Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3581/22.4T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
AÇÃO DE DIVÓRCIO
CITAÇÃO NA PRÓPRIA PESSOA
PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PELOS HERDEIROS
Nº do Documento: RP202407043581/22.4T8AVR.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se a sentença de acompanhamento de maior não restringiu ao acompanhado o direito pessoal ao divórcio, o Réu pode e deve ser citado na sua própria pessoa para a ação de divórcio, nos termos do art.º 19º do CPC e 147º do CC.
II – Tal não invalida que, estando comprovada nos autos a anomalia psíquica do Réu, que o incapacita de perceber a natureza e as implicações de um ato de citação, se proceda em conformidade com o art.º 234º do CPC, podendo a acompanhante exercer as funções de curador provisório.
III – Os herdeiros do Réu falecido na pendência de ação de divórcio têm legitimidade ad recursum da decisão de inutilidade superveniente da lide, caso não lhes tenha sido dada oportunidade para se pronunciar sobre o interesse no prosseguimento da ação (art.º 1785º nº 3 do CC).
IV - Atentas as caraterísticas da pessoalidade e da instransmissibilidade do direito ao divórcio, no caso de o falecimento respeitar ao Réu, os herdeiros deste só podem continuar a instância de divórcio para efeitos patrimoniais (nº 3 do art.º 1785º do CC) no caso do Réu ter deduzido reconvenção ou ter manifestado vontade de convolação dum divórcio sem consentimento do outro cônjuge para divórcio por mútuo consentimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 3581/22.4T8AVR.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha do processado
1. Em 19/10/2022, AA instaurou ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB, com fundamento em separação de facto por um ano consecutivo e na alteração das faculdades mentais do Réu.
No decurso dos autos foi junta uma certidão relativa a um processo crime em que o aqui Réu foi: (i) declarado inimputável, em razão de anomalia psíquica; absolvido da prática de um crime de homicídio na forma tentada, na pessoa da Autora; (iii) condenado na medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico. Essa decisão transitou em julgado em 26/11/2021.
Frustrada a citação do Réu, e notificada para o efeito, veio a Autora dar conhecimento de se encontrar em curso um processo de acompanhamento de maior referente ao Réu e requerer que a sua citação se faça no estabelecimento onde se encontra a cumprir a medida de segurança, bem como na pessoa de sua filha, CC, nomeada acompanhante naquele processo.
O M.mº Juiz ordenou apenas a citação da acompanhante CC, que se frustrou.
A acompanhante CC veio juntar procuração outorgada a advogado.
Foi junta certidão do processo de maior acompanhado donde resulta, por sentença transitada em julgado em 15/11/2022, terem sido decretadas as seguintes medidas de acompanhamento: (i) representação geral na administração e gestão do património; (ii) administração global dos bens e património; (iii) no que concerne aos direitos pessoais, fica limitado o direito de se deslocar sozinho no país ou no estrangeiro, direito de fixar domicílio e residência, direito de testar e direito de aceitar ou recusar tratamentos medicamente indicados e propostos. Mais resulta dessa certidão que lhe foi nomeada acompanhante a sua filha, CC, não havendo lugar a conselho de família, e tendo sido fixada a data da incapacidade (quadro demencial compatível com doença de tipo Alzheimer) em 2016.
Citou-se então o Réu na pessoa da sua acompanhante CC.
Veio o Réu então, pela pena do seu Advogado, dizer que aceitava o divórcio e não se opunha à sua convolação para mútuo consentimento.
Em 13/10/2023 teve lugar uma tentativa de conciliação, da qual resultou não ter sido possível a conversão do divórcio para mútuo consentimento, pelo que se ordenou a notificação do Réu nos termos do art.º 931º nº 7 do CPC.
O Réu não contestou.
Foi elaborado despacho saneador, fixando o objeto do litígio e os temas de prova.
Logo após veio o seu Ex.mº mandatário dar nota do falecimento do Réu, juntando certidão de óbito que atesta ter ele falecido em 09/01/2024.
A M.mª Juíza proferiu então o seguinte despacho:
«Com o falecimento do réu ocorreu a dissolução do casamento. E nessa medida verificar-se-á, à partida, uma inutilidade superveniente da lide.
