Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3269/23.9T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍCIO DO ART.º 410.º N.º 2 AL. B) CPP
SUSPENSÃO DA PENA
Nº do Documento: RP202503263269/23.9T9VFR.P1
Data do Acordão: 03/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DA ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A Sentença do Tribunal a quo acaba por afirmar, por um lado, que o Assistente se sentiu enxovalhado e, por outro lado, que não se sentiu humilhado, como consequência direta e necessária da conduta da Arguida; afirma, por um lado, que a Arguida se deslocou a casa do Assistente motivada pelo ciúme e pela possessão e, por outro lado, que não foram esses sentimentos que presidiram às agressões físicas e verbais perpetradas com o Assistente (olvidando mencionar, nesse caso, quais foram as motivações da Arguida); afirma, por um lado, que a Arguida imputou ao Assistente diversos insultos e agressões, e, por outro lado, não atuou com o intuito de se vitimizar futuramente pelo seu próprio comportamento (quando isso ficou patente na denúncia por violência doméstica apresentada contra o Assistente pelos mesmo factos e durante toda a audiência de discussão e julgamento).
II - Para além das contradições existentes, consubstanciando vicio do art. 410º, n º 2 al. b) do CPP, pode igualmente concluir-se, tendo presente a prova produzida, que se imponha outra decisão quanto aos factos em questão, porquanto a convicção espraiada pela decisão a quo conflitua com as regras da experiência comum atendendo ao contexto em que se desenrolaram os factos.
III - Provou-se que a arguida quis humilhar e vexar o assistente perante terceiros tendo-o expressado diversas vezes no confronto e ao ter-se deslocado à casa do ofendido possessa de ciúmes não se fazendo rogada procurou entrar à força na sua casa, munida de um alicate que usou, ferindo o assistente ao ponto de o fazer sangrar, colocou-se numa posição de domínio fazendo-lhe diversas exigências, logrando contra a vontade do ofendido entrar em casa dele, impondo a sua presença perturbando a paz e o sossego do assistente e sua companheira e demais vizinhança, sujeitando o assistente ao seu comportamento. A persistência e intensidade na ação, revela uma manifestação de superioridade da arguida em relação ao ofendido, visando desconsiderar, diminuir e mesmo humilhar o mesmo.
IV - A arguida deixou-se mover por sentimentos de ciúme e possessão e atuou de modo exagerado, colérico e até irracional, e quis durante cerca de uma hora humilhar o ofendido e fazê-lo sofrer como se constatou pelas lesões provocadas.
V - O Thema decidendum é fixado na acusação ou na pronúncia, havendo instrução, não podendo o tribunal julgar e condenar alguém que não tenha sido acusado ou pronunciado pela prática de um crime em concreto sob pena de violação dos mais elementares princípios de direito penal.
VI - Tendo presente o disposto no art. 50º do Código penal, e uma vez que a pena de prisão não é superior a cinco anos e considerando que a arguida embora agindo sob o impulso do ciúme, não praticou outros atos para além daqueles e que entretanto o casal se divorciou é de se lhe a aplicar a suspensão da pena.
VII - Em face da declaração manifestada nos Autos, o Assistente e Ofendido expressamente renunciou a beneficiar de qualquer compensação indemnizatória e, por conseguinte, está vedado a esta Relação de proceder a tal arbitramento.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3269/23.9T9VFR.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

No Processo Comum (Singular) nº 2369/23.9T9VFR.P1 (do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro– Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira-J3), em que é arguida AA foi proferida sentença, onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição, na parte relevante):

“a) Absolver a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, al. a), e n.os 4 a 6, do CP, de que vinha acusada;

b) Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP (por convolação fáctico-jurídica do crime de violência doméstica), na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz o montante global de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros);

c) Absolver a arguida AA do pedido de arbitramento de indemnização, nos termos do artigo 82.º-A, n.º 1, do CPP e do artigo 21.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 122/2009, de 16 de setembro.


*

Inconformado com o assim decidido, interpôs recurso o Ministério Público finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

C) Conclusões:

I. Nos presentes autos a arguida AA foi absolvida da prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, al. a), e n.ºs 4 a 6, do CP, de que vinha acusada e condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP (por convolação fácticojurídica do crime de violência doméstica), na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 8,00, o que perfaz o montante global de € 1.440,00;

II. O Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do art.º 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do C.P.;

III. Não exigindo o tipo legal uma reiteração de ações, um único ato ofensivo só consubstanciará “maus tratos” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da ação quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico protegido (integridade pessoal, nas suas vertentes física, psíquica e mental, e a proteção da dignidade humana);

IV. Resulta da matéria de facto provada na sentença que a arguida procurou de noite o ofendido BB na sua casa quando já estavam separados; com recurso à força introduziu-se na habitação dele; insultou-o de “porco, badalhoco e cobarde”; agrediu-o com um alicate, mordeu-o e desferiu-lhe pontapés; tais condutas perduraram cerca de 50 minutos e foram presenciadas pela filha CC, menor de idade e, algumas delas, por vizinhos e atual companheira do ofendido;

V. O tipo legal do crime não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor, mas apenas um dolo de domínio;

VI. A conduta da arguida tem um desvalor de ação e resultado muito intensos e suscetível de, por si só, lesar o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, razão pela qual estão verificados os elementos objetivos e subjetivo do tipo legal do crime de violência doméstica;

VII. Acresce que, as condutas levadas a cabo pela arguida (para além do desvalor de ação e resultado assinalados) estiveram associadas à relação de proximidade existencial que existiu entre ela e o ofendido, circunstância esta que faz integrar todos os crimes individualmente analisados no preenchimento do crime especial de violência doméstica;

VIII. Daí que deveria a arguida ser condenada pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do C.P. e ser atribuída à vítima uma indemnização – cf. art.º 82º-A do C.P.P.;

IX. Caso assim não se entenda, a operar uma desqualificação jurídica da conduta da arguida, esta deveria dar lugar à sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art.º 145º, n.º 1, al. a) conjugado com o art.º 143º, n.º 1 e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b) do C.P. e não a uma condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do C.P.”

Também o assistente BB recorreu apresentando as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES

1 – Nos termos da Douta Sentença, ora objeto de recurso, a Arguida foi absolvida da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusada, e condenada, como autora material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, não arbitrando qualquer indemnização ao ofendido.

2 – Contudo, e com o devido e merecido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, o Recorrente não se pode conformar com a aludida decisão e com a alteração da qualificação jurídica operada pela mesma, tendo existido uma incorreta apreciação e valoração da prova produzida, bem como uma errada qualificação jurídica dos factos.

3 – Em primeiro lugar, a matéria de facto dada como não provada não espelha de forma clara a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mostrando-se mesmo em alguns casos contrária à mesma e contraditória entre si.

4 – No que diz respeito ao facto I) dado como não provado, o mesmo está em contradição com os factos 6), 9), 10), 12), 13), 14), 18), e 24) dados como provados, tendo em conta que tudo foi orquestrado e executado pela Arguida, quando descobre a nova relação amorosa do Assistente, de modo a semear neste o medo de prosseguir a sua vida amorosa, fosse com quem fosse, porque a Arguida entendia, na data dos factos, que ela e o Assistente iriam, mais cedo ou mais tarde, reconciliar-se, indo a tempo de salvar o casamento.

5 – A própria Arguida acaba por confessar, quer no dia dos factos, quer em se de Audiência de Julgamento, que não tolerava que o Assistente refizesse a sua vida amorosa, caso contrário, “perderia” os filhos, pois, nenhuma outra mulher (referindo-se à nova companheira do Assistente) iria cuidar dos seus filhos.

6 – No que diz respeito ao facto II) dado como não provado, a verdade é que, a Arguida não fez mais para além de se vitimizar durante todas as sessões de audiência de discussão e julgamento, não se tendo coibido de, sempre que lhe foi dada a palavra, recorrer aos mais diversos argumentos para desculpar o indesculpável e imputar a responsabilidade dos seus próprios atos sobre o Assistente tentando com isso inverter os papéis de Arguida e Assistente (vide página 23 da Sentença).

7 – Porque razão a Arguida iria provocar o Assistente no sentido de levá-lo a agredi-la [facto 15) dado como provado] se não fosse para, posteriormente, dizer que tinha sido agredida pelo Assistente a apresentar-se como vítima dos atos que fossem praticados por este?

8 – A Arguida atuou de forma a que o Assistente perdesse o controle e a agredisse, para depois inverter os papéis e dizer que ela é que tinha sido vítima do Assistente, fazendo esquecer tudo o que se tinha passado para trás (que tinha sido ela a iniciar a discussão, que tinha sido ela a provocar o Assistente, que tinha sido ela a ir ter com o Assistente em sua casa às 22h, etc.).

9 – No que diz respeito ao facto III) dado como não provado, o Tribunal a quo não conjugou devidamente toda a prova produzida e relevou, em demasia, um lapso de memória do Assistente para considerar como não provado o facto III), o que constitui uma evidente contradição com o facto 22) dado como provado, que alude ao teor integral do relatório pericial junto aos autos e menciona a lesão verificada no braço direito do Assistente, relevando como consequência direta e necessária das descritas condutas da Arguida.

10 – No que diz respeito ao facto IV) dado como não provado, o mesmo está em clara contradição com o facto 23) dado como provado, em que o Tribunal a quo deu como provado que a vítima se sentiu enxovalhado e, como tal, necessariamente sentiu-se humilhado (até porque as duas palavras, enxovalhado e humilhado, são sinónimos).

11 – Quanto ao facto V) dado como não provado, conforme resulta da prova produzida em sede de audiência de julgamento (das declarações prestados pelo Assistente e das testemunhas DD e EE), no desenrolar do episódio ocorrido no dia 11/11/2022, a Arguida, por diversas vezes, demonstrou a sua intenção de humilhar e enxovalhar o Assistente perante terceiros, dizendo que toda a gente tinha de saber quem ele era.

12 – Atento o exposto, o Tribunal a quo deveria ter julgado como provados os factos I), II), III) IV), V) da Sentença, pelo que consideramos, para os efeitos do artigo 412º, nº 3, alínea a) do CPP, que os mesmos foram incorretamente julgados.

13 – Posto isto, quanto à errada qualificação jurídica dos factos, o Tribunal a quo entendeu que a Arguida não praticou um crime de violência doméstica, absolvendo-a da prática do mesmo.

14 – Isto porque, conforme resulta da própria letra da lei, para a verificação do crime de violência doméstica, não se exige reiteração criminosa; basta um único episódio para dar por verificado o crime de violência doméstica, desde que assuma um grau de intensidade considerável e acentuado e, portanto, revele que esse grau de intensidade é suscetível de colocar em causa o bem jurídico protegido, a saúde física, a saúde mental da pessoa ofendida.

15 – Não nos podemos esquecer, como parece ter feito o Tribunal a quo, que tal episódio integrante da conduta da Arguida é apenas um episódio se for temporalmente considerado, mas encerra vários atos praticados pela Arguida contra o Assistente a que não podemos deixar de dar a devida atenção.

16 – Apesar de ser só um episódio, o mesmo é composto por vários atos e comporta um grau de ilicitude suficientemente acentuado para dar como verificada a prática do crime de violência doméstica. 17 – O episódio aqui em causa foi de uma enorme gravidade, foram 50 minutos [facto 19) dado como provado] muito intensos, em que a Arguida, descobrindo naquele mesmo dia que o Assistente tinha uma nova relação amorosa [facto 5) dado como provado], às 22h, conduziu 22 km até à casa do Assistente, invadindo a privacidade e o descanso do mesmo, na frente da filha menor de ambos, apelidou o Assistente de porco, badalhoco e cobarde, empurrou-o, mordeu-o nos braços, pontapeou-o nas pernas e desferiu-lhe vários golpes com o alicate de pontas nos braços, causando-lhe inclusive sangramento [facto 16) dado como provado].

18 – Por outro lado, a Arguida, logo após ter descoberto que o Assistente tinha uma nova relação amorosa, saiu de casa, munida de um alicate de pontas e dirigiu-se à casa do Assistente, de forma pensada e ponderada, já sabendo o que queria fazer – daqui resulta que a Arguida, quando saiu de casa, já foi com o intuito de agredir o Assistente, de o maltratar e fazer sofrer, o que conseguiu; se não, porque sairia àquela hora da noite, com um alicate?

19 – Numa altura em que a relação entre eles (Arguida e Assistente) já tinha terminado e nenhum dos dois tinha qualquer obrigação marital (em termos morais) para com o outro, a atitude da Arguida em dirigir-se a casa do Assistente, quando descobre que o mesmo já tinha uma nova relação amorosa, para tirar satisfações sobre essa relação, para saber quem é a “amante”, revela uma clara intenção de domínio da Arguida para com o Assistente, pois aquela achava-se nesse direito de invadir e importunar este no seu lar para tirar satisfações sobre a vida pessoal dele.

20 – Não obstante, não se compreende como o Tribunal a quo tenha dado como provado que a Arguida atuou por ciúmes e possessão e depois entenda que a mesma não atuou de forma a conduzir o Assistente a mera “coisa” – salvo melhor entendimento, atuar com possessão é entender que a outra pessoa é uma “coisa” sua, uma “propriedade” sua, fazendo dela o que quiser, é atuar com a intenção de domínio e subjugação do outro.

21 – Também não se compreende como é que o Tribunal a quo tenha entendido que ficou por provar que a Arguida tivesse querido vexar o Assistente, quando dá como provado que a Arguida atuou com o intuito concretizado de o enxovalhar [facto 24) dado como provado] – salvo o devido respeito por opinião diversa, vexar significa humilhar, que também poderá ter o mesmo significado de enxovalhar.

22 – Segundo a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, a Arguida agiu com o intuito de enxovalhar, o que significa agir ou ter um comportamento vergonhoso ou impróprio da dignidade de alguém, daí que não se compreenda que o Tribunal a quo tenha ao mesmo tempo entendido que não se possa concluir que a Arguida quisesse e tivesse atingido o ofendido na sua dignidade pessoal ou causar-lhe humilhação (então porque a Arguida repetiu, em viva voz, que os vizinhos tinham de saber quem o Assistente é?)

23 – A Arguida saiu de casa já com o propósito de agredir o Assistente, de o maltratar, de o ofender e de o humilhar perante terceiros, o que conseguiu.

24 – A Arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente o seu ainda cônjuge, pai dos seus filhos, causando-lhe medo e inquietação e lesando-o na sua dignidade pessoal, honra, integridade física, bem-estar, não se coibindo de o fazer na residência do ofendido.

25 – A conduta da Arguida foi tão grave e intensa, que, por si só, lesou o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, estando verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica, pelo que, a Arguida deverá ser condenada pela sua prática na pessoa do Assistente e, consequentemente, ser atribuída uma indemnização à vítima (artigo 82º-A do CPP).

26 – Mas, deverá a Arguida ser ainda condenada pela prática de um crime de violência doméstica contra a filha menor CC, uma vez que, quando a Arguida sai de sua casa para dirigir-se à casa do Assistente, já com o propósito de o agredir e maltratar, leva consigo a filha menor, a qual presenciou, se não todos, praticamente todos os atos praticados (agressões e injúrias) pela Arguida contra o Assistente, tendo ficado bastante transtornada, chorosa, só pedia para que a mãe parasse e fossem embora.

27 – As referidas condutas da Arguida foram-no conscientes e dolosas e colocaram em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica do menor, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto criança e ser humano, inseridos numa realidade parental que se quereria harmoniosa e protetora.

28 – Por tudo o exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverá a Arguida ser condenada pela prática de dois crimes de violência doméstica (um na pessoa do Assistente e outro na pessoa na filha menor de ambos, CC) e ainda deverá ser arbitrada uma indemnização a favor do Assistente.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, devendo a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta. “

A arguida respondeu aos recursos do Ministério Público e assistente, pugnando no sentido da sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.

O M.P respondeu ao recurso do assistente concluindo:

CONCLUSÕES

I. A sentença padece do vício da contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e, mesmo entre a matéria de facto não provada e a sua fundamentação – cf. art.º 410º, n.º 2 do C.P.P.;

II. O Tribunal “a quo” incorreu num erro de julgamento da matéria de facto não provada nos pontos I, II, IV e V, porque à luz das regras da experiência comum e da prova produzida, impunha-se uma

decisão contrária – cf. art.º 127º do C.P.P.;

III. Apesar de atos consumados num só dia, a conduta global da arguida ao nível do desvalor (quer da ação quer do resultado) revela uma intensidade muito grave e, por isso, é apta a lesar em grau elevado o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica;

IV. O Tribunal “a quo” não fez uma correta interpretação e aplicação do disposto no art.º 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do C.P.”

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que os recurso do Ministério e assistente deverão obter provimento.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal[1]), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

No caso vertente, vistas as conclusões dos recursos, as questões a apreciar são as seguintes:

A) Decorrentes do recurso do Ministério Público:

- Enquadramento jurídico dos factos.

B) Decorrentes do recurso do assistente:

- Saber se a decisão recorrida padece do vício da contradição entre a fundamentação e a decisão;

- Erro de julgamento da matéria de facto não provada nos pontos I, II, IV e V, porque à luz das regras da experiência comum e da prova produzida, impunha-se uma decisão contrária – cf. art.º 127º do C.P.P.;

- Enquadramento jurídico dos factos.

- Indemnização

Decisão recorrida:

Definidas as questões a tratar, vejamos, desde já, o que na sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à motivação da matéria de facto (transcrição):

“2. Fundamentação de facto 2.1. Factos provados

Da instrução e discussão da causa, com relevância para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos da acusação pública:

1) A vítima BB e a arguida AA casaram a 04/07/2005.

2) Dessa relação nasceram FF a 26/03/2009 e CC a 04/02/2011.

3) Em meados de 2022, a vítima BB pretendeu terminar a relação marital, abandonou a residência comum e passou a habitar na Rua ..., ... ..., em habitação arrendada.

4) Em data não concretamente apurada, mas entre meados de 2022 e antes de 11/11/2022, a vítima desenvolveu nova relação amorosa, com GG.

5) Tal facto chegou ao conhecimento da arguida momentos antes da deslocação da mesma à residência do ofendido a 11/11/2022, apesar da arguida desconhecer quem era a nova companheira da vítima.

6) Nessa sequência, a arguida não se conformou com a decisão da vítima em prosseguir com a sua vida amorosa depois da separação de facto.

7) No dia 11/11/2022, cerca das 22h00, a arguida dirigiu-se à residência da vítima, acompanhado da filha menor de ambos, CC, pretendendo interagir com a vítima, que se encontra na residência juntamente com a sua companheira.

8) Quando a arguida bateu à porta apercebeu-se da existência de um par de sapatilhas de senhora junto à porta.

9) Nesse momento, a arguida motivada por ciúme e possessão, e diante da filha menor e da vítima, que no entretanto se dirigiu ao exterior da habitação, imediatamente começou a gritar, em tom exaltado, sempre dirigindo-se à vítima, apodando-o repetidamente de PORCO, BADALHOCO e COBARDE.

10) No mesmo tom exaltado, também afirmou que a vítima abandonou a família por causa “daquela gaja”, referindo-se à companheira da vítima, dizendo que tinha sido traída.

11) A este ponto já assistiam ao comportamento da arguida não apenas a menor CC, mas também o vizinho da vítima e a companheira deste, DD e EE.

12) Contudo, nem a presença da filha menor nem de terceiras pessoas fez coibir a arguida de continuar a dirigir-se à vítima apodando de PORCO, BADALHOCO e COBARDE e de exigir que a vítima a deixasse entrar na sua residência, para a arguida se confrontar com a companheira da vítima.

13) Enquanto a vítima pediu para a arguida se acalmar e para não adotar aqueles comportamentos diante da filha menor, que começou a chorar, a arguida exigiu à vítima que lhe dissesse qual era o carro da companheira para lhe provocar estragos e começou a tentar forçar – através de empurrões – a entrada na residência da vítima, afirmando a arguida que não sairia daquele local enquanto não entrasse na residência.

14) Inicialmente, e por medo que a arguida agredisse fisicamente GG, a vítima não deixou a arguida entrar na sua residência.

15) Contudo, a arguida continuou a insistir, em estado colérico, continuando a provocar a vítima, a pedir-lhe para reagir e a pedir-lhe para que este a agredisse, pretendendo esgotar a paciência da vítima e conduzi-lo a agredi-la fisicamente.

16) Passadas várias dezenas de minutos com este comportamento, a arguida logrou introduzir-se na residência da vítima e aí muniu-se de um alicate de duas pontas, empurrou a vítima, mordeu-o nos braços, pontapeou-o nas pernas e desferiu-lhe vários golpes com aquele objeto nos braços esquerdo e direito e pernas esquerda e direita, causando imediato sangramento.

17) Quando se apercebeu que a arguida tinha logrado introduzir-se na habitação, GG refugiou-se na casa de banho, fechando a porta.

18) Contudo, no decorrer da altercação, a arguida foi ao encontro de GG, dizendo-lhe: “há quanto tempo estão juntos? destruíste o nosso casamento, sua vaca”, na sequência do que GG voltou a introduzir-se na casa de banho, fechando a porta.

19) A arguida só abandonou aquele local passado cerca de 50 minutos desde que chegou, na companhia da filha menor, sendo que durante a altercação foi a própria arguida que, se dirigindo para a filha, a mandou entrar no interior da habitação, dizendo-lhe que estava frio no exterior, tendo a menor assistido a todos os factos já descritos.

20) Ao abandonar o local, a arguida levou consigo o alicate.

21) Em data não concretamente apurada, mas depois do dia 11/11/2022 e ainda no ano de 2022, a vítima intentou ação de divórcio sem mútuo consentimento.

22) Como consequência direta e necessária das descritas condutas da arguida, a vítima BB sofreu, além de dores, as seguintes lesões: a. Crânio: eritema da metade esquerda da região perietal, com 2,5cm de maior eixo e edema do lóbulo da orelha esquerda;

b. Membro superior direito: equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face interna do braço, com 11cm de maior eixo; escoriação na face posterior do cotovelo, com 4cm de maior eixo; escoriação avermelhada, com crosta, situada no dorso do punho, com 2cm de maior eixo;

c. Membro superior esquerdo: equimose arroxeada-amarelada situada no terço distal da face anterior do braço, com 6cm de maior eixo;

d. Membro inferior direito: escoriação linear e vertical, com 14cm, rodeada por equimose arroxeada-amarelada, com 16cm por 10cm; escoriação avermelhada, situada no terço médio da face anterior da perna, com 4cm;

e. Membro inferior esquerdo: escoriação avermelhada infra-centimétrica circundada por equimose arroxeada-amarelada, com 2,5cm de maior eixo, com queixas álgicas à mobilização do joelho.

23) Como consequência direta e necessária das descritas condutas da arguida, a vítima sentiu-se enxovalhado.

24) Ao atuar da forma descrita, agiu a arguida de modo livre, voluntário e consciente, motivada por ciúme e possessão, com o intuito concretizado de atentar contra a honra da vítima, de o enxovalhar, de invadir e se introduzir no domicílio da vítima contra a sua vontade, e de o molestar fisicamente.

25) Ao atuar da forma descrita, agiu a arguida de modo livre, voluntário e consciente, sabendo e querendo atuar na presença da filha menor de ambos, CC e sabendo e querendo atuar contra o seu cônjuge e progenitor dos dois filhos menores.

26) A arguida sabia da censurabilidade e punibilidade criminal das suas condutas.

No que respeita às condições pessoais, sociais e económicas da arguida e com interesse para a decisão de mérito, provaram-se ainda os seguintes factos:

27) Desde 2005, a arguida exerce atividade profissional na área de Medicina de Investigação, na faculdade de Medicina do Porto.

28) Por essa atividade, a arguida aufere cerca de € 1.500,00 mensais.

29) À data dos factos, a arguida residia com os filhos CC e FF em habitação pertencente à família, entretanto vendida aquando do divórcio.

30) Atualmente, a arguida reside na morada Rua ..., n.º ..., 1º esq., ... ..., juntamente com os filhos CC e FF.

31) A habitação corresponde a habitação de tipologia T3, arrendada, com condições de habitabilidade, inserida em meio residencial de zona periférica, não conectado com focos delinquenciais relevantes.

32) A arguida paga renda no valor de € 450,00.

33) A arguida possui Licenciatura em Microbiologia.

34) No meio social a arguida beneficia de uma imagem adequada.

35) A arguida detém capacidade de reconhecimento da ilicitude de factos da mesma natureza dos que lhe são processualmente imputados.

36) A arguida verbalizou ultrapassada a mágoa e tristeza face ao término da relação com o ofendido, compreendendo o dever de respeitar o espaço e individualidade do ofendido, bem como a decisão deste.

37) A arguida e o ofendido iniciaram relacionamento afetivo em idade muito jovem, ambos com cerca de 14 anos.

38) A arguida não tem antecedentes criminais. 2.2. Factos não provados


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Com relevância para a decisão da causa, ficaram por provar os seguintes factos:

I) Na circunstância aludida em 9), a arguida atuou determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa.

II) A arguida atuou na circunstância aludida em 15) para assim se vitimizar futuramente pelo seu próprio comportamento.

III) Na circunstância aludida em 16), a arguida atingiu o ofendido no crânio e mordeu o braço direito do mesmo.

IV) Como consequência direta e necessária das condutas da arguida, a vítima sentiu-se humilhado e condicionado na sua liberdade de prosseguir a sua vida amorosa.

V) Ao atuar da forma descrita nos factos provados, a arguida agiu determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa, com o intuito concretizado de o humilhar perante terceiras pessoas e perante a filha menor, e de o provocar a que este, perante o comportamento da vítima, respondesse com alguma agressão física, para assim a arguida se apresentar como falsa vítima, e de limitar a liberdade de ação e decisão da vítima, bem sabendo que dessa forma atentava, como atentou, contra a dignidade da vítima e o molestava psicologicamente.


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Não se fixam quaisquer outros factos como provados ou não provados, por os mesmos consubstanciarem reiteração, explanação de matéria de direito, se referirem a conceitos vagos, genéricos e/ou jurídicos, serem meramente conclusivos ou irrelevantes para a boa decisão da causa.

2.3. Motivação de facto

No âmbito do processo penal, vigoram, entre outros, os princípios da investigação e da verdade material, por um lado, e os princípios da acusação e da presunção de inocência, por outro. A ser assim, impõe-se que o Tribunal produza a sua decisão através dos meios de prova validamente produzidos, independentemente de quem os ofereceu, e ainda que investigue e esclareça oficiosamente os factos em busca da verdade material, sem, contudo, atropelar os direitos do arguido, boa parte deles constitucionalmente consagrados.

Deste modo, a convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados e não provados foi formada pela análise, crítica e global, das provas produzidas em sede de audiência de julgamento, a qual assenta nas regras legais quanto às provas e meios de prova admissíveis, nas regras da experiência comum e ainda na livre convicção do julgador (cfr. artigos 125.º, 127.º, 164.º e 374.º, n.º 2, do CPP).

Em concreto, o Tribunal teve em atenção os seguintes elementos probatórios:

− Declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de julgamento;

− Declarações prestadas pelo ofendido em sede de audiência de julgamento;

− Declarações prestadas pela testemunha DD, vizinho e senhorio do ofendido, situando-se a residência da testemunha no andar imediatamente abaixo do andar do ofendido, estando o mesmo em casa no dia 11/11/2022 à hora dos factos;

− Declarações prestadas pela testemunha EE, companheira da testemunha DD, que se encontrava em casa deste no dia 11/11/2022 à hora dos factos;

− Declarações prestadas pela testemunha GG, companheira do ofendido à data dos factos e atualmente, que se encontrava em casa do mesmo no dia 11/11/2022 à hora dos factos;

− Declarações prestadas pela testemunha CC, filha da arguida e do ofendido, atualmente, com 13 anos de idade, que acompanhou a mãe no dia 11/11/2022;

− Declarações da testemunha António Batista, militar da GNR que elaborou o auto de notícia datado de 12/11/2022 de fls. 5-6, em que foi queixoso o aqui ofendido;

− Declarações prestadas pela testemunha HH, colega de trabalho e amiga da arguida há cerca de 15 anos, a qual depôs sobre a personalidade da arguida;

− Prova pericial correspondente ao Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal constante de fls. 28-30;

− Prova documental cuja discriminação se fará oportunamente, a propósito de cada facto.


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No que concerne aos factos provados em 1) e 2), os mesmos decorrem da análise das certidões de nascimento BB, AA, FF e CC (fls. 22, 25, 442 verso a 444, respetivamente), bem como das pesquisas realizadas nas bases dos Serviços de Identificação Civil quanto aos dois primeiros (fls. 20 verso e 23 verso). Tratando-se de certidões, esses documentos têm a força probatória do respetivo original e fazem prova plena quanto às presunções ali estabelecidas, designadamente, pois, quanto ao casamento entre BB e AA, bem como à filiação e datas de nascimento de FF e CC (cfr. artigos 371.º, n.º 1, e 383.º do CC).

O facto provado em 3) resultou demonstrado pelas declarações prestadas pela própria arguida, mas também pelo ofendido/assistente. De facto, embora o enquadramento dado à situação não seja exatamente o mesmo, ambos os depoimentos coincidiram quanto à iniciativa de BB relativamente à intenção de terminar a relação mantida entre ambos, ao momento temporal em que tal ocorreu, bem como à sua saída da casa de morada de família e obtenção de nova residência em ....

Relativamente ao facto provado em 4), o mesmo decorreu das declarações prestadas pelo ofendido e pela testemunha GG, que confirmaram ter desenvolvido uma relação amorosa naquele período. De resto, foi precisamente a existência dessa nova relação que levou ao desencadeamento dos demais factos dados como provados.

No que tange à factualidade descrita em 5) a 7), embora, em parte, a arguida reconheça alguma veracidade ao libelo acusatório – como seja a sua deslocação, acompanhada pela filha, a casa do ofendido, a altercação entre arguida e ofendido pelo facto de este último estar acompanhado por uma pessoa do sexo feminino e alguns dos impropérios dirigidos ao ofendido –, apresenta um enquadramento distinto para a ocorrência do episódio e nega qualquer agressão física da sua parte ao ofendido, bem como qualquer impropério dirigido a GG.

Vejamos, então, em que termos o Tribunal valorou a prova nesta parte.

A arguida refere que a separação ocorrida em meados de julho de 2022 não se deveu a uma verdadeira e definitiva separação, porquanto tinham encetado sessões de terapia de casal na tentativa de recuperar o relacionamento, e, nessa sequência, é que tinham sido aconselhados a manter-se afastados durante um mês. Esta circunstância foi confirmada pelo ofendido e resulta também, no que ao número e localização temporal de sessões diz respeito, da declaração emitida em fevereiro de 2023, por “A..., Unipessoal, Lda.” (fls. 316), junta aos autos pela arguida. Assim, desta declaração, resulta, além do mais, que a arguida e o ofendido frequentaram duas sessões de terapia de casal, uma em 06/07/2022 e outra em 14/07/2022, tendo o processo cessado por iniciativa do ofendido, não obstante as insistências da arguida para que prosseguissem.

Referiu ainda que, em setembro de 2022, procurou aconselhamento jurídico relativamente ao processamento do divórcio, atenta a pressão que o ofendido fazia no sentido de se divorciarem e de venderem a casa que constituía a casa de morada de família. Mais, que o ofendido já tinha retirado várias coisas de casa. Esta circunstância foi igualmente confirmada pelo ofendido. Mais se apurou ainda, conforme declarações prestadas pelo ofendido, que, nesta altura de setembro/outubro de 2022, a arguida e o ofendido chegaram a reunir-se juntamente com os seus respetivos advogados para discutir o divórcio e a regulação das responsabilidades parentais.

Simultaneamente, a arguida diz também que apenas se deslocou ao local em que o ofendido se encontrava a residir em virtude das insistências da sua filha para que fossem buscar o carregador do seu telemóvel, tendo, aliás, sido esta a dar indicações do caminho, já que a arguida não o conhecia. Isto, em novembro de 2022.

Ainda concomitantemente, refere a arguida que decidiu aceder ao pedido da filha, aproveitando a oportunidade para “fazer uma surpresa” ao então ainda cônjuge (o divórcio só foi oficializado em janeiro de 2023 – cfr. certidão da ata da tentativa de conciliação ocorrida a 18/01/2023 no âmbito do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, depois convolado em divórcio por mútuo consentimento, constante de fls. 279-282). Note-se que a arguida alegou ter chegado a casa do ofendido e ter dito, quando este abriu a porta, “Olá, surpresa!”.

Daí que tivesse sido com estupefação que se tivesse apercebido que o ofendido não estava sozinho em casa, estando com uma pessoa do sexo feminino, segundo ela, por ter avistado um par de sapatilhas de senhora.

Ora, este enquadramento dos acontecimentos efetuado pela arguida, que pretende fazer transparecer uma ideia de que a deslocação aconteceu por motivos absolutamente casuais e inofensivos, não é todo crível. De facto, não é crível que, havendo ainda interesse na manutenção do casamento, um dos elementos não conheça o local em que o outro passou a residir quatro meses depois de tal ter acontecido. Do mesmo modo, sendo o afastamento aconselhado por um mês, mas mantendo-se ao fim de quatro meses, é expectável que o processo de reconciliação não esteja a ser favorável. Aliás, como se frisou já, apenas se verificou a ocorrência de duas sessões de terapia de casal, ambas em julho de 2022, tendo o processo cessado por iniciativa do ofendido apesar das insistências em sentido contrário da arguida. Destarte, não é crível que, tendo o ofendido deixado de residir com a arguida há cerca de quatro meses, tendo cessado a terapia de casal também há cerca de quatro meses, e esta nunca o tendo ido visitar à sua nova residência desde então, ainda assim considerasse adequado aparecer, sem avisar previamente, em casa do ofendido, pelas 22 horas.

Por outro lado ainda, não pôde o Tribunal deixar de constatar que, quer no depoimento da arguida quer no da testemunha CC, a invocação da necessidade de ir buscar o carregador do telemóvel desta última surja como justificação para a deslocação, mas depois tenha sido completamente omitida qualquer referência ao mesmo durante todos os acontecimentos. Mais, quer a arguida quer a testemunha CC espontaneamente referiram ter trazido de casa do ofendido um aspirador que lá se encontrava e que seria da arguida. Todavia, em nenhum momento foi referido que tivesse sido trazido também o tal carregador. Quando diretamente questionada a testemunha CC sobre essa circunstância, negou a mesma que o tivesse trazido (sem conseguir, no entanto, apresentar qualquer justificação para tal).

Importa ainda referir o seguinte. A testemunha CC – filha da arguida e do ofendido –, a quem pertencia o telemóvel cujo carregador seria necessário ir buscar com urgência às 22h de uma sexta feira, para que esta pudesse utilizar a plataforma Teams para realizar trabalhos escolares no dia seguinte, tinha, à data dos factos, 11 anos de idade, e já estava com o telemóvel sem bateria, segundo o declarado pela própria, há vários dias (“para aí desde terça-feira”).

Ora, desde logo, o modo como a testemunha se referiu à circunstância de ser necessário ir buscar o carregador do seu telemóvel, evidenciou a procura desta em desculpabilizar a arguida por se ter deslocado à residência do ofendido, tentando fazer sobressair ao máximo a sua iniciativa e a sua insistência nessa deslocação (“eu necessitava meeesmo dele”; “depois de eu ter insistido muuuito” ou “eu insisti-lhe bastaaante”). Todavia, fê-lo de modo que não nos pareceu objetivo nem imparcial. Pelo contrário, foi evidente que procurou proteger a progenitora.

Por outro lado, do documento junto pelo assistente por requerimento de 18/10/2024, decorre que na semana compreendida entre os dias 7 e 11 de novembro de 2022 (semana dos factos em causa nos autos) ocorreu a interrupção letiva inerente ao regime semestral de aulas, razão pela qual a testemunha CC não teve aulas nessa semana. Isso mesmo resulta da mensagem da WhatsApp enviada pela arguida ao ofendido também nessa semana, conforme print junto com o mesmo requerimento.

Por sua vez, do documento junto pela arguida por requerimento de 31/10/2024, resulta que na semana compreendida entre os dias 14 e 18 de novembro de 2022 (semana subsequente aos factos em causa nos autos), a testemunha tinha agendada apenas a realização de um teste de inglês na quarta feira, dia 16.

Dito isto, não é crível que uma criança com 11 anos de idade estivesse tantos dias sem utilizar o telemóvel por falta de bateria, tanto mais, quando se encontrava em semana de interrupção letiva, ou seja, com mais tempo livre do que o habitual para se dedicar a essa utilização. Do mesmo modo, também não é crível que o telemóvel fosse a única forma de aceder à plataforma utilizada para a disponibilização de materiais escolares necessários à preparação da semana seguinte, pelo facto de um computador estar estragado e outro em casa dos avós e a testemunha não saber as suas credenciais para aceder através de outro equipamento que não fosse o seu, conforme referido pela mesma.

A tudo isto acresce o facto de a testemunha CC ter apresentado – após insistência – uma justificação totalmente incongruente com a realidade para o facto de não ter ido mais cedo a casa do pai buscar o carregador. Com efeito, disse a testemunha que aquela semana “tinha sido com alguns testes e uma correria”, o que não corresponde à realidade, porquanto se encontrava em semana de interrupção letiva.

Ademais, estranha-se que, tendo a testemunha CC constatado que necessitava com urgência do seu carregador do telemóvel àquela hora naquele dia da semana para que pudesse realizar trabalhos escolares, não o tivesse solicitado (ainda que mais uma vez) ao seu progenitor que se encontrava, nesse preciso momento, numa videochamada com o irmão da testemunha a propósito da ligação de uns cabos da televisão e da internet. Do mesmo modo, não é crível que a arguida tivesse deixado o filho FF, à data, com 13 anos de idade, sozinho em casa às 22h, enquanto ia com a irmã deste buscar o carregador do telemóvel a outra freguesia (note-se que o ofendido referiu que as duas habitações distavam 22km uma da outra, sem que tal tivesse sido contraditado pela Defesa), sem o informar (“ela quis ir e eu nem refleti, fomos”).

Isto tudo para dizer que, embora fosse verdade que o ofendido estivesse na posse do carregador da testemunha CC (foi o próprio que o confirmou, tal como confirmou que o mesmo já lho tinha sido pedido por aquela), não mereceu credibilidade a alegação dessa circunstância para justificar a deslocação da arguida a casa do ofendido no dia 11/11/2022, pelas 22 horas. Na verdade, entendemos que tal alegação surge como mero pretexto para tentar afastar a ideia de que a arguida já se deslocou a casa do ofendido com o objetivo de “tirar satisfações” pelo facto de o mesmo estar com outra pessoa. De facto, sendo certo que a arguida pretendeu fazer crer que a sua deslocação a casa do ofendido foi, num primeiro momento, absolutamente casual e inofensiva, as regras da experiência e da normalidade do acontecer não permitem concluir nesses termos. Qual a necessidade de sair com tanta pressa por causa de um carregador? Como acreditar na versão de que pretendia fazer uma “surpresa” quando a separação de facto já se prolongava há meses, o ofendido fazia pressão para que a casa de morada de família fosse vendida e a arguida já tinha procurado aconselhamento jurídico meses antes quanto ao processo de divórcio e já se tinham reunido com esse propósito? Assim, a falta de razoabilidade e de coerência do declarado pela testemunha CC veio apenas reforçar a convicção que o Tribunal já havia alcançado na sequência da concatenação das declarações da arguida com as do ofendido e com a prova documental já referida.

Em concreto quanto à alteração efetuada ao facto 5), a mesma decorre, assim, da circunstância de se ter apurado que a arguida soube da nova relação do ofendido momentos antes de se deslocar a casa do mesmo daquele dia 11/11/2022. De resto, o próprio ofendido ficou com a perceção que a arguida se apercebeu dessa situação no decorrer da videochamada que fazia com os seus filhos momentos antes daquela deslocação.

Daí que o Tribunal tenha considerado provados os factos 5) a 7), embora a arguida os tivesse negado perentoriamente.

O facto provado em 8) decorre das declarações da própria arguida, para além de ter sido confirmado pelo ofendido. Tratando-se de uma mera concretização do ato efetivamente adotado – bater à porta, e não tocar à campainha – e do objeto efetivamente visualizado – um par de sapatilhas e não um par de sapatos –, e tendo decorrido do alegado pela própria defesa, a alteração dos factos a que o Tribunal procedeu neste âmbito não exigia a comunicação prévia da mesma nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, atento o disposto no n.º 2 daquele preceito.

Relativamente aos factos provados em 9) e 10), em concreto sobre as expressões que a arguida dirigiu ao ofendido, a arguida apenas confirmou tê-lo apelidado de “cobarde”, esclarecendo que não se recordava de nenhuma das outras expressões, embora também reconhecesse que se encontrava particularmente exaltada nesse momento. Por sua vez, o ofendido, para além de “cobarde”, confirmou que a arguida também o tinha apelidado de “badalhoco” e de “porco”. Sendo que as testemunhas EE e GG confirmaram também “porco”. Já a testemunha DD confirmou apenas “cobarde”.

Das declarações prestadas pelo ofendido, bem como pelas testemunhas DD, EE e GG decorre ainda que a arguida se foi referindo a GG como “aquela gaja” e ao ofendido como traidor.

Os depoimentos das testemunhas, não obstante a relação com o ofendido de vizinhança num caso e amorosa noutro, revelaram-se objetivos, circunstanciados e serenos, tendo merecido a credibilidade do Tribunal. Acresce que, com a exceção de duas das expressões, acabam por ir ao encontro do declarado pela arguida, não se descortinando nenhum motivo para as testemunhas tivessem inventado as mesmas. O mesmo se diga quanto ao ofendido, cujo depoimento, apesar de também evidenciar alguma emoção, foi sereno e claro.

Já quanto ao depoimento da testemunha CC, não é crível que a testemunha diga que só ouviu parte da conversa entre o pai e a mãe e que apenas destaque insultos dirigidos pelo pai à mãe, quando a própria arguida reconhece que se encontrava exaltada, o que inviabiliza, de acordo com as regras da experiência, que falasse num tom baixo. Por outro lado, ao longo do depoimento, foi variando algumas respostas, o que denota o receio da testemunha em contar uma versão que pudesse prejudicar a mãe.

No que concerne ao facto provado em 11), começaram as testemunhas DD e EE por esclarecer que tinham ouvido um barulho forte (“um estrondo”), tendo pensado que o ofendido pudesse ter caído das escadas de acesso ao sótão. Por esse motivo, as testemunhas referiram que DD se deslocou à varanda da sua habitação, por forma a tentar perceber se se tinha passado algo, momento em que ouviu a arguida (que, à época, não sabia quem era, apenas percebeu quem seria pelo que esta dizia ao ofendido) chamar o ofendido de “traidor” e “cobarde” e que “toda a gente ia saber a merda que ele era, que ele não valia nada”. Mais declarou a testemunha DD ter tido a intenção de os ir separar, mas que tinha sido impedido pela sua companheira, tendo apenas ficado a assistir a partir da janela da cozinha (“ficamos a assistir porque não nos queríamos meter, mas também não queríamos que acontecesse nada”).

Donde, embora DD e EE não tenham assistido – a nível visual – aos acontecimentos (com exceção do que referiremos de seguida), assistiram a nível sonoro. De facto, de modo que nos pareceu credível e desinteressado, a testemunha DD referiu que a “D. AA estava a falar muito alto e a insultar”, pelo que só “quando a discussão acalmava, eu deixava de ouvir”. Acresce que, das fotografias da parte exterior do acesso ao sótão da casa que o ofendido estava a habitar, é possível compreender a descrição dos acontecimentos efetuada por estas testemunhas, bem como o seu campo de visão (cfr. fotografias de fls. 663-665).

Relativamente aos factos provados em 12) a 14), ainda que não em termos inteiramente concordantes com os constantes do libelo acusatório, é a própria arguida que refere ter exigido ao ofendido não só que este lhe dissesse quem era a sua nova companheira/namorada, como também que a deixasse falar com ela, para que estivesse “cara a cara” com a mesma (“eu precisava de ver aquela pessoa, eu insisti para ver a pessoa com quem ele estava”; “eu disse que não ia sair dali enquanto ele não me dissesse quem era, e foi aí que ele disse que era a GG”; “fiz uma última exigência: quero falar com ela”).

Do mesmo modo, embora a arguida tenha procurado evidenciar que nenhuma vantagem existia para si em danificar o veículo automóvel de GG, pelo que nunca faria – como não fez – nada ao mesmo, é a própria que reconhece que efetivamente questionou o ofendido sobre se algum daqueles carros era de GG (“perguntei se algum dos carros era da amante, mas o que me adiantava fazer estragos no carro?”).

Por sua vez, no que respeita à circunstância de a arguida ter forçado a entrada na residência do ofendido, cumpre referir que aquela negou tê-lo feito. No entanto, a verdade é que reconheceu que, pelo menos durante o tempo em que permaneceu no exterior, se apresentava num estado exaltado (“é impossível uma pessoa não se exaltar, eu não merecia”), sendo que, como dissemos, também reconheceu ter feito pressão para falar com GG. Por outro lado, o ofendido depôs no sentido de a arguida ter forçado a entrada, tentando passar “por cima” de si, de modo a chegar ao interior da residência do mesmo.

Também a testemunha CC, não obstante as reservas que nos merecem o seu depoimento pelo facto de ter procurado apresentar uma versão que não prejudicasse a sua progenitora, confirmou que esta tinha tentado colocar diversas vezes o pé na soleira da porta para entrar e que tinha insistido várias vezes (ainda que apenas verbalmente) para falar com GG.

Ora, o estado emocional em que a arguida se encontrava e a pressão que fez para falar com GG, não são compatíveis, de acordo com as regras da experiência comum, para conferir verosimilhança à versão apresentada pela arguida de que não forçou qualquer entrada na habitação. Antes merecem credibilidade, porque consentâneas com a normalidade do acontecer, as declarações do ofendido quando refere que se viu obrigado a impedir que a arguida entrasse na habitação e que esta estava constantemente a insultá-lo. Mais referiu o ofendido que impediu a entrada da arguida na sua residência, uma vez que, nessa altura, atento o seu estado de exaltação, teve receio que a mesma agredisse GG.

Relativamente à circunstância de CC estar a assistir a todo este evento, todas as pessoas ouvidas que presenciaram os factos, incluindo a própria testemunha, confirmaram que a mesma aí se encontrava. Por outro lado, a existência de terceiros a assistir foi também confirmada pelas testemunhas DD, EE e CC que referiram ter visto a vizinha da frente no exterior da sua habitação, durante os acontecimentos, visualizando-os.

No que concerne ao facto provado em 15), é a própria arguida que reconhece que se dirigiu ao ofendido dizendo “Então, bate-me, bate-me”. Refere, porém, a arguida que apenas o disse como resposta ao que o ofendido lhe havia dito (“Só disse isso porque ele disse que me dava um soco e partia os dentes”). Contudo, as testemunhas DD e EE que depuseram no sentido de ter ouvido a discussão, e, em particular, a arguida a dizer ao ofendido para que este lhe batesse, negaram que o ofendido se tivesse dirigido à arguida nos termos alegados por esta. Aliás, a testemunha DD acrescentou mesmo ter visto a arguida a bater com as mãos na sua própria cara, dando estalos a si própria, enquanto se dirigia naqueles termos ao ofendido, o que só conseguiu ver por se ter colocado em cima do balcão da cozinha e espeitado para baixo na janela (conforme esclareceu a testemunha EE).

Relativamente ao facto provado em 16), a convicção do Tribunal formou-se, mais uma vez, nas incongruências do declarado pela arguida (e pela testemunha CC), em conjugação com as declarações do ofendido.

Vejamos.

No que concerne à introdução na residência do ofendido, foi a arguida que confirmou nela ter entrado logo depois de o ofendido ter subido as escadas para averiguar se GG pretenderia falar com a arguida, embora já antes tivesse estado no patamar inferior das escadas de acesso ao sótão.

No que tange à existência e utilização de um alicate de duas pontas, é também a arguida que confirma que efetivamente se encontrava com o referido objeto quando se deslocou à residência do ofendido. Dúvidas inexistem, pois, de que a arguida se fazia acompanhar de um alicate de pontas naquele momento.

Nega, porém, a arguida que alguma vez o tivesse utilizado, muito menos para atingir o ofendido. Na verdade, alega a ofendida que transportava o alicate no bolso de trás das calças pelo facto de, no momento em que saiu de casa, se encontrar a ver o contador da água e da luz e não dispor da chave plástica destinada a esse efeito e, por isso, ter utilizado o referido alicate para poder abrir a porta do contador. Mais alega que o ofendido apenas se apercebeu da existência do alicate porque a empurrou contra o corrimão das escadas exteriores e o alicate acabou por cair ao chão nesse momento. No entanto, refere a arguida que se limitou a apanhá-lo, não o tendo utilizado.

Ora, neste conspecto, não se olvida que o ofendido referiu que, num momento inicial, não se apercebeu de ter sido atingido com qualquer objeto, embora tivesse estranhado a força com que tinha sido atingido. Não se olvida também que foi o ofendido que declarou que, quando confrontou a arguida com a circunstância de ela estar com um alicate, a mesma, de imediato, justificou essa circunstância com o facto de ter estado a retirar a contagem.

Todavia, e considerando as lesões descritas no Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 28-30, e a que infra se aludirá, não se vê como poderiam algumas delas ser causadas apenas com as mãos ou os pés. Note-se que foi referido quer pelo ofendido quer pela testemunha CC que aquele se encontrava de calças.

Assim, confirmou o ofendido que a arguida o empurrou por diversas vezes, como forma de tentar entrar em casa do mesmo, que lhe deu um estalo na cara, que o mordeu no braço esquerdo (“bícep do lado esquerdo”), que lhe deu pontapés no joelho e ainda golpes na coxa. Sendo que, de tais golpes, ficou o ofendido a sangrar (embora só mais tarde GG se tivesse apercebido dessa circunstância).

Por outro lado, e quando confrontada a arguida com as lesões que o ofendido alega terem sido provocadas pela sua atuação, esta procurou justificações para as mesmas, mas a sua narrativa não convenceu o Tribunal. Por exemplo, refere que as escoriações nas mãos se tinham ficado a dever apenas ao facto de o ofendido ter colocado as mãos no corrimão das escadas interiores de acesso ao sótão, o qual ficava muito próximo da parede, que era áspera, e, por esse motivo, tinha arranhado as mesmas. Todavia, refere que tal aconteceu quando o ofendido a estava a “expulsar” de casa, já no final. Ora, o arguido referiu que tal se deveu ao facto de ter tentado impedir, num momento inicial, que a arguida entrasse em sua casa, o que apresenta maior realismo (se a arguida já estava a sair, não havia motivo para que o ofendido se descuidasse ao ponto de se magoar). Quanto às lesões no joelho e pernas, limitou-se a arguida a invocar que tal devia ter acontecido quando ambos caíram nas escadas. Não se percebeu, porém, quando e como tal teria acontecido, em particular, como seriam provocadas as escoriações. Por fim, refira-se que a mordedura no braço, que a arguida confirma ter acontecido, não é compatível com a circunstância de apenas ter acontecido enquanto meio de defesa da mesma ao golpe de “mata leão” que o ofendido lhe fazia nesse momento. Ora, se o ofendido apenas a queria impedir de entrar em sua casa, considerando o porte físico de cada um deles (o do ofendido significativamente superior ao da arguida), qual a necessidade de o mesmo lhe aplicar esse golpe? Bastava segurá-la pelos braços e com o seu corpo, mais pesado e corpulento, impedir que a mesma passasse.

Nesta parte, a Defesa quis ouvir a testemunha António Batista, militar da GNR que recebeu a queixa apresentada pelo ofendido a 12/11/2022 quanto ao episódio em apreciação (fls. 5-6). Ora, não tendo sido qualquer facto presenciado pelo autuante, o mesmo limitou-se a esclarecer o Tribunal quanto ao procedimento que habitualmente adota quando recebe queixas e elabora o respetivo auto de notícia. A ser assim, o seu depoimento revelou-se inócuo para a apreciação dos factos, em particular no que concerne ao alicate de pontas.

Ainda nesta parte, e sem prejuízo do que se dirá infra, a Defesa procurou inculcar a ideia de que o ofendido a teria agredido e teria procurado influenciar os filhos de ambos sobre os acontecimentos efetivamente verificados.

Para tanto, e além do mais, a arguida juntou aos autos do processo de inquérito n.º 316/22.5GCVFR, a 10/12/2022, prints de trocas de mensagens entre o ofendido e os filhos de ambos (fls. 152-169).

Vejamos.

Nas mensagens via WhatsApp trocadas entre o ofendido e o filho FF fica patente a revolta do mesmo em relação ao pai, não em virtude de comportamentos de violência entre este e a mãe, mas em virtude do fim da relação familiar. Note-se que a mensagem remetida pelo FF ao pai, em 14/11/2022, às 20h42, na sequência de tentativas de contacto infrutíferas por parte do progenitor, aquele refere “não atendi o telefone porque estou muito triste e desiludido contigo, criaste nos falsas esperanças quando sabias que não ia acontecer, e mentiste nos durante um ano”.

Por outro lado, nas mensagens trocadas via Instagram entre o assistente e a filha CC, constatamos igualmente que a mesma, quando confrontada pelo pai com a necessidade de falar sobre “o que aconteceu na 6f anterior”, querendo reportar-se ao episódio em discussão nos autos, uma vez que entendia que a mesma apenas estava a ouvir uma versão e que tal não correspondia à verdade, começa por dizer “N eu sei a vdd” e, de seguida, “Mas tu mentiste me”. Mais acrescenta, em resposta à mensagem do progenitor em que este diz “Não menti nada. A mentir estás tu ao afirmar que eu bati na mãe […]”, o seguinte “Mentis te s pq quando eu te perguntei se tu me estavas a mentir a dizer que n tinhas ninguém tu disseste que n então eu até ai acreditei mas chegou me aos ouvidas que tu estavas com ela à 3 ou 2 semanas enquanto tu disseste que quando tu tivesses alguém eu seria a primeira a saber”. Só depois refere CC, em resposta à mensagem em que o progenitor afirmou que ela estaria a mentir por dizer que o mesmo tinha batido na mãe, que “Pq a mãe está marcada e tu disseste que não estavas a fazer nada à mae”.

Ora, daqui se retiram duas conclusões. A primeira, e tal como sobressaiu em sede de audiência de julgamento aquando das declarações da testemunha CC, a sua revolta e aquilo a que a testemunha se referia quanto à mentira era circunstância de o progenitor ter uma nova companheira, o que implicava o fim irremediável da relação familiar. Ou seja, a revolta da testemunha prendia-se com essa circunstância e não com qualquer agressão entre os progenitores.

A segunda, é a de que, embora quer o assistente quer a arguida afirmem perentoriamente que a testemunha CC assistiu a tudo, estamos em crer que não terá sido assim. Com efeito, quando confrontada pelo pai de que estaria a mentir pelo facto de afirmar que o mesmo tinha batido na mãe, a testemunha, em nenhum momento, diz “mas eu vi”, a testemunha apenas se refere às marcas que a mãe apresentava (necessariamente em momento posterior) e à circunstância de o assistente ter afirmado que não tinha feito nada à mãe. Ora, se ela tivesse visto, não teria respondido naqueles termos. Não se olvida que estamos perante uma criança, à época, com 11 anos, mas das mensagens trocadas é patente a facilidade com que a mesma expressa.

Por outro lado ainda, quando diretamente questionada pelo progenitor se a mesma o tinha visto a bater na progenitora, a mesma responde “N mas vi tu a apertares a mãe várias vezes e n é só por dizeres que. Ai de quem se meta com a mãe eu parto lhe uma cadeira nas costas. Que tu podes apertar a mãe como se ela fosse sei lá oque” e ainda “[…] tu meio que bateste à mãe pq apertastia e aquilo está muito mas muito feio” “Cada dia mais negri” “*Negro”. Após insistência, questionada sobre se tinha visto a mãe a dar um estalo e pontapés ao pai, responde a testemunha “N eu n vi nada disso eu estava a atar os atacadores”. Ora, evidentemente, numa situação como a que é carreada para os autos – seja na versão da arguida, seja na do ofendido – não é de todo crível que a filha de ambos, com 11 anos à época, se lembrasse de atar os atacadores enquanto o pai agredia a mãe ou a mãe agredia o pai. Evidentemente que a resposta dada naquela mensagem foi uma forma de a testemunha evitar responder ao que lhe era perguntado, não se querendo comprometer com uma versão que fosse contra os interesses da mãe. Tanto mais que, como referimos, a testemunha se mostrava revoltada com o progenitor por este lhe ter mentido sobre a circunstância de ter uma namorada sem que lhe tivesse dado a conhecer a mesma.

Sem prejuízo disso, cumpre referir que, da análise dos prints juntos, é patente que foram truncadas certas partes de mensagens, em particular, quanto ao que a testemunha CC escreveu – por exemplo, fls. 154 e 159 –, o que impede a compreensão integral do contexto em que as mesmas foram trocadas. De todo o modo, na parte em que é compreensível, não é coincidente com a versão carreada pela arguida.

Por outro lado, o sentimento de revolta é igualmente atestado pelos relatórios psicológicos juntos aos autos pela arguida em 10/12/2022 e datados de 07/12/2022 (fls. 150-151).

Relativamente ao facto provado em 17), o mesmo decorre não só do depoimento da própria testemunha GG, como também do ofendido e da própria arguida que reconhece que, no momento em que conseguiu subir as escadas interiores de acesso ao sótão, viu que aquela se encontrava fechada na casa de banho, embora tivesse saído nesse momento. Ficou, assim, provado que GG se encontrava na casa de banho e não no quarto, como constava da acusação. Tendo, porém, essa circunstância decorrido, além do mais, do alegado pela própria defesa, a alteração dos factos a que o Tribunal procedeu neste âmbito não exigia a comunicação prévia da mesma nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, atento o disposto no n.º 2 daquele preceito.

No que concerne ao facto provado em 18, embora a arguida negue ter apelidado GG de “vaca”, confirmou o demais. Porém, a testemunha GG referiu a utilização daquela expressão pela arguida o que, de acordo com o estado de exaltação em que a mesma se encontrava e atenta a necessidade de confrontar aquela testemunha, conforme alegado pela própria arguida, formou o Tribunal a convicção de que efetivamente a tinha apelidado assim.

Relativamente ao facto provado em 19), foi também a arguida que reconheceu ter sido a própria a dizer a CC para que entrasse por estar frio no exterior. Já quanto ao tempo que durou o episódio, a convicção do Tribunal estribou-se nos depoimentos consentâneos do ofendido e das testemunhas GG, DD e EE quanto a essa circunstância.

O facto 20) é reconhecido igualmente pela própria arguida.

Quanto ao facto provado em 21), o mesmo decorre da análise dos documentos juntos aos autos a fls. 173, correspondente à listagem dos processos pendentes no Juízo de Família e Menores no final de 2022 quanto a arguida e ofendido, bem como da certidão remetida pelo processo de divórcio a que acima se aludiu e de onde resulta que o ofendido assumia nessa ação a qualidade de autor. A concreta data em que foi intentada tal ação não resultou, porém, apurada, por nenhum dos documentos se referir à mesma. Todavia, declarou o ofendido, de modo que nos mereceu credibilidade, que tinha sido logo após o episódio em discussão nos autos.

O facto provado em 22) decorre, no essencial, do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal e das fotografias juntas aos autos pelo ofendido (fls. 28-30 e fls. 241-250 e 758-762, estas últimas a cores).

Com efeito, dispõe o artigo 163.º do CPP que “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”.

Conforme refere FIGUEIREDO DIAS, “se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer – já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é suscetível de uma crítica igualmente material e científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal (…)” (cfr. Figueiredo Dias apud A. Henriques Gaspar et all., Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 632).

A ser assim, nenhuma questão se tendo levantado – nem se suscite ao Tribunal – quanto aos factos base em que assentou a realização do juízo pericial, a conclusão aí alcançada encontra-se necessariamente subtraída à livre apreciação do julgador, porquanto este não possui conhecimentos técnicos e científicos suscetíveis de abalar aquele juízo (e não estamos perante uma hipótese de inequívoco erro). Isto, no que concerne às concretas lesões que o ofendido apresentava.

Já quanto ao nexo de causalidade entre as lesões descritas em tal relatório pericial e a atuação da arguida, tal decorre da demais factualidade provada nos autos, em particular, o provado em 13) e 16). Com efeito, foi o estado de exaltação da arguida e o seu comportamento agressivo e os movimentos por si concretizados que originaram as lesões que o ofendido apresentava no dia 14/11/2022, quando foi observado.

Aqui chegados, e em suma, temos que, ao longo de todo o seu depoimento, a arguida procurou transmitir uma ideia de que se tratava de pessoa calma (“que não descia dos seus saltos”), que evitava “conflito ao máximo” e que não se revia nos comportamentos e expressões que lhe eram imputados. Do mesmo modo, também a testemunha HH, amiga da arguida há mais de 15 anos e sua colega de trabalho, descreveu a arguida como uma pessoa honesta, íntegra e carinhosa. Não a vendo como colérica ou com raiva, embora admita que, devido à sua insegurança e ao facto de ser muito emotiva e ansiosa e com “pavio curto” (expressão invocada pela Defesa e a que a testemunha anuiu), às vezes podia parecer ciumenta e desconfiada, e aquela ansiedade e emoção podiam traí-la.

Todavia, estamos em crer que a emotividade da arguida e a circunstância de se ter apercebido que o seu casamento, de quase duas décadas, tinha atingido um ponto de rutura potenciaram uma reação exacerbada da mesma – como frequentemente acontece – e que, na verdade, não aconteceria não fosse esse concreto circunstancialismo. Com efeito, naquele dia e naquele momento, efetivamente a arguida, e de acordo com o que sempre resultaria apenas das suas próprias declarações, durante aquele episódio, procurou efetivamente o conflito, atendendo ao estado de exaltação em que se encontrava. A arguida procurou o confronto quer com GG, quer com o ofendido, insultando-o e provocando-o.

Mais, ficou evidente, pelo modo como depôs a arguida e por situações do passado conjugal que invocou, que o processo de separação e de divórcio não foi pacífico, tendo sido particularmente emotivo e doloroso para si. Donde, também por aí se torna difícil crer que os acontecimentos se desenrolaram nos termos por si descritos.

Por outro lado, sempre se diga que, mesmo volvidos dois anos sobre os acontecimentos, em sede de audiência de julgamento, ao longo de todo o seu depoimento, a arguida demonstrou um estado de alguma ansiedade e intranquilidade, mexendo-se e gesticulando e emocionando-se (inclusive, desenquadrando-se do microfone apesar de ser advertida para não o fazer), transportando para as suas declarações uma boa parte das emoções e sentimentos daquele dia e evidenciando a sua dificuldade em manter-se serena. Compreende-se que o confronto com a circunstância do seu companheiro de duas décadas ter refeito, entretanto, a sua vida amorosa, o que deitava por terra todas as esperanças na reconciliação, pudesse provocar um maior estado de exaltação na arguida e essa exaltação ficou patente no seu depoimento em sede de julgamento. De resto, a circunstância de a arguida ter batido com as próprias mãos na sua cara, é demonstrativa da falta de serenidade da arguida e da exaltação da mesma. Pelo contrário, porém, embora o ofendido tenha deposto igualmente de modo que revelava sentir ainda alguma emoção face ao sucedido, depôs de modo significativamente mais tranquilo.

Não se olvida que existe alguma incongruência na parte em que, tendo sido agredido com alicate e perante o estado de exaltação da arguida, ainda assim o ofendido ponderasse a hipótese de a arguida estar frente a frente com a testemunha GG. Todavia, tal como decorreu do depoimento do mesmo, esse momento só aconteceu depois de a arguida aparentar estar mais calma, sendo que não tinha autorizado a entrada daquela em sua casa. Refere o ofendido que a arguida se aproveitou do facto de aquele não ter trancado a porta, para seguir no seu encalço.

Do mesmo modo, e sendo de apontar comportamentos incongruentes, também não faz sentido que a arguida, tendo sido vítima de um “golpe de mata leão”, conforme por si referido, ainda tivesse continuado no local em vez de ir embora e, no entanto, dúvidas inexistem de que efetivamente a arguida lá ficou cerca de uma hora.

Neste conspecto, importa referir que, efetivamente, ao longo do seu depoimento a arguida foi imputando diversas vezes ao ofendido que este a tinha insultado e agredido. Todavia, tendo a arguida – constituída assistente – oportunamente deduzido acusação particular pelo crime de injúria contra o ofendido, aí arguido, e tendo recaído sobre a mesma um despacho de não pronúncia em sede de instrução, não cabe agora apreciar tais factos nesta fase.

Assim, embora a arguida tenha apresentado queixa, dando origem ao auto de notícia de 12/11/2022 ao qual foi atribuído o NUIPC 316/22.5GCVFR (fls. 189-193) e no âmbito do qual foi inquirida na qualidade de testemunha, tendo juntado fotografias de alegadas lesões provocadas pelo ofendido (fls. 129-135), a verdade é que tal inquérito foi objeto de despacho de arquivamento aquando da dedução de acusação pública, sem que tivesse merecido qualquer reação por parte da arguida. Donde, mostram-se irrelevantes os factos que estivessem abrangidos pelo mesmo, bem como pelo aditamento de fls. 105-107 e de fls. 401-402.

Do mesmo modo, foram desconsiderados os aditamentos e documentos de fls. 441, 445-451, 472-481, 538 verso-540, 544 verso-545, 580-626, por não se reportarem aos presentes autos, atenta a separação de processos determinada em sede de inquérito.

Pelo contrário, na apreciação da factualidade constante dos autos, o Tribunal considerou o aditamento ao auto de notícia datado de 15/11/2022 (fls. 33-34 e 76-77), as cópias juntas referentes ao processado em sede de processo de regulação das responsabilidades parentais, isto é, processo n.º 3955/22.T8VFR-A, que correu termos no Juiz 1 do Juízo de Família e Menores de Santa Maria da Feira (fls. 260-274), bem como ao processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge posteriormente convertido em divórcio por mútuo consentimento, conforme ata de tentativa de conciliação de 18/01/2023 (fls. 279-282).

No que concerne às consequências (não físicas) da atuação da arguida para o ofendido (facto provado em 23)), cumpre referir que o Tribunal valorou particularmente o depoimento deste e o da testemunha GG. Ambos declararam, de modo concordante, que, após aquele episódio, nos momentos e dia subsequente, o ofendido se sentiu envergonhado pelo sucedido, seja pelo facto de os vizinhos terem assistido, seja porque se sentia desconfortável com o que as pessoas pudessem pensar por ele ser homem e ter ficado com aquelas lesões provocadas por uma mulher. Assim, na verdade, o sentimento que reportaram não se ficou a dever a qualquer posição de subjugação ou de humilhação decorrente da especial posição da arguida, mas simplesmente pelo facto de esta ser mulher e ele homem e ser, em concreto, fisicamente mais robusto do que a arguida (em sede de julgamento foi possível observar o aspeto físico de ambos, sendo notória a maior corpulência do ofendido em relação à arguida). Por diversas vezes, durante o seu depoimento, o assistente realçou essa circunstância.

No que respeita à consciência e vontade de atuar nos termos vindos de aludir (factos provados 24) a 26)), uma vez que se tratam de realidades não diretamente apreensíveis, estas resultam do cotejo da matéria objetiva dada como provada, a qual permite a este Tribunal, com base nas regras de experiência comum e da razoabilidade, inferir a sua verificação.

Com efeito, analisando o conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, nenhuma razão há para que este Tribunal não considere que a arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, querendo efetivamente atingir e agredir fisicamente o ofendido no seu corpo, bem como atingi-lo na sua honra com aquelas expressões que lhe dirigia e que sabia serem lesivas da dignidade, do bom nome e da reputação deste.

Atendendo às concretas condutas adotadas pela arguida, é manifesto que a mesma, apesar de terem negado a sua prática, conhecia a ilicitude das mesmas e a sua punibilidade pela lei penal. As regras da experiência comum não permitem uma conclusão diversa.

Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas da arguida, foram tidas em consideração as declarações prestadas pela mesma em sede de julgamento, em relação às quais, nesta parte, foram merecedoras de credibilidade, bem como o relatório social elaborado e junto aos autos em 09/09/2024. Acresce que, no que respeita aos seus rendimentos, as suas declarações não são infirmadas pelas pesquisas realizadas nas bases de dados da Segurança Social a 18/09/2024 e juntas aos autos nessa data.

Por fim, no que tange aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal baseou-se na análise dos respetivos Certificados de Registo Criminal datados de 18/09/2024, igualmente juntos aos autos nessa data.


*

No que concerne à factualidade negativa constante do facto não provado I), ficou por demonstrar que a arguida tivesse agido movida por esse interesse. Na verdade, nesta parte, as suas declarações encontraram suporte nas declarações prestadas pelo ofendido quando ambos se referiram à circunstância de a arguida ter insistido com a necessidade de saber com quem o ofendido estava e em falar com essa pessoa como um modo de encerrar aquele capítulo da sua vida.

Quanto ao facto não provado II), cumpre referir que não resultou da prova produzida que a arguida tivesse atuado com a finalidade de se vir a aproveitar da situação, vitimizando-se. Como se explanou supra, a arguida atuou num ímpeto de ciúmes e possessão, mas situando-se a sua atuação num episódio único, sem outros intentos. Nenhum elemento da prova produzida aponta no sentido que constava do libelo acusatório nesta matéria. Com efeito, de tudo o que ficou dito supra e da perceção dos acontecimentos adquirida em virtude da concatenação de toda a prova, ficou patente o estado de exaltação momentâneo da arguida pela circunstância de se ver confrontada com o novo relacionamento do então ainda marido. Todavia, entendemos que esse estado foi episódico e irracional, inexistindo uma segunda intenção por trás do mesmo.

No que à factualidade não provada em III) respeita, cumpre referir que foi o próprio ofendido que apenas referiu ter sido mordido no braço esquerdo e não também no direito. Acresce que, relativamente à lesão que apresentava na cabeça, referiu também o ofendido que a mesma se ficou a dever ao facto de, durante a altercação com a arguida, ter batido com a cabeça na parede das escadas, que é áspera, e não a qualquer golpe diretamente efetuado pela arguida nessa zona.

Relativamente ao facto não provado em IV), como dissemos já, não foram estes os sentimentos que resultaram dos depoimentos do ofendido e da testemunha GG que com o mesmo convivia. Acresce que, em nenhum momento se reportaram a qualquer sentimento de condicionamento da vida amorosa do primeiro. Com efeito, referiram o receio que sentiram quanto à possibilidade de vir a ocorrer outro episódio semelhante, mas tal não condicionou a vida amorosa do ofendido. De resto, e conforme resultou provado, o ofendido, ainda aquando dos acontecimentos, informou a arguida sobre quem era a sua companheira e ponderou permitir que a mesma falasse com ela, precisamente para que pudesse prosseguir com a sua vida. Ora, daqui não decorre que tivesse existido qualquer condicionamento.

Por último, quanto ao facto não provado em V), como também já viemos de expender, da concatenação da prova, incluindo no que às declarações e postura da arguida respeita, entendemos que a sua atuação decorreu de um episódio isolado, de forte emoção e descontrolo, mas sem os intentos que lhe são imputados no libelo acusatório. De facto, nada se provou quanto à pretensão da arguida em querer impedir que o ofendido prosseguisse com a sua vida amorosa (foi o próprio a admitir que a insistência da arguida em saber quem era a pessoa e em querer falar com ela era no sentido de poder resolver as coisas consigo própria). Do mesmo modo, nada resultou provado quanto a uma eventual intenção da arguida em pretender apresentar-se como vítima de agressões físicas. Ficou ainda por provar que a arguida pretendesse atingir efetivamente a dignidade do ofendido, mas tão só a sua integridade física e o seu bom nome e honra.”

3. Apreciando

Recurso do M.P.

O Ministério Público discorda da decisão a quo argumentando que os factos provados configuram o crime de violência doméstica devido à intensidade e natureza dos atos praticados, incluindo invasão de domicílio, insultos e agressões físicas com um alicate, mesmo tratando-se de um único episódio. Subsidiariamente, o recurso defende que, caso não se considere violência doméstica, a condenação deveria ser por ofensa à integridade física qualificada, dada a especial censurabilidade da conduta.

Centra os seus argumentos em que os factos provados configuram o crime de violência doméstica e, subsidiariamente, que deveriam ser classificados como crime de ofensa à integridade física qualificada.

Relativamente à classificação como crime de violência doméstica, o Ministério Público argumenta que:

1.O desvalor da ação e do resultado dos factos ocorridos em 11/11/2022 é muito intenso e suscetível de, por si só, lesar o bem jurídico protegido pela norma incriminadora, apontando para a invasão do domicílio, os insultos proferidos, as agressões físicas com um alicate, mordidelas e pontapés, as lesões causadas e o sentimento de enxovalho da vítima2 ....

2.Não é necessária a reiteração de condutas para que se configure o crime de violência doméstica, bastando um único ato ofensivo com um elevado desvalor.

3.O tipo legal do crime de violência doméstica não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor, mas apenas um dolo de domínio demonstrando o comportamento da arguida uma tentativa de domínio e um sentimento de posse sobre o ofendido.

4.As condutas da arguida ocorreram no âmbito de uma relação de proximidade existencial com a vítima (seu ainda cônjuge), o que integra os crimes individualmente analisados no crime especial de violência doméstica.

Subsidiariamente, caso não se entenda que se verifica o crime de violência doméstica, o Ministério Público defende que a conduta da arguida deveria ser classificada como crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) conjugado com o art.º 143º, n.º 1 e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b) do Código Penal, e não como ofensa à integridade física simples, argumentando que para a qualificação reside no facto de a arguida ter agredido fisicamente o seu ainda cônjuge com um alicate, mordendo-o e pontapeando-o no domicílio dele e na presença da filha menor, circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade ou perversidade.

Recurso do assistente.

Visa impugnar tanto a apreciação dos factos como a qualificação jurídica dos mesmos, defendendo que a arguida deveria ter sido condenada por violência doméstica, e não apenas por ofensa à integridade física simples, solicitando ainda indemnização e considerando a filha menor como vítima autónoma do crime.

Argumenta invocando a errónea apreciação e valoração da prova produzida e a errada qualificação jurídica dos factos.

Relativamente à errónea apreciação e valoração da prova produzida, o recorrente alega que:

-Os factos dados como não provados não refletem a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sendo mesmo em alguns casos contrários à mesma e contraditórios entre si.

-Especificamente, o recorrente discorda que não tenha sido provado que a arguida atuou determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa (Facto I), argumentando que tal intenção é evidente à luz dos factos dados como provados nos pontos 6, 9, 10, 12, 13, 14, 18 e 24, bem como do depoimento da testemunha GG e da própria arguida. O recorrente considera incompreensível a contradição entre reconhecer o ciúme e a possessão como motivações iniciais e negar a intenção de condicionar a vida amorosa da vítima.

-O recorrente contesta também que não tenha sido provado que a arguida atuou para se vitimizar futuramente (Facto II), sustentando que a arguida tentou inverter os papéis durante o julgamento, imputando agressões ao assistente e apresentando queixa contra ele pelos mesmos factos (Processo nº 316/22.5GCVFR que foi arquivado).

-Quanto ao Facto III (que a arguida atingiu o ofendido no crânio e mordeu o braço direito), o recorrente alega que, apesar de o assistente ter mencionado apenas a mordedura no braço esquerdo, o relatório pericial atesta a mordedura no braço direito, havendo uma contradição com o facto 22 dado como provado que alude ao relatório pericial.

-No que respeita ao Facto IV (que a vítima se sentiu humilhada e condicionada na sua liberdade de prosseguir a sua vida amorosa), o recorrente afirma que os factos provados nos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 23, 24 e 25 transmitem a ideia de que o assistente se sentiu enxovalhado e, portanto, humilhado, tendo havido agressões físicas e verbais perante terceiros. O recorrente cita ainda o testemunho do assistente sobre a sua vergonha e o receio de represálias da testemunha GG.

-Relativamente ao Facto V (que a arguida agiu determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa, com o intuito de o humilhar, vitimizar-se e limitar a sua liberdade), o recorrente argumenta que este facto está em contradição com os factos provados nos pontos 23, 24 e 25 e que as declarações do assistente e das testemunhas DD e EE demonstraram a intenção da arguida de humilhar o assistente perante terceiros.

No que concerne à errada qualificação jurídica dos factos, o recorrente considera que:

-Os factos provados pelo tribunal de primeira instância configuram o crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º do Código Penal, e não apenas um crime de ofensa à integridade física simples.

-Argumenta que não é necessária a reiteração criminosa para a verificação do crime de violência doméstica, bastando um único episódio de intensidade considerável.

-O recorrente sublinha a gravidade do episódio em questão, com a arguida a deslocar-se à casa do assistente, injuriá-lo, agredi-lo fisicamente com empurrões, mordeduras e golpes com um alicate, tudo na presença da filha menor.

-O recorrente contesta a conclusão do tribunal de que não houve intenção de humilhação ou exercício ilegítimo de poder, argumentando que atuar por ciúmes e possessão implica considerar a outra pessoa como uma "coisa" e que enxovalhar tem o mesmo significado de humilhar.

-O recorrente defende que a conduta da arguida demonstra o propósito de agredir, maltratar, ofender e humilhar o assistente, causando-lhe medo, inquietação e lesando a sua dignidade.

-Adicionalmente, o recorrente alega que a arguida deverá ser condenada também por um crime de violência doméstica na pessoa da filha menor, CC, uma vez que esta presenciou as agressões e ficou transtornada, sendo considerada vítima autónoma nestes casos.

Vejamos, pois.

Comecemos por saber se a decisão recorrida padece do vício da contradição insanável entre a fundamentação ou entre esta e a decisão.

Tendo presente o argumentário apresentado pelo recorrente assistente faremos uma análise conjunta discutindo o vício juntamente com a impugnação ampla feita, uma vez que se mostram intrincados.

Dizemos antes de mais que o invocado vício que, aliás, é de conhecimento oficioso (tal como o vício do erro notório e o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mencionados nas alíneas a) e b) do artigo 410º nº 2 do CPP) alude a alínea c) do nº 2 do artigo 410º Código de Processo Penal, conforme decorre do corpo do nº 2 de tal artigo, tem de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.” Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e segs.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, a que se reporta a alínea b) do artigo 410.º, do CPP, aquela (contradição insanável da fundamentação) ocorrerá nas situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e não provado, e esta (contradição insanável entre a fundamentação e a decisão) ocorrerá nas circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão, vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

A contradição tem de resultar do texto da sentença e tem que se revelar insolúvel, inultrapassável, implicando ou uma alteração da decisão ou o reenvio do processo para julgamento.

No que diz respeito à impugnação alargada a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º, nos quais é expressamente estabelecido:

3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior faz-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Na especificação dos factos o recorrente deverá indicar o(s) concreto(s) facto(s) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorretamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar o documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação.

A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, apesar de incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Sendo o recurso um remédio, pretende-se é corrigir concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstrem tais erros estejam também elas concretizadas e localizadas, tanto mais que, segundo estabelece ainda o nº 6 de tal artigo 412º, “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Importa ainda ter presente que só se pode determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.

A reapreciação da prova na 2ª instância limita-se a controlar o processo de formação da convicção expressa da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/fundamentação da decisão, sendo que no recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal ad quem não vai à procura de nova convicção – a sua – mas procura inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos (pericial, documental, etc). Neste enquadramento, podendo o controlo da matéria de facto ter por base a gravação dos depoimentos prestados ou analisados em audiência de julgamento, importa ter sempre presente que não se pode, a qualquer preço, subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialeticamente, na base da imediação e da oralidade, nunca esquecendo as palavras do Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, págs. 233 e 234) que só os princípios da imediação e da oralidade “… permitem … avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.

Diz o recorrente que grande parte dos factos dados como não provados entram em contradição com factos dados como provados, pelo que deveriam ter sido considerados, também eles, como provados:

Assim, relativamente ao facto I) dado como não provado ("Na circunstância aludida em 9), a arguida atuou determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa.") entra em contradição com os factos dados como provados nos pontos 6), 9), 10), 12), 13), 14), 18) e 24), que demonstram a não conformidade da Arguida com a nova relação do Assistente e o seu comportamento motivado por ciúmes e possessão.

Vendo os pontos provados supra referidos:

6) Nessa sequência, a arguida não se conformou com a decisão da vítima em prosseguir com a sua vida amorosa depois da separação de facto.

9) Nesse momento, a arguida motivada por ciúme e possessão, e diante da filha menor e da vítima, que no entretanto se dirigiu ao exterior da habitação, imediatamente começou a gritar, em tom exaltado, sempre dirigindo-se à vítima, apodando-o repetidamente de PORCO, BADALHOCO e COBARDE.

10) No mesmo tom exaltado, também afirmou que a vítima abandonou a família por causa “daquela gaja”, referindo-se à companheira da vítima, dizendo que tinha sido traída.

12) Contudo, nem a presença da filha menor nem de terceiras pessoas fez coibir a arguida de continuar a dirigir-se à vítima apodando de PORCO, BADALHOCO e COBARDE e de exigir que a vítima a deixasse entrar na sua residência, para a arguida se confrontar com a companheira da vítima.

13) Enquanto a vítima pediu para a arguida se acalmar e para não adotar aqueles comportamentos diante da filha menor, que começou a chorar, a arguida exigiu à vítima que lhe dissesse qual era o carro da companheira para lhe provocar estragos e começou a tentar forçar – através de empurrões – a entrada na residência da vítima, afirmando a arguida que não sairia daquele local enquanto não entrasse na residência.

14) Inicialmente, e por medo que a arguida agredisse fisicamente GG, a vítima não deixou a arguida entrar na sua residência.

18) Contudo, no decorrer da altercação, a arguida foi ao encontro de GG, dizendo-lhe: “há quanto tempo estão juntos? destruíste o nosso casamento, sua vaca”, na sequência do que GG voltou a introduzir-se na casa de banho, fechando a porta.

24) Ao atuar da forma descrita, agiu a arguida de modo livre, voluntário e consciente, motivada por ciúme e possessão, com o intuito concretizado de atentar contra a honra da vítima, de o enxovalhar, de invadir e se introduzir no domicílio da vítima contra a sua vontade, e de o molestar fisicamente.

Perante a análise do texto por si só não podemos deixar de dar razão ao recorrente.

E essa contradição também existe na fundamentação de Direito da sentença, onde se reconhece o ciúme e a possessão como motivação inicial, mas não na atuação da Arguida. Como se pode ver dos factos supra mencionados a arguida agiu com despeito e possessa de ciúme.

A acrescer e agora no âmbito da impugnação ampla não pode ignorar-se o depoimento da testemunha GG, que relatou as perguntas da Arguida como "quem é a puta com quem estás?" e "Quem é que ela é? É a II? É a JJ? É a GG? Quem é essa puta?" e as próprias declarações da Arguida em audiência, onde afirmou não tolerar que outra mulher cuidasse dos seus filhos.

Relativamente ao facto II) dado como não provado ("A arguida atuou na circunstância aludida em 15) para assim se vitimizar futuramente pelo seu próprio comportamento.")

O que diz o ponto 15 dos factos dados como provados:

15) Contudo, a arguida continuou a insistir, em estado colérico, continuando a provocar a vítima, a pedir-lhe para reagir e a pedir-lhe para que este a agredisse, pretendendo esgotar a paciência da vítima e conduzi-lo a agredi-la fisicamente.

Perante este facto torna-se claro que a arguida agiu querendo provocar também a reação do assistente e assim se vitimizar enquanto alvo de agressões físicas, constatando-se, pois uma contradição.

A acrescer e no âmbito da revista alargada não pode se desconsiderar a postura da Arguida durante as sessões de audiência, onde tentou inverter os papéis e imputar responsabilidade ao Assistente, a queixa apresentada pela Arguida contra o Assistente pelos mesmos factos, que resultou em arquivamento (Processo nº 316/22.5GCVFR).

Relativamente ao facto III) dado como não provado ("Na circunstância aludida em 16), a arguida atingiu o ofendido no crânio e mordeu o braço direito do mesmo."):

O ponto 16 dos factos provados refere “16) Passadas várias dezenas de minutos com este comportamento, a arguida logrou introduzir-se na residência da vítima e aí muniu-se de um alicate de duas pontas, empurrou a vítima, mordeu-o nos braços, pontapeou-o nas pernas e desferiu-lhe vários golpes com aquele objeto nos braços esquerdo e direito e pernas esquerda e direita, causando imediato sangramento.”

Ora, aqui é referido que a arguido mordeu o assistente nos braços, o que significa também no braço direito, logo podendo concluir-se pela existência de uma contradição.

Por sua vez, e saindo do texto, o relatório pericial comprova a existência de uma mordedura no braço direito do Assistente, apesar do Assistente se ter referido apenas à mordedura no braço esquerdo.

Ora, sendo o relatório mais próximo aos eventos, o tribunal não o podia ignorar e dar-lhe o devido respaldo.

Também tal circunstância entra em contradição com o facto 22) dado como provado, que menciona o teor integral do relatório pericial e a lesão no braço direito e no crânio.

Refere o ponto 22: “22)Como consequência direta e necessária das descritas condutas da arguida, a vítima BB sofreu, além de dores, as seguintes lesões: a. Crânio: eritema da metade esquerda da região perietal, com 2,5cm de maior eixo e edema do lóbulo da orelha esquerda;

b. Membro superior direito: equimose arroxeada-amarelada, situada no terço médio da face interna do braço, com 11cm de maior eixo; escoriação na face posterior do cotovelo, com 4cm de maior eixo; escoriação avermelhada, com crosta, situada no dorso do punho, com 2cm de maior eixo;

c. Membro superior esquerdo: equimose arroxeada-amarelada situada no terço distal da face anterior do braço, com 6cm de maior eixo;

d. Membro inferior direito: escoriação linear e vertical, com 14cm, rodeada por equimose arroxeada-amarelada, com 16cm por 10cm; escoriação avermelhada, situada no terço médio da face anterior da perna, com 4cm;

e. Membro inferior esquerdo: escoriação avermelhada infra-centimétrica circundada por equimose arroxeada-amarelada, com 2,5cm de maior eixo, com queixas álgicas à mobilização do joelho.”

Donde resulta que as lesões corporais resultaram do comportamento agressivo da Arguida, nomeadamente aquelas que deu como não provadas.

Relativamente ao facto IV) dado como não provado ("Como consequência direta e necessária das condutas da arguida, a vítima sentiu-se humilhado e condicionado na sua liberdade de prosseguir a sua vida amorosa."):

Para além do que acima se referiu já a propósito do condicionamento da liberdade de prosseguir a vida amorosa, os factos provados 9), 10), 11), 12), 13), 23), 24) e 25) que indicam que o Assistente se sentiu enxovalhado, donde resulta uma patente contradição.

Vejamos os pontos acima referidos:

“9) Nesse momento, a arguida motivada por ciúme e possessão, e diante da filha menor e da vítima, que no entretanto se dirigiu ao exterior da habitação, imediatamente começou a gritar, em tom exaltado, sempre dirigindo-se à vítima, apodando-o repetidamente de PORCO, BADALHOCO e COBARDE.

10) No mesmo tom exaltado, também afirmou que a vítima abandonou a família por causa “daquela gaja”, referindo-se à companheira da vítima, dizendo que tinha sido traída.

11) A este ponto já assistiam ao comportamento da arguida não apenas a menor CC, mas também o vizinho da vítima e a companheira deste, DD e EE.

12) Contudo, nem a presença da filha menor nem de terceiras pessoas fez coibir a arguida de continuar a dirigir-se à vítima apodando de PORCO, BADALHOCO e COBARDE e de exigir que a vítima a deixasse entrar na sua residência, para a arguida se confrontar com a companheira da vítima.

13) Enquanto a vítima pediu para a arguida se acalmar e para não adotar aqueles comportamentos diante da filha menor, que começou a chorar, a arguida exigiu à vítima que lhe dissesse qual era o carro da companheira para lhe provocar estragos e começou a tentar forçar – através de empurrões – a entrada na residência da vítima, afirmando a arguida que não sairia daquele local enquanto não entrasse na residência.

23) Como consequência direta e necessária das descritas condutas da arguida, a vítima sentiu-se enxovalhado.

24) Ao atuar da forma descrita, agiu a arguida de modo livre, voluntário e consciente, motivada por ciúme e possessão, com o intuito concretizado de atentar contra a honra da vítima, de o enxovalhar, de invadir e se introduzir no domicílio da vítima contra a sua vontade, e de o molestar fisicamente.

25) Ao atuar da forma descrita, agiu a arguida de modo livre, voluntário e consciente, sabendo e querendo atuar na presença da filha menor de ambos, CC e sabendo e querendo atuar contra o seu cônjuge e progenitor dos dois filhos menores.

Ora, estes factos atestam o comportamento humilhante da arguida. Factos que transmitem a mesma ideia, ou seja, que o Assistente se sentiu enxovalhado pelo comportamento da Arguida, tendo sido agredido física e verbalmente perante a sua filha, perante a sua companheira e perante vizinhos.

Mas mais da prova produzida resulta a expressão utilizada pela Arguida de que "toda a gente ia saber a merda que ele [o Assistente] era, que ele [o Assistente] não vale nada".

Temos ainda o depoimento do próprio Assistente sobre a vergonha que sentiu,Assistente: (…) tive muita vergonha. Aliás, tanta vergonha que neste momento os meus pais não sabem os pormenores (…) Aquilo foi uma vergonha tão grande (…)” o depoimento da testemunha GG sobre o receio de represálias.

Ainda a contradição com o facto 23) dado como provado, onde se refere que a vítima se sentiu enxovalhada, sendo enxovalhado sinónimo de humilhado.

Relativamente ao facto V) dado como não provado ("Ao atuar da forma descrita nos factos provados, a arguida agiu determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa, com o intuito concretizado de o humilhar perante terceiras pessoas e perante a filha menor, e de o provocar a que este, perante o comportamento da vítima, respondesse com alguma agressão física, para assim a arguida se apresentar como falsa vítima, e de limitar a liberdade de ação e decisão da vítima, bem sabendo que dessa forma atentava, como atentou, contra a dignidade da vítima e o molestava psicologicamente."):

Esta realidade dada como não provada revela-se inconsistente com os factos provados 23), 24) e 25).

A que acresce a demonstração da intenção de humilhar e enxovalhar o Assistente perante terceiros através das declarações do Assistente quando menciona o que a arguida disse ("Esta malta aqui tem que saber, as pessoas têm que saber quem é o deputado da ..., o filho da puta, que é um traidor (…) só faz adultério, que me traiu, que me abandonou”).

Reforçado pelos testemunhos de DD ("ela a dizer que toda a gente tinha de saber a merda que ele é...") e EE ("Ela dizia que não queria saber, que as pessoas tinham que saber o que ele era.")

Declarações do Assistente:Eu disse para ela, «Olha, mas fala baixa que estão pessoas aqui.», Resposta da arguida «Esta malta aqui tem que saber, as pessoas têm que saber quem é o deputado da ..., o filho da puta, que é um traidor (…) só faz adultério, que me traiu, que me abandonou” (minutos 00:09:20 a 00:09:38)

Testemunha DD:Muita discussão…a AA sempre a falar muito alto, a insultá-lo. O senhor BB a pedir para ela parar e ela a dizer que toda a gente tinha de saber a merda que ele é...” (00.04:28 a 00:04:44)

Testemunha EE: “Ela dizia que não queria saber, que as pessoas tinham que saber o que ele era. Que o senhor devia de saber a quem é que tinha arrendado a casa.” (00:06:03 a 00:06:10)

A Sentença do Tribunal a quo acaba por dizer tudo e o seu contrário, uma vez que afirma, por um lado, que o Assistente se sentiu enxovalhado e, por outro lado, que não se sentiu humilhado, como consequência direta e necessária da conduta da Arguida; afirma, por um lado, que a Arguida se deslocou a casa do Assistente motivada pelo ciúme e pela possessão e, por outro lado, que não foram esses sentimentos que presidiram às agressões físicas e verbais perpetradas com o Assistente (olvidando mencionar, nesse caso, quais foram as motivações da Arguida); afirma, por um lado, que a Arguida imputou ao Assistente diversos insultos e agressões, e, por outro lado, não atuou com o intuito de se vitimizar futuramente pelo seu próprio comportamento (quando isso ficou patente na denúncia por violência doméstica apresentada contra o Assistente pelos mesmo factos e durante toda a audiência de discussão e julgamento).

Para além das contradições existentes, pode igualmente concluir-se tendo presente a prova produzida que se imponha outra decisão quanto aos factos em questão, porquanto a convicção espraiada pela decisão a quo conflitua com as regras da experiência comum atendendo ao contexto em que se desenrolaram os factos.

Em face do exposto pode constatar-se que ocorre o vicio da contradição insanável da fundamentação, o qual pode ser corrigido com base no art. 431º, al. a) e b) do CPP e nessa medida deverão ser dados como provados os factos acima mencionados dados como não provados em sede de primeira instância, passando os pontos:

I) Na circunstância aludida em 9), a arguida atuou determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa.

II) A arguida atuou na circunstância aludida em 15) para assim se vitimizar futuramente pelo seu próprio comportamento.

III) Na circunstância aludida em 16), a arguida atingiu o ofendido no crânio e mordeu o braço direito do mesmo.

IV) Como consequência direta e necessária das condutas da arguida, a vítima sentiu-se humilhado e condicionado na sua liberdade de prosseguir a sua vida amorosa.

V) Ao atuar da forma descrita nos factos provados, a arguida agiu determinada a não deixar a vítima prosseguir a sua vida amorosa, com o intuito concretizado de o humilhar perante terceiras pessoas e perante a filha menor, e de o provocar a que este, perante o comportamento da vítima, respondesse com alguma agressão física, para assim a arguida se apresentar como falsa vítima, e de limitar a liberdade de ação e decisão da vítima, bem sabendo que dessa forma atentava, como atentou, contra a dignidade da vítima e o molestava psicologicamente, a ser considerados como provados.

Relativamente ao recurso do M.P o mesmo cinge-se ao enquadramento jurídico dos factos originalmente dados como provados entendendo que tais factos por si preenchiam o crime de violência doméstica.

Do enquadramento jurídico dos factos.

Socorremo-nos das considerações do tribunal a quo a propósito do tipo de crime em questão.

A arguida vem acusada da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, al. a), e n.os 4 e 5, do CP.

Decorre do disposto no artigo 152.º, n.º 1, do CP que “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau;

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;

é punido […]”.

Acrescenta, porém, a al. a) do n.º 2 do mesmo normativo, além do mais, que, se os factos vindos de aludir forem praticados na presença de menor ou no domicílio da vítima, a pena é agravada no seu limite mínimo.

Através do crime de violência doméstica protege-se um bem jurídico complexo como é o da saúde, que deve ser entendido em sentido amplo, “enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos”, que abrange, assim, a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral (cfr. P. Conde Correia, “Violência doméstica. Novo quadro penal e processual penal” in Violência Doméstica e Violência na Intimidade, Coleção Temas, Centro de Estudos Judiciários, 2021, p. 31, disponível aqui).

Deste modo, não será qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima que permitirá o preenchimento do tipo legal. Em boa verdade, estando em causa uma dimensão protetora da dignidade da pessoa humana, que pretende assegurar as condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo, só condutas efetivamente maltratantes, que conduzam à degradação daquela dignidade pelos maus tratos, poderão integrar o tipo incriminador (cf. P. Conde Correia, op. cit., p. 31, e A. Lamas Leite, “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia” in Julgar, n.º 12 (especial), 2010, p. 49, disponível em Julgar).

Estaremos perante um crime de perigo abstrato, e não um crime de dano, uma vez que o tipo objetivo não pressupõe uma efetiva lesão do bem jurídico, sendo suficiente a sua colocação em perigo. Entendimento diverso não só não encontra respaldo no preceito legal, como coloca em causa as finalidades político-criminais deste ilícito penal (cfr. Nuno Brandão, “A tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, in Julgar, n.º 12 (especial), 2010, pp. 16-18, disponível aqui).

É ainda crime de resultado, já que a sua consumação pressupõe uma alteração do mundo físico decorrente (e distinta) da conduta adotada, obrigando a averiguar a adequação (imputação objetiva) do resultado àquela conduta. Sendo certo que o processo causal que conduz ao resultado não se encontra tipificado, motivo pelo qual estamos perante um crime de execução não vinculada (cfr. P. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Ed. Atualização, Universidade Católica Editora, 2021, p. 118).

O tipo objetivo do ilícito inclui, no que à conduta diz respeito, em concordância com o artigo 3.º, al. b), da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul a 11/05/2011 (ex vi Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro), “todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima”. Assim, todas as condutas que traduzam esta violência e não devam ser punidas com uma pena mais grave por força de outra disposição legal, em virtude da regra da subsidiariedade estabelecida na parte final do artigo 152.º, n.º 1, do CP, devem ser enquadradas no crime de violência doméstica.

I. O bem jurídico na violência doméstica é a saúde física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade da pessoa humana, da vítima, individualmente considerada, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal. II. O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. E quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual). III. A dificuldade em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros, supera-se através do conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos, os quais se podem traduzir «em ações muito diversas, incluindo bofetadas, murros, pontapés, beliscões, empurrões, abanões, puxões de cabelo, mordeduras, compressões de partes do corpo com as mãos ou objetos, traumatismos com objetos, queimaduras, intoxicações, ingestão ou inalação forçadas, derramamento de líquidos, imersão da vítima ou de partes do seu corpo. Podem também decorrer da omissão de cuidados indispensáveis à vida, saúde e bem-estar da vítima (relativamente a vítimas dependentes ou indefesas, nomeadamente em razão da idade ou do estado de saúde)…». Decisivo é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar.” [Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo nº 521/22.4PAPTM.E1, datado de 24/10/2023]

Com efeito, o crime de violência doméstica engloba condutas que são suscetíveis de se subsumir a vários tipos de ilícitos, seja em concurso efetivo, seja aparente, “como a ofensa à integridade física, ameaça, sequestro, coação, injúria, difamação, devassa da vida privada, violação de correspondência, gravações e fotografias ilícitas, dano, coação sexual, violação, abuso sexual de menores, homicídio na forma tentada ou consumada” (cfr. P. Conde Ferreira, op. cit., p. 30). Donde, por maus tratos físicos devemos entender aqueles que poderiam ser abarcados pelo crime de ofensa à integridade física (simples); por maus tratos psíquicos, os atos que possam corresponder aos crimes de ameaça (simples ou agravado), de coação (simples), difamação ou injúria (simples ou agravado). Ainda na violência psíquica cabem os maus tratos de caráter económico e as privações de liberdade que incluem o sequestro (simples), e as ofensas sexuais englobam a coação sexual prevista no artigo 163.º, n.º 2, do CP, a violação prevista no artigo 164.º, n.º 2, a importunação sexual ou ainda ao abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.º, n.os 2 ou 3, do CP.

O que está em causa é a utilização de violência entendida como “qualquer forma de uso intencional da força, coacção ou intimidação contra terceiro ou toda a forma de acção intencional que, de algum modo, lese a integridade, os direitos e necessidades dessas pessoas” (cfr. Celina Manita apud A. Lamas Leite, op. cit, p. 32).

Todavia, estas condutas, cujo elenco é meramente exemplificativo, devem traduzir “atos que revelam sentimentos de crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima” (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e Especial com notas e comentários, Almedina, Coimbra, 2014, p. 619), de modo a que se possa concluir que, com tal atuação, “o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objeto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/09/2019, relatado por José Adriano, disponível em www.dgsi.pt). Com efeito, “o que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre esta, evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da mesma” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/11/2020, relatado por Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt). Se assim não for, então, cada um dos comportamentos deve ser analisado atomisticamente, reassumindo os respetivos tipos incriminadores em que se inserem a sua autonomia.

Por outro lado, integra ainda o tipo objetivo a existência, atual ou pretérita, de uma determinada relação entre o agente e o sujeito passivo, sendo, por isso, um crime específico, um “crime de relação” (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, op. cit., p. 617). PINTO DE ALBUQUERQUE refere mesmo que a essência do crime de violência doméstica, nesta parte, é que se verifique uma situação de domínio do agente sobre a vítima (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 643).

Assim, o sujeito passivo do crime de violência doméstica terá de ser, em relação ao agente, cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa com quem mantenha ou tenha mantido relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum de 1.º grau, mesmo que não haja nem tenha havido relação análoga à dos cônjuges (por exemplo, nascimento ocorrido em virtude de encontro ocasional); namorado(a); pessoa particularmente indefesa que com ele coabite (seja em razão da idade, de doença, deficiência, gravidez, dependência económica ou outras); ou ainda menor que seja descente do agente ou de qualquer uma das pessoas acabadas de referir, ainda que não coabite com o agente.

No fundo, o que se pretendeu foi fazer depender o preenchimento do tipo incriminador de uma “proximidade existencial efectiva”, isto é, “uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a)(cfr. A. Lamas Leite, op. cit., p. 52). Donde, estão excluídas do âmbito de proteção desta norma as relações de natureza afetiva ou mesmo sexual meramente fortuitas ou ocasionais, tal como namoros passageiros, flirts ou relações de amizade (cfr. P. Conde Correia, op. cit., p. 35, e A. Lamas Leite, op. cit., p. 52).

Em suma, “esta incriminação [prevista no artigo 152.º do CP] visará punir condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam num exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, etc. do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima (sendo esta bastas vezes reduzida a uma mera «coisa»)” (cfr. J. Moreira das Neves, “Violência doméstica – bem jurídico e boas práticas, in Violência Doméstica e Violência da Intimidade, Coleção Temas, Centro de Estudos Judiciários, 2021, pp. 95-96, disponível aqui). Motivo pelo qual, não é possível a prática do crime de violência doméstica em reciprocidade nem é possível a verificação do crime se não estivermos perante pessoas relacionadas com o agente numa das formas vindas de aludir (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 643). Daí que, por exemplo, provando-se que, no contexto de discussões familiares, a vítima utilizava expressões do mesmo jaez, o facto de o arguido se lhe ter dirigido apelidando-a de “puta” e dizendo-lhe “vai-te foder”, não preenche todos os elementos do tipo objetivo do crime de violência doméstica (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, op. cit., p. 619).

O preceito legal em análise é claro ao consagrar que os maus tratos podem consubstanciar atos reiterados ou não, pelo que vários atos se podem aglutinar e formar o crime, tal como uma conduta isolada pode consubstanciar o crime de violência doméstica, conquanto que ofenda a vítima de modo especialmente desvalioso e particularmente censurável (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 644). Donde, no tipo objetivo estão previstos, em alternativa, a reiteração ou a existência de uma conduta excecionalmente intensa.

A reiteração é “um estado de agressão permanente”, ainda que não constante, mas em que se verifica uma proximidade temporal relativa entre as agressões. Uma vez que nem sempre é fácil situar num momento específico cada uma delas, poderá ser suficiente a fixação de balizas temporais com a concretização suficiente para assegurar o exercício do contraditório pelo arguido (cfr. P. Conde Correia, op. cit., p. 32).

Nos casos em que o crime se consuma com um único ato, este terá de revelar, porém, especial ilicitude, com exigências aprofundadas nesse plano, porquanto o que está em causa neste ilícito criminal é um tratamento da vítima incompatível com a sua dignidade e liberdade, considerando, desde logo, a relação existente entre o agente e a vítima (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, op. cit., pp. 618-620).

Sem prejuízo disso, havendo prolongamento no tempo, poderá relevar a apreciação da ocorrência de alterações legislativas no decurso da conduta do agente, e, consequentemente, a definição da lei aplicável.

Uma das circunstâncias que leva à agravação da moldura da pena no seu limite mínimo é que tais factos tenham ocorrido no domicílio comum do agente e da vítima, ou seja, o local da coabitação, ou no domicílio desta última. Com esta previsão, o legislador pretendeu censurar de modo mais severo os casos de “violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas” (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 645).

No que respeita ao elemento do tipo subjetivo, enquanto conhecimento e vontade de concretizar factos que preencham os elementos do tipo, cumpre referir que o crime de violência doméstica exige a presença de dolo, em qualquer uma das modalidades previstas pelo artigo 14.º do CP. Assim, podemos estar perante dolo direto, a que corresponde uma vontade intencional dirigida à realização do facto, perante dolo necessário, que consiste na vontade dirigida à prática do facto, incluindo todas as suas consequências necessárias e indispensáveis, ou ainda perante dolo eventual, que corresponde a uma conformação do agente com a prático do facto, bem como com as suas eventuais consequências (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 160). Esta exigência abrange, naturalmente, o conhecimento correto da identidade e das características da vítima, bem como das circunstâncias que conduzem à agravação da pena.

Por conseguinte, o agente terá de prever e querer importunar e ofender a saúde da vítima, bem como ofender a sua honra, consideração e a sua liberdade de determinação, tratando-a de modo desumano, maldoso e humilhante, não obstante saber que tem para com a vítima especiais deveres de respeito e consideração decorrentes da relação amorosa que os une ou uniu e, sendo o caso, da coabitação.

Mais terá de prever e querer adotar tais comportamentos perante pessoa menor de idade ou no domicílio da vítima.

Revertendo ao caso dos autos, temos que a arguida e o ofendido casaram em julho de 2005 e permaneciam casados em 2022. Verifica-se, pois, a relação de proximidade existencial efetiva correspondente à relação de cônjuges há quase duas décadas.

Deste relacionamento, ficou provado que nasceram FF, em 2009, e CC, em 2011.

Temos ainda que, em meados de 2022, o ofendido pretendeu terminar a relação marital, tendo deixado de residir na residência comum, e passado a habitar em ..., arrendando um espaço para o efeito.

Por outro lado, temos que entre meados de 2022 e o dia 11/11/2022, o ofendido desenvolveu uma nova relação amorosa com GG, o que acabou por se tornar do conhecimento da arguida em data não concretamente apurada, mas antes do episódio ocorrido no final daquele dia 11/11/2022.

Provou-se também que, por não se ter conformado com a decisão do ofendido em prosseguir com a sua vida amorosa, naquele dia 11 de novembro, pelas 22h00, a arguida dirigiu-se à residência do ofendido, acompanhada da filha menor de ambos, CC, por forma a confrontá-lo com essa nova relação que ele mantinha.

Assim, motivada por ciúme e possessão e diante da filha menor, a arguida em tom exaltado, dirigiu-se ao ofendido apodando-o repetidamente de “porco”, “badalhoco” e “cobarde”.

Para além disso, provou-se que a arguida, com um alicate de duas pontas, empurrou o ofendido, mordeu-o nos braços, pontapeou-o nas pernas e desferiu-lhe vários golpes com aquele objeto nos braços e pernas para além de ter sido responsável em face da sua conduta pelas lesões sofridas pelo assistente na sua cabeça. Daqui resultaram diversos eritemas, edemas, equimoses e escoriações.

Mais se provou que, ao longo deste episódio, que durou cerca de uma hora e na habitação do ofendido, não só a filha de ambos esteve a assistir, como também terceiros acabaram por assistir ao sucedido, atento o tom com que a arguida falava.

Provou-se que a arguida agiu igualmente com o fito de condicionar o ofendido na sua nova vida amorosa, confrontando-o com o novo relacionamento e à sua companheira criando receios a esta.

Provou-se igualmente que a arguida quis humilhá-lo e vexá-lo perante terceiros tendo-o expressado diversas vezes no confronto e ao ter-se deslocado à casa do ofendido possessa de ciúmes não se fez rogada procurando entrar à força na sua casa, munida de um alicate que usou, ferindo o assistente ao ponto de o fazer sangrar, colocou-se numa posição de domínio fazendo-lhe diversas exigências, logrando contra a vontade do ofendido entrar em casa dele, impondo a sua presença perturbando a paz e o sossego do assistente e sua companheira e demais vizinhança, sujeitando o assistente ao seu comportamento. A persistência e intensidade na ação, revela uma manifestação de superioridade da arguida em relação ao ofendido, que visa desconsiderar, diminuir e mesmo humilhar o mesmo.

Com tal ilícito criminal, pretende-se sancionar comportamentos que sejam cruéis, degradantes e desumanos, o que pode evidenciar-se pela reiteração de determinados atos ou pela gravidade de um só ato ou ainda apela conjugação de ambas as circunstâncias. Em qualquer caso, crucial é que essa(s) atuação(ões) atinja(m) a dignidade humana, impedindo um livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo. Como referimos já, é necessário que se tratem de atos reveladores de sentimentos de crueldade, desprezo, especial desejo de humilhar ou de fazer sofrer a vítima.

Entendemos ter sido isto que resultou provado.

De facto, a arguida deixou-se mover por sentimentos de ciúme e possessão e atuou de modo exagerado, colérico e até irracional, e quis durante cerca de uma hora humilhar o ofendido e fazê-lo sofrer como se constatou pelas lesões provocadas.

Da atuação da mesma evidenciou-se exercício ilegítimo de poder ou de domínio sobre a integridade física, a liberdade ou a honra do ofendido, designadamente, em virtude de um estado de tensão que foi propositadamente criar àquelas horas da noite e de medo como se constatou pelo receio que pudesse fazer mal à sua companheira e ao próprio em face dos atos repetidos e violentos que adotou, levando o assistente a um papel de mero passivo ficando sujeito àquele comportamento que procurou conter, pedindo calma e procurando impedi-la de aceder à sua casa ou de ali continuar.

A arguida revelou uma clara intenção de domínio para com o Assistente, pois achava-se no direito de invadir e importunar o assistente no seu lar para tirar satisfações sobre a vida pessoal dele.

Não se compreende como o Tribunal a quo tenha dado como provado que a Arguida atuou por ciúmes e possessão e depois entenda que a mesma não atuou de forma a conduzir o Assistente a mera “coisa” – salvo melhor entendimento, atuar com possessão é entender que a outra pessoa é uma “coisa” sua, uma “propriedade” sua, fazendo dela o que quiser, é atuar com a intenção de domínio e subjugação do outro.

Na verdade, a arguida reagiu de modo exacerbado perante a circunstância de ver terminar o seu relacionamento de quase duas décadas, as expressões dirigidas ao ofendido e as agressões nele provocadas com uso de um instrumento metálico atingem a gravidade necessária para configurar aquele ato como uma situação de violência doméstica.

Apesar não ter existido reiteração, a gravidade da atuação da arguida durante cerca de uma hora, teve um pouco de tudo, pelo que lesou o bem jurídico complexo que se pretende acautelar.

Não se pode olvidar a circunstância de a filha ainda menor da arguida que ela trouxe consigo e do ofendido ter assistido a todo o episódio, bem como terceiros terem assistido, agrava o efeito da atuação da arguida. Atentas as concretas expressões utilizadas (porco, badalhoco e cobarde), as agressões perpetradas (empurrões, mordeduras, golpes com alicate de pontas nas pernas e braços, lesões na cabeça) e o contexto circunscrito da atuação, permitem concluir pelo preenchimento de todos os elementos do tipo de ilícito a que corresponde o crime de violência doméstica.

Como refere o M.P a quo:

a) O ofendido BB já se tinha separado de facto da arguida em Setembro de 2022 e estava a viver sozinho numa casa arrendada, pois pretendia divorciar-se (aliás, entre setembro/outubro de 2022, a arguida e o ofendido chegaram a reunir-se juntamente com os seus respetivos advogados para discutir o divórcio e a regulação das responsabilidades parentais);

b) A arguida tomou conhecimento de que ele estaria numa relação e deslocou-se às 22h00m, do dia 11/11/2022, à residência dele levando consigo um alicate e a sua filha CC, menor de idade;

c) Aí chegada a arguida, usando de força, invadiu o domicílio do ofendido;

d) A arguida insultou o BB apodando-o de “porco, badalhoco e covarde”;

e) E fê-lo na presença da filha menor CC, da companheira do BB (GG) e dos vizinhos DD e EE;

f) A arguida exigiu ao BB que lhe dissesse qual era o veículo da sua companheira para lhe provocar danos ao mesmo tempo que forçava a entrada na casa;

g) A arguida provocou o BB, pedindo-lhe para ele a agredir, procurando dessa forma esgotar a sua paciência e, em consequência, levá-lo a descontrolar-se e a ter um comportamento irrefletido que o poderia penalizar;

h) A arguida desferiu golpes com um alicate no BB atingindo-o em diversas zonas do corpo (braço esquerdo e pernas) provocando-lhe imediato sangramento;

i) A arguida mordeu o BB nos braços e pontapeou-o nas pernas;

j) Na sequência da conduta da arguida, o BB ficou com lesões no crânio, nos membros superiores esquerdo e direito e nos membros inferiores esquerdo e direito;

k) A arguida insultou a companheira do BB, a GG, apodando-a de “vaca”;

l) Apesar de um ato isolado (num só dia), o episódio em causa teve uma duração de pelo menos 50 minutos (que para o ofendido, porventura, deveriam parecer horas) e não se esgotou num só ato, mas num conjunto sucessivo de atos suscetíveis lesarem múltiplos bens jurídicos individualmente considerados (a honra, a liberdade, a integridade física e a privacidade do lar);

m) No decorrer dos referidos comportamentos, a filha CC, começou a chorar;

n) O BB sentiu-se enxovalhado.

Portanto, temos um conjunto multifacetado de comportamentos violentos, reiterados por cerca de 50 minutos, praticados no domicílio da vítima, na presença da menor CC e de vizinhos, com consequências graves para a saúde física e mental do ofendido.

Em resumo: considerando a “situação ambiente existente” à data dos factos (o casal já estava separado de facto) e analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pela arguida, entendemos estar preenchido o tipo legal de crime de violência doméstica.

Na verdade, a conduta da arguida integra o conceito de maus tratos físicos e psíquicos, suscetíveis de afetarem a dignidade pessoal do ofendido, pondo em causa o seu bem-estar e saúde psicológica e, por isso, estão verificados os elementos objetivos e subjetivo do crime de violência doméstica. Com o devido respeito, discordamos do vertido em sede de sentença quando se diz que: “Da atuação da mesma não se evidenciou qualquer exercício ilegítimo de poder ou de domínio sobre a vida, a integridade física, a liberdade ou a honra do ofendido, designadamente, em virtude de um estado de tensão, de medo, ou de sujeição deste e que conduzisse a que este ficasse reduzido a mera “coisa” (sublinhado nosso).

Isto porque, o tipo legal do crime não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor, mas apenas um dolo de domínio.

Neste sentido Ac. TRP de 12/06/2024, Proc. N.º 227/22.4PBMTS.P1, Relatora Liliana Páris Dias: “I - Objeto de tutela do crime de violência doméstica é a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental. II – O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é, assim, a saúde –física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. III - O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação, de sequestro, de importunação sexual, de coação sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra. IV – A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Por outro lado, não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor. V - Com efeito, e para além do mais, podem existir maus tratos físicos e psíquicos, típicos do art.º 152.º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente e o tipo sociológico prevalente das situações de

violência doméstica). Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de “subjugação”, disponível em www.dgsi.pt

Ora, não há maior manifestação de tentativa de domínio, de expressão de um sentimento de posse, da visão do ofendido como coisa sua, do que o comportamento levado a cabo pela arguida.

Por outro lado, também não acompanhamos o destaque vertido em sede de sentença de que: “não só não existe qualquer reiteração na conduta (ficou provado um único episódio)” para afastar a verificação do tipo legal de crime, porque com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo

legal de crime de violência doméstica a prática de um ato isolado e sem que se exija a reiteração de conduta. Aliás, o próprio Tribunal “a quo” reconheceu que o crime de violência doméstica podia consumar-se por referência a um único episódio, mas depois na conclusão final não deixou de assinalar que, para além do mais, não existiu uma “reiteração de conduta”. Ora, se a conduta da arguida fosse desmontada por três dias diferentes (por exemplo: num dia injúrias, no outro ameaça\violação de domicílio e no outro agressões), porventura, já estaria verificado o tipo legal do crime de violência doméstica?

No caso concreto, a pedra de toque não está na reiteração ou não da conduta, mas no desvalor de ação e resultado da própria conduta seja ela reiterada ou não. E, nesta perspetiva, não há diferença entre as duas hipóteses: temos para nós que tanto é violência doméstica a conduta global que a arguida teve no dia 11/11/2022, como também seria se ela tivesse praticado cada um dos crimes singularmente considerados em três dias diferentes. O que importa saber é se a conduta da arguida AA, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa de BB ou de desejo de prevalência de dominação sobre o mesmo, é ou não suscetível de ser qualificada como “maus tratos” e atingir de modo relevante a saúde física e mental do ofendido: se a resposta for positiva, o crime de violência doméstica está verificado.

Por fim, com o devido respeito, temos alguma dificuldade em entender que a Meritíssima Juiz tenha considerado que a conduta da arguida seja de gravidade “relevante”, mas ao mesmo tempo “não suficientemente significativa para o ilícito em causa, não tendo sido apuradas consequências particularmente gravosas para o ofendido”.

Isto porque, foi o próprio Tribunal “a quo” que deu como provado que o arguido sofreu dores e lesões em várias partes do corpo e se sentiu enxovalhado.

Diga-se ainda, que com quadros fáticos de idêntica ou até menor intensidade de desvalor da ação e resultado do que aquele que consta na matéria de facto provada nestes autos, têm ocorrido na jurisprudência condenações pela prática do crime de violência doméstica em que os “maus tratos” se cingiram a um único episódio. Vide Veja-se a título de exemplo, entre outros: o Ac. STJ de 02/10/2024, Proc. N.º 156/23.4GBVNG.P1.S1, Relator Antero Luís: “I. No crime de violência doméstica um único acto, ainda que isolado, é passível de preencher o tipo, desde que essa acção seja apta a colocar em causa, de forma intolerável, a dignidade da vítima ou a sua liberdade de determinação; II. O crime de violência doméstica encontra-se, numa relação de especialidade, com o crime de ofensas à integridade física simples e de subsidiariedade expressa em relação a outros crimes punidos mais gravemente “por força de outra disposição legal” (artigo 152º, nº 1 in fine do Código Penal); III. Comete o crime de violência doméstica o arguido que no leito conjugal, ao ser questionado pela ofendida sobre uma pretensa infidelidade, desfere-lhe uma cotovelada no peito e depois, com ambos os elementos do casal já levantados da cama, agredi-a com vários socos na cabeça e, por várias vezes, apelidou-a de “ciumenta” e “louca” e posteriormente, munido de uma faca, apontou-a ao pescoço da vítima e aproximou a faca do abdómen da mesma e disse-lhe “eu furo-te a barriga”; IV. A persistência e intensidade na acção, revela uma manifestação de superioridade do arguido em relação à sua companheira, que visa desconsiderar, diminuir e mesmo humilhar a mesma, ao não admitir ser questionado ou contrariado, reagindo com ofensas e ameaças desproporcionais à questão que lhe foi colocada, impondo a vontade pela força e a aniquilação da vontade da vítima.” e o Ac. TRP de 21/02/2024, Proc. N.º 665/22.2PBMTS.P1, Relatora Paula Natércia Rocha: “Configura o crime de violência domestica o episódio temporalmente ocorrido em que o arguido deferiu murros na face e no corpo da assistente, e arremessou um objeto decorativo rígido, e que foram causa de marcas físicas na ofendida, inclusive no rosto, motivos pelos quais e por sentir vergonha, não saiu de casa durante duas semanas, episódio que valorado na sua unidade, integra o conceito de maus tratos físicos e psíquicos atentatório da dignidade pessoal da ofendida.”, disponíveis em www.dgsi.pt.

Ainda há quem até entenda defender que basta a relação de proximidade para o preenchimento do crime especial de violência doméstica.

Neste sentido Ac. TRC de 22/09/2021, Proc. N.º 158/19.5GABBR.C1, Relator Jorge Jacob: “I – O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra. II - A estrutura típica do crime p. e p. no artigo 152.º do CP não exige a verificação de qualquer relação de dependência ou de domínio exercida pelo autor desse ilícito sobre a vítima. III – A opção pelo tipo do artigo 152.º, em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente bens jurídicos por aquele atingidos, impõe a ocorrência de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime de violência doméstica ser indissociável da relação

presente ou passada prevista no normativo indicado. Se é possível estabelecer o nexo entre os maus tratos e a relação presente ou pretérita, ocorre violência doméstica; se, pelo contrário, esse nexo não pode ser estabelecido, a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objectivamente representa.” disponível em www.dgsi.pt.

Assim, ao proceder à desqualificação jurídica para o crime de ofensa à integridade física simples, o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do art.º 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do C.P.

Pretende o recorrente assistente que a Arguida deverá ser condenada não só pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa do Assistente, mas ainda deverá ser condenada pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da filha menor de ambos, CC.

Alega que, conforme resulta dos factos dados como provados e da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, a Arguida quando sai de sua casa para dirigir-se à casa do Assistente, já com o propósito de o agredir e maltratar, levou consigo a filha menor CC.

Para além disso, a menor CC presenciou, se não todos, praticamente todos os atos praticados (agressões e injúrias) pela Arguida contra o Assistente, tendo ficado bastante transtornada, chorosa, só pedia para que a mãe parasse e fossem embora.

Ora, a condenação da arguida pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da filha CC, não é possível. Não foi imputada na acusação pública a prática desse crime na pessoa da menor CC, mas apenas factos integradores da agravação prevista na al. a) do n.º 2 do art.º 152º do C.P. (na presença da menor); por outro lado, a matéria de facto provada e que constava da acusação não contém todos os elementos constitutivos do crime de violência doméstica relativamente à pessoa da menor CC.

Acresce que, segundo apurado nos autos, foi extraída certidão para averiguação de factos eventualmente integrados do crime de violência doméstica na pessoa da filha menor.

De acordo com o artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”

Ao tribunal incumbe apreciar o caso que lhe é submetido pela acusação, não podendo condenar para além da acusação.

No âmbito do princípio do acusatório, a acusação, proferida pelo MP, assume um papel fundamental ou decisivo no processo penal, pois esta fixa o objeto do processo e repercute-se na validade de atos processuais posteriores, sob pena de eventual nulidade desses atos (como ocorre com o despacho de pronúncia e a sentença, atento o disposto nos artigos 309.º e 379.º do Código do Processo Penal).

O Thema decidendum é fixado na acusação ou na pronúncia, havendo instrução, não podendo o tribunal julgar e condenar alguém que não tenha sido acusado ou pronunciado pela prática de um crime em concreto sob pena de violação dos mais elementares princípios de direito penal.

É aquele thema que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado ao que se chama de vinculação temática do tribunal, nele se consubstanciando o princípio da identidade, ou seja o objeto do processo mantém-se o mesmo desde a acusação/pronúncia até ao trânsito em julgado da sentença. Pelo que o tribunal não pode condenar para além dos limites daquelas peças processuais, vide Ac. STJ de 25.01.07 in www. djsi.pt, o que significa que aquelas peças devem conter a descrição dos factos de que o arguido é acusado descriminada e precisamente com relação a cada um dos atos m constitutivos do crime, devendo ser mencionados todos os elementos típicos da infração, sendo perante este quadro e esta factualidade que o mesmo arguido deve elaborar a sua estratégia de defesa, pelo não tendo sido acusado a arguida de forma autónoma neste processo quanto a crime de violência doméstica na pessoa da filha, não pode ser julgada nestes autos por tal. Improcede, nesta parte o recurso.

Relativamente ao pedido manifestado de arbitramento de indeminização ao Assistente.

A fls.92 in fine dos autos, aquando a sua inquirição como testemunha nos dia 17/11/2022, o Assistente e Ofendido expressamente referiu que não pretendia beneficiar de qualquer compensação indemnizatória por parte da aqui Arguida.

Nos termos do artigo 21.º, n.º 2, da Lei 112/2009, expressamente se refere que “Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”

Consequentemente em face da declaração manifestada nos Autos, o Assistente e Ofendido expressamente renunciou a beneficiar de qualquer compensação indemnizatória e, por conseguinte, está vedado a esta Relação de proceder a tal arbitramento.

O Artigo 82-A é claro nos seus propósitos: não assiste à Justiça a obrigatoriedade de arbitrar qualquer indemnização. A expressão “pode” é muito díspar da expressão “deve”, essa sim, que obrigaria ao arbitramento de uma quantia. Pode a Justiça, em função da gravidade da situação e particulares exigências de proteção da vitima chegar à conclusão que a conduta do agressor que ficou apurada e as concretas lesões ocorridas na vítima justificam a existência de arbitramento de qualquer montante.

Mas deve fazê-lo quando estão em causa vitimas especialmente vulneráveis conforme o estipula o art. 16º, n º 2 da Lei 130/15 de 04.09, exceto se elas expressamente se opuserem

Ao assistente foi-lhe atribuído o estatuto de vitima especialmente vulnerável. Todavia, no caso, não só o Assistente, expressamente renunciou à mesma, como instado a deduzir Pedido de Indemnização Civil igualmente não o fez, pelo que não é de proceder o pedido de reparação oficiosa.

Da Pena criminal Artigo 152.º

Violência doméstica

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos

Consigna o art.º 40º, nº1 do C.P. que a aplicação das penas tem por fim a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

“A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos, por parte dos cidadãos” – Ac. do STJ de 2000/11/30.

Na medida concreta da pena, segundo o art.º 71.º do C.P., há que atender-se à culpa do agente ainda que tendo em conta as exigências de prevenção,

Sendo que para graduar concretamente a pena ter-se-á que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, conforme resulta do nº 2 do art.º 71º do C.P.

Refere a este propósito o Ac. do STJ, de 2006/04/06 “a medida da pena será, portanto encontrada em função da culpa do agente, que impõe uma retribuição justa, ponderando as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente, às exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas á contenção da criminalidade e à defesa da sociedade e levando ainda em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra o agente.

Os critérios que a lei fornece para tanto são os previstos nos artigos 40º e 70º do Código Penal: a pena não pode ultrapassar a medida da culpa, entendida esta no sentido material, compreendendo tanto a vontade culpável como o seu objeto, que é o facto ilícito, e na sua concretização há que ter em conta a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Tendo em conta estes critérios, a fim de determinar a medida da pena há que ter atender não só às circunstâncias que fazem parte do tipo (na sua intensidade), como à imagem global do facto e todas as circunstâncias que neste contexto mais amplo, mas sempre com conexão com o facto, deponham contra ou a favor do agente (art. 71º do Código Penal). Deste modo, obter-se-á um limite máximo constituído pela culpa e uma submoldura, que em caso algum ultrapassará este, condicionada por considerações de prevenção geral positiva, dentro do qual funcionarão considerações de prevenção especial (artigo 40º e 71º do Código Penal).

Tendo presente que o dolo é direto e intenso da arguida consubstanciado no comportamento de cerca de uma hora, mais precisamente 50 minutos de gritos, insultos, agressões físicas com recurso a alicate, tentativa de forçar a entrada em habitação alheia e sua consumação e atuação na presença da filha menor de idade, que a gravidade da sua conduta é de ilicitude acima da média tendo em conta as lesões que provocou e a exposição a que sujeitou a vitima e demais pessoas envolvidas, emboras sem outras consequências mais graves, o facto de ter praticado os factos contra a seu ainda marido, pai dos dois filhos e que, por isso, lhe deveria merecer um respeito acrescido, a ausência de antecedentes criminais, sua inserção social e profissional e o contexto do então casal desavindo em fase de separação, consideramos adequada a pena de 02 anos e 03 meses de prisão.

Consciente dos efeitos criminógenos que o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional exerce sobre os agentes, impôs o legislador penal, nos termos do artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, que, quando a mesma seja aplicada em medida não superior a um determinado quantitativo e seja possível a sua substituição por pena não privativa da liberdade, o tribunal equacione a mesma e a concretize.

Excetuam-se os casos em que a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes ou a pena substitutiva não realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Nesta medida, atenta a medida concreta da pena fixada, de 02 anos e 03 meses de prisão, somente poderá́ ser equacionada a suspensão da sua execução, de harmonia com o preceituado no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que dispõe:

O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Primeiramente, importa ter presente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas pode ter lugar nas hipóteses em que:

-a pena de prisão fixada seja igual ou inferior a cinco anos e,

-à aplicação da suspensão subjaza a possibilidade de concretização de um juízo de prognose que, atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida e à

-sua conduta anterior e posterior ao crime, permita concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, as exigências de prevenção geral e especial.

Efetivamente, a suspensão da execução da pena de prisão “constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será́ possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá́ compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito” .

Paralelamente a este juízo de prognose favorável acerca da conduta futura do condenado, tendo em vista a aplicação desta pena substitutiva, deverá o julgador concluir que a aplicação da mesma não irá colocar em causa, inexoravelmente, a tutela dos bens jurídicos.

Tendo presente o disposto no art. 50º do Código penal, e uma vez que a pena de prisão não é superior a cinco anos e considerando que a arguida embora agindo sob o impulso do ciúme, não praticou outros atos para além daqueles naquele dia e que entretanto o casal se divorciou, e considerando ainda que:

27) Desde 2005, a arguida exerce atividade profissional na área de Medicina de Investigação, na faculdade de Medicina do Porto.

28) Por essa atividade, a arguida aufere cerca de € 1.500,00 mensais.

29) À data dos factos, a arguida residia com os filhos CC e FF em habitação pertencente à família, entretanto vendida aquando do divórcio.

30) Atualmente, a arguida reside na morada Rua ..., n.º ..., 1º esq., ... ..., juntamente com os filhos CC e FF.

31) A habitação corresponde a habitação de tipologia T3, arrendada, com condições de habitabilidade, inserida em meio residencial de zona periférica, não conectado com focos delinquenciais relevantes.

32) A arguida paga renda no valor de € 450,00.

33) A arguida possui Licenciatura em Microbiologia.

34) No meio social a arguida beneficia de uma imagem adequada.

35) A arguida detém capacidade de reconhecimento da ilicitude de factos da mesma natureza dos que lhe são processualmente imputados.

36) A arguida verbalizou ultrapassada a mágoa e tristeza face ao término da relação com o ofendido, compreendendo o dever de respeitar o espaço e individualidade do ofendido, acreditamos que episódios daqueles não vão ocorrer de novo e inexiste necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes tendo presente que não mais ocorreram incidentes semelhantes, a arguida apresenta-se totalmente inserida na sociedade e com relações aparentemente normalizadas com o ofendido, entende-se ser de suspender a execução daquela pena de prisão por igual período de tempo condicionada ao pagamento, nos termos do art. 51º do Cód. Penal de € 1000,00, atendendo aos seus rendimentos e despesas, a favor da APAV, no prazo de um ano a contar do trânsito desta decisão, comprovando-o nos autos, findo tal prazo, nos oito dias subsequentes, medida que se considera justa e adequada à conduta desvaliosa da arguida.

Das penas acessórias

Estatui o artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal que podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

O n.º 5 dispõe que a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

Outrossim, prevê o n.º 6 do mesmo normativo que quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 (um) a 10 (dez) anos.

A este propósito, também prevê̂ o n.º 1 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que:

o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.

Ademais, o n.º 1, do artigo 36.º do mesmo diploma legal preceitua que:

a utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta”.

Por outro lado, estatui o n.º 7 do mesmo normativo que a aplicação das penas acessórias não é obrigatória no caso de condenação pela prática de crime de violência doméstica, sendo que a apreciação da sua necessidade atendendo às circunstâncias do caso concreto se afirma como um poder-dever do julgador.

Resulta desse quadro legal que as medidas de afastamento (as previstas no artigo 152.º, n.ºs 4 a 6, do Código Penal e a contida no artigo 31.º da Lei n.º 112/2009) se apresentam como de aplicação diferenciada consoante as circunstâncias do caso concreto, sendo que apenas deverão ser aplicadas nas hipóteses mais graves em que as necessidades de prevenção e a proteção da vítima exigem uma tutela penal reforçada.

Tendo presente o suprarreferido não se afigura necessário aplicar qualquer pena acessória.

Nesta decorrência, procede em parte o recurso.

DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em:

1. Proceder à alteração da matéria fáctica nos termos supramencionados.
2. Conceder total provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e parcial provimento ao recurso do assistente e, consequentemente, revogar a sentença a quo na parte em que condenou a arguida pelo crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP e condenar a arguida AA pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n º 1, al. a) e c) e 2, al. a) do Código Penal na pena de 02 anos e três meses de prisão.
3. Suspender aquela pena de prisão por igual período nos termos do art. 50º do Código Penal com o dever de entregar a quantia de € 1000,00 (mil euros) à APAV no prazo de um ano a contar do trânsito em julgado desta decisão, comprovando-o nos autos no prazo de 08 dias após o término daquele prazo de pagamento.
4. Não fixar qualquer pena acessória.
5. Não determinar qualquer compensação pecuniária a favor da vitima.
6. Manter a condenação a quo da arguida em 2 (duas) UC’s de taxa de justiça.
7. Condenar o assistente pelo decaimento em 3(três) UC`s de taxa de justiça, (art. 515º, n º 1, al. b) do CPP)
8. Sem custas para o recorrente Ministério Público por delas estar isento (artigo 522º do Código de Processo Penal).
9. Sem dados nominativos, proceda às comunicações nos termos do disposto no art. 37º-A da L.112/2009, de 16 de Setembro.


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Sumário da responsabilidade do relator.

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Porto, 26 de março de 2025
(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente - artigo 94º, n.º 2, do CPP – sendo que as assinaturas do presente acórdão foram apostas eletronicamente e encontram-se certificadas)
Paulo Costa
Luís Coimbra
Paula Natércia Rocha
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[1] Diploma a que se reportarão as demais disposições citadas sem menção de origem ou apenas com a sigla CPP.