Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
658/19.7T8ILH.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
QUILOMETRAGEM ADULTERADA
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RP20221124658/19.7T8ILH.P1
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As situações enumeradas nas alíneas a) a d) do nº 2 do artigo 2º do decreto lei 67/2003, constituem presunção legal de desconformidade do bem adquirido pelo consumidor e o acordado no contrato de compra e venda.
II - Se as partes em novembro de 2018 acordaram na compra e venda de uma viatura automóvel usada, que apresentava à data da compra 50.000 km no conta quilómetros e se vem a descobrir que no livro de revisões respetivo, à data de 2014 a mesma apresentava 65.583km, verifica-se a desconformidade prevista na alínea a ) do nº 2 do artigo 2º do Dec. Lei 67/2003, fundamento do direito de resolver o negócio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 658/19.7T8ILH.P1


Sumário (artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra E..., Lda, peticionando:
- A declaração de resolução do contrato de compra e venda celebrado com a ré;
- A condenação da ré a restituir aos autores tudo aquilo que foi pago a título de prestações de crédito automóvel e ainda o valor das prestações futuras que se vencerem até ao trânsito em julgado da sentença:
- A condenação da ré a restituir aos autores os montantes que despenderam com a reparação dos defeitos da viatura;
- A condenação da ré a pagar aos autores uma indemnização de montante não inferior a 2.500,00€, pelos transtornos causados;
- A condenação da ré no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 50,00€ diários.
Para tanto, referem que manifestaram intenção, junto da ré, de comprar uma viatura Nissan ..., com quilometragem reduzida, alguns extras e com preço até 17.000€, que por sua vez importou a viatura, por alegadamente ser mais barata.
A viatura importada apresentava 50.071 km; e diversos danos visíveis.

O autor marido foi informado de que o estado do chassis não parecia corresponder aos quilómetros indicados no quadrante, pois que o chassis estava bastante danificado e com marcas visíveis de um estado avançado de ferrugem.
Posteriormente, o autor marido descobriu na viatura o livro de revisões, que referia que a 27/11/2014, o veículo tinha 65.583 kms, o que evidencia, no seu entender, uma adulteração de quilometragem.
Face ao que antecede, os autores remeteram à ré uma missiva, a 30 de Abril de 2019, manifestando a intenção de anular extrajudicialmente o negócio celebrado.
Exceção dilatória de ilegitimidade passiva, aduzindo que não foi interveniente no negócio de compra e venda da viatura e que os autores a adquiriram na Alemanha a 28/09/2018, diretamente ao seu anterior proprietário, pelo que deveriam demandar diretamente o vendedor ou o fabricante.
Invocaram ainda a exceção de preterição de litisconsórcio necessário passivo, com os mesmos fundamentos.
Que apenas prestou consultoria na legalização do veículo que os autores importaram e prestou serviços de intermediação financeira entre estes e a entidade financeira 321 C... - ..., S.A.
Deduziu pedido reconvencional contra os autores, peticionando que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de 500,00€, alusiva aos serviços de consultadoria e intermediação de crédito prestados e não pagos.
Mais peticiona a condenação dos autores como litigantes de má-fé, por considerar que adotaram uma conduta censurável, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não poderiam ignorar.

A SENTENÇA DECIDIU
1. Julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência,
1.1. Declarar resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre os autores AA e BB e a ré E..., Lda, que teve por objeto o veículo da marca Nissan, modelo ..., com o número de quadro ..., atualmente com a matrícula portuguesa ..-XG-..;
1.2. Condenar os autores AA e BB a entregar à ré E..., Lda o veículo automóvel descrito em 1.1., após trânsito em julgado da presente decisão;
1.3. Condenar a ré E..., Lda a restituir aos autores AA e BB o valor das prestações mensais por si suportadas a título de crédito automóvel subjacente ao veículo mencionado em a), até à data do trânsito em julgado da presente decisão, e o valor decorrente da amortização antecipada do mesmo, deduzido da desvalorização entretanto sofrida pelo veículo, cuja quantificação remeto para ulterior incidente de liquidação da presente sentença, nos termos do disposto no artigo 358.º e seguintes, do Código de Processo Civil;
1.4. Condenar a ré E..., Lda a pagar a cada um dos autores, AA e BB, a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), totalizando a quantia de 1.000€ (mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos;
1.5. Condenar a ré E..., Lda a pagar aos autores AA e BB a quantia de 455,49€ (quatrocentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e nove cêntimos) a título de danos patrimoniais sofridos;
1.6. Julgar a atuação processual da ré E..., Lda como litigante de má-fé e, consequentemente:
1.6.1.Condenar a ré E..., Lda no pagamento de uma multa processual no valor correspondente a 2 (duas) unidades de conta;
1.6.2.Condenar a ré E..., Lda a pagar aos autores AA e BB a quantia de 500,00€ (quinhentos euros) a título de indemnização;
1.7. Absolver os autores AA e BB do pedido de condenação como litigantes de má-fé, peticionada pela ré E..., Lda;
1.8. Absolver a ré E..., Lda do demais contra si peticionado pelos autores AA e BB;
2. Julgar a demanda reconvencional totalmente improcedente e, em consequência, decido absolver os reconvindos AA e BB de tudo o peticionado contra si pela reconvinte E..., Lda;

É A SEGUINTE A FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO DA SENTENÇA:
2.1. Factos provados:
1) A ré E..., Lda é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, importação, exportação, reparação e manutenção de veículos automóveis e motociclos, novos e usados, suas peças e acessórios, ao aluguer de veículos automóveis, de máquinas e equipamentos agrícolas com e sem operador e à prestação de serviços auxiliares de intermediação de crédito.