Assim, como a autora não requereu que seja fixada a data da separação de facto, notifique-a para esclarecer, em 5 dias, se continuar a pretender que o processo prossiga, já que se assim for terá a instância de ser suspensa para que sejam habilitados os eventuais herdeiros do réu.»
O Réu não foi ouvido sobre este despacho.
A Autora veio referir que não pretende o prosseguimento dos autos, pugnando pela inutilidade superveniente da lide.
A M.mª Juíza proferiu então a seguinte sentença:
«Nos presentes autos de acção especial de divórcio, em que é autora AA e é réu BB, tendo este falecido (como o demonstra a certidão de óbito apresentado a 19.01.2024) extingue-se a instância, sendo, assim, inútil o prosseguimento ulterior dos autos, atenta porque não foi deduzido pedido de fixação da data da separação.
Face ao exposto, atentos os argumentos acima expendidos, ao abrigo do disposto nos artigos 277º, al. e) do C.P.C., julgo extinta a instância por inutilidade da lide.»

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a acompanhante CC, intitulando-se “Interveniente Acidental, como herdeira do seu falecido pai”, formulando as seguintes conclusões:
a) Autora e Réu, contraíram casamento católico em 8 de setembro de 1995,
b) A 28 de janeiro de 2021 e após um surto psicótico que levou o Réu a agredir a sua esposa e considerado posteriormente inimputável foi o Réu internado até à data do seu falecimento.
c) Em meados do mês de junho de 2023 o Réu através da sua filha à data Acompanhante, ora apelante, é citada por carta registada com AR do processo de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge interposto pela Autora,
d) Do mesmo modo é citada, para informar o Tribunal a quo se “…na qualidade de acompanhante de BB, para os termos dos autos e para informar se pretende ou pelo menos o réu aceita divorciar-se, caso em que os autos serão convolados para divórcio por mútuo consentimento e designada tentativa de conciliação visando os acordos necessários ao decretamento do divórcio…”,
e) Em resposta, o Réu e de acordo com a vontade da Autora, aceita expressamente divorciar-se alegando a separação de facto há mais de um ano consecutivo e a alteração das suas faculdades mentais, não se opondo assim à convolação do Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge para Divórcio por Mútuo Consentimento.
f) A 13 de 0utubro de 2023, data da tentativa de conciliação o Tribunal a quo decide não convolar o divórcio, alegando a indisponibilidade das partes para o efeito em virtude da situação de saúde do Réu e falta de procuração por parte da Autora para o ato.
g) A 19 de dezembro de 2023, em sede de despacho saneador e sem apresentação de contestação por parte do Réu, o Tribunal a quo designa o dia da audiência de julgamento para 29 de fevereiro de 2024, bem como o objeto do litígio e os temas da prova.
h) Contudo, o Réu acaba por falecer a 9 de janeiro de 2024, dando conta a Acompanhante ao Tribunal desse facto, requerendo a prossecução dos autos de divórcio ao abrigo do disposto no n.º 3 in fine do artigo 1785.º do Código Civil, esperando que fosse provocado um incidente de Habilitação de Herdeiros,
i) Notificada a Autora pelo Tribunal para esclarecer, se pretende continuar que “o processo prossiga, já que se assim for terá a instância de ser suspensa para que sejam habilitados os eventuais herdeiros do réu.”. Veio a Autora de forma inesperada, dado a vontade expressa e manifesta do divórcio, informar que não pretende o prosseguimento dos autos, requerendo o seu arquivamento por inutilidade superveniente da lide, ao arrepio do que tinha afirmado na petição inicial e que como exemplo se transcreve:
“24.º É seu desejo e intenção viver o resto da sua vida afastada do Réu.”
