Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1107/10.1TBESP-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS
ENTREGA DE UMA CÓPIA DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP202005191107/10.1TBESP-A.P1
Data do Acordão: 05/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se os beneficiários do crédito forem dois ou mais, a obrigação de entrega de um exemplar do contrato deve ser cumprida relativamente a cada um deles, sob pena de nulidade do negócio jurídico.
II - Esta nulidade só pode ser arguida pelo consumidor, cabendo ao mutuante o ónus da prova de que foi efectivamente entregue ao consumidor um exemplar do contrato aquando da sua assinatura.
III - A especificidade deste regime da invalidade visa compensar a enorme fragilidade do consumidor no período pré-contratual, pelo que não constitui um abuso de direito a invocação da nulidade pelo consumidor que apesar disso pagou algumas ou até grande parte das prestações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1107/10.1TBESP-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório:
Por apenso aos autos principais de execução, para pagamento de quantia certa, em que é exequente B…, S.A., sendo executados C… e D…, vieram estes deduzir embargos, em separado, os quais foram admitidos por despacho que apreciou liminarmente os respectivos fundamentos e determinou a notificação da exequente para, querendo e no prazo legal, contestar (despacho de fls. 18 dos presentes autos e de fls. 14 dos autos que correrem termos sob a letra B).
No que respeita aos embargos formulados pelo executado C…, em primeiro lugar, este invocou o pagamento de, pelo menos, 14.191,13€ do valor acordado mediante celebração do contrato de financiamento para aquisição de veículo automóvel, através do estabelecimento fornecedor da viatura, no valor total de 28.507,06€. Em segundo lugar, o executado alegou que, tendo passado por dificuldades e tendo procedido à entrega da viatura automóvel adquirida, nunca lhe foi comunicado o valor da sua venda, a abater ao valor então em dívida, não obstante os contactos estabelecidos com a financiadora, pelo que concluiu que o valor de venda do veículo tinha sido suficiente à liquidação das suas responsabilidades no âmbito do contrato celebrado, tendo ficado surpreendido com a citação para os termos da execução dos autos principais. Por tudo isso, o executado impugnou o valor aposto na livrança exequenda. Em terceiro lugar, o executado afirmou não ter sido interpelado para o preenchimento da livrança, não tendo autorizado o seu preenchimento, o qual se mostra abusivo.
Relativamente aos embargos apresentados pela executada D…, a primeira questão suscitada relaciona-se com a não comunicação do contrato e a não explicação dos seus termos à executada, alegando esta que assinou todos os documentos, incluindo a livrança, na sua própria residência, tendo o marido entregue todos os documentos ao vendedor. A segunda questão colocada pela executada prende-se com o clausulado existente no verso do contrato não se mostrar assinado, devendo considerar-se como excluídas do contrato todas as referidas cláusula, nomeadamente, a cláusula 10ª do documento nº 3, relativa à convenção de preenchimento, sendo inexistente a cláusula em causa e inválido o preenchimento da livrança, inexistindo, assim, título executivo válido. Em segundo lugar, a executada afirmou não ter recebido qualquer interpelação para pagamento do valor aposto na livrança, sendo certo que a convenção de preenchimento exigiria a comunicação de todas as parcelas alegadamente devidas, não sendo menos certo que nunca lhe foi comunicado o valor de venda do veículo financiado, entregue à exequente para abatimento na dívida então existente. Em terceiro lugar, a executada defendeu ser ilegal a cobrança de juros remuneratórios, verificada a resolução do contrato, uma vez que o artigo 560º, nº 1 do Código Civil limita a capitalização de juros, não se verificando os pressupostos de tal possibilidade. Sustentou que a cláusula 7ª deve ter-se como não escrita nos já referidos termos, e, ainda que assim não fosse, representaria uma cláusula penal excessiva, a qual, por conseguinte, não é devida. Finalmente, a executada alegou que não lhe foi comunicado qualquer preçário relativo a despesas e comissões, não sendo exigíveis.

A exequente contestou.
Respondendo aos embargos primeiramente referidos, a exequente alegou, em primeiro lugar, que o requerimento executivo não tinha de referir o contrato subjacente, atenta a natureza do título executivo, podendo remeter, como fez, para o teor da livrança exequenda.
