Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
263/23.3T9PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: BURLA RELATIVA A TRABALHO OU EMPREGO
ART.º 222 DO CÓDIGO PENAL
ERRO OU ENGANO ASTUCIOSO
Nº do Documento: RP20251112263/23.3T9PNF.P1
Data do Acordão: 11/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As razões que terão norteado o legislador a tipificar o crime de burla relativa a trabalho ou emprego previsto e punido pelo art. 222 do CP terão sido as condições infra-humanas a que algumas pessoas são sujeitas depois de aceitarem promessas de emprego em locais distantes o que coloca as vítimas em situação de especial fragilidade.
II - Este crime é de burla e por isso o aliciamento ou a promessa tem de conter algo de falso ou enganoso que leve a vítima a aceitar o que lhe é proposto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 263/23.3T9PNF.P1

1.Relatório
No processo nº263/23.3T9PNF do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Instrução Criminal de Penafiel - Juiz 1, na sequência de Instrução requerida pelo arguido AA, foi proferido em 19/12/2024 despacho de não pronúncia relativamente à prática de um crime de burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punido, pelo artigo 222 nº1 do Código Penal que lhe fora imputado na acusação pública.
Inconformado veio o assistente BB interpor o presente recurso, o qual após convite a aperfeiçoamento tem as seguintes conclusões:
«1- Nos autos foi proferida acusação pública imputando ao arguido a prática de um crime de burla relativa ao trabalho ou emprego p.p. pelo art.222º nº1do C.P. por não se conformar o Arguido requereu abertura de instrução, que culminou com o despacho de não pronúncia, ora recorrido.
2- Durante a instrução, não foram realizadas quaisquer diligencias de prova que inferissem o constante da douta acusação publica, não obstante entendeu o tribunal a quo (na nossa modesta opinião e salvo o devido respeito, mal) como suficiente para proferir um despacho de não pronuncia.
3- O despacho de não pronúncia proferido no âmbito dos presentes autos viola a primeira parte do n.º 1 do art. 308.º do C.P.P., na medida em que existindo indícios suficientes da prática do crime de Burla relativa a trabalho ou emprego, o arguido deveria ter sido pronunciado pelos mesmos, enviando-se o processo para a fase de julgamento.
4- Resulta, sobejamente da prova recolhida em inquérito conforme prova documental e testemunhal constante da douta acusação pública cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido que:
a) Em 22-05-2016, o arguido ofereceu trabalho ao assistente para este ir trabalhar numa obra na Bélgica, por conta dele, como ferrageiro, e gruísta, a troco de 2.050,00€ por mês, aumentando mais tarde para 2.200,00€ mensais.
b) Aliciado por esta oferta de trabalho do arguido, o assistente aceitou não tendo sido o contrato de trabalho reduzido a escrito e, assim sendo, viajou para a Bélgica e começou a trabalhar para o arguido.
c) De facto, desde 2016 até 2022, o assistente dormiu nos contentores da empresa do arguido, trabalhou cerca de 11 horas por dia, comeu no refeitório e os transportes eram feitos numa carrinha do arguido de 9 lugares.
d) O arguido nunca entregou ao assistente qualquer contrato de trabalho escrito, nem qualquer recibo de vencimento, fazendo os pagamentos mensais da remuneração por transferência bancaria, mas sem nunca enviar qualquer recibo de vencimento, pelo que o assistente desconhecia as parcelas constantes dos mesmos (remuneração base, subsídios e outros).
e) Resulta ainda da prova documental dos autos de inquérito, que no dia 08-09-2022, pelo arguido, foi entregue, ao assistente, uma carta de alegado despedimento, assinada pelo arguido, invocando o período experimental, apesar do assistente trabalhar para o arguido sempre nas mesmas circunstâncias de tempo modo e lugar, desde o ano de 2016, tudo como melhor consta da motivação supra cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5- Desde 2016 a 2022, o assistente trabalhou sob as ordens, direção e fiscalização do arguido e na sua inteira dependência económica, tendo feito com zelo e diligência, sem nunca lhe ter sido entregue contrato de trabalho; nem recibos de vencimento, o que fez com que o mesmo não tivesse conhecimento dos descontos para a segurança social estarem a ser feitos pelo ordenado mínimo nacional, pois por esse ordenado o assistente não deixaria a sua família e país para trabalhar na Bélgica.
6- O arguido, sem o conhecimento, nem o consentimento e contra a vontade do assistente, transmitiu o seu vinculo contratual de empresa para empresa, sem dar conhecimento a este, com a nítida intenção de poder posteriormente utilizar a “estratégia” de despedimento, como que este estivesse no período experimental (apesar de trabalhar para o arguido desde 2016), fazendo com que o assistente não tivesse antiguidade em qualquer das empresas, não podendo nunca ser efetivo, e perdendo com isso todos os seus direito indemnizatórios advindos da sua antiguidade a trabalhar sempre nos mesmos moldes para o arguido.
7- O assistente sentiu-se enganado, pois, trabalhava para o arguido AA desde 2016, não podia estar no período experimental, durante todos os anos, o seu patrão sempre foi o arguido AA, quando foi à Segurança Social para se inscrever como desempregado, verificou que tinha Descontos por várias empresas, e só pelo Ordenado Mínimo Português, conforme documentação constante do inquérito.
8- Sentiu-se enganado, defraudado, e com esta atitude teve sérios e graves prejuízos, não recebeu os seus Créditos Salariais, advindos da existência do contrato de trabalho e da sua cessação, e o tribunal a quo, decidiu não pronunciar o arguido, frustrando o seu direito em concreto que espera seja visto, apreciado e reparado, quando apresenta uma queixa, por se sentir enganado, ludibriado e prejudicado, tivesse o tribunal a quo ponderado toda a prova constante do inquérito e facilmente concluiria pela pronúncia do arguido nos termos constantes da douta acusação publica.
9- Após muita insistência, conseguiu obter dois recibos, de Pessoas Coletivas distintas, mas em que a apresentação, formato e valores são os mesmos, o assistente sente-se enganado, porque, o seu vinculo laboral foi sendo sucessivamente transmitido sem o seu conhecimento ou consentimento e em seu prejuízo.
10- Era o arguido AA o seu patrão, mas não cumpriu o prometido, pois os descontos foram efetuados pelo salário mínimo, por diversas empresas, tendo este perdido a antiguidade, pois nada recebeu ao transitar de empresa em empresa, todas elas do arguido ou de pessoas com relações pessoais e/ou familiares com este.
11- Atuou o arguido, em todas as condutas supra – referidas, conjuntamente e previamente planeadas com os gerentes das outras empresas que não sabe identificar, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, com as sobreditas intenções, bem sabendo, que aquelas eram proibidas e punidas por lei, mas, apesar de tal perfeita consciência, decidiu levá-las a cabo, visto o intento que pretendia, e aliás logrou alcançar, assim, ao contrário do constante do despacho recorrido, o assistente só veio a verificar que os descontos na segurança social, efetuados pelo arguido fora sempre feitos pelo ordenado mínimo, quando se dirigiu à segurança social para se inscrever como desempregado e aí verificou que:
12- Os descontos foram sempre efetuados pelo ordenado mínimo, vigente em Portugal, não obstante o mesmo estivesse na Bélgica, o que, alem de não corresponder à verdade, trouxe ao assistente sérios e graves prejuízos no cálculo dos créditos salariais, subsídios de férias e de Natal, trabalho suplementar e indeminização ou compensação e em todos os créditos advindos da relação laboral e da sua cessação.
13- O arguido sabia que não podia, por meio aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro causar prejuízo ao assistente, o que efetivamente quis e causou, sendo que, alem dos descontos a segurança social, que serão tidos em conta para o pagamento de subsídios sociais e reforma, também nos créditos que o mesmo tem direito saiu, efetivamente, prejudicado em valor ainda não concretamente apurado, mas muito superior a 20.000,00€.
14- O arguido sabia e quis adotar tal comportamento enganoso e fê-lo com a especifica intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, pelo menos idêntico ao prejuízo que causou ao assistente.
15- Agiu sempre o arguido de forma dolosa, com a intenção de prejudicar, como alias prejudicou, o assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, não obstante, tal conhecimento, logrou concretizar tais factos.
16- Assim, ao contrário da decisão recorrida, cometeu o arguido, na forma consumada, um crime de burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punido no artigo 222º nº1 do Código Penal, motivos estes pelos quais se Discorda da douta decisão recorrida que se entende que padece de nulidade e irregularidade, por violação da lei.
17- Deve assim ser reconhecida e declarada a nulidade/irregularidade do despacho da decisão recorrida que aqui está arguida devendo ser reconhecida e determinada a sua reparação, consequentemente substituindo-se a decisão recorrida por outra que confirme a acusação publica deduzida e pronuncie o arguido pelo crime de burla relativa a trabalho ou emprego, nos termos supra defendidos, nesta peça recursória, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
18- A decisão instrutória, não considerou os factos alegados e a prova constante no inquérito, nomeadamente, nem as declarações do Assistente nem das Testemunhas inquiridas, não valorou a prova documental junta aos autos de inquérito que é de molde a comprovar a existência de fortes indícios da prática do crime perpetrado pelo arguido.
19- A Decisão recorrida considerou provados, os factos alegados no Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo arguido, sem a produção de qualquer outra prova, apesar de durante o inquérito ter sido produzida prova testemunhal e documental que comprovam a prática dos factos, prova que foi julgada suficiente para que o titular do inquérito deduzisse, despacho final com Arquivamento e Acusação Publica.
20- Não considerou, nem valorou a Decisão Recorrida os factos e as provas que tinham sido recolhidas no inquérito, as testemunhas, foram inquiridas no inquérito, mas o seu depoimento foi omitido e/ou desvalorizado durante toda a decisão recorrida, os factos aí alegados, não foram considerados provados, não obstante as testemunhas arroladas e inquiridas os terem confirmado, e não ter sido produzida qualquer prova em sentido contrário em sede de instrução, tendo o tribunal a quo apenas valorado o Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, sem a produção de qualquer outra prova, não tendo sido inquirida qualquer testemunha em sede de instrução.
21- Na decisão recorrida, com o devido respeito, são omitidos os factos constante do inquérito, alegados pelo assistente, corroborados pelas testemunhas inquiridas no inquérito com conhecimento direto e presencial dos factos, tal omissão, de pronúncia, acarreta a nulidade do despacho recorrido, pois é de tal modo grave, que afecta as garantias de defesa do assistente constitucionalmente consagradas e bem assim o acesso ao direito e à justiça, elementar num estado de direito democrático.
22- A falta de fundamentação do despacho recorrido, e a omissão dos factos constantes do inquérito, afectam o direito de defesa, o que leva à nulidade da decisão recorrida, artº. 374, nº. 1, al. d), do C.P.P. e artº. 379, nº. 1, al. a), do C.P.P., consubstanciando também a nulidade prevista na al. a), do nº. 1, do artº. 379, por referência ao artº. 374, nº. 2, ambos do C.P.P. – por falta de referência expressa aos factos constantes do inquérito, leva à necessária conclusão de que tais factos não foram, sequer objecto de decisão, houve, quanto a eles omissão de pronúncia.
23- O que, face à sua relevância, implica também a nulidade do artº. 379, nº. 1, al. c) do C.P.P., “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
24- Pois, o artº. 374, do C.P.P., impõe expressamente ao julgador a indicação sumária das conclusões, o que não foi cumprido no caso sub – Júdice, devendo a douta decisão recorrida ser declarada nula e substituída por outra que pronuncie o arguido nos termos constantes da douta acusação publica e consequentemente o processo reenviado para julgamento, declarando nulo todos os atos posteriores (artºs. 374 e 379, do C.P.P.).
25- Salvo o devido respeito, entende-se que a decisão recorrida não fez um exame crítico das provas que permitiram formar a sua “convicção”, violando o disposto no artº 374, nº 2, do C.P.P. o que leva à nulidade da decisão, nos termos do artº 379, nº 1, al. a), do C.P.P., sendo que nos termos do artº 355 do C.P.P.
26- O recorrente foi seriamente afetado no seu direito de acesso ao direito, tendo sido violado o disposto no artº 32, nºs 1 e 5, da C.R.P. e o artº 97, nº 4, do C.P.P., já que o tribunal fez errada interpretação da norma constante do artº 97, nº 4, do C.P.P., interpretação essa violadora dos princípios consignados nos artºs 32, nº 1, e 205, da C.R.P., o que aqui se invoca, também com o objetivo de dar cumprimento ao disposto no artº 72, da Lei do Tribunal Constitucional.
27- Portanto, a convição do julgador deve ser objetiva e motivada de forma lógica e racional, o que, salvo o devido respeito, não acontece na decisão recorrida, entendemos, pois, que a livre convição do julgador, estribada no artº 127, do C.P.P., carece da devida fundamentação, que baliza necessariamente a legalização de tal convição, nunca esta podendo ser ditada ao “arrepio” da prova produzida.
28- No caso concreto, o tribunal recorrido não valorou objectivamente a prova que é bastante e suficiente para se fazer um juízo de prognose mais favorável à condenação do que à absolvição, cometendo uma nulidade, por falta de fundamentação, nulidade que é insanável porque afecta a validade da decisão recorrida, devendo ser declarada com todas as legais consequências.
29- Está assim este despacho recorrido ferido de nulidade/irregularidade, que se arguiu, no presente recurso, devendo esta decisão ser reparada e substituída por outra que pronuncie o arguido com todas as legais consequências.
30- Ao não pronunciar o arguido, em autoria material na forma consumada pela prática de um crime de Burla relativa a trabalho ou emprego p. e. p pelo art.222 nº 1 do Código Penal, face aos factos alegados na acusação pública, a que o assistente aderiu integralmente, violou o Tribunal a quo o disposto no art. 308.º n.º 1, do Código Processo Penal.
31- O despacho de não pronúncia, é omisso de fundamentação, não descreveu nem especificou os factos da acusação pública a que o assistente aderiu integralmente, apenas valorou o RAI, que considerou não suficientemente indiciados, não especificando os motivos de facto e de direito da decisão, proferindo despacho de não pronuncia, desrespeitando assim, os art. 205º, nº 1, da C.R.P. e 97º, nº, 1, al. b), e nº 5, 308º, nº 2 e 283º, do C.P.P., sendo nulo ou, tornando a decisão inválida, nos termos do art. 122º, nº 1, do C.P.P., obviamente que além de tudo o já supra exposto, também este vício dificultou o recurso. O despacho de não pronúncia é um acto decisório. Decidindo-se nele, in casu, que o crime sobre o qual houve instrução não será objecto de julgamento, decorre da conjugação do CPP e da CRP o dever de fundamentação, o art. 205º, nº 1, da Constituição impõe a fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, e este dever constitucional de fundamentação está plasmado do art. 97º, nº 5, do C.P.P. que determina que «os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
32- Se os actos decisórios são sempre fundamentados, integrando a fundamentação os motivos de facto e de direito da decisão, e se o despacho de não pronúncia é um despacho decisório, então este despacho terá que conter as razões de facto e de direito da decisão, a fim de ser sindicável por Tribunal de Recurso, para além disso, o art. 308º, nº 2, do C.P.P., cuja epígrafe é “despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, dispõe que lhe é «correspondentemente aplicável … o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 283º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1 do artigo anterior», o despacho de não pronúncia transitado em julgado forma caso julgado dentro do processo em que foi proferido, ou seja, forma caso julgado formal, e uma vez que é decisão de mérito, por incidir sobre a relação material controvertida, também forma caso julgado material, isto é, impõe-se fora do processo em que foi proferido. Decidido que seja, por decisão transitada em julgado, não estar indiciada a prática, por um concreto indivíduo, dos factos que lhe foram imputados na acusação, ele não mais pode ser acusado/julgado pela prática de tais factos, o que prejudica séria e gravemente os interesses do Assistente ora Recorrente.
33- Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogado o douto despacho de não pronúncia, o qual deverá ser substituído por um despacho de pronúncia da arguida.
34- A decisão recorrida, para além de outras normas e princípios, violou os artºs 308; 312; 313; 332; 119; 355; 358; 359; 374; 379; 127; 163; 410 nº 2; 412; 426; 426-A, todos do C.P.P., violou os artºs 14; 22, nº 1 e nº 2, al. c); 23, nºs 1 e 2, 40 nº 2; 43; 49; 50; 68; 71; 73, nº 1, als. a) e c); 77; 72, todos do C.P., e ainda o artº 269, do C.P.C., e ainda o artº 222º do CP; violou também, os princípios da Legalidade; da Acusação; da Investigação; do Contraditório; da vontade do prosseguimento criminal; violação do acesso ao direito (artº 32 nº 2 da C.R.P.), com a interpretação dada ao artº 97 nº 4 do C.P.P., violou os princípios consignados no artº 32, nº 1, e 5 e artº 205 da C.R.P., violação que aqui se invoca, também com o objetivo de dar cumprimento ao disposto no artº 72 da Lei do Tribunal Constitucional.»
Conclui pedindo que na procedência do presente recurso seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que pronuncie o arguido AA, pela prática de um crime de Burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo artigo 222 nº1 do Código Penal.
O recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 4/02/2025.
Em primeira instância o MP veio responder ao recurso formulando as seguintes conclusões:
«1. Por decisão instrutória de fls. 430 a 435. cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, datada de 19/12/2024. o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal "a quo" decidiu não pronunciar o Arguido pela alegada prática de um crime burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punível pelo artigo 222.°. n.° 1. do Código Penal, que lhe havia sido imputado pelo Ministério Público na acusação pública de fls. 266 a 268 cujo teor aqui também damos por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, que foi acompanhada pelo Assistente/Recorrente.
2. Não tendo o Ministério Público recorrido da decisão instrutória, a presente resposta é no sentido da concordância com tal decisão.
3. Inconformado com a decisão instrutória de não pronúncia o Assistente/Recorrente atravessou nos autos o recurso cujas alegações se encontram a fls. 446 a 460 cujo teor aqui também damos por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
4. Lidas e relidas as 59 (cinquenta e nove) "conclusões" formuladas não vislumbramos que se verifique nenhuma das alegadas "irregularidades" ou "nulidades" invocadas pelo Assistente/Recorrente.
5. O que o mesmo pretende é fazer valer a sua interpretação da prova indiciária, obviamente nada isenta, porque interessada, em detrimento da apreciação correta efetuada pelo Tribunal "a quo". Veja-se que resulta da aliás douta, decisão instrutória, que o Tribunal "a quo" fundamentou de forma clara e perfeitamente escrutinável o modo como formou a sua convicção, o que fez com integral respeito pelo princípio da livre apreciação da prova.
6. Acresce que também consideramos correta a decisão na parte em que o Tribunal "a quo" fez a análise dos elementos constitutivos, objetivos e subjetivos do tipo do crime em causa nos autos, e conclui que não se descortina que se mostrem preenchidos, motivo pelo que foi em síntese apertada, decidida a não pronúncia do arguido.
7. Não se mostram violados os normativos legais indicados pelo Assistente/Recorrente, nem quaisquer outros que cumpra conhecer.
Pelo exposto, bem decidiu o Tribunal "a quo” ao não pronunciar o Arguido, devendo a decisão recorrida ser mantida e consequentemente, ser negado provimento ao recurso.»
O arguido também respondeu ao recurso tendo igualmente sustentado a improcedência do recurso, alegando em síntese, que a acusação deduzida nos autos é manifestamente infundada, porquanto nunca aliciou o assistente com uma proposta de trabalho enganosa, sujeitando-o a condições laborais em estado estrangeiro, degradantes, desumanas e indignas.
Nesta Relação a Sr.ª Procuradora-geral-adjunta emitiu o seguinte parecer:
«Cumpre apreciar nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416º, nº 1 do CPP.
Analisada a decisão recorrida não se vislumbra a violação de comando legal tipificada como nulidade ou qualquer outro dos vícios invocados pelo recorrente.
A decisão mostra-se devidamente fundamentada de facto e de direito demonstrando sem equívocos ou descontinuidades o raciocínio lógico seguido pelo tribunal para a decisão que proferiu. Isto porque o Tribunal, após análise dos meios de prova, do texto da acusação e do requerimento de abertura de instrução, proferiu decisão de não pronúncia que se mostra adequadamente fundamentada assim permitindo aos seus destinatários conhecer os fundamentos de facto e de direito da decisão.
E, tudo analisado, também se nos afigura inviável a prolação de despacho de pronúncia.
Nos termos do artigo 286º, nº 1 do CPP a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
E por força do disposto no artigo 308º, nº 1 do mesmo código só há lugar a despacho de pronúncia se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Ora, de acordo com o art. 222.º, n.º 1, do Código Penal, inserido no Titulo II sob a epígrafe “Dos crimes contra o património”, pratica o crime de burla relativa a trabalho ou emprego, «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, (…)».
Os elementos típicos deste crime correspondem, grosso modo, aos do tipo fundamental de burla constantes do art. 217.º do Código Penal, apenas com a especialidade de a astúcia, do erro ou engano ter que incidir sobre um facto específico, que é o aliciamento ou promessa de trabalho no estrangeiro.
Constituem assim elementos típicos do crime de burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo art. 222º, nº 1 do Código Penal que ao arguido foi imputado na acusação pública:
a) O erro ou engano, astuciosamente provocado;
b) Que tal erro incida especificamente sobre uma promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro;
c) A determinação de outrem à prática de actos que lhe causem a si ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
d) A intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo;
e) A existência de prejuízo patrimonial
f) A atuação dolosa e o conhecimento da proibição legal da conduta.
Ora, a propósito do primeiro dos apontados elementos da tipicidade, a acusação apenas consigna o seguinte:
Em 22-05-2016, o arguido ofereceu ao assistente para este ir trabalhar numa obra na Bélgica, por conta dele, como ferrageiro e gruísta, a troco de 2.050 € por mês, aumentando mais tarde para 2.200 € mensais.
Assim, a propósito desta oferta de trabalho, nada mais se concretizou nem apurou relativamente às condições de trabalho e não há notícia de que o salário prometido não tenha sido efetivamente pago. Não é assim possível afirmar o erro, o engano ou a astúcia na promessa, no aliciamento para a prestação de trabalho no estrangeiro.
O que, a seguir, se concretizou foi que:
Desde 2016 até 2022, o assistente dormiu nos contentores da empresa do arguido, trabalhou cerca de 11 horas por dia, comeu no refeitório e os transportes eram feitos numa carrinha de 9 lugares, mas desconhece-se se o aliciamento contemplou circunstâncias diversas.
A não entrega do contrato de trabalho, nem dos recibos de vencimento, a carta de despedimento, invocando o período experimental e a circunstância dos descontos para a segurança social, efetuados pelo arguido, terem sido realizados pelo ordenado mínimo, são circunstâncias valoráveis em sede laboral e fiscal, mas, porque não concretizadas nem demonstradas como diversas do aliciamento para o trabalho no estrangeiro e integrantes do erro ou engano determinante da aceitação do trabalho e da deslocação para o estrangeiro, não são suficientes para afirmar o preenchimento do apontado elemento da tipicidade criminosa. É que e para além do mais, para o preenchimento do tipo de crime de burla em discussão sempre seria necessário que a violação de um qualquer dos deveres da entidade patronal do assistente, estivesse abrangida no objeto de promessa enganosa determinante da aceitação do emprego e ser, portanto, contemporânea das negociações e da intenção que a elas presidiu por parte do arguido, tudo com o propósito de causar ao ofendido um prejuízo patrimonial. Ora, em função dos concretos contornos do contrato, expostos na factualidade objetiva descrita na acusação e do apurado até ao termo da instrução, não se configura que o arguido tenha astuciosamente criado um embuste adequado à finalidade de convencer o Assistente a deslocar-se para trabalhar no estrangeiro. E o tipo de crime, tal como a burla genérica, também exige o nexo de causalidade, concretamente que o erro ou engano, o aliciamento levado a cabo pelo agente seja determinante e adequado à efetiva verificação do prejuízo patrimonial, tudo em conformidade com a teoria da adequação.
Parece-nos, assim, que não é possível afirmar nem que a acusação contém todos os elementos típicos do crime de burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo artigo 222º, nº 1 do Código Penal, nem que até ao termo da instrução se tenham recolhido indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.»
Por todo o exposto emite parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foram apresentadas respostas ao parecer.
2. Fundamentação
A) Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir:
Por entendermos ser relevante passamos a transcrever o teor da acusação deduzida contra o arguido:
« Em 22-05-2016, o arguido ofereceu ao assistente para este ir trabalhar numa obra na Bélgica, por conta dele, como ferrageiro e gruísta, a troco de 2.050 € por mês, aumentando mais tarde para 2.200 € mensais.
Aliciado por esta oferta de trabalho do arguido, o assistente, residente neste concelho e comarca, aceitou e, assim sendo, viajou para Bélgica e começou a trabalhar para o arguido.
Todavia, desde 2016 até 2022, o assistente dormiu nos contentores da empresa do arguido, trabalhou cerca de 11 horas por dia, comeu no refeitório e os transportes eram feitos numa carrinha de 9 lugares.
O arguido nunca entregou ao assistente o contrato de trabalho, nem os recibos de vencimento.
No dia 08-09-2022, foi entregue, ao assistente, uma carta despedimento, invocando o período experimental, apesar do assistente trabalhar para o arguido, desde 2016.
Mais tarde, o assistente veio a verificar que os descontos à segurança social, efetuados pelo arguido, foram sempre pelo ordenado mínimo, o que, além de não corresponder à verdade, trouxe ao assistente prejuízos em créditos salariais, subsídios de férias e de natal e trabalho suplementar.
O arguido sabia que não podia, por meio de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, causou um prejuízo patrimonial ao assistente num valor ainda não concretamente apurado.
O arguido sabia e quis adotar tal comportamento enganoso e com a específica intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo, ao mesmo com a intenção de prejudicar o assistente.
Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, o arguido cometeu, na forma consumada, um crime de burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punido pelo artigo 222º, nº 1 do Código Penal.
Prova:
Documental:
1- Queixa.
2- Carta de despedimento.
3- Informação da segurança social.
4- Recibos de vencimento.
Assistente:
1- BB, id. a fls. 51.
Testemunhal:
1- CC, id. a fls. 81.
2- DD, id. a fls. 100.
3- EE, id. a fls. 103.
4- FF, id. a fls. 106.»
Por sua vez é o seguinte o teor do despacho recorrido na parte relevante para a decisão a proferir.
«Enquadramento factual e jurídico.
Como decorre dos autos, o Ministério Público imputa ao arguido a factualidade seguinte:
“…AA, titular do CC Nº ... e residente na Av. ..., ... ...,
Porquanto:
Em 22-05-2016, o arguido ofereceu ao assistente para este ir trabalhar numa obra na Bélgica, por conta dele, como ferrageiro e gruísta, a troco de 2.050 € por mês, aumentando mais tarde para 2.200 € mensais.
Aliciado por esta oferta de trabalho do arguido, o assistente, residente neste concelho e comarca, aceitou e, assim sendo, viajou para Bélgica e começou a trabalhar para o arguido.
Todavia, desde 2016 até 2022, o assistente dormiu nos contentores da empresa do arguido, trabalhou cerca de 11 horas por dia, comeu no refeitório e os transportes eram feitos numa carrinha de 9 lugares.
O arguido nunca entregou ao assistente o contrato de trabalho, nem os recibos de vencimento.
No dia 08-09-2022, foi entregue, ao assistente, uma carta despedimento, invocando o período experimental, apesar do assistente trabalhar para o arguido, desde 2016.
Mais tarde, o assistente veio a verificar que os descontos à segurança social, efetuados pelo arguido, foram sempre pelo ordenado mínimo, o que, além de não corresponder à verdade, trouxe ao assistente prejuízos em créditos salariais, subsídios de férias e de natal e trabalho suplementar.
O arguido sabia que não podia, por meio de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, causou um prejuízo patrimonial ao assistente num valor ainda não concretamente apurado.
O arguido sabia e quis adotar tal comportamento enganoso e com a específica intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo, ao mesmo com a intenção de prejudicar o assistente.
Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, o arguido cometeu, na forma consumada, um crime de burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punido pelo artigo 222º, nº 1 do Código Penal.”
Com vista a sustentar a referida factualidade, o Ministério Público baseia-se na prova indicada de fls. 268, no caso em:
Documental:
1- Queixa.
2- Carta de despedimento.
3- Informação da segurança social.
4- Recibos de vencimento.
Assistente:
1- BB, id. a fls. 51.
Testemunhal:
1- CC, id. a fls. 81.
2- DD, id. a fls. 100.
3- EE, id. a fls. 103.
4- FF, id. a fls. 106.
Face ao teor do requerimento de abertura da instrução, para melhor compreensão dos factos e enquadramento jurídico, impõe-se, antes de mais, uma breve análise ao tipo de ilícito em causa – no caso o crime de burla.
Dispõe o 217º do CP, de que pratica o citado ilícito: “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”. (artigo 217º C. Penal).
Neste ilícito, a partir do projeto de enriquecimento ilegítimo que o enforma, o agente logra, através dos factos que astuciosamente cria e/ou invoca, dar à falsidade a aparência de verdade, e logra depois, induzido o erro, surpreender, pela destreza, a boa-fé da vítima convencendo-a à prática de ato de que, para a própria ou para terceiro, advirá prejuízo.
O tipo objetivo consiste então na determinação de uma pessoa, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou, à prática de atos que causem prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a um terceiro.
Neste sentido, diz-se que a conduta enganosa do agente deve ser adequada à prática de certos atos pelo burlado e estes atos do burlado devem ser causa adequada da verificação do prejuízo patrimonial do ofendido, verificando-se um duplo nexo de causalidade.
O bem jurídico protegido é o património de outra pessoa, definindo-se o elemento típico do prejuízo patrimonial em função do bem jurídico do património: é prejuízo patrimonial todo o empobrecimento. ([A compreender, «para efeitos penais, numa conceção jurídico-económica, todos os direitos, as posições jurídicas, e as expectativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica.» Pinto de Albuquerque- Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, dezembro de 2008, pág. 598.])
Acolhe-se, neste particular, o conceito objetivo-individual de dano patrimonial, de acordo com o qual “o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objetivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta” ([A.M.Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, Págs. 283, 284. ]).
Por seu lado, o crime de burla relativa a trabalho ou emprego, prevê no artº 222º nº 1 do cód. penal que, “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
Decorrem desta norma os seguintes elementos típicos do crime:
a) O erro ou engano, astuciosamente provocado;
b) Que tal erro incida especificamente sobre uma promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro;
c) A determinação de outrem à prática de atos que lhe causem a si ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
d) A intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo;
e) A existência de prejuízo patrimonial
f) O conhecer a proibição legal da conduta e ainda assim a querer.
Basicamente contém os mesmos elementos do tipo fundamental do crime de burla constante no artº 217º do cód. penal, excetuando-se apenas o facto do erro ou engano incidir sobre um facto específico – que é o aliciamento ou promessa de trabalho no estrangeiro.
Com a citada norma, o legislador quis dar relevância específica a situações desta natureza, correspondendo a anseios de natureza social e políticas criminais de impacto, ainda que estas possam alimentar a ideia de sobreposição normativa.
Como decorre da respetiva exposição de motivos, a autonomização deste tipo de burla “pretendeu dar resposta às condições infra-humanas a que, depois de aliciadas para trabalhar no estrangeiro, algumas pessoas aí são sujeitas”, (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 335 e seguintes).
Pois bem.
Analisados os autos, constatam-se as seguintes questões:
- a primeira, é de que os elementos do inquérito inculcam uma realidade laboral muito mais vasta/complexa do que aquela que é descrita na acusação pública, na medida que nenhuma referencia se faz à intervenção ou participação nos factos das sociedades A..., Lda, B..., Lda, C..., Lda, D... –Unipessoal, Lda, E..., Lda e F... Unipessoal, Lda, tendo ou não como seu representante legal o aqui arguido, AA e como trabalhador, o assistente, BB, quando se sabe que existem, por parte destas sociedades, registos/declarações de vencimentos perante a segurança social.
Repare-se, a titulo de exemplo, que o ofendido/assistente, aquando das suas declarações de fls. 51/52, refere que foi contratado pelo arguido, AA, para prestar trabalho em obra na Bélgica, com ordenado mensal de 2050€, que que posteriormente seria aumentado para 2200,00€.
Mais referiu: “foi contratado como armador de ferro, tendo permanecido no período que se encontrou na Bélgica sempre na mesma obra, sempre com o mesmo patrão. Que tinha sido acordado com o mesmo que este iria ser contratado como trabalhador da empresa A..., Lda, desconhecendo que estava constantemente a mudar de empresa.
Em suma, ao contrário do que se refere na acusação pública, o ofendido/assistente, BB, sabia que o arguido, AA, o contratou para trabalhar por conta e ordem da sociedade “A...”, e não por sua conta, ou seja, como empresário em nome individual.
Uma coisa é o trabalhador tratar o arguido como alegado “patrão” e outra bem diferente e distinta é a sua entidade patronal ser na realidade uma sociedade, com personalidade jurídica distinta da pessoa individual.
Por seu lado, em relação às alegadas mudanças de empresa (transmissão da posição contratual), a acusação pública não descreve os seus termos ou circunstancias, nem a participação do arguido nesses eventuais atos.
Nada se apurou, junto destas empresas, em relação à razão de ser de descontos efetuados ao ofendido ao longo de vários anos, ou seja, entre 2016 e 2022.
Logo, nada se dizendo na acusação publica, não se podem extrair conclusões em relação à atuação do arguido ou de qualquer empresa que alegadamente representou ao longos dos autos, mormente entre o ano de 2016 e 2022, pois inexiste a descrição de factos a esse respeito.
Por sua vez, a factualidade da acusação pública remete-nos para outra realidade, ou seja, de que o ofendido foi contratado por conta do arguido (não de uma sociedade), a troco da quantia de 2050,00€ por mês, e mais tarde para 2.200,00€.
Em relação a esta referência de vencimentos, nada se diz em relação a pagamento de subsidio de alimentação, ajudas de custo ao longo do tempo, subsidio de férias/natal e descontos para a segurança social.
Logo, neste particular, se atentarmos à prova documental de fls. 69 e ss., constata-se que o ofendido, a partir de julho de 2016 apresenta descontos para a sociedade A..., Lda, tal como para a sociedade B..., Lda, e nos demais meses para as sociedades C..., Lda; D..., lda e outras.
Se conjugarmos estes elementos, com as declarações do próprio assistente em sede de inquérito, depreende-se de que o mesmo, pelo menos, sabia que no inicio da sua contratação laboral esteve ao serviço da empresa A..., Lda.
Em relação às demais empresas, como nada mais se diz na acusação pública, desconhece-se a atuação que se pretende imputar ao arguido.
Perante isto, o que nos resta é o facto de se alegar que o arguido foi contratado por um determinado vencimento - 2050,00€ ou 2.200,00€ (sem se saber se ilíquido ou liquido, pois nada se diz) - e que no dia 08.09.2022, foi entregue ao assistente uma carta de despedimento invocando o período experimental, apesar de trabalhar para o arguido, desde 2016.
Que mais tarde, o arguido veio a verificar que os descontos à segurança social, efetuados pelo “arguido”, foram sempre pelo ordenado mínimo, o que, alegadamente, além de não corresponder à verdade, trouxe ao assistente prejuízos em créditos salariais, subsidio de férias e de natal e trabalho suplementar.
Em face do exposto, importa dizer o seguinte.
Não corresponde à verdade que o ofendido, desde 2016, estivesse a trabalhar por conta do arguido, AA.
Na verdade, se é admissível que este (o ofendido), ao longo do tempo, fosse sendo transferido de sociedade para sociedade (em termos formais), desconhecendo alguns desses atos, já não se apresenta verosímil que ao longo destes anos estivesse convencido que trabalhava para por conta de AA, pois, no mínimo, admitiu que lhe foi dado conhecimento que era contratado para trabalhar para a empresa “A..., Lda., havendo descontos para a segurança social a o comprovar.
Mais, se dúvidas tivesse, ao longo dos anos nada o impedia de perguntar ao arguido, o que disse nunca o ter feito.
Dito isto, não corresponde à verdade que o ofendido/assistente tivesse sido contratado para trabalhar por conta do arguido, AA, pois, no mínimo, foi contratado para trabalhar por conta da sociedade – A..., Lda”, que à data tinha como gerente GG (fls. 27 a 31), que nunca foi ouvido em sede de inquérito.
Perante esta realidade e falta de outros meios de prova, não se sabendo os termos em que decorreram as transmissões da posição contratual do arguido, e a real participação nos factos pelo aqui arguido, não se pode imputar ao mesmo a prática de um crime de burla nos termos em que vem descritos na acusação pública.
Aliás, mesmo tendo em conta o teor da acusação pública, não se imputa ao arguido a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, motivado por erro através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, pois aparentemente o trabalho e ordenado prometido foram compridos ao longo dos anos, tanto mais que o assistente, em momento algum, alegou que não lhe foi dado o trabalho ou o vencimento prometido.
O que se encontra em causa nestes autos, mas que não foi apurado em sede de inquérito, é a circunstancia do alegado vinculo contratual do ofendido ter sido “transmitido” entre várias empresas e do vencimento declarado como pago perante a S.Social, alegadamente, não corresponder ao que realmente foi pago ao assistente.
Repare-se que o assistente não se queixa do vencimento que lhe foi prometido e pago, mas sim da circunstância de constar da segurança social como trabalhador de diferentes empresas, com um vencimento declarado inferior ao que realmente lhe foi pago, na ordem de 2.050,00€ e 2.200,00€.
Em suma, atento a esta realidade em contraposição com a descrita na acusação pública, não se descortinam os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito criminal imputado ao arguido, tanto mais que tudo indica que o ofendido, quando foi contratado em 2016, foi trabalhar por conta e ordem da sociedade “A..., Lda, e não para o arguido, AA, a titulo individual.
A partir da referida contratação, a acusação pública não descreve qual a atuação do arguido perante o ofendido, mesmo que fosse por intermédio ou representação de alguma das sociedades comerciais.
Dito de outra forma, com a prova recolhida em sede de inquérito e a descrição dos factos constantes da acusação pública, jamais o arguido seria condenado pela prática de um crime de burla relativa a trabalho ou emprego, pois não se descortina qual o erro ou engano decorrente da promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro que é imputável ao arguido.
Em face do supra exposto, impõe-se não pronuncia do arguido, tanto mais que seria elevado a probabilidade de ser absolvido em sede de audiência de julgamento.
Dos factos indiciados com interesse
Em 22-05-2016, o arguido propôs arranjar ao assistente trabalho em obra na Bélgica, com vencimentos não concretamente apurados, mas não inferior a 2.050,00€ mês, que passariam depois a 2.200,00€.
O assistente, com seu conhecimento, começou a trabalhar inicialmente por conta e ordem da sociedade, A..., Lda, vindo mais tarde, a constar, perante a segurança social, como trabalhar das também sociedades -B..., Lda, C..., Lda; D..., lda, G... – Unipessoal, Lda e E..., Lda e F...…
No dia 8 de setembro de 2022, a F... remeteu ao ofendido a missiva de fls. 9, comunicando-lhe de que dava por terminado o seu contrato de trabalho por termo incerto, com efeito ao dia 09.09.2022.
A partir da presente data, o ofendido veio a constatar que os vencimentos declarados perante a segurança social não correspondiam aos valores reais mensais por si auferidos…
Dos factos não indiciados com interesse
O arguido …. por meio de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, causou um prejuízo patrimonial ao assistente.
O arguido sabia e quis adotar tal comportamento enganoso e com a específica intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo, ao mesmo com a intenção de prejudicar o assistente.
Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Decisão instrutória
Em face do supra exposto, e atento ao estatuído no artigo 308.º do CPP, decide-se pela não pronúncia do arguido, AA, pela prática de um crime de burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punido, pelo artigo 222º, nº1, do Código Penal.»
B – Fundamentação de direito
Sendo pacífico na jurisprudência que o âmbito do recurso se delimita pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões do recurso, nos presentes autos importa decidir se:
1º - a decisão instrutória sob recurso enferma de vício ou irregularidade que comprometa a sua validade
2º - o arguido deveria ter sido pronunciado pelos factos constantes da acusação.
Cumpre apreciar!
1ª) Questão
Alega o recorrente que o despacho recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação e invoca para tanto a violação do disposto nos artigos 374 e 379 nº1 do CPP.
Porém, e desde já, temos de salientar que tais normas são especificas das sentenças e o despacho recorrido não é uma sentença, pelo que tais disposições legais não se lhe aplicam.
É certo que ao despacho recorrido se aplica o disposto no art. 97 nº5 do CPP onde se impõe a fundamentação de todo e qualquer ato decisório.
Porém, da análise do despacho, ora posto em crise pelo presente recurso, verificamos que o mesmo faz uma clara e explícita análise de toda a prova constante dos autos e expõe as razões de facto e de direito pelas quais decide não pronunciar o arguido; referindo com clareza e expressamente os factos que estão indiciados e os que não estão, o que permite a este Tribunal de recurso aquilatar da correção da decisão tomada. Está por isso observada a exigência de fundamentação contida no citado art. 97 nº5 do CPP.
Nestes termos e pelo exposto, consideramos que o despacho de não pronúncia proferido nos autos não enferma de vício ou irregularidade nos termos invocados pelo recorrente.
Improcede, pois, este argumento do recurso.
2ª) Questão
O despacho de não pronúncia é subsequente a RAI formulado pelo arguido sendo por isso aplicável o disposto no art.287 nº1 do CPP que nos indica que o objeto da instrução neste caso são os factos constantes da acusação pública que foi deduzida contra o arguido, tendo também em conta o disposto no art.309 nº1 do mesmo diploma legal.
O arguido foi acusado da prática de um crime de burla relativa a trabalho ou emprego p.p. pelo art. 222 do CP que dispõe:
«1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Com a mesma pena é punido quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a pessoa residente no estrangeiro prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego em Portugal.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 206.º e no n.º 2 do artigo 218.º»
As razões que terão norteado o legislador a tipificar esta conduta terão sido as condições infra-humanas a que algumas pessoas são sujeitas depois de aceitarem promessas de emprego em locais distantes o que coloca as vítimas em situação de especial fragilidade. Neste sentido aponta A.M. Almeida Costa na anotação ao art. 222 do Comentário Conimbricense do Código Penal.
Estamos perante um crime que é de burla e por isso o aliciamento ou a promessa tem de conter algo de falso ou enganoso que leve a vítima a aceitar o que lhe é proposto.
Porém, na acusação consta que o arguido ofereceu ao recorrente trabalho numa obra na Bélgica como ferrageiro e gruísta, a troco de 2.050 € por mês, aumentando mais tarde para 2.200 € mensais.
Nas suas conclusões de recurso é o próprio assistente que refere que o arguido pagava por transferência bancária a remuneração.
Mais refere a acusação que o assistente dormiu nos contentores da empresa do arguido, trabalhou cerca de 11 horas por dia, comeu no refeitório e os transportes eram feitos numa carrinha de 9 lugares.
O arguido nunca entregou ao assistente o contrato de trabalho, nem os recibos de vencimento.
E esta situação prolongou-se sem que o ora recorrente tivesse feito alguma queixa desde 2016 até 2022.
No dia 08-09-2022, foi entregue, ao assistente, uma carta despedimento, invocando o período experimental.
É nessa altura que o recorrente descobre que os descontos para a segurança social estavam a ser efetuados de acordo com o ordenado mínimo nacional e não pela remuneração acordada e paga.
Ora, e isto posto somos de opinião que no caso em apreciação não ocorreu o erro o engano astucioso característico dos crimes de burla, categoria em que também se integra o art. 222 do CP.
O recorrente aceitou a remuneração e as condições de trabalho, nunca se queixou das mesmas, e manteve-se no seu posto de trabalho por cerca de seis anos e não fora o despedimento efetuado pelo arguido em setembro de 2022, poderia ter-se mantido nas mesmas funções por mais tempo.
É incorreto a não feitura dos descontos pelo salário pago e a não entrega do contrato de trabalho, mas estes factos não têm a gravidade exigível para que a conduta do arguido possa ser classificada de burla relativa a trabalho ou emprego.
A conduta poderá ser sancionada em sede laboral ou fiscal, mas não por via do tipo legal imputado ao arguido na acusação.
Como tal e dado que a Instrução visa a comprovação judicial de submeter alguém a julgamento, bem andou o Sr. Juiz de Instrução em proferir despacho de não pronúncia quando os factos constantes da acusação pública não integram o tipo legal de crime que se imputa ao arguido.
Isto posto, consideramos que não assiste razão ao recorrente.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, acordam os Juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente BB e confirmam a decisão recorrida.
O recorrente suportará as custas do processo fixando-se a taxa de justiça em 4Ucs.

Porto, 12/11/2025
Paula Guerreiro
Maria Ângela Reguengo da Luz
Pedro Vaz Pato