“25.º não sendo sua pretensão reatar nunca mais o vínculo com aquele.”
j) Por sentença de 5 de fevereiro de 2024, o Tribunal a quo ao abrigo do disposto nos artigos 277º, al. e) do C.P.C., julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e determina que fique sem efeito a data que se encontrava agendada para a realização da audiência final.
k) Veio o Douto Tribunal a quo com o falecimento do Réu extinguir o presente processo por inutilidade superveniente da lide, ou seja, na pendência da instância, chegou à conclusão que a resolução do litígio deixe de interessar seja em razão do desaparecimento do sujeito processual ou objeto do processo, mantendo assim casados Autora e Réu,
l) Entendeu assim o Tribunal a quo com a concordância da apelada, que não deveria provocar um incidente de habilitação de herdeiros substituindo o Réu na causa pelos seus herdeiros, implicando a modificação da instância quanto ao sujeito e no que respeita unicamente aos efeitos patrimoniais.
m) Na verdade, a ação de divórcio e em regra extingue-se com a morte de um dos cônjuges, dado que a morte constitui uma causa de dissolução do casamento, sendo assim é escusado o prosseguimento da ação para a dissolução do casamento,
n) Não obstante, a lei permite e bem, que excecionalmente, aos herdeiros do cônjuges falecido o prosseguimento da ação de divórcio para efeitos patrimoniais, com efeito estabelece o n.º 3 do artigo 1785.º “O direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a acção pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a acção prosseguir contra os herdeiros do réu.”
o) Ademais, não seria razoável nem justo moralmente e como acontece no caso concreto que após a entrada do processo de divórcio pela Autora e a concordância do Réu para o efeito, que o facto fortuito da morte de um dos cônjuges (no caso o Réu) na pendência da instância resultasse num benefício para o cônjuge que intentou o processo de divórcio.
p) Concomita ainda que, os filhos e herdeiros do Réu não são filhos da Autora Recorrida o que levaria a alterar as regras da sucessão, dado que o cônjuge não é chamado à sucessão se à data da morte do autor da sucessão se encontrar divorciado.
q) Ora, como se referiu o direito ao divórcio por ser um direito pessoal não se transmite por morte, mas a ação pode ser continuada pelos herdeiros do Réu para efeitos patrimoniais, através de um incidente de habilitação de herdeiros, o que não aconteceu. Incidente esse, que nos termos dos artigos 351.º e seguintes do CPC, traria aos autos os herdeiros e filhos do de cujus, sendo estes sucessíveis os titulares dos interesses patrimoniais que o artigo 1785º, n.º 3, do CC, pretende tutelar, a fim de que a partilha dos bens do casal e a sucessão do cônjuge sobrevivo não sejam alteradas (ou não sejam significativamente alteradas) pela circunstância fortuita e imprevista de um dos cônjuges ter falecido na pendência da ação de divórcio.
r) Trata-se, por um lado, de possibilitar que o cônjuge sobrevivo seja excluído como sucessor, da herança do cônjuge falecido, do mesmo modo que dela seria excluído se o falecimento se tivesse verificado já depois de decretado o divórcio; titulares naturais deste interesse, os sucessíveis que forem chamados à herança do falecido se a acção de divórcio proceder devem por isso ser admitidos a continuar a acção intentada para que seja atingido o objectivo da lei, como efectivamente acontecerá se a acção continuar e vier a ser proferida sentença que decrete o divórcio, quer se trate de sucessão legítima (art.º 2133º, n.º 3, in fine, do CC), conforme Acórdão do Tribunal Relação de Coimbra de 16/12/2015 – Processo 29/11.3TBMMV.C1 (https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/35677129d7dde27580257f450055ca12?OpenDocument)
s) Assim resulta, na sucessão legítima, se o cônjuge Réu falecer e deixar cônjuge e descendentes (relembre-se apenas seus filho), como acontece no caso concreto, os descendentes devem ser admitidos a continuar a ação em termos patrimoniais, para que, se o divórcio for decretado, não sofram a concorrência do cônjuge e, não havendo herdeiros testamentários, a herança lhes pertença por inteiro (para que a sucessão seja deferida tal como o seria se o falecimento do cônjuge autor se tivesse verificado já depois de ter sido proferida a sentença que decretou o divórcio).
t) Concomita assim, que são os sucessíveis do Recorrente Apelante a quem deve ser reconhecida a legitimidade para deduzirem o incidente de habilitação em vista do prosseguimento da ação de divórcio, porquanto titulares de interesses patrimoniais que justificam a legitimidade para o incidente de habilitação.