Em segundo lugar, a exequente referiu que recebeu do vendedor automóvel a proposta de financiamento, acompanhada dos documentos necessários à sua aprovação, a qual foi aceite; nos termos do contrato e com vista à aquisição do veículo nele identificado, os executados obrigaram-se a reembolsar o financiamento concedido, no total de 28.507,06€, pagando 72 prestações mensais, iguais e sucessivas de 392,49€; para garantia do pontual e integral cumprimento do contrato, os executados aceitaram uma reserva de propriedade do veículo a favor da exequente, mais entregando a livrança exequenda por eles subscrita; os executados não procederam ao pagamento da 34ª prestação, vencida em 08.08.2009, nem das subsequentes; a exequente interpelou os mutuários por carta registada com aviso de recepção, com data de 11.01.2010, concedendo o prazo de oito dias úteis para liquidação das importâncias devidas, findo o qual a mora se converteria em incumprimento definitivo; a carta endereçada ao embargante não foi por ele recebida, sem culpa da exequente; o executado embargante não procedeu a qualquer pagamento, considerando a exequente como resolvido o contrato; o executado embargante contactou a exequente com vista à entrega da viatura, o que a exequente aceitou, sem aceitar a exoneração dos devedores; nessa altura as prestações 34º a 38ª encontravam-se vencidas e por pagar; o veículo foi entregue a uma empresa mandatada em 18.02.2010, tendo sido vendido por 8.800€; mostrando-se este valor insuficiente para liquidar o montante devido à exequente, esta preencheu a livrança nos termos do convencionado entre as partes, o que lhes comunicou mediante correspondência de 11.06.2010, sendo que os executados não pagaram o valor inscrito na livrança, de 9.236,24€, relativo a 2.592,38€ ao título das prestações vencidas e não pagas, 13.599,36€ correspondentes às prestações vencidas por força da resolução do contrato, acrescida de juros moratórios, 1.100€ ao título de despesas de contencioso, 698,31€ pelas despesas com a venda do veículo, 46,18€ de imposto de selo decorrente do preenchimento da livrança, deduzido o somatório do valor de venda do veículo supra referido de 8.800€.
A exequente concluiu pela improcedência dos embargos deduzidos por este executado.
Juntou documentos.

Contestando os embargos formulados pela executada D…, a exequente reproduziu em grande parte a contestação já mencionada, acrescentando, no que se mostra relevante, que desconhece se a executada acompanhou o executado, ou não, ao estabelecimento em que adquiriram o automóvel, sendo que o contrato foi formalizado com as assinaturas de ambos os executados, incluindo na livrança exequenda; sublinhou a exequente que, caso se verifique que a executada assinou os documentos na sua habitação, dispôs do tempo necessário à sua análise; o fornecedor do veículo encontrava-se preparado para fornecer explicações sobre o teor do contrato, o que fez, tendo disponibilizado uma cópia do contrato, sendo que, nunca, até ao momento, a executada embargante solicitou qualquer esclarecimento sobre o contrato; os executados declararam terem tomado conhecimento de todo o clausulado, impendendo sobre os mesmos deveres de zelo e diligência na contratação; o invocado desconhecimento do contrato surpreendeu a exequente, atento o cumprimento de 33 prestações e a utilização do veículo, configurando a alegação da executada abuso de direito; concretizou os valores em dívida, especificando as diversas parcelas e defendendo inexistir qualquer anatocismo; e, por fim, a exequente afirmou que o preçário relativo às comissões cobradas era do conhecimento da embargante, sendo referido no contrato e podendo ser consultado na internet.
Concluiu pela improcedência destes embargos e juntou documentos.

Os embargos foram inicialmente tramitados em separado.

Posteriormente, cumprido o contraditório, foi determinada a apensação aos presentes autos daqueles que corriam termos sob a letra B (fls. 42 e 45).

Teve lugar audiência prévia, conforme documentação dos autos, aí se tendo procedido ao saneamento do processo, fixando-se o valor dos embargos de executado, definindo-se os temas de prova e admitindo-se as provas requeridas pelas partes (fls. 46 e 48 e segs.).
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento da causa, com observância do formalismo legal, conforme documentação dos autos (fls. 63 e segs. e 73 e segs.).
Findo o julgamento, a instância foi suspensa a pedido das partes a fim de desenvolverem diligências com vista a alcançarem uma solução consensual para o litígio, as quais resultaram frustradas.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:” Por todo o exposto, julgam-se os presentes embargos procedentes, por provados, e, em consequência, julgando-se nulo o contrato subjacente e inválida a obrigação cartular exequenda, determina-se a extinção da execução.”

A exequente B…, S.A veio interpor recurso, concluindo:
A) Entendeu o MM Juiz de Direito que não se provou que o exequente entregou a ambos os executados um exemplar do contrato celebrado, e nem provou que o teor do mesmo foi explicado aos executados. Sendo referido que tal entendimento “assenta na prova manifestamente insuficiente produzida”.
B) Quanto à falta de entrega a todos os executados de cópia do contrato, não resulta dos embargos de executado deduzidos pela executada D… que a mesma tenha, em momento algum, alegado que não lhe foi entregue a cópia do contrato. Alegando apenas que não lhe foram comunicadas as cláusulas do contrato e que não lhe foram explicados os seus termos.