2) Em data não concretamente apurada, mas situada entre Setembro e Outubro de 2018, os autores comunicaram ao sócio da ré, CC, que pretendiam adquirir uma viatura Nissan ..., modelo ....
3) Mais referiram que o veículo deveria ter quilometragem reduzida, estar em bom estado de conservação e com valor máximo até 20.000€.
4) Solicitaram ainda que a viatura viesse equipada com GPS e fosse de cor cinza.
5) No âmbito da pesquisa por veículos com as referidas características, a ré, através de CC, foi apresentando ao autor marido imagens de veículos.
6) Apesar de não ser habitual comercializar no seu estabelecimento este tipo de veículos, a ré obrigou-se perante os autores a entregar-lhes uma viatura com as características elencadas em 2) a 4).
7) A 9 de Outubro de 2018, a ré, através de CC, solicitou ao autor marido o envio da seguinte documentação para instruir o pedido de crédito automóvel, relativa ao casal: cartão de cidadão; três últimos recibos de vencimento; IBAN; comprovativo de morada; IRS; contactos mais diretos.
8) A 30 de Outubro de 2018, a viatura indicada em 9) entrou em território nacional.
9) A 15 de Novembro de 2018, a viatura com a matrícula ..., número de quadro ..., e quilometragem indicada de 50.071 km, foi sujeita a uma inspeção técnica periódica na empresa M..., Lda., em Ílhavo, tendo obtido o resultado aprovado.
10) CC e DD estiveram presentes no momento da inspeção e apresentaram ao inspetor documento em língua alemã, referente a contrato de compra e venda, datado de 26/10/2018, onde figura no campo vendedor EE; no campo comprador AA; valor de 17.000€ e sem indicação de quilometragem.
11) CC entregou o veículo automóvel referido em 9) aos autores em data não concretamente apurada, mas situada entre finais de Novembro e meados de Dezembro de 2018.
12) A pedido dos autores, e por intermédio da ré, a empresa 321 C..., S.A. declarou conceder aos autores um crédito, sob o n.º 417724, para aquisição do veículo descrito em 9), no montante global de 31.790,88€, a reembolsar mediante a entrega de 108 prestações mensais, iguais e sucessivas, no montante de 294,36€, vencendo-se a primeira em Abril de 2019.
13) No seguimento do contratado, os autores autorizaram que o montante disponibilizado a título de capital, que remontou a 20.500€, fosse entregue, como foi, à ré, a 27 de Março de 2019.
14) A 4 de Fevereiro de 2019, os autores adquiriram produtos para a mudança de óleo no valor de 97,37€.
15) A 8 de Fevereiro de 2019, os autores adquiram produtos para a mudança de óleo no valor de 30,65€.
16) Na compra de tapetes de borracha para a viatura, os autores desembolsaram a quantia de 45,01€ a 20 de Fevereiro de 2019.
17) A 27 de Março de 2019, foi preenchida a Declaração Aduaneira do Veículo, a que corresponde o n.º 2019/....
18) Para o efeito, foi entregue ao despachante oficial o documento indicado em 10).
19) A 27 de Março de 2019, a ré emitiu a fatura n.º 1/76, que foi comunicada via SAFT a 10/04/2019, no valor de 500,00€, nela figurando como cliente o autor marido, e com o seguinte descritivo: intermediação financeira; comissão de angariação de negócios; tratamento, acessória de legalização de viatura automóvel, não há qualquer tipo de garantias, apenas intermediamos diante alfândega; termo da acessoria 27/03/2019.
