Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUEL DOMINGOS FERNANDES | ||
Descritores: | DIVÓRCIO SEM O CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE RUTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RP202501277052/24.6T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/27/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O fundamento do divórcio litigioso previsto na alínea d) do artigo 1781.º do CC traduz-se num tipo de cláusula geral, em torno do conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas. II – A rutura definitiva do casamento a que alude a mencionada alínea d) pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito sem o período temporal neles previsto, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objetiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges. III- Só a falta total (não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial. A petição inepta não se confunde com uma peça simplesmente defeituosa ou deficiente. IV- Verificando-se que a Autora apresentou articulado inicial que sofre de mera insuficiência na densificação ou concretização dos factos integradores da factie species da al. d) do artigo 1781.º do CCivil impõe-se que lhe seja endereçado convite ao seu aperfeiçoamento (cf. artigo 590.º, nº 4 do CPCivil). | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 7052/24.6T8VNG.P1-Apelação Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia-J2 Relator: Des. Dr.º Manuel Fernandes 1º Adjunto Des. Dr.ª Carla Fraga Torres 2º Adjunto Des. Dr.º Nuno Araújo Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * I - RELATÓRIO Acordam no Tribunal da Relação do Porto: AA, residente na Rua ..., ... (...), veio propor ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB, reside na Rua ..., Entrada ...27, ..., Casa ..., ..., alegando o seguinte: 1º- AA e RR contraíram casamento civil no dia 21 de agosto de 2010 sem precedência de convenção antenupcial, tudo conforme consta do assento de casamento que se junta sob forma de documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos; 2º- Do referido casamento nasceram 3 filhos, a saber: CC, DD e EE, cujo regulação das responsabilidades parentais se encontram nos autos principais deste Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia. Sucede que, 3º- AA e RR não vivem juntos desde janeiro de 2024, altura em que o RR saiu de casa não mais ali voltando. 4º- Tal rutura deveu-se a diversos desentendimentos entre o AA e RR e que levaram à quebra de confiança um no outro, encontrando-se por esse motivo comprometida a relação matrimonial. 5º- Desde então não mais viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, cessando, por esse motivo, qualquer comunhão de vida entre a AA e o RR. 6º- Não mais voltaram a viver sob o mesmo teto, comeram à mesma mesa, dormiram na mesma cama ou mantiveram entre si qualquer relacionamento de cariz sexual. 7º- A rutura conjugal é definitiva, não existindo, por parte da AA, o propósito de a restabelecer. 8º- Tal constitui fundamento de divórcio nos termos e para os efeitos do disposto no CC-1781 alínea d). 9º- A AA tem legitimidade para intentar a presente ação nos termos e para os efeitos do disposto no CC-1785-1 e o Tribunal é competente para apreciar o mesmo nos termos e para os efeitos do disposto no CC-1773-3 e CPC-72. Termos em que, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e por via disso ser decretado o divórcio entre a AA e o RR com fundamento no CC-1871 alínea d).” * Conclusos os Autos o tribunal recorrido indeferiu liminarmente a petição inicial exarando despacho do seguinte teor: “AA propôs ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB. Alega, em síntese, que as partes casaram civilmente em 21/08/2010, tendo deixado de viver juntos em janeiro de 2024, devendo-se essa rutura “a diversos desentendimentos entre a autora e o réu que levaram à quebra de confiança um no outro, encontrando-se por esse motivo comprometida a relação matrimonial”, não tendo a autora vontade de a restabelecer. Limita-se, portanto, a autora a dizer que, em razão das divergências, que não especifica de qualquer forma, levando à separação de facto do casal em janeiro de 2024, é insustentável a manutenção do vínculo matrimonial para si. Sucede que, com isto, a autora simplesmente não alicerçou de facto a causa, de modo a que pudesse integrar-se na previsão do artigo 1781.º, n.º 1, d), do Código Civil, que menciona aliás como fundamento jurídico do pedido, na parte final da sua petição. Da forma como está delineada a ação, o tribunal não logra saber que factos concretos, independentemente de culpa, motivaram a invocada rutura conjugal de modo definitivo, pois a autora, apesar de dizer que houve uma separação objetiva, e que, desde então, não existe comunhão de vida conjugal, o que se deveu a desentendimentos e quebra de confiança, nada mais aduz. Como se explica a páginas 546 de Código Civil Anotado-Livro IV-Direito da Família, coordenado por Clara Sottomayor (Almedina, 2.