C) Confessa ter assinados todos os documentos, incluindo a livrança, na sua própria residência, após o que o marido teria entregue a documentação no stand.
D) Não se extrai do alegado que a mesma não tenha ficado com cópia do contrato.
E) A Executada não alega ou requer a declaração da nulidade do contrato que decorreria da falta de entrega do contrato, mas apenas a exclusão de cláusulas em virtude da alegada violação dos deveres de comunicação e informação do teor das cláusulas contratuais.
F) A sentença ora proferida é nula nos termos do artigo 615º nº 1 alínea d) in fine do CPC, conhecendo de questões que não foram invocadas pela Executada/ Embargante.
G) Ainda assim, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 359/91: “O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura”, por contraposição ao actual regime que “todos os contraentes, incluindo os garantes, devem receber um exemplar do contrato de crédito”.
H) Encontra-se demonstrado nos autos que ao embargante C… tinha sido entregue a cópia do contrato, a qual foi junta pelo próprio em sede de embargos de executado, mostrando-se cumprida a exigência de entrega de um exemplar ao consumidor vertida no diploma.
I) Mas além disso, os artigos 6º nº 1 e 7º nº 1 e 4 do Decreto-Lei nº 359/91 de 21/9 não impõem ao exequente o ónus da prova da entrega de um exemplar do contrato ao consumidor, nem estabelecem qualquer presunção da não entrega.
J) A alegada falta de entrega da cópia do contrato à embargante D… de um facto impeditivo/extintivo dos direitos invocados pela exequente, competia à embargante prova consistente quanto a esta matéria, o que não fez - artigo 342.º, nº2 do CC, não recaindo sobre o exequente esse ónus de prova como parece resultar da sentença agora em crise.
K) Competia à embargante, caso tivesse alegado tal facto, provar que não lhe foi entregue um exemplar do contrato no momento da sua assinatura, o que não se verificou, pelo que não se pode concluir pela nulidade do contrato por inobservância do disposto no nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 359/91, mostrando-se errada a decisão sob recurso.
L) Sendo certo que a prova constante dos autos, vai em sentido contrário, pois os executados, declararam expressamente no contrato celebrado com a exequente que se junto na contestação como doc. nº 1 que:
“O Cliente declara conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerais constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi devidamente informado, tanto por lhe ter sido dado a ler, como por lhe ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”. (sublinhado nosso).
M) Outra conclusão não se pode retirar daqui que não seja de que foi entregue à embargante um exemplar do contrato e foi devidamente informada e esclarecida sobre todo o teor do contrato junto como doc. n.º 1 com a contestação, quer no que respeita às condições particulares e gerais quer ainda no que respeita à garantia prestada – livrança de caução.
N) Ou seja, não se pode fazer tábua rasa das declarações prestadas pelos embargantes, no contrato junto como doc. n.º 1, nem tão pouco se pode desprezar que não é só sobre a exequente que impendem deveres na contratação. Também sob os executados, recaem as correlativas obrigações, nomeadamente, a de ao contratar, actuar com zelo e diligência.
O) O alegado desconhecimento apenas e só aos embargantes é imputável, sendo que então os mesmos prestaram falsas declarações e não actuaram com o zelo e diligência de um “bom pai de família”.
P) A obrigação de comunicação do teor das cláusulas do contrato que a embargante confessadamente celebrou tem um carácter variável em função, principalmente, do seu grau de complexidade.
Q) A entrega do contrato aos executados facultando-lhes a sua leitura e análise bem como qualquer explicação adicional que os executados entendessem por conveniente, atenta a sua simplicidade e normalidade (face à experiência comum de qualquer cidadão que contrate com instituições de crédito) são de molde a concluir pelo cumprimento, por parte da exequente, do dever de comunicação e explicação das cláusulas do contrato em causa.
R) Ora, se os embargantes assinaram o contrato, como confessam, é porque este lhes foi entregue para assinar. Se assim é, não podiam os embargantes deixar de tomar conhecimento do seu conteúdo, de analisar e examinar com cuidado e ponderação o seu clausulado, assim como, solicitar os esclarecimentos que entendesse necessários, usando, pois, da diligência normal de um homem médio.
S) Se os embargantes não solicitaram explicações adicionais sobre o contrato, tal facto apenas a estes é imputável, pois é expectável e exigível que um homem médio colocado nas condições dos embargantes leia um contrato antes de o assinar e solicite esclarecimento adicional sobre as respectivas cláusulas caso não compreenda a explicação sobre o conteúdo. Se não solicitou explicação adicional sobre o respectivo conteúdo foi porque não quis, é uma opção que conscientemente tomaram, sem que por ela possa a exequente ser prejudicada.
T) O fornecedor do veículo automóvel financiado pela Exequente forneceu-lhes todas as informações e explicações sobre o conteúdo do contrato e lhes entregou cópia do contrato na data da sua outorga, sendo que os próprios embargantes confessam ter sido disponibilizados pelo fornecedor os documentos para que em sua casa, com tempo e disponibilidade pudessem analisar os documentos e assiná-los.
U) Pelo que se os executados, após a análise detalhada e atempada do contrato tivesse alguma dúvida ou necessitasse de algum esclarecimento adicional certamente que teria diligenciado nesse sentido, não assinando o contrato. O que não sucedeu, entendendo-se que estavam esclarecidos e que os aceitavam.
V) Mas mais, que isso, o próprio fornecedor do veículo automóvel financiado pela exequente (e escolhido pelos executados), quando ouvido em sede confirmou que tinha sido recebida formação específica para celebração dos contratos, esclarecendo que até existia no stand um funcionário que tinha como funções exclusivas a formalização e celebração dos contratos de crédito. (ouça-se a gravação audiência julgamento dia 11/02/2019, aos 3min e 21 ss).
W) Significa isto que a versão dos executados não poderá ser valorada, pois não foram produzidos outros meios de prova que corroborem minimamente aquela versão, sendo que a prova efectuada vai em sentido diverso, corroborando o cumprimento dos deveres de informação e comunicação pelo Exequente.
X) Acresce que sentença em crise sempre deverá ser considerada nula por omissão de pronúncia, uma vez que o Exequente na sua Contestação invocou que a Embargante D… actuava em claro abuso de direito, ao invocar a falta de informação e de comunicação do teor das cláusulas gerais previstas no contrato, após ter efectuado diversos pagamentos de prestações mensais, inculcando claramente que conhecia o teor do contrato, sem manifestar qualquer oposição, retirando todas as utilidades que o veículo automóvel adquirido proporciona, actua de forma claramente contrária à confiança que a sua conduta induziu na exequente, no sentido de jamais virem a invocar as nulidades referidas.
Y) Na verdade, na sentença de que ora se recorre, o MM Juiz de Direito não se pronunciou sobre esta questão, limitando-se a reproduzir um excerto de um acórdão, e remeter em nota de rodapé para outros acórdão sobre esta questão.
Z) No entanto, não efectua qualquer consideração sobre a eventual aplicação dos acórdãos ao caso concreto, nem refere qualquer fundamento para eventualmente justificar a não verificação do abuso de direito invocado pelo Exequente.
AA) O abuso de direito é susceptível de paralisar a alegação da violação dos deveres de informação e comunicação por parte do Exequente, sendo por isso uma das questões fundamentais que caberia ao Tribunal analisar, logo a sentença de que se recorre é nula por manifesta omissão de pronúncia quanto à alegação de abuso de direito efectuada pelo Exequente, nos termos previsto no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC.
BB) Do que se deixou acima demonstrado, a decisão ora recorrida violou o disposto no 615º nº 1 alínea d) do CPC, nº 2 do artigo 342º do CC, e os artigos 6º nº 1 e 7º nº 1 e 4 do Decreto-Lei nº 359/91 de 21/9, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue provados os seguintes factos: “a) foi entregue a ambos os executados um exemplar do contrato referido em 6; e b) – foi explicado aos executados o teor do contrato referido em 6;” o que se requer a V. Exa. ou caso assim não se entenda ser julgada nula por omissão de pronúncia relativamente à invocação do abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium.
Nestes termos e nos melhores de direito deve a sentença sob recurso ser revogada e substituída por outra que:
- Elimine dos factos não provados o seguinte facto: “a) foi entregue a ambos os executados um exemplar do contrato referido em 6”, que não foi alegado, sob pena ser nula a decisão por consistir em decisão surpresa;
- Julgue provado o seguinte facto “b) foi explicado aos executados o teor do contrato referido em 6”, determinando a validade do contrato e de todas as cláusulas inscritas no mesmo, e consequentemente julgando totalmente improcedentes os embargos de executado, determinando o prosseguimento da acção executiva, pelo montante reclamando no requerimento executivo (acrescido de juros até integral pagamento).
Caso assim não se entenda, sempre deverá a sentença ser julgada nula por manifesta omissão de pronúncia quanto à alegação de abuso de direito efectuada pelo Exequente, nos termos previsto no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC.

C… apresentou contra-alegações, concluindo:
1. A douta Sentença Judicial da qual a Exequente apresenta Alegações de Recurso é a conclusão retirada pelo Juíz de Direito do Tribunal a quo acerca da matéria carreada para os autos, traduzindo-se no “espelho” daquilo que se passou nas sessões de audiência e julgamento, onde, salvo o merecido respeito, a Exequente não conseguiu demonstrar o acima exposto. Daí a Sentença considerar como factos não provados os constantes nas alíneas a) e b) da mesma (supra analisadas).
2. A Exequente não demonstrou que foi entregue ao Executado um exemplar do contrato de crédito nº …….
3. A Exequente não comprovou que o clausulado no contrato em apreço foi devidamente explicado e comunicado ao Executado.
4. A douta Sentença Judicial obedece ao plasmado no artigo 607º do CPC.
5. Aqui, houve fundamentação onde o Juíz de Direito declara os factos não provados, fazendo uma análise crítica das provas e indica as ilações retiradas dos factos instrumentais, especificando e aprofundando os demais fundamentos decisivos à sua convicção.
6. O Meretíssimo Juíz de Direito do Tribunal a quo apreciou livremente a prova carreada para os autos de acordo com a sua prudente convicção acerca de cada facto.
7. Da Prova Testemunhal importada pela Exequente, não se concluiu qualquer dos factos dados como “não provados” na douta Sentença Judicial pela incongruência dos mesmos e até mesmo pela incerteza e dúvida expressamente formulada.
8. E, “Peticionar nos autos não implica ciência inequívoca da Sentença”.
9. Assim, o contrato subjacente à livrança é nulo;
10. E consequentemente inválida a obrigação cartular exequenda.
11. Devendo a execução base destes autos ser considerada extinta.
12. Importa ainda sublinhar que a legislação apontada pelo Tribunal a quo para decidir nestes termos foi devidamente aplicável, mormente os artigos referentes ao CPC e ao NCPC, bem como à LULL e os Decretos- Lei nºs 359/91 de 21/09, 446/85 de 25/10, 220/95 de 31/08 e 249/99 de 07/07.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, o Recurso apresentado em conformidade com as Alegações apresentadas deve ser totalmente improcedente, por infundado, devendo manter-se a douta Sentença Judicial proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, nos seus exatos e precisos termos.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consistem em saber se:
- se verificam as nulidades invocadas da al. d) do artigo 615º do CPC.
- ocorreu erro na decisão de facto;
II - Fundamentação de facto:
O tribunal recorrido considerou:
Factos Provados:
1. Nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa, é exequente B…, S.A., sendo executados C… e D….
2. Nos autos principais de execução, a exequente deu à execução a livrança cujo original consta de fls. 53 dos presentes autos.
3. A livrança referida em foi emitida em Lisboa com data de 11.06.2010, tendo aposto o valor de 9.236,24€.
4. A livrança referida em 2, foi subscrita pelos executados e tem como data de vencimento o dia 02.07.2010.
5. A execução deu entrada em 23.11.2010, tendo o exequente alegado que os factos eram os que constavam do título.
6. Entre exequente e executados foi celebrado o contrato denominado de «Contrato de Crédito nº ……», junto aos presentes autos a fls. 26 frente e verso, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor.
7. Os executados apuseram a sua assinatura na parte da frente do documento referido em 6.
8. O verso do documento referido em 6 não contém qualquer assinatura.
9. Teor da cláusula 10ª do contrato referido em 6, cuja epígrafe é «Convenção de preenchimento».
10. Os executados procederam ao pagamento de 33 das prestações mencionadas no documento referido em 6.
11. Com data de 11.01.2010, a exequente enviou ao executado embargante a correspondência de fls. 27, vindo o «Assunto» identificado como sendo «Contrato de Crédito nº ……», dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor.
12. Com data de 11.01.2010, a exequente enviou à executada embargante a correspondência de fls. 27 verso do Apenso B, vindo o «Assunto» identificado como sendo «Contrato de Crédito nº …….», dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor.
13. Teor do documento intitulado de «Auto de Entrega de Veículo Automóvel» de fls. 28.
14. Teor da correspondência remetida pela exequente a E…, Lda., de fls. 28 verso.
15. Com data de 11.06.2010, a exequente enviou aos executados embargantes a correspondência de fls. 29, vindo o «Assunto» identificado como «Contrato de financiamento nº ……», dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor.
16. O executado dispunha de um cópia do contrato, tendo-a junto com os embargos apresentados.
Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão a tomar, não se provando que:
a) – foi entregue a ambos os executados um exemplar do contrato referido em 6;
b) – foi explicado aos executados o teor do contrato referido em 6; e,
c) – com a entrega do veículo identificado no contrato referido em 6 ficou liquidado o valor em dívida nessa data.
III – Fundamentação de direito
Nesta execução o título executivo é uma livrança subscrita pelos executados, emitida em 11.06.2010 na sequência da celebração do contrato denominado de «Contrato de Crédito nº ……» entre os executados e a exequente B…, S.A, o qual foi concluído em Outubro de 2006.
A relação material subjacente aqui configurada consiste numa compra e venda financiada, em que coexistem dois contratos distintos e autónomos: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, existindo uma ligação funcional entre os mesmos – o crédito serve para financiar o pagamento do bem que é objecto daquele contrato.
Os contratos de crédito ao consumo tiveram consagração legislativa em Portugal, com a publicação do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, através do qual o Estado português transpôs para o direito interno as Directivas 87/102/CEE e 90/88/CEE.
Esta Directiva, e suas subsequentes alterações, foi substituída por uma nova norma da comunidade europeia, a Directiva 2008/48/CE, o que veio a determinar a revogação do aludido DL nº. 359/91 pelo DL nº. 133/2009, 02 de Junho, o qual só se aplica aos contratos de crédito concluídos depois da data da entrada em vigor em 1 de Julho de 2009. – Cfr. artigos 34º e 37º do diploma.
Observou-se, entretanto, que a grande maioria dos contratos de crédito ao consumo chegou aos tribunais pela via da acção executiva com vista ao ressarcimento do credor mutuante pelo seu crédito ou de parte dele, sendo a grande parte dos títulos executivos constituída por uma livrança, como acontece no caso presente.
Sabe-se que o crédito desempenha nas economias modernas um papel preponderante na medida em que permite a concretização antecipada de investimentos e a aquisição também antecipada de determinados bens e serviços, estimulando, por um lado, o tecido empresarial e, por outro, promovendo a satisfação das necessidades crescentes dos indivíduos.
Sob os auspícios de um bem-estar social, a verdade é que se foi assistindo a um consumismo extravagante motivado, sobretudo, por uma actividade agressiva dos mercados a estimular um recurso irreflectido ao crédito, criando-se uma ilusão de prosperidade porque o que aconteceu, consequentemente, foi um endividamento excessivo de muitas famílias, factor evidenciado com o eclodir da crise financeira e económica mundial iniciada nos Estados Unidos da América, em 2007.
O conceito de consumidor ganhou relevância jurídica ao nível bancário, com a Directiva 2008/48/CE, passando o mutuário de cliente bancário a consumidor.
O direito civil clássico quedou-se perante a evolução da sociedade num esquema cada vez mais complexo de relações em rede num mundo global de grandes assimetrias, de gigantes económicos e financeiros com meios de conhecimento sofisticadíssimos a negociarem com o mais comum dos cidadãos.
Os modelos puramente liberais não conseguiram controlar os efeitos sociais deste imenso desequilíbrio e o Estado, mais numa óptica da paz social do que numa cruzada ideológica, foi paulatinamente tomando medidas legislativas que vieram a alterar conceptualizações típicas do direito civil, estabelecendo-se designadamente limites à autonomia contratual na sua dualidade de liberdade de celebração ou conclusão dos contratos - liberdade a contratar, como na faculdade de realizar ou não determinado contrato e na liberdade de modelação do conteúdo contratual.
A compreensão da função social dos contratos e, mais amplamente, de que os direitos e os deveres devem ser exercidos funcionalmente, sem se desviarem dos fins económicos, éticos e sociais a par do movimento de constitucionalização do direito civil, levou, no que aqui importa, a uma alteração da concepção dos sujeitos contratuais da relação de consumo, surgindo, assim o conceito jurídico: o consumidor.
Tudo isto demonstra que o direito se move num sistema de segunda ordem, quer dizer, tem como finalidade a de atender a um sistema de primeira ordem que é a sociedade.
Este enquadramento é vital para se compreender o regime e as soluções jurídicas que o caso em análise demanda.
O artigo 6º, nº 1 do 1, do citado Decreto-lei 359/1991 comanda que o exemplar do contrato reduzido a escrito e assinado pelos contraentes tem de ser entregue ao mutuário no acto da assinatura do contrato.
Não obstante ser a redacção do artigo 12º, nº 2 do actual DL nº. nº 133/2009 a expressar literalmente que todos os contraentes, incluindo os garantes, devem receber um exemplar do contrato de crédito já assim se entendia, ou seja, esta obrigação de entrega do exemplar se fossem dois ou mais beneficiários do crédito sempre foi exigível em relação a cada um deles.
É que os contratos de crédito ao consumo devem ser exarados em papel ou noutro suporte duradouro, em condições de inteira legibilidade.
Pretende-se que fique determinado o momento da conclusão do contrato; que seja célere a contratação; que fique fixado o conteúdo do contrato; e que haja a devida informação e reflexão.
Esta forma escrita é uma formalidade ad substantiam, que não pode ser substituída por qualquer outra.
O artigo 7º, 1 cominava (como agora o artigo 13º, nº 1 do DL nº 133/2009 também comina) que a omissão de entrega do exemplar do contrato acarreta a nulidade do negócio jurídico.
Trata-se de uma nulidade atípica ou de regime misto: só pode ser arguida pelo consumidor e cabe ao mutuante ou concedente de crédito a prova de que foi efectivamente entregue ao consumidor um exemplar do contrato de concessão de crédito aquando da sua assinatura. A falta de prova desta entrega leva à nulidade do contrato.
Contrariamente ao que diz a recorrente não são os executados que têm de provar que não receberam o exemplar antes é a recorrente que tem de provar que fez a entrega do exemplar a todos contraentes consumidores.
Tal faz toda a diferença em termos de ónus da prova. Ante a proibição do non Iiquet, é necessário encontrar um critério de decisão que permita ultrapassar situações de impasse quanto a questões de facto. Esse critério é-nos geralmente dado pelo instituto do ónus da prova.
As regras do ónus da prova servem precisamente para os casos em que depois de toda a instrução, de toda a actividade probatória o juiz continua sem convencimento de como os factos se passaram.
A questão é decidida contra a parte onerada com a prova de determinado facto se não cumprir tal ónus, ou mesmo em caso de dúvida (artigos 342º e 346º do Cód. Civil e artigo 414º do CPC).
Quer dizer, no caso não se logrou demonstrar se foi ou não entregue um exemplar do contrato a cada um dos executados. Melhor dizendo, não tendo a recorrente provado que entregou os exemplares do contrato, nem os executados que não lhes foram entregues, este impasse resolve-se contra quem tem o ónus, isto é, a recorrente e o contrato tem de considerar-se nulo.
Este posicionamento legal denota toda a especificidade desta matéria face ao quadro contratual de normalidade em que a omissão destes requisitos se poderia resolver no âmbito do incumprimento contratual gerador, no limite, da resolução do contrato e da compensação indemnizatória.
Foi, com efeito, uma opção legislativa cominar o desrespeito destas regras com um desvalor jurídico mais forte, alcançando-se, deste modo, uma tutela mais eficaz do consumidor. É uma solução nova, original e atípica considerada necessária como medida de protecção do consumidor.
A jurisprudência e a doutrina maioritárias partilham desta visão arredando nestes casos as soluções típicas do incumprimento que se destinam a situações ordinárias. - V.g. Ac. desta Relação do Porto de 23-02-2012, proc. 359/06.6TBARC-A.P1, in www.dgsi.pt e Fernando de Gravato Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, 2007, pág. 105.
No caso vertente, a oponente alega a não comunicação do contrato o que equivale, em termos semânticos, a dizer que lhe não foi entregue um exemplar do contrato.
Está assim cumprido o ónus de invocar os factos conducentes à nulidade do contrato, sendo indiscutível que o julgador não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Daqui resulta também que não ocorre a aludida nulidade do artigo 615º nº 1 alínea d) in fine do CPC, ou seja, que o Tribunal conheceu de questão que não foi invocada pela executada
Diga-se ainda que a pretendida alteração da matéria de facto por parte da recorrente tinha por base uma incorrecta configuração das regras do ónus da prova pois, como se viu, pressupunha erroneamente que era aos executados que cabia o ónus de provar que não receberam o exemplar quando, ao invés, era ela mesma que tinha de provar que fez a entrega do exemplar a todos contraentes consumidores.
Assim, tem de ser desatendida a invocada modificação da decisão de facto.
Aduz a recorrente que a sentença deverá ser considerada nula por omissão de pronúncia, uma vez que na sua Contestação invocou que a embargante D… actuava em claro abuso de direito, ao invocar a falta de informação e de comunicação do teor das cláusulas gerais previstas no contrato, após ter efectuado diversos pagamentos de prestações mensais, inculcando claramente que conhecia o teor do contrato, sem manifestar qualquer oposição.
Atentemos.
Mais uma vez a recorrente vem arguir a nulidade prevista na alínea d), do nº 1 do artigo 615º do CPC.
A lei prevê um numerus clausus de causas de nulidade pelo que nem todo e qualquer vício, de forma ou de conteúdo, da sentença produz nulidade.
Distinguem-se aqui os vícios formais dos vícios substanciais ou de conteúdo.
Exceptuando o vício formal da falta de assinatura do juiz, todas as demais causas de nulidade – omissão e excesso de pronúncia, falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão - têm por objecto vícios de substância ou de conteúdo.
As nulidades da decisão previstas são deficiências (intrínsecas) da sentença. Não se confundem com o chamado erro de julgamento que se traduz numa desconformidade entre a decisão e o direito - substantivo ou adjectivo - aplicável. Neste caso, o tribunal fundamenta a decisão, aprecia todas as questões suscitadas, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito.
O artigo 615.º do NCPC (correspondente ao artigo 668º do CPC de 1961) na sua al. d) estatui que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A este propósito refere Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado”, volume V, 1984, páginas 142 e 143, que não enferma da nulidade a sentença “que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” – “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, 1984, páginas 142 e 143.
Na sentença, neste particular, registou-se:” A respeito de tal invocação não constituir abuso de direito, pode consultar-se, exemplificativamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.09.2017, relatado por Pedro Martins, assim como o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.02.2017, relatado por Maria João Areias, ambos disponíveis na internet na página com o endereço www.dgsi.pt.”
Portanto, constata-se que a questão do abuso de direito foi tratada com adesão a toda a argumentação vertida nos aludidos acórdãos que tratam precisamente de questões em tudo idênticas à dos presentes autos.
Também aqui se não verifica, pois, a invocada nulidade da sentença.
Importa acentuar sobre esta questão do abuso de direito que no citado Acórdão da Relação de Coimbra se consignou: “ No caso em apreço, falta notoriamente um dos requisitos essenciais para a verificação do abuso de direito nesta modalidade: o investimento na confiança. Ou seja, ainda que se considere que a ausência de alegação de tal nulidade por parte da fiadora pode ter criado na financiadora exequente a expetativa que já não o iria fazer, não é alegado por parte do exequente que, com base nessa confiança de que a executada jamais iria invocar tal nulidade, tenha a exequente desenvolvido alguma atividade ou omitido algum ato.
Trata-se de matéria de facto que teria de ser alegada por quem invoca o abuso de direito como meio de paralisar o seu exercício pela contraparte.
Como se afirma no TRP de 21-04-2016, “sendo a nulidade um vício cognoscível a todo o tempo, em que a passagem do tempo não interfere com a operatividade da omissão ocorrida, e emergindo a nulidade da atuação imputável ao financiador, cujo investimento no negócio é, afinal, contemporâneo da nulidade, dificilmente se poderá encontrar, da parte do financiador, um «investimento da confiança», decorrente da inércia da contraparte na arguição da nulidade, que justifique a proteção do financiador, em detrimento do consumidor, derrogando-se os mecanismos de proteção do consumidor à luz do padrão da boa-fé[13]””.
A figura do abuso de direito está consagrada no artigo 334.º do C. Civil nos seguintes termos:” É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Já se viu que foi estabelecido um quadro legal muito peculiar, no que respeita ao incumprimento pela parte financiadora, dos deveres em causa diferente daquele que resultaria das típicas regras gerais do incumprimento contratual. Em vez das sanções resolução do contrato e compensação indemnizatória, dita-se uma imposição mais forte: uma nulidade atípica com uma assumida posição de favorecimento do consumidor na relação contratual.
É nesta perspectiva que se tem de ver o abuso do direito, ou seja, num quadro em que a opção legislativa foi a de desequilibrar os meios de reacção ao incumprimento em favor do consumidor com vista a compensá-lo pela enorme fragilidade em que se encontra no período pré-contratual.
As modalidades do abuso de direito que aqui adequadamente se poderiam invocar: - venire contra factum proprium e a inegalidade da forma - implicam sempre que haja um investimento de confiança muito grande por parte de um contraente de que o outro nunca irá exercer o seu direito que torna ilícito esse exercício.
Ora é a própria especificidade do regime aqui analisado que desautoriza essa confiança apenas porque o consumidor pagou algumas ou até grande parte das prestações. Para que se reconheça essa fundada convicção é necessário um comportamento muito mais clamoroso, manifesto do consumidor a criar essa confiança no não exercício do seu direito, um comportamento que ultrapasse, como diz a lei, os limites da boa-fé tendo em conta as circunstâncias específicas dos contraentes.
É evidente que a situação passiva de credulidade (do que é convencido) e a posição activa de credibilidade (do que convence, persuade) são completamente díspares entre as partes neste tipo de contratos.
Como se expressou, o título executivo aqui é a livrança subscrita em branco pelos executados e o seu portador imediato é o dador do crédito. Assim, o consumidor pode opor-lhe quaisquer meios de defesa, incluindo a extinção da relação subjacente. Com efeito, nas relações imediatas, ou seja, nas relações estabelecidas entre os subscritores e o sujeito cambiário imediato, naquelas em que os sujeitos cambiários são concomitantemente os das convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser abstracta e literal. O que vale dizer que qualquer vicissitude que afecte a obrigação expressa no título cambiário afecta correspondentemente a sua valia, pelo que a extinção da relação fundamental importa a extinção da execução, conforme foi decidido.
Pelo exposto delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 19 de Maio de 2020

Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5.

Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingos