel Brito Bastos[13], é claro “Entendemos que a prova líquida, pronta e inequívoca pode extrair-se de qualquer meio de prova permitido em direito e não apenas da prova documental, sendo por isso possível o recurso a prova testemunhal”.
Concluímos, portanto que, os critérios derivados da especial situação contratual terão de funcionar e ser aplicáveis, no momento próprio da valoração dos meios de prova produzidos e que a restrição prévia dos meios de prova admissíveis viola não apenas as regras gerais vigentes entre nós, como constituiria uma inadmissível restrição do direito à produção de prova, contido no art. 20º, do CC.

6. Deliberação
Pelo exposto este tribunal julga a presente apelação procedente por provada e, por via disso, revoga o despacho recorrido, determinando que haja lugar à fase de produção de prova do procedimento intentado.

Custas a cargo da apelada, porque decaiu totalmente e contra-alegou.



Porto em 11.1.24
Paulo Duarte Teixeira
Maria Machado
Ana Vieira
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[1] Redacção em português apresentada pela requerida, coincidente com a da requerente.
[2] Abrantes Geraldes et all, Código Processo Civil Anotado, 221.
[3] Revista o Direito, p. 289. cfr. Dr Jorge Duarte Pinheiro, ROA, 1992, ano 52, p. 523. LUÍS DE MENEZES LEITÃO, Garantias das Obrigações, 153; MÓNICA JARDIM, A Garantia Autónoma, 327.
[4] Entre outros os AA supra citados, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Garantias Bancárias, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. II, 2, 280; e os Acs do STJ de 20.03.2012, nº 7279/08.8TBMAI.P1.S1; de 05.07.2012, nº 219/06.06TVPRT.P1.S1), de 23.06.2016 nº Pº414/14.9TVLSB.L1.S1; Ac da RL de 6.5.21, nº 3962/21.0T8LSB.L1-8 (Teresa Sandiães).
[5] Ac da RL de 12.7.18, nº 761/18.0T8LSB.L1-2 (Ondina Alves) (já citado pela requerida).
[6] Calvão da Silva, In “Estudos de Direito Comercial (Pareceres), 1996, Almedina, págs. 342-343, “todas as cautelas são poucas, e por isso se exige ao dador da ordem uma prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, que a doutrina maioritária requer documental”. E, por exemplo, Fátima Gomes, In “Garantia Bancária Autónoma à Primeira Solicitação”, Direito e Justiça, Vol. VIII, tomo 2, 1994, pág. 119 e seguintes, págs. 180-181 “prova líquida (…) sobretudo, associada à prova documental”.
[7] TARUFFO, Michele, La prueba, Marcial Pons, 2008.
[8] Jordi Nieva Fenoll, La valoración de la prueba. Madrid/Barcelona/Buenos Aires: Marcial Pons, 2010. (2010, p. 41 e 47) (AROCA, Juan Montero AROCA, La prueba en el proceso civil. Civitas, 2011, p. 597. IACOBONI, Alessandro. Prova legale e libero convincimento del giudice. Milano: Giuffrè Editores, 2006. MENDES, João de Castro. Do conceito de prova em processo civil. Lisboa: Edições Ática, 1961. MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1879.
[9] MONTESQUIEU, De l’Esprit des lois, t. 1, Paris, Gallimard, 1995.
[10] Langbein, John H., Torture and the Law of Proof, University of Chicado Press, 2006, pág. 5 e segs, Damaska, Mirjan, Evaluation of Evidence 2019, pág. 21.
[11] E note-se que nessa acção “foram juntos diversos documentos. Dispensada a audiência prévia dos requeridos, foi designada e teve lugar a audiência de inquirição das testemunhas arroladas, em cujo âmbito se ordenou a junção de um contrato de factoring celebrado entre a requerente e o M…, (…).
[12] E, curiosamente, esse aresto também cita a mesma autora que a requerida e o despacho recorrido (Mónica Jardim), no seu sentido preciso, ou seja, que não devem ser deferidas providências não que porque seja exigível prova documental, mas porque “aquela autonomia não se coaduna com o deferimento de providências, senão em situações excepcionais”.
[13] in Recusa licita da prestação pelo garante na garantia autónoma “on first demand”, Estudos em homenagem ao Prof Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, p.547.