Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1681/23.2T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
AÇÃO SOBRE O ESTADO DAS PESSOAS
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
OPONIBILIDADE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Nº do Documento: RP202310231681/23.2T8STS.P1
Data do Acordão: 10/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O caso julgado consiste na imodificabilidade da decisão através de recurso ordinário ou de reclamação, tendo uma função de certeza ou segurança jurídica, visando evitar decisões concretamente incompatíveis.
II - Pode ser material ou formal, conforme a decisão verse sobre a relação material controvertida ou recaia unicamente sobre a relação processual.
III- O caso julgado material, por possuir uma eficácia externa extensível a processos posteriores, realiza não só um efeito negativo (que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida – funcionando então como exceção do caso julgado), como também um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que nela foi definido ou estabelecido (vigorando, nesse caso, como autoridade do caso julgado).
IV- Como emerge com meridiana clareza do enunciado linguístico vertido no artigo 622º do Código de Processo Civil, o caso julgado (material) formado em ação sobre o estado das pessoas apenas será juridicamente relevante e oponível se na demanda onde foi prolatada a respetiva decisão tiverem sido observadas as condições nele impostas para esse efeito, maxime que nessa ação tenham estado presentes todos os “interessados diretos”.
V- Consequentemente, se numa ação de impugnação de paternidade, em desrespeito do litisconsórcio necessário legal, não tiverem sido demandados todos os interessados diretos, não pode operar o caso julgado, seja no seu efeito negativo, seja no seu efeito positivo (de autoridade).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1681/23.2T8STS.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Santo Tirso – Juízo de Família e Menores, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais1ª Adjunta Desª. Anabela Mendes Morais
2º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro
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SUMÁRIO

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

AA veio intentar a presente ação declarativa sob a forma comum contra BB e CC, pedindo se declare que o segundo Réu não é filho de DD, pai da Autora.
Para substanciar tal pretensão alega, em síntese, ser filha de DD e da primeira Ré, tendo estes sido casados entre si, sendo que na pendência desse casamento nasceu o segundo Réu, filho da primeira Ré, mas que não é filho biológico de DD, não obstante se encontrar registado como tal.
Acrescenta que DD sabia que o segundo Réu não era seu filho biológico e que nunca o tratou como tal, acabando, porém, por nunca intentar ação de impugnação de paternidade, tendo, entretanto, falecido.
Conclusos os autos foi proferida a seguinte decisão:
«A Autora já tinha intentado uma ação de impugnação de paternidade contra o aqui Réu, a qual correu termos sob o n.º 2928/21.5T8STS, neste Tribunal, nos termos da qual impugnava a paternidade do Réu pedindo se declarasse que o mesmo não era filho de DD, com o consequente cancelamento do registo no assento de nascimento deste. A petição foi liminarmente indeferida por caducidade do direito de ação, por decisão proferida em 28/11/2021, confirmada por douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/02/2022.
Pretende agora a Autora ver novamente apreciada a questão já suscitada previamente na ação nº 2928/21.5T8STS, demandando também a progenitora do segundo Réu, BB.
(…)
Constata-se que a causa de pedir e o pedido são idênticos na presente ação e no proc. 2928/21.5T8STS: com base na ausência de vínculo biológico existente entre o Réu CC e o pai da Autora, DD, pretende esta que se declare que aquele não é filho deste, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes.
As partes também são coincidentes em ambas as ações, com exceção da Ré BB, que não foi demandada na primeira ação e é demandada neste processo.
Conforme resulta do exposto, o que está aqui em causa é a autoridade do caso julgado, isto é, o efeito positivo da decisão proferida no processo nº 2928/21.5T8STS, na qual se declarou a caducidade do direito de a Autora intentar a presente ação, e que se impõe perante a mesma e o Réu CC e perante qualquer outro réu, incluindo BB. Ou seja, o objeto da primeira ação é questão prejudicial nesta ação, impondo-se aceitar a decisão proferida naquele processo, na medida em que o núcleo essencial da questão de direito e de facto ali apreciada e decidida é exatamente a mesma que a Autora aqui pretende ver apreciada e discutida. Diferente entendimento levaria a que a decisão proferida no primeiro processo (que abrange os fundamentos de facto e de direito desta segunda ação) fosse posta em causa se de novo apreciada e decidida de modo diverso neste processo.
Face ao exposto, declaro a autoridade de caso julgado da sentença proferida no processo n.º 2928/21.5T8STS, que correu termos neste juízo e, em consequência, absolvo os Réus da instância».
Não se conformando com o assim decidido veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1. O Meritíssimo Juiz “a quo”, na douta decisão que proferiu, entendeu absolver os RR. da instância, decidindo haver autoridade de caso julgado entre este processo e o processo nº 2928/21.5T8STS.
2. Para que se verifique caso julgado, segundo o que dispõe o art. 581º do C.P.C, é necessário que se verifiquem três requisitos expressamente fixados nesta disposição legal: haja identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Ora,
3. Estes requisitos exigidos por lei expressa, não ocorrem nos presentes autos, pelo que não existe caso julgado entre a presente ação e a referida no art. 1 destas conclusões. Na verdade, e em primeiro lugar,
4. Naquela outra ação, como R. figura apenas o 2º R., sendo que na presente ação também é R. a mãe da A. e do 2º R., sendo a mãe da A. uma parte essencial, que deverá ser, tal como o 2º R., e o pai da A., submetidos a exame de ADN, pois são estes exames que nos vão dizer com certeza cientifica que o 2º R. não é filho do pai da A.. Assim,
5. E como é fácil de constatar, não há identidade de sujeitos, um dos três requisitos essenciais para que ocorra caso julgado. Deste modo,
6. E só com base nisto, falta de identidade dos sujeitos, não se verificaria caso julgado.
7. Além de não haver identidade de sujeitos, também não há identidade da causa de pedir, conforme já anteriormente se referiu. Com efeito,
8. O 2º R., sabedor que o pai da A. não é o seu pai, mas sim uma outra pessoa por quem a sua mãe se apaixonou, um tal Né, que esta, repetidamente e por escrito, confessou ser o pai do 2º R..
9. Com os exames de ADN a efetuar aos 1ª e 2º R. e ao falecido ex-marido da 1ª R. e pai da A., consegue-se, cientificamente, provar se o pai da A. é ou não o pai do 2º R.; é unicamente o que se pretende, com a impugnação de paternidade deduzida nesta ação. E
10. Como causa de pedir, invocou-se também o inventário por morte do pai da A., que o 2º R., sabedor de toda a realidade, e que o seu pai, é o tal Né e não o ex-marido da 1ª R. e pai da A., frisando também aqui o alegado nos art. 17 a 20 da p.i., e art. 11 deste recurso, portanto, que o pai da A. não visitava o 2º R., nunca almoçou ou jantou com ele, que nunca passearam juntos, que nunca conviveram um com o outro, que nunca houve contactos entre a família do pai da A. e do 2º R., que este, 2º R., nem sequer conhecia a família do pai da A., nem a família do pai da A. o conhecia, que o pai da A. esteve vários meses internado no I.P.O., a A. deslocava-se diariamente, pedindo para sair mais cedo do emprego, enquanto o 2º R. nunca o foi visitar, e, finalmente, o 2º R. nem sequer veio ao funeral do pai da A. !!! Mas, o 2º R., depois de tudo isto, teve a indignidade e mesquinhez que a A. julgava totalmente impossível: veio requerer o inventário dos bens que ficaram por morte do pai da A., sabendo que não é filho dele, tendo a A. ficado completamente surpreendida quando recebeu, em 14 de Julho de 2022, a citação para tal inventário, requerido pelo 2º R., que sabe perfeitamente não ser filho do pai da A.. Ora,
11. Este facto, completamente novo, é também causa de pedir da ação, pois de tal inventário, de que se requereu a suspensão, que foi deferida, até estar devidamente esclarecida a situação, através desta ação, resultaria grave prejuízo para a A., que receberia apenas metade dos bens de seu pai, quando tem direito à totalidade dos mesmos, pois é a única filha do saudoso DD, seu pai, pelo que,
12. Tem a A. interesse direto em desencadear o presente procedimento, tendo a necessária legitimidade para a presente ação (art. 1859, nº 1 e nº 1 do C.C.), pois o 2º R. quer metade dos bens do pai da A., quando sabe perfeitamente que a A. é a única filha do falecido DD. E,
13. Como se referiu, este fundamento inteiramente válido e legítimo, nem sequer existia quando foi proposta aquela outra ação, sendo uma causa de pedir inteiramente nova, não havendo também, portanto, identidade de causa de pedir, o que impede se invoque o caso julgado, porque não há identidade de causa de pedir. Acresce ainda que,
14. A presente ação tem ainda um outro fundamento: a defesa dos direitos de personalidade do falecido pai da A., de quem é a única filha, mas também dela própria, pois tem todo o direito de saber quem é a sua real família, nomeadamente se o 2º R. é seu irmão, ou, como está segura, seu meio irmão.
15. E este direito de personalidade, omisso na anterior ação, e que é imprescritível, só por si impediria que ocorresse caso julgado, contrariamente ao que, sempre com o devido respeito, foi erradamente considerado verificar.se pelo Meritíssimo Juiz “a quo”. Deste modo,
16. E porque não se verificam os requisitos para que ocorra caso julgado, deve revogar-se a decisão de que se recorre, ordenando-se o prosseguimento do processo, fazendo-se, entretanto, exame de ADN aos RR. e ao falecido pai da A., pois com tais exames apurar-se-á com base científica, a verdade, e nos Tribunais jamais se deve permitir que a verdade seja “ultrapassada” pela falsidade; isso sim, não prestigiaria os Tribunais. Finalmente,
17. E para evitar desnecessárias repetições, dá-se aqui por reproduzido o alegado nos art. 19 a 30 das alegações de recurso.
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O Magistrado do Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a única questão a decidir é a de saber se ocorre, in casu, a exceção do caso julgado, na sua vertente positiva de autoridade de caso julgado.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para efeito da decisão do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório, havendo ainda a considerar que apenas foram partes na ação que, sob o n.º 2928/21.5T8STS, correu termos pelo Juízo de Família e Menores de Santo Tirso, a ora autora (que nessa ação assumiu igualmente a qualidade de demandante) e o ora réu (aí igualmente demandado).
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como emerge dos autos, a ora autora havia anteriormente intentado contra o ora réu CC ação declaratória (que correu termos, sob o nº 2928/21.5T8STS, pelo Juízo de Família e Menores de Santo Tirso) que culminou com a prolação de um despacho de indeferimento liminar da petição inicial por caducidade do direito de ação, ato decisório esse que transitou em julgado.
Partindo do pressuposto que, na essência, são comuns os elementos objetivos da instância na presente ação e bem assim naqueloutra ação e registando-se, ainda que parcialmente, identidade subjetiva, o tribunal a quo decidiu julgar procedente a exceção dilatória (inominada) de autoridade do caso julgado, em consequência do que absolveu os réus da instância.
É contra o entendimento assim sufragado que o apelante ora se rebela no presente recurso, por considerar não estarem reunidos os pressupostos para operância da mencionada exceção.
Portanto, na resolução da questão supra enunciada, tudo se resume em dilucidar que efeitos a decisão proferida na ação que correu termos, sob o nº 2928/21.5T8STS, pelo Juízo de Família e Menores de Santo Tirso tem na sorte da presente demanda.
É certo que, por definição, o caso julgado implica a inalterabilidade dos efeitos do ato decisório decorrente da sua irrecorribilidade extrínseca, sendo que, como deflui do art.º 628.º do Código de Processo Civil[1], o trânsito em julgado ocorre quando uma decisão é já insuscetível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário.
Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado - que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu -, com o que se visa garantir, primordialmente, o valor da segurança jurí­dica, fundando-se a proteção a essa segurança jurídica, relativamente a atos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
No entanto, nem todos os atos decisórios intrinsecamente não irrecorríveis, e, consequentemente, transitáveis em julgado, geram, quando transitados em julgado, idêntico caso julgado.
Com efeito, em processo declarativo, dado que o ato decisório pode incidir, essencialmente, sobre as condições processuais de existência e de admissibilidade da ação e sobre as condições materiais de tutela jurídica do objeto da ação, existem decisões de forma - aquelas que conhecem de matéria adjetiva - e decisões de mérito - aquelas que apreciam matéria substantiva. Relativamente ao caso julgado esta dicotomia reflete-se na atribuição de caso julgado formal às decisões processuais e de caso julgado material às decisões de mérito.
Esta repartição na incidência do caso julgado formal e do caso julgado material, que o direito positivo consagra nos arts. 619º e 620º, repercute a disparidade entre os efeitos da decisão da forma – efeitos processuais respeitantes à individualização da ação – e os efeitos da decisão de mérito – efeitos materiais atinentes à fundamentação da causa. Dito de outro modo, a distinção entre o caso julgado formal e o caso julgado material é a diferença entre os efeitos adjetivos garantidos pelo caso julgado formal da decisão de forma e os efeitos substantivos assegurados pelo caso julgado material da decisão de mérito.
Resulta, pois, do exposto que o caso julgado não permanece idêntico, variando apenas na qualidade da sua relevância intraprocessual ou extraprocessual, perante o comando contido no ato decisório quando este comando possui eficácia adjetiva, originando o caso julgado formal, ou quando aquele comando tem eficácia substantiva, gerando o caso julgado material. Assim, segundo o critério da eficácia, há que distinguir entre o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão (art. 620.º, n.º 1) e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele, consoante estabelece o art.º 619º.
E isto é assim porque, como se sublinhou, o caso julgado formal tem tão-somente uma eficácia interna limitada ao processo originário, não beneficiando consequentemente dos efeitos processuais típicos que emergem do caso julgado material, que, por possuir uma eficácia externa extensível a processos posteriores, realiza não só um efeito negativo (que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida – funcionando então como exceção do caso julgado), como também um efeito positivo, que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que nela foi definido ou estabelecido (vigorando, nesse caso, como autoridade do caso julgado)[2] -[3].
Admitindo que, na situação vertente, com o proferimento da aludida decisão na ação nº 2928/21.5T8STS (rectius, com o seu trânsito) se formou caso julgado material, importa, então, dilucidar se, tal como afirmado pelo juiz a quo, por operância do seu efeito positivo existirá um obstáculo à apreciação da pretensão de tutela jurisdicional que a autora e ora apelante aduz nestes autos, por estar vinculado ao ato decisório prolatado naquele processo.
Tendo em conta os elementos objetivos da instância, tanto a presente demanda como aqueloutra ação versam sobre questão atinente ao estado das pessoas.
Nessas circunstâncias o problema que se equaciona é o de saber se na ação declarativa nº 2928/21.5T8STS se formou efetivamente uma situação de caso julgado (material) relevante para os efeitos do art. 622º, onde se postula que «[N]as questões relativas ao estado das pessoas, o caso julgado produz efeitos mesmo em relação a terceiros quando, proposta a ação contra todos os interessados diretos, tenha havido oposição (…)».
O transcrito inciso refere-se, pois, aos efeitos do caso julgado nas questões de estado (expressão que, no ensinamento de ALBERTO DOS REIS[4], abrange todas as questões que tenham por objeto fixar o estado civil de determinada pessoa), nele se enunciando um claro desvio ao princípio da eficácia relativa (inter partes) do caso julgado[5] e que encontra a sua razão de ser nos graves inconvenientes de vária ordem que a regra da eficácia relativa acarretaria consigo no domínio deste tipo de ações.
Com efeito, as ações de estado (categoria na qual se integra a presente ação de impugnação de paternidade) visam definir a condição jurídica de um individuo perante uma ou mais pessoas, acabando a decisão que nelas venha a ser proferida por fixar, como salienta ANTUNES VARELA[6], “a condição jurídico-pessoal do interessado perante um núcleo social. Desta definição de base do estado pessoal, familiar ou nacional do autor ou do réu podem brotar múltiplos direitos, obrigações, inabilidades, impedimentos matrimoniais, expectativas jurídicas, quer em relação à parte adversa, quer em relação a outras pessoas”.
Daí que vigore neste domínio o princípio da indivisibilidade do estado pessoal, pois que, no que especialmente concerne à ação de impugnação da paternidade, ninguém poder ser, ao mesmo tempo, filho de “A” face a um sujeito e filho de “B” face a outro sujeito.
A indivisibilidade das situações jurídicas de natureza pessoal é, assim, uma caraterística ou qualidade indissociável das mesmas, o que leva ANTÓNIO JÚLIO CUNHA[7] a concluir que “não é possível configurar um estado pessoal face a um determinado sujeito ou grupo de pessoas, e já não relativamente a outros, é a natureza das coisas que o impede”.
Analisada, ainda que em termos necessariamente sumários, a razão de ser do desvio ao princípio da eficácia relativa do caso julgado nas questões de estado, é tempo de afrontar a questão que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem.
Como emerge com meridiana clareza do enunciado linguístico vertido no citado art. 622º, o caso julgado (material) formado em ação sobre o estado das pessoas apenas será juridicamente relevante e oponível erga omnes se na demanda onde foi prolatada a respetiva decisão tiverem sido observadas as condições nele impostas para esse efeito, maxime que nessa ação tenham estado presentes todos os “interessados diretos”[8].
Questão que se coloca é de saber quem são, afinal, os interessados diretos a que se reporta o mencionado normativo, os quais, tal como a própria expressão inculca, serão os portadores do principal interesse oposto ao do autor.
Neste conspecto, e no que especialmente concerne à ação de impugnação de paternidade, a lei substantiva (cfr. art. 1844º, nº 1) veio estabelecer que nessa ação deterão legitimidade passiva «a mãe, o filho e o presumido pai quando nela não figurem como autores», sendo que, de acordo com o seu nº 2, «no caso de morte da mãe, do filho ou do presumido pai, a ação deve ser intentada ou prosseguir contra as pessoas referidas no artigo 1844.º [9], devendo, na falta destas, ser nomeado um curador especial; se, porém, existirem herdeiros ou legatários cujos direitos possam ser atingidos pela procedência do pedido, a ação não produzirá efeitos contra eles se não tiverem sido também demandados».
Ora, na situação vertente, verifica-se que na ação nº 2928/21.5T8STS não foram demandados todos os interessados diretos com legitimidade (processual) passiva, sendo que, neste ponto, a lei estabelece uma clara situação de litisconsórcio necessário legal[10], cuja inobservância deveria ter motivado o proferimento de despacho a providenciar pelo suprimento dessa exceção dilatória.
Consequentemente a decisão que aí foi prolatada não produziu relevantemente caso julgado para os fins do citado art. 622º, sendo certo que, por mor das implicações do enunciado princípio da indivisibilidade do estado pessoal, não é admissível que a questão da filiação do réu possa ser objeto de apreciação, uma ou mais vezes, em ações posteriormente intentadas por outros interessados diretos que não tiveram intervenção na ação, posto que, de outro modo, a sua situação familiar e social não pode deixar de ressentir-se gravemente dessa incerteza.
Significa isto, pois, que, nessa situação, o caso julgado não pode produzir efeitos em ação em que não tenham sido demandados os referidos interessados diretos, porquanto sem a sua (de todos eles) presença na lide não pode ser definida, em moldes definitivos, a questão de o réu CC não ser filho de DD (seu presumido pai, por funcionamento da presunção consagrada no nº 1 do art. 1826º do Cód. Civil). Faltou, assim, à decisão proferida no mencionado processo declarativo um requisito essencial à sua eficácia erga omnes.
Isso mesmo é posto em evidência por CASTRO MENDES/TEIXEIRA DE SOUSA[11], ao entenderem que “da circunstância de o caso julgado só ter uma eficácia erga omnes se a ação tiver sido proposta contra todos os interessados diretos decorre que essa eficácia nunca ocorre se se tiver verificado a violação de um litisconsórcio necessário legal”, acrescentando, mais adiante e a propósito da ação de impugnação de paternidade, que nessa ação “devem ser demandados a mãe, o filho e o presumido pai quando nela não figurem como autores; a ausência de qualquer destes interessados impede o caso julgado decorrente da ação lhe seja oponível”.
Deste modo, pelas apontadas razões, no caso sub judicio não pode operar o caso julgado, seja no seu efeito negativo, seja no seu efeito positivo (de autoridade).
A presente apelação terá, pois, de proceder.
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V - DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, revogando-se a decisão recorrida, determinam a sua substituição por outra que assegure o prosseguimento dos autos, contanto inexistam outras razões que a tal obstem.

Custas pela parte vencida a final, na proporção em que o for.
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Porto, 23.10.2023
Miguel Baldaia de Morais
Anabela Morais
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., sobre a destrinça entre tais conceitos, inter alia, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 320; ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, págs. 384 e seguintes; MARIANA FRANÇA GOUVEIA, A causa de pedir na ação declarativa, Almedina, 2004, págs. 394 e seguintes; LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 599 e seguintes e TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 576 e seguintes e, deste último autor, O objeto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual), in BMJ nº 325, págs. 171 e seguintes, onde após definir o âmbito de aplicação de cada uma das referidas figuras, sintetiza a diferença que ocorre entre elas do seguinte modo: «a exceção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente (…), mas também a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica (…). Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva, à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (…)».
[3] Registe-se que, desde há largo tempo, a jurisprudência (cfr., entre outros, acórdão do STJ de 26.01.94, BMJ nº 433, pág. 515 e seguintes e acórdão da Relação de Coimbra de 21.01.97, CJ, ano XXII, tomo 1º, pág. 24 e seguintes) vem acolhendo tal distinguo, acrescentando ainda que para a relevância da autoridade do caso julgado não se exige a coexistência da tríplice identidade prevista no art. 581º do Cód. Processo Civil.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, págs. 181 e seguinte. Em análogo sentido milita ANTUNES VARELA, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 102, págs. 325 e seguinte, catalogando como ações de estado aqueles que visam constituir, modificar ou extinguir o estado de uma determinada pessoa, ou seja, “aquelas que visam definir a condição jurídica de um individuo perante uma ou mais pessoas”.
[5] Como tem sido enfatizado na doutrina (cfr., por todos, ANTUNES VARELA et al., in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora pág. 721), a regra da eficácia relativa do caso julgado – e do consequente princípio da oponibilidade do caso julgado a terceiros – é um corolário do princípio do contraditório.
[6] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 102, pág. 325.
[7] In Limites subjetivos do caso julgado, Quid Juris, 2010, págs. 254 e seguinte.
[8] Para além desse requisito a lei adjetiva exige igualmente que “tenha havido oposição”, sendo que a propósito das condições para se afirmar o preenchimento deste último pressuposto normativo têm-se registado posições dispares na doutrina pátria, não faltando quem advogue que esse requisito não faz hoje qualquer sentido – cfr., sobre a questão e por todos, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Do caso julgado nas questões de estado, in Themis, ano X, nº 18, 2010, págs. 103 e seguintes.
[9] Em cujo nº 1 se dispõe que «[S]e o titular do direito de impugnar a paternidade falecer no decurso da ação, ou sem a haver intentado, mas antes de findar o prazo estabelecido nos artigos 1842.º e 1843.º, tem legitimidade para nela prosseguir ou para a intentar:
a) No caso de morte do presumido pai, o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens que não seja a mãe do filho, os descendentes e ascendentes;
b) No caso de morte da mãe, os descendentes e ascendentes;
c) No caso de morte do filho, o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes».
[10] Como assinalam LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE (in Código de Processo Civil Anotado. Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 78), “a pedra de toque do litisconsórcio necessário é a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas ações de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar”.
[11] In Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, 2022, pág. 669 e seguinte. Em análogo sentido, se pronuncia FERREIRA DE ALMEIDA, in Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 606.