ª edição, 2022), «desaparecido, com o novo regime jurídico do divórcio, o fundamento do divórcio litigioso do artigo 1779.º a violação culposa dos deveres conjugais–a Lei 61/2008 introduziu como fundamento genérico de divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges quaisquer outros factos que, independentemente de culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento», porém «não [se] consagrou na lei portuguesa um regime de divórcio-repúdio ou divórcio a pedido, mas um regime combinado de divórcio constatação da rutura com divórcio-remédio.» Mais aí se diz que «embora, segundo o legislador, ninguém deva permanecer casado contra a sua vontade ou quando considerar que houve quebra do laço afetivo, há, do lado do cônjuge que não consente o divórcio, direitos e interesses legítimos a ter em conta, que não podem ser arrasados por simples ato de vontade do cônjuge que não quer continuar casado. O juiz não poderá deixar de avaliar se o cônjuge que invoca, contra o outro, factos que levem à rutura definitiva da relação matrimonial não lhes terá dado exclusivamente causa ou contribuído significativamente para a respetiva ocorrência, por aplicação dos artigos 334º, 335º e 340.º do CC e deverá pesar, por um lado, o direito ao divórcio e, por outro, situações de manifesto desequilíbrio e exagerado sacrifício dos direitos do cônjuge que não consente. Tanto mais que os efeitos pessoais e patrimoniais do divórcio afetarão quer o cônjuge que se quer divorciar quer aquele que não quer e que, na verdade, pode muito bem não ter contribuído para a rutura». Ora, no caso vertente, a autora não alegou quaisquer factos concretos e, no fundo, limita-se a fazer um pedido de divórcio sem consentimento, já que apenas alega o desentendimento pessoal, o que constitui uma circunstância puramente subjetiva que redunda, na verdade, num divórcio-repúdio. Muito embora alegue que o réu saiu de casa em janeiro de 2024, por quebra do vínculo afetivo, e que não mais tiveram convivência conjugal, não foi neste facto que fez assentar a sua vontade de se divorciar nem o seu pedido, pois para tal teria que aguardar até que decorresse um ano desde a separação de facto, como o exige a lei na alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil; a autora só baseou o seu pedido no que interpreta como o termo da relação afetiva, sem mais nada alegar de onde objetivamente se possa concluir que há rutura definitiva do casamento, o que implicaria aduzir factos sobre o seu comportamento e o do réu a esse respeito. Não basta dizer que não se quer a continuação do casamento por não haver ligação emocional; é preciso relatar objetivamente por que está rompido, e de forma definitiva. Aliás, a ser como a autora diz, que a rutura é resultante de um afastamento emocional de ambas as partes, e se até alega, instrumentalmente, que as partes deixaram de viver juntas, presumindo-se que o alegou com o objetivo de mostrar que o réu concordará com a sua perceção subjetiva a respeito do fim do casamento, não se entende sequer por que motivo não poderia o divórcio ser decretado por mútuo consentimento, na sede própria. Com efeito, a autora nem sequer invoca que o réu discorda do divórcio pretendido e que, por isso, carece do consentimento deste para justificar esta ação. Como se referiu, embora ninguém deva permanecer casado contra a sua vontade ou quando considere que houve quebra do laço afetivo, não basta pedi-lo sem qualquer fundamentação de facto, sem sequer se invocar a circunstância mínima para fundar a rutura definitiva de relação matrimonial, e que o réu a isso se opõe, assim dando causa a tal situação. Não tendo a autora arguido factualidade bastante para o pedido de divórcio sem consentimento, é manifestamente improcedente a ação, por não estar verificado o pressuposto legal previsto no aludido artigo 1781.º, d), do Código Civil. Pelo exposto, indefiro liminarmente a ação. Custas pela autora, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Fixo à causa o valor de € 30.000,01”. * Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões: 1. Por douto despacho (ref.ª 464305597), o Tribunal a quo indeferiu liminarmente a ação, alegando que a Petição Inicial carecia de factos suficientes para fundamentar o pedido de divórcio sem consentimento, não estando, assim, preenchido o pressuposto legal do artigo 1781.º, al. d), do Código Civil. 2. Conforme o artigo 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CPC, impõe-se ao juiz o dever de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões. Trata-se de um poder-dever, e não de uma faculdade discricionária. 3. Esta omissão desrespeita o dever de cooperação que vincula o juiz da causa e compromete uma tutela jurisdicional efetiva, dando prevalência às decisões formais em detrimento das decisões de mérito (princípio pro actione). 4. Desta forma, se o Tribunal a quo considerou que a petição inicial carecia de fundamentação, este deveria ter convidado a AA. a aperfeiçoar a peça processual, dando-lhe a oportunidade de suprir as insuficiências detetadas antes de suportar as consequências de uma falha processual. 5. Assim, a omissão do convite ao aperfeiçoamento acarreta a nulidade da sentença por nesta se deixarem de conhecer factos que seriam essenciais para a decisão da causa e que, a ter sido proferido oportunamente aquele despacho, para a mesma teriam sido importados. 6. Em suma, a decisão em crise viola as disposições conjugadas do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa; 6.º, 7.º, 547º e 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4 do Código do Processo Civil. * Cumprido o disposto no artigo 641.º, nº 7 do CPCivil o Réu não contra-alegou. * Corridos os vistos legais cumpre decidir. * II- FUNDAMENTOS O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil. * No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir: a)- saber se o tribunal recorrido devia ou não ter convidado a Autora a aperfeiçoar a petição inicial em vez de ter optado pelo seu indeferimento liminar. * A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A dinâmica factual a ter em consideração para a resolução da questão supra enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida. * III. O DIREITO Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir: a)- saber se o tribunal recorrido devia ou não ter convidado a Autora a aperfeiçoar a petição inicial em vez de ter optado pelo seu indeferimento liminar. Como se evidencia dos autos o tribunal recorrido face ao articulado apresentado pela Autora e supra reproduzido entendeu que não fora alegada factualidade para integrar a factie species da al. d) do artigo 1781.º do CCivil e, por esse motivo, indeferiu liminarmente a petição inicial. Deste entendimento dissente a apelante, alegando que ao tribunal recorrido se impunha que a tivesse convidado a aperfeiçoar o seu articulado. Quid iuris? Como é sabido o nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, adota a teoria da substanciação perante ou em função da qual pode definir-se causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer–cf. art.º 581.º, nº4 do CPCivil. Portanto, tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal. A causa de pedir é, assim, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe. A ideia geral e primordial-desde logo na perspetiva do julgador-no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento, “judicium”.[1] O objetivo secundário–na perspetiva das partes–é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório, daí o estatuído no nº 3 do art.º 186.º do CPivil. Acontece que, a dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial. Sob este conspecto, importa ter presente que os factos que podem enformar os articulados se podem integrar em três espécies, a saber: a)- Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção; b)- Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa; c)- Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares. Ora, apenas a falta na petição inicial dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela. Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final.[2] Como assim, pode dizer-se que, por via de regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso é de improcedência e não de ineptidão. Portanto, o que interessa, do ponto de vista da apreciação da causa de pedir, é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição. Na verdade e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que: “Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) quando (…) sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a ação naufraga”.[3] No seguimento destes ensinamentos a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido. Efetivamente, reitera-se, petição prolixa não é o mesmo que petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível. Significa, portanto, que em retas contas, só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer.[4] Nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir.[5] E este entendimento se enquadra o estatuído no citado nº 3 do art.º 186.º já citado. Na verdade, mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar. Como se diz no Ac. do STJ. de 16.12.2010, p. 942/04.4TBMGR.C1.S1[6] “A petição inicial constitui um ato processual da parte, dirigido ao tribunal, que encerra declarações de vontade do respetivo autor. Não estando, ao menos quanto à narração, sujeita a fórmulas especificamente fixadas, as declarações em causa estão, como quaisquer outras, sujeitas a interpretação (…) tendo sempre presente a sua natureza e fins em razão do processo”. É, por conseguinte, exigível um esforço interpretativo no sentido de se alcançar qual a pretensão do autor/reconvinte e as razões/fundamentos em que a alicerça. E se esta interpretação que, até certo ponto, se pode considerar restritiva no sentido da verificação do vício em dilucidação, se já assim era maioritária antes da reforma processual de 1995, maior pertinência e acuidade ganhou com esta reforma, atento o fito primordial por ela propugnado, qual seja, privilegiar a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância. Efetivamente, conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, consagrou-se como regra, que “a falta de pressupostos processuais é sanável”. Tudo de sorte a “obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efetivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio.” Sendo que o processo civil,-rectius as respetivas normas-não pode ser perspetivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: “um instrumento ou (…) mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos (…)” Aliás, a reforma de 2013 acentuou ainda mais este desiderato, impondo ao juiz uma atuação pro ativa no sentido de, se entender existir deficiência alegatória, diligenciar pelo suprimento da mesma (cf. art.ºs. 6.º e 590º n.ºs 3 e 4 do CPCivil).[7] * Postos estes breves considerandos e revertendo ao caso concreto, torna-se evidente que a petição inicial não é um modelo a seguir no que tange ao cumprimento do aludido dever de substanciação, através da alegação de factos concretos, isto é, relativos a ocorrências concretas da via real.Na verdade, e no que refere ao fundamento em que se estriba o pedido [cf. al. d) do artigo 1781.º do CCivil], o alegada pela apelante tem um cariz essencialmente vago, genérico e subjetivo: “Tal rutura deveu-se a diversos desentendimentos entre o AA e RR e que levaram à quebra de confiança um no outro, encontrando-se por esse motivo comprometida a relação matrimonial” (artigo 4º da petição inicial). O divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, conforme estatui o artigo 1781.º, Cód. Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008 de 31/10, pode ser decretado quando se verifique um dos seguintes fundamentos: a) A separação de facto por um ano consecutivo; b) Alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a vida em comum; c) A ausência, sem que do ausente haja noticias por tempo não inferior a um ano; d) Quaisquer outros factos que independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento. Nos termos desta última alínea, pode ser decretado o divórcio sempre que ocorram quaisquer outros factos [além dos previstos nas alíneas a) a c)] que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento. Por via desta disposição introduziu-se, na nossa ordem jurídica, o designado modelo de “divórcio-constatação da rutura conjugal”, inspirado na conceção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio. Tal previsão normativa configura uma facti species modelada sob o tipo de cláusula geral em torno do conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura. Assim, a aferição do factualismo relevante requer a determinação do alcance do sobredito conceito indeterminado, de modo a delinear, ainda que por contornos flexíveis, os seus parâmetros, à luz da ratio legis que lhe está subjacente. Nesta linha, tem vindo a ser entendido que a rutura definitiva do vínculo matrimonial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes. Aliás, tem-se mesmo acentuado a necessidade de um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as suas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo. Com efeito, na larga maioria dos casos, a situação de rutura do casamento manifesta-se através de práticas reiteradas que se prolongam no tempo, indiciadoras do rompimento da sociedade conjugal sem qualquer propósito de a restabelecer, importando assim que se demonstrem os traços fundamentais dessa reiteração, diferentemente do que dantes se exigia no modelo de divórcio-sanção baseado em violação culposa dos deveres conjugais. Todavia, como muito bem se explicita no acórdão do STJ, de 03/10/2013, proferido no processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1[8], enquanto que a demonstração dos casos típicos previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do CC faz presumir, iuris et de iure, a rutura definitiva do casamento, já o fundamento configurado na respetiva alínea d), sob a fórmula de cláusula geral objetiva, implica a prova efetiva dessa rutura, independentemente das circunstâncias específicas exigidas naquelas primeiras alíneas, nomeadamente o vetor de duração temporal mínima. Ora, lendo a petição inicial acima transcrita é de meridiana clareza que a apelante não concretiza suficiente factualidade objetiva que, uma vez provada, leve ao preenchimento da factie species da citada al. d). Todavia, ainda assim, alguns factos são alegados e, concretamente, os que constam dos artigos 3º, 5º e 6º da petição inicial acima transcritos: “3º- AA e RR não vivem juntos desde janeiro de 2024, altura em que o RR saiu de casa não mais ali voltando. 5º- Desde então não mais viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, cessando, por esse motivo, qualquer comunhão de vida entre a AA e o RR. 6º- Não mais voltaram a viver sob o mesmo teto, comeram à mesma mesa, dormiram na mesma cama ou mantiveram entre si qualquer relacionamento de cariz sexual”. Bom, mas dir-se-á, que tal alegação factual apenas se revelava útil no âmbito da factie species da al. a) do artigo 1781.º mas, que no caso não a assume por não estar verificado o vetor temporal aí plasmado. Com efeito, temos por seguro que o decurso temporal de um ano consecutivo da separação se apresenta como um facto constitutivo do direito a qualquer dos cônjuges requerer o divórcio sem o consentimento do outro e, como tal, esse requisito deve estar presente à data da propositura da ação e que in casu não se verifica, pois que, quando a petição inicial deu entrada-10/09/2024-apenas tinham ocorrido cerca de 10 meses de separação (cf. artigo 3º da petição inicial). Assim, o prazo de um ano deve, via de regra, já ter decorrido à data da propositura da ação de divórcio (que coincidirá com a receção da correspondente petição inicial na secretaria do tribunal, nos termos do art.º 259.º, n.º 1, do CPCivil), porquanto os pressupostos do divórcio devem estar preenchidos nesta data e não na da decisão. Acontece que, no caso concreto e estribando a apelante a causa de pedir na cita al. d) do artigo 1781.º do CPCivil, o decurso do prazo de um ano não desempenha a função de facto constitutivo do direito que o autor pretende exercer nesta ação, o direito ao divórcio; no contexto da causa de pedir enunciada na al. d) do artigo 1781º, o tempo ou a duração desses factos releva como elemento de prova da cessação duradoura e irreversível da comunhão conjugal, podendo e devendo ser considerada pelo tribunal como factos complementares dos facto essenciais. Aliás, importa, enfatizar que, como vem sendo entendido[9], a rutura definitiva do casamento a que alude a mencionada alínea d) pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito, sem o período temporal neles previsto, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objetiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges. Mas perante a factualidade vertida na petição inicial supratranscrita será, como foi decidido, que estamos perante uma petição inicial inepta? A resposta, salvo o devido respeito por diferente opinião, é negativa. Desde logo, a petição formula em termos claros o pedido: decretamento do divórcio entre Autora e Réu. Depois, e para além do que atrás se deixou referido em relação aos artigos 3º, 5º e 6º, é certo que o artigo 4º da referida peça têm um cariz, essencialmente, vago e subjetivo, mas ainda assim nele se contém algum substrato factual quando alude aos “diversos desentendimentos entre Autor a e Réu”, sendo que, as expressões “quebra de confiança um no outro” e “comprometida a relação matrimonial”, não obstante tenham uma carga subjetiva, isto é, sejam realidades de natureza psicológica, podem também integrar realidades de facto.[10] Destarte o que se verifica, salvo melhor opinião, é uma mera insuficiência na densificação ou concretização do facto alegado no artigo 4º da petição inicial, adequada à fisionomia do litígio e que, por assim ser, não gera o vício de ineptidão. * Como assim, impunha-se ao tribunal recorrido que tivesse formulado à apelante convite ao aperfeiçoamento do respetivo articulado nos moldes enunciados no artigo 590.º, nº 4 do CPCivil e, concretamente, para especificar e concretizar factualmente em que se traduziram, a final, os referidos desentendimentos entre o casal que levaram à rutura da relação e ao consequente abandono do lar conjugal por banda do Réu. * Procedem, assim, em parte as conclusões formuladas pela apelante e, com elas o respetivo recurso. * IV-DECISÃO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente e, consequentemente, revogando a decisão recorrida deverá o tribunal recorrido formular despacho que convide a apelante a apresentar novo articulado onde supra as insuficiências e imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada, nos termos acima referidos. * Custas da apelação pela Autora apelante que do julgamento do recurso tirou proveito (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).* Porto, 2025/1/27. Dr.º Manuel Domingos Fernandes Dr.ª Carla Fraga Torres Dr.º Nuno Araújo ________________________________ |