u) Face ao anteriormente descrito, será de concluir, que os filhos do Réu têm legitimidade para intervir no incidente de habilitação com vista ao prosseguimento da ação de divórcio, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 1785.º do CC.,
v) Pelo que, não decidiu bem o Douto Tribunal a quo quando mandou extinguir a instância por inutilidade superveniente da lide nos termos da al. e) do artigo 277º, do C.P.C., ou invés de ter mandado citar os filhos do cônjuge Réu, ora Apelantes no sentido de se habilitarem à herança, violando o disposto no referido n.º 3 do artigo 1785.º do CC.
w) Pelas razões supra indicadas, o entendimento do Tribunal a quo não foi o correto e adequado para a boa resolução da causa, sendo assim nula a sentença, por violação do preceituado na al d) do artigo 615.º do CPC,
x) Sendo a sentença incompreensível e inaceitável em razão das alegações aduzidas. Resultando tal entendimento, claramente, de um erro de apreciação e de aplicação do Direito ao caso vertente. Ao decidir como decidiu, o Tribunal "a quo", interpretou de forma incorreta e deficiente a lei,
y) Pelo supra exposto, deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a Sentença revogada continuando os autos para a promoção do Incidente de Habilitação de Herdeiros.
Nestes termos, e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Exas., deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a sentença revogada prosseguindo os autos para habilitação de herdeiros, assim se fazendo a habitual e Sã JUSTIÇA.

3. A Autora contra-alegou, sustentando a improcedência da apelação.
Já nesta Relação, entendeu-se suscitar oficiosamente a questão da sua legitimidade para recorrer, a capacidade judiciária e o instituto da representação. Exercido o contraditório, apenas a Recorrente se pronunciou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
● Da capacidade judiciária e representação
● Da legitimidade da Recorrente para recorrer
● Do mérito da decisão recorrida

4.1. Da capacidade judiciária e o instituto da representação
§ 1º - A capacidade judiciária consiste na suscetibilidade de estar por si em juízo: art.º 15º do CPC.
Réu neste processo é BB.
Sabemos que, por sentença transitada em julgado em 15/11/2022, foi decretada a medida de acompanhamento ao Réu, por padecer de quadro demencial compatível com doença de tipo Alzheimer, incapacidade essa que se considerou existir desde 2016, tendo sido nomeada acompanhante a sua filha, CC, não havendo lugar a conselho de família.
Estatui o art.º 19º do CPC:
1 - Os maiores acompanhados que não estejam sujeitos a representação podem intervir em todas as ações em que sejam partes e devem ser citados quando tiverem a posição de réus, sob pena de se verificar a nulidade correspondente à falta de citação, ainda que tenha sido citado o acompanhante.
2 - A intervenção do maior acompanhado quanto a atos sujeitos a autorização fica subordinada à orientação do acompanhante, que prevalece em caso de divergência.
Ora, a sentença que decretou as medidas de acompanhamento apenas determinou: (i) representação geral na administração e gestão do património; (ii) administração global dos bens e património; (iii) no que concerne aos direitos pessoais, fica limitado o direito de se deslocar sozinho no país ou no estrangeiro, direito de fixar domicílio e residência, direito de testar e direito de aceitar ou recusar tratamentos medicamente indicados e propostos.
Daqui decorre que, bem ou mal, a representação que foi cometida à acompanhante, foi-o apenas para a administração e gestão do património, mas não para os direitos pessoais [a representação geral, a que alude a 1ª parte da al. b) do nº 2 do art.º 145º do CC].
Não obstante, ainda que com representação, a parte continua sempre a ser o Réu BB, ainda que representado pela filha, não podendo confundir-se a parte com o representante.
Nos termos do art.º 147º do Código Civil (CC):
1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.
Ora, os únicos direitos pessoais que foram restringidos pela sentença foram o direito de se deslocar sozinho no país ou no estrangeiro, direito de fixar domicílio e residência, direito de testar e direito de aceitar ou recusar tratamentos medicamente indicados e propostos.
Nesta medida, e nos termos do art.º 19º do CPC, ainda que sujeito a medida de acompanhamento, o Réu poderia e deveria ter sido citado na sua própria pessoa.

§ 2º - Sobre a falta ou validade da citação, compulsados os autos, verifica-se que por carta datada de 02/11/2022, foi tentada a citação do Réu na sua própria pessoa, por carta registada com AR. Essa carta foi devolvida com menção de “não reclamada”.
Sucede que tinha já sido junta os autos certidão da sentença proferida no processo crime, na qual se considerou provado que «(…) O arguido foi submetido a perícia psicológica e psiquiátrica. Do relatório de perícia psicológica consta, (…) do ponto de vista psiquiátrico o examinado apresenta um síndrome demencial, em estado avançado, no contexto de provável doença de Alzheimer (…). Trata-se de uma doença clínica crónica, permanente, irreversível e progressiva.» mais se considerou que tal doença já o afetava no dia 28/01/2021, quando praticou os factos por que estava a ser julgado.
E estava também junta aos autos a certidão do processo de maior acompanhado, sentença transitada em julgado em 15/11/2022, da qual resulta um outro relatório que conclui pela total desorientação do Réu no tempo e no espaço, incapacidade de compreensão e livre determinação, e que o seu quadro clínico, «presente desde Março de 2016, é irreversível, progressivo, crónico e grave.»
Foi neste contexto que se ordenou a citação do Réu na pessoa da acompanhante nomeada.
E esta citação tem de ser considerada válida e regular no quadro do art.º 234º do CPC.
Na verdade, estava já comprovada nos autos a anomalia psíquica do Réu, que o incapacitava de compreensão e livre determinação, ou seja, de perceber a natureza e as implicações de um ato de citação.
E, existindo já uma medida de acompanhamento, não havia que proceder à nomeação de curador provisório ou especial (art.º 20º CPC), pois não se vislumbrava qualquer conflito de interesses entre acompanhado e acompanhante para os efeitos do objeto do processo.
Concluindo, é de considerar a citação do Réu na pessoa de sua filha como válida e regular.
Tal não significa que a filha do Réu tenha perdido a sua identidade e não possa exercer os seus direitos enquanto tal. Enquanto pessoa, a filha do Réu goza no processo de capacidade judiciária para exercer os seus próprios direitos, através dos meios legais que a lei disponibiliza. Em relação ao Réu, a filha atua apenas em suprimento da incapacidade dele.

4.2. Da legitimidade da Recorrente para recorrer
Como se referiu, a Recorrente invocou-se “Interveniente Acidental, como herdeira do seu falecido pai”.
O pai da Recorrente era casado em segundas núpcias com a Autora na ação de divórcio, sendo a Recorrente filha do 1º casamento.
De sublinhar que aqui se trata de aferir exclusivamente sobre a sua legitimidade ad recursum, e não da sua qualidade de herdeira, questão que contenderia com o incidente de habilitação de herdeiros, o qual não foi sequer suscitado.
E também não se deve confundir a legitimidade ad recursum com o mérito do mesmo.
O art.º 631º nº 2 do CPC confere legitimidade para recorrer às pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
Tem-se entendido que «O prejuízo, que é pressuposto da legitimidade ad recursum de terceiros prejudicados pela decisão, deve ser um prejuízo real, directo, efectivo, não meramente um prejuízo ou dano colateral, reflexo. Se a decisão não causa um prejuízo directo, se não se repercute de forma nuclear, afectando o património físico ou moral do recorrente, mas antes de modo reflexo lhe puder causar dano, esse terceiro não pode recorrer da decisão por falta de legitimidade.» [1]
Para aferir desse prejuízo direto, sabemos que estamos numa ação de divórcio litigioso, em que o pai da Recorrente figurava como Réu. Tendo ele falecido no decurso da causa, foi decretada a inutilidade superveniente da lide.
Invoca a Recorrente que essa decisão lhe é diretamente prejudicial, na medida em que terá por consequência os seus direitos na sucessão legítima do pai.
Efetivamente, decorre do art.º 2133º do CC que o cônjuge ocupa a 1ª classe de sucessíveis. Porém, não é sequer chamado à herança se à data da morte do autor da sucessão se encontrar divorciado (…), por sentença que já tenha transitado ou venha a transitar em julgado, ou ainda se a sentença de divórcio ou separação vier a ser proferida posteriormente àquela data, nos termos do n.º 3 do artigo 1785º.
E esse art.º 1785º nº 3 permite que a ação de divórcio prossiga com os herdeiros do autor, ainda que apenas para efeitos patrimoniais. [2]
Ou seja, o divórcio pode vir a ser decretado e, sendo-o, o cônjuge que o requereu perde o seu direito sucessório já que os efeitos do divórcio se retrotraem à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges: art.º 1789º nº 1 do CC.
Nesta medida, é de considerar que a sentença que determinou a inutilidade superveniente da lide (e, pour cause, não decretou o divórcio, nem ordenou a suspensão da instância para efeitos de instauração do incidente de habilitação de herdeiros) prejudica a Recorrente dado que terá mais um concorrente à herança.
A Recorrente tem legitimidade ad recursum.

4.3. Do mérito da decisão recorrida
§ 1º - A inutilidade superveniente da lide é uma das causas de extinção da instância — art.º 277º al. e) do CPC — e ocorre quando uma circunstância superveniente produz os efeitos visados com a ação.
Ora, os efeitos visados numa ação de divórcio é a dissolução do casamento, talqualmente a morte de um dos cônjuges: art.º 1788º do CC.
Portanto, tendo falecido um dos cônjuges na pendência da ação de divórcio, pode dizer-se que, à partida, o efeito útil normal da ação (dissolução do casamento) já se produziu, tornando inútil a continuação do processo.
Porém, existem significativas diferenças, como refere o preceito, salvas as exceções consagradas na lei.
Como sabemos, o casamento produz efeitos pessoais (como sejam os deveres consignados no art.º 1672º e seguintes do CC), mas também efeitos patrimoniais.
E é quanto aos efeitos patrimoniais que não é indiferente que a dissolução do casamento se processe por morte ou por divórcio.
O que mais releva para o caso em concreto reside no facto de a dissolução do casamento por divórcio acarretar a perda do direito sucessório do cônjuge sobrevivo, deixando de pertencer às classes de sucessíveis: art.º 2133º nº 3 do CC.
Haverá, por isso, que continuar para se concluir se no caso ocorreu ou não a inutilidade superveniente da lide.

§ 2º - Já vimos atrás que a sentença que decretou o acompanhamento do Réu apenas lhe restringiu (em termos pessoais) o direito de se deslocar sozinho no país ou no estrangeiro, o direito de fixar domicílio e residência, o direito de testar e o direito de aceitar ou recusar tratamentos medicamente indicados e propostos.
Por outro lado, não foram atribuídos poderes de representação legal à acompanhante nomeada (sua filha e aqui Recorrente), mas apenas a representação geral na administração e gestão do património.
Ficaram intactos os direitos pessoais do Réu acompanhado, designadamente o direito de casar ou se divorciar (art.º 147º do CC).
O direito ao divórcio, sem consentimento de um dos cônjuges ou por mútuo consentimento, é um direito potestativo (já que, apesar de ser necessária a sua validação por autoridade judicial ou administrativa, necessita de expressão de vontade do titular), pessoal [uma primeira manifestação do carácter pessoal do direito ao divórcio é a sua intransmissibilidade, quer inter vivos (como é evidente e a lei até se dispensa de dizer), quer mortis causa] [3] e irrenunciável (como é caraterística dos direitos pessoais, a serem exercidos quando o titular o entender).
Essas caraterísticas da pessoalidade e da instransmissibilidade ficam bem patentes no facto de estarem excluídas mesmo no caso da representação legal conferida aos pais em relação aos filhos menores. Trata-se de uma regra absolutamente imperativa.
Do poder de representação dos pais estão excluídos os atos puramente pessoais dos filhos menores: art.º 1881º nº 1 do CC. [4]
Significa isso que teria de existir uma expressa manifestação de vontade do próprio Réu, que poderia ter ocorrido em qualquer altura do processo, designadamente na conferência em que se tentou a conversão do divórcio para mútuo consentimento, caso em que ambos os cônjuges demonstrariam a vontade de se divorciarem, expressando-a.
No caso concreto, não se tendo atribuído poderes de representação legal à acompanhante para os atos pessoais, o Réu tinha legitimidade ou para deduzir reconvenção, ou para aceitar a conversão do divórcio, como resulta do nº 2 do art.º 1785º do CC, quando o cônjuge que pode pedir o divórcio for maior acompanhado, a ação pode ser intentada por ele ou, quando tenha poderes de representação, pelo seu acompanhante, obtida autorização judicial.

§ 3º - No que toca às relações patrimoniais entre os cônjuges, os efeitos do divórcio produzem-se desde a data da propositura da ação: art.º 1789º nº 1 do CC.
Em consonância, dispõe o nº 3 do art.º 1785º do CC que o direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a ação pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu.
A 2ª parte deste art.º 1785º nº 3 (no que toca à possibilidade de continuação da ação pelos herdeiros), constitui uma exceção ao princípio geral da pessoalidade e da instransmissibilidade do direito ao divórcio, permitindo-se que terceiros a possam continuar. [5]
As normas excecionais são aquelas que estipulam um regime diferente do da regra geral para particularidades das situações específicas a que se refere.
E, nos termos do art.º 11º do CC, as normas excecionais não comportam a analogia, só admitindo interpretação extensiva.
A analogia respeita à integração das leis, ou seja, às situações em que uma determinada situação da vida não está prevista na lei, existe uma lacuna ou caso omisso.
Já a interpretação extensiva contende com o resultado da interpretação das leis, quando «o intérprete chega à conclusão que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se tratará de uma lacuna da lei, porque os casos não diretamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei. Da própria ratio legis decorre, p. ex., que o legislador se quer referir a um género; mas, porventura fechado numa perspectiva casuística, apenas se referiu a uma espécie desse género.
A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são diretamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma.» [6]
Com estes parâmetros, como interpretar o nº 3 do art.º 1785º do CC?
Em concreto, como responder à pergunta: no caso de o falecimento respeitar ao Réu, os herdeiros deste podem continuar a instância em qualquer caso, ou apenas no caso de o Réu ter deduzido reconvenção ou ter manifestado vontade de convolação dum divórcio sem consentimento do outro cônjuge para divórcio por mútuo consentimento?
E a resposta só poderá ser que, no caso de o falecimento respeitar ao Réu, os herdeiros deste podem continuar a instância de divórcio para efeitos patrimoniais, nos termos do nº 3 do art.º 1785º do CC apenas no caso do Réu ter deduzido reconvenção ou ter manifestado vontade de convolação dum divórcio sem consentimento do outro cônjuge para divórcio por mútuo consentimento.
Na verdade, a questão dos direitos patrimoniais é secundária relativamente ao efeito pessoal, significando que, para se poder acionar, tem de estar cumprido o princípio básico da pessoalidade, ou seja, o Réu teria de ter manifestado a intenção de se divorciar.
Só nesse caso seria de convocar a habilitação dos herdeiros do Réu.
Nessa medida, e só nessa, concordamos com o invocado acórdão do Tribunal Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 29/11.3TBMMV.C1, no qual estava em causa apurar apenas se para a prossecução da ação de divórcio se impunha o litisconsórcio necessário de todos os herdeiros ou se bastava o litisconsórcio voluntário (no caso, existiam 3 herdeiros e apenas um deles pretendeu continuar a ação). Ou seja, tratou de questão diversa da que aqui nos ocupa.
Situação idêntica à que nos ocupa foi tratada pelo acórdão do STJ de 30/06/2020, processo nº 4136/18.3T8MTS.P1.S1, onde se entendeu:
«Na interpretação do artigo 1785.º, n.º 3, do CC, adotada pelo acórdão recorrido, que subscrevemos como legal e tecnicamente correta, a ação de divórcio só pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu, mas apenas se este tiver deduzido pedido reconvencional, o que não sucedeu no caso dos autos. Apesar de a letra da lei não referir expressamente a necessidade de o réu ter pedido o divórcio por reconvenção para que os seus herdeiros o possam substituir na ação de divórcio para efeitos patrimoniais, tal exigência legal resulta do paralelismo com o que a lei estipula em relação ao autor. A expressão autor de uma ação de divórcio implica que este cônjuge, que tem a iniciativa de propor a ação, manifesta a sua vontade de se divorciar, logo, falecendo na pendência da ação, os herdeiros podem substitui-lo na prossecução da ação para efeitos patrimoniais. O mesmo não se pode afirmar em relação ao réu, que pode ou não ter manifestado a sua intenção de se divorciar, por meio de reconvenção. Daí que, para que seja respeitado o espírito da norma – a primazia da dimensão pessoal dos direitos familiares, maxime o direito ao divórcio, sobre a dimensão patrimonial – terá que se exigir, como fez o acórdão recorrido, que o réu, para que os seus herdeiros prossigam com a ação de divórcio, tenha manifestado vontade de pedir o divórcio, por meio de reconvenção.
Na verdade, esta é a única solução compatível com a natureza estritamente pessoal do direito ao divórcio: constituindo a continuação de uma ação de divórcio, depois da morte de um dos cônjuges, pelos herdeiros do falecido, uma solução excecional restrita aos efeitos patrimoniais, ainda assim ela tem de depender, dada a primazia dos aspetos pessoais sobre os patrimoniais, bem como a necessária dependência destes em relação àqueles, da circunstância de o cônjuge falecido ter manifestado vontade, em vida, por ação ou por reconvenção, de se divorciar. O que no caso vertente não sucedeu. O réu marido nunca manifestou vontade de se divorciar. Caso pretendesse fazê-lo, teria que ter pedido também o divórcio, por reconvenção, ou ter consentido numa conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, facto que também não se verificou.
A substituição do falecido pai pela herdeira habilitada, sua filha, na continuação da ação de divórcio para efeitos patrimoniais, pressupõe necessariamente o exercício prévio, pelo cônjuge que vem a falecer, do exercício do direito ao divórcio.»

§ 4º - Regressando ao caso dos autos
A ação de divórcio não foi contestada.
Não obstante, após a citação [7], veio o Réu, em requerimento de 29/06/2023 (ref.ª Citius 14775411), dizer o seguinte: “(…) vem Muito Respeitosamente informar o Douto Tribunal que pese embora não concordar na totalidade com os factos alegados, aceita divorciar-se até porque se encontra separado (…) Neste sentido, não se opõe à convolação do Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge para Divórcio por Mútuo Consentimento”.
Daqui decorre que o Réu manifestou a sua vontade de se divorciar. E como já atrás se deixou referido, esta sua vontade é válida e eficaz na medida em que o direito ao divórcio não lhe foi restringido na sentença que decretou o seu acompanhamento.
Assim sendo, estão reunidas as condições para que os herdeiros do Réu possam continuar a ação de divórcio para efeitos patrimoniais ao abrigo do art.º 1785º nº 3 do CC.
Donde resulta que, ao invés de se decretar a inutilidade da lide, haveria que ter-se declarado a suspensão da instância.
«Suspensa a instância, o juiz deve diligenciar junto da parte sobreviva e mandatário da parte contrária, a averiguação da existência ou não do propósito de prosseguimento da ação para efeitos patrimoniais. Se tal propósito existir, suspensa a instância, tramitar-se-á o incidente de habilitação (art.º 351º do CPC). Se não existir aquele propósito, dá-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277º-e) do CPC.» [8]
No caso, apenas se diligenciou por essa vontade junto da Autora, em violação do contraditório junto do Réu.
Portanto, a decisão de inutilidade superveniente da lide não pode manter-se, antes se impondo a suspensão da instância, com a subsequente habilitação dos herdeiros (se estes o tiverem por bem), averiguando-se depois junto deles se pretendem o prosseguimento da ação para efeitos patrimoniais.

5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
………………………………
………………………………
………………………………

III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da Autora, atento o decaimento.

Porto, 04 de julho de 2024
Isabel Silva
Ana Vieira
António Carneiro da Silva
__________________
[1] Acórdão do STJ, de 15/12/2011, processo nº 767/06.2TVYVNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[2] Reafirma-se não ser de a legitimidade ad recursum com o mérito do mesmo.
[3] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, pág. 692.
[4] A representação legal é um mecanismo de substituição da vontade do representado, permitindo que o ato realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produza os seus efeitos na esfera jurídica do incapaz (art.º 258º do CC).
[5] Neste sentido, Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, vol. VI, Lisboa, 1998, em anotação ao art.º 1785º: «O nº 3 deste preceito abriu uma importante exceção à regra da pessoalidade do direito ao divórcio, (…).»
[6] João Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 13ª Reimpressão, pág. 185-186.
[7] Para os termos da ação e para informar se pretende divorciar-se, caso em que os autos seriam convolados para divórcio por mútuo consentimento.
[8] Rute Teixeira Pedro, in “Código Civil Anotado”, coordenação de Ana Prata, vol. II, Almedina, 2017, pág. 689.