20) A 4 de Abril de 2019, os autores despenderam 14,71€ com a compra de uma cabeça de direção para a viatura.
21) Por indicação de CC, o autor marido depositou a viatura na empresa P... Lda., para tratamento do chassis.
22) No decurso de uma limpeza ao chassis da viatura, em Abril de 2019, FF, proprietário da empresa, informou o autor marido de que o chassis se encontrava muito danificado e com marcas visíveis de ferrugem, num estado avançado, cujo nível de desgaste era incompatível com a quilometragem apresentada.
23) A 26 de Abril de 2019, foi aplicada cera de proteção e anti-gravilho de proteção na viatura, trabalhos pelos quais os autores desembolsaram a quantia de 267,75€.
24) Após esta data, o autor marido descobriu, no porta-luvas da viatura, o livrete, certificado de garantia e livro de revisões da marca, do país de origem Luxemburgo.
25) Do livro de revisões consta que, a 27 de Novembro de 2014, a viatura tinha 65.583 km.
26) Os autores remeteram à ré, por carta datada de 30 de Abril de 2019, a seguinte comunicação:
(…) O meu cliente adquiriu uma viatura na sua empresa, marca Nissan modelo ... matrícula ..-XG-.., no início do corrente ano de 2019. Sucede que o meu cliente sente-se lesado e defraudado com o negócio que celebrou com a sua empresa.
Verificou-se in locu que o veículo encontra-se em elevado estado de deterioração (estado incompatível com os quilómetros que constam no certificado de inspeção e quadrante do veículo) e que com os quilómetros adulterados. A acrescer a este facto a sua empresa não entregou ao meu cliente fatura respeitante ao negócio celebrado. Posto isto, para evitar o recurso às vias judiciais cíveis
e criminais, o meu cliente está disponível para celebrar acordo extrajudicial para anular o negócio. As condições para que seja possível alcançar tal acordo passam por ressarcir o meu cliente num total de 25.042,49€ (vinte e cinco mil, quarenta e dois euros, quarenta e nove cêntimos) para custear o valor do crédito contraído, prestações pagas e comissão de liquidação antecipada do mesmo, custo com IUC, custos que teve em reparar os danos no veículo que são do vosso conhecimento existentes à data da venda do bem (e desconhecidos do meu cliente nessa data), custos com revisão do veículo que não foi efetuada, custos com honorários e despesas com mandatário judicial, transmissão da propriedade do veículo para nome da empresa.Tais condições são válidas até ao dia 15 do mês de Maio. Findo esse prazo sem que se verifique a resolução deste litígio, estou mandatado para recorrer às vias competentes para fazer valer os direitos do meu constituinte.
27) Os autores utilizaram a viatura entre o momento descrito em 11) e Junho de 2020, altura em que a mesma não foi aprovada na inspeção e desde então ficou imobilizada.
28) A viatura dos autores permanece com marcas visíveis de ferrugem.
29) Se os autores soubessem que, à data de compra e venda do veículo, este já ultrapassava, na sua quilometragem, os 50.000km, e que apresentava desgaste por ferrugem, não o teriam adquirido.
30) O acima descrito fez com que os autores não usufruíssem integralmente da viatura que adquiriram, pois evitaram utilizá-la no quotidiano, sabendo do mau estado de conservação da mesma.
31) O sucedido fez com que paralisassem a viatura a adquirissem uma outra para as suas deslocações diárias para o trabalho.
32) Para além disso, a situação descrita causou nos autores tristeza, angústia e ansiedade por verem frustradas as expetativas que tinham sobre o veículo e que lhe foram prometidas pela ré.
33) O veículo automóvel com a marca Nissan e matrícula ..-XG-.. encontra-se registado a favor do autor AA, por registo de propriedade n.º ..., a 29/04/2019, com a menção de reserva de propriedade a favor de 321 C..., S.A.
34) Do documento traduzido e denominado contrato de compra de automóveis, consta a seguinte informação:
Vendedor: GG Comprador: AA
Indicações de Veículo: Nissan ...; matrícula ... Outras especificações: 49.104 kms
Preço de compra em Euros: 17000,00€ Data: 28-09-2018 ou 20-08-2018
35) É provável que a assinatura inserta no documento aludido em 34) seja do autor marido.
36) A ré deduziu contestação, com os fundamentos elencados em b) a e) e g) dos factos não provados, bem sabendo que tal não tinha correspondência com a realidade.
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2.2. Factos não provados:
a) Os autores escolheram o veículo automóvel online sem qualquer intervenção da ré.
b) Os autores celebraram o negócio de compra e venda do veículo em Setembro de 2018, com GG, na República Federal da Alemanha.
c) E foram buscar o referido veículo à Alemanha.
d) Desde setembro de 2018, os autores estiveram na posse do veículo e conduziram-no diariamente com a matrícula luxemburguesa.
e) A ré apenas diligenciou pela legalização do veículo importado pelos autores e pelo pedido de financiamento.
f) Tal pedido de financiamento dos autores destinava-se a devolver a quantia monetária emprestada por CC com o fito de aqueles adquirirem o veículo automóvel.
g) A ré prestou aos autores serviços de consultadoria e intermediação de crédito, no valor de 500,00€, relativamente as quais emitiu a fatura datada de 27/03/2019.
h) Os autores deslocaram-se ao escritório de HH, despachante oficial, para facultar os dados inscritos na Declaração Aduaneira do Veículo indicada em 17).

DESTA SENTENÇA APELOU A RÉ QUE LAVROU AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
(…)
10 Se na instrução da causa se apura que um consumidor detém especiais qualificativas, como conhecimentos, capacidade e qualificações que resultam quer de gosto pelo ramo, incluindo leituras de revistas da especialidade, prática de venda e acesso a informações especializadas fornecidas em stand de vendedores de automóveis, quer de vendedor quer de terceiro, as publicita, informa de dados próprios de contacto de vendas, sendo ainda motorista profissional, que pressupõe habilitações para manejo e manutenção de mecânica de automóvel, então esse facto instrutório não deve ter relevo apenas para conhecimento de sistema de importações de veículos, mas para a própria aquisição de veículos por esse consumidor.
11 Tal facto deve ser levado a facto provado, por força do artigo 5 nº 2 alínea a) do CPC.
12 Como deve ainda figurar nos factos provados outros factos que sejam complementares ou concretizadores das alegações de factos pelas partes.
13 É o caso de factos que constam de certidão de inspeção de veículo nos autos para efeitos de atribuição de matrícula, factos que, por certificados, concluem e certificam que o veículo apresenta “ausência de anotações de deficiências” e que segundo essa certidão “significa conformidade do veículo com a regulamentação em vigor, no momento em que foi inspecionado.”
14 Deve ser facto autónomo o que consta dessa certidão, designadamente a data da inspeção (15.11.2018) e o nome do proprietário que se apresenta na inspeção (no caso o Autor).
15 Tais factos são muito relevantes para se decidir se uma venda é feita antes ou depois dessa inspeção, atenta a qualidade de proprietário invocada nessa inspeção.
16 Devendo ainda figurar entre os factos provados que “o veículo apresentou os resultados dos testes que geram a ficha daquela inspeção CH ..., certidão essa que refere: “Inspeção Técnica para Matrícula KA ......, e que em “observações e verificações efetuadas, consta: (i) Todas as Verificações de uma I.P.O. (ii) Observação visual e detalhada da identificação do veículo (iii) Observação visual detalhada do exterior do veículo. Resultado final: Aprovado”
17 Consideram-se incorretamente julgados os factos 2, 3 4, 6, 11, 13, 21, 35, 36 e alíneas a), d) e g) do ponto 2.2 dos não provados constantes da douta sentença, na parte da Fundamentação de facto.
18 A recorrente para alterar as respostas dá nesta parte por reproduzido isso relativamente a cada um deles nos termos supra alegados.
19 Não se retira de nenhum dos documentos dos autos que a Ré vendeu ao Autor o citado veículo, mas apenas que lhe apresentou propostas, que ele foi sucessivamente recusando invocando que comprava melhor.
20 Dar-se como provado que a Ré se obrigou a fornecer veículo (facto 6) por a Ré lhe dar informação de veículos relativamente a características pelo Autor solicitadas (factos 2 a 4), não é o mesmo que dizer que se celebrou contrato de compra e venda, já que isso são meras propostas.
22 O sentido a dar ao que resulta dos depoimentos e confissões do Autor deve ser, quanto ao facto 6, de que não é habitual a Ré vender este tipo de viatura, tendo a Ré informado o Autor que ia verificar no mercado interno e no exterior viaturas que possibilitasse a ela apresentar proposta ao Autor.
23 O facto 10 deve ser alterado no sentido de que o Autor apresentou na inspeção extraordinária contrato datado de 26.10.218, sendo sempre, no mínimo, admissível dar-se por provado que o Autor celebrou contrato com cidadão estrangeiro com as indicadas características de modelo de viatura, matrícula do Luxemburgo e número de matrícula e chassis.
24 O facto 12 deve ser modificado, por não ser confundível o valor do financiamento com o valor dos encargos desse, impondo-se igualmente a modificação de outros factos como se alegou, em específico o 21 de que houve tratamento para limpeza (e não para tratamento do chassis. Se fosse para este tratamento então saberiam o estado desse, o que se não prova, diga-se!)
25 Também o facto 22 deve ser alterado, no sentido de que a corrosão é idêntica à que se pode verificar em zona marítima, não desconhecendo o Autor, que confessa, que sabia que a corrosão advinha de circulação no estrangeiro em estradas de neve e em Países que utilizam sal para limpar estradas de neve. Por outro lado, ao contrário do que consta nesse facto, a dita corrosão não era ‘visível’, como se prova pela certidão da inspeção (é das regras da experiência que um inspetor vê o estado do veículo por baixo, aspeto que a testemunha FF confirma que nunca passaria na inspeção.
26 Também o facto 24 carece de ser alterado, porquanto o Autor marido, que dispôs do veículo antes de o legalizar, tinha no porta-luvas manual de revisões, que confessa que viu mais tarde, meses depois de ter o veículo sob seu domínio e posse, referindo-se ao mesmo como ‘porta-luvas’ grande.
27 Tal facto tem ainda que ser integrado com o sentido dado pelo depoimento da testemunha II e que foi desvalorizado pelo tribunal, que entendeu que uma confissão (sob efeito do álcool) não seria de admitir porque ninguém confessaria que retirou km à sua própria viatura.
29 Por outro lado, sendo a testemunha vendedor de automóveis, concorrente até com o Stand da Ré, julgar-se segundo a experiência da vida, imporia facto oposto, isto é, as regras da concorrência, seriam de molde a desfavorecer o concorrente e não a favorecê-lo.
30 Por outro lado, vendendo o Autor veículos, não se vê como, em face de um arrependimento da compra do veículo, não pudesse ser possível retirar kms a viatura própria se presumisse poder alienar essa.
31 Pelo que tal depoimento oferece solidez, não tendo sequer sido desmentido pelo Autor que em esclarecimentos se limitou a dizer que não falaram da viatura em concreto e se encontrava alcoolizado. Ninguém admitiria estar alcoolizado se não tive consciência de ter feito declaração, que o envergonharia ou o responsabilizaria.
32 Pelo que inexiste prova de que o veículo, na data da venda, tinha menos Km que os que constavam registados e de que foi transacionado em valor mais do que realmente seria se os Km fossem atendidos, aspeto que se liga aliás à confissão do Autor de que nunca referiu à Ré Quilometragem, querendo apenas um veículo com poucos Kms, mas mais barato do que os que eram propostos pela Ré (min 7:10 do depoimento de parte do Autor).
33 Por outro lado, não é alheio a tudo isso o facto de o Autor frequentar com assiduidade o stand da Ré, publicitar em nome próprio veículos desta e de outros stands, ter especiais conhecimentos e habilitações e capacidades do ramo automóvel, sendo até motorista profissional, detendo, pois, requisitos específicos da área, indo até ao estrangeiro buscar veículos com o gerente da Ré.
34 Nesse sentido, se a sentença declara que não descurou que o “autor reconheceu ser um entusiasta do ramo automóvel, lendo revistas da área, e que até chegou a passar algum tempo no estabelecimento da ré, quando se encontrava de baixa médica, bem como confessou já se ter deslocado ao estrangeiro para ir buscar veículos juntamente com CC, e partilhar frequentemente na sua rede social publicações do referido estabelecimento.”, tal facto, por resultar da instrução do processo deve ser levado aos factos provados, por força do artigo 5.º n.º 2 al. a) e b) do CPC.
35 Tal facto é deveras importante em face de uma sentença que considerou provado que a Ré vendeu o veículo aos AA, o que a Ré não aceita, mas esse facto permite concluir que o Autor não pode beneficiar das regras da proteção.
36 Essas regras não impõem ao consumidor ónus de examinar a coisa, tal como o previsto no art. 36.º, n.º 1 da Convenção de Viena, mas apenas “um dever de diligência quanto à perceção de faltas de conformidade ostensivas no momento da conclusão do contrato.”
37 O preceito não exige o conhecimento efetivo do defeito por parte do consumidor, sendo suficiente que este não pudesse razoavelmente ignorar a sua existência, como é o caso de um consumidor que confessa que o vendedor lhe pediu para verificar como estava o carro (“olha vai vendo a carrinha, o que ela tem, vê se notas alguma coisa (11:39). Eu andava muito pouco e nunca deu para ver realmente alguma coisa grave (11:50). Eu ainda cheguei a andar com ela com matrícula estrangeira (12:16), porque eu não tinha outro carro).
38 O Consumidor confessa ao tribunal que “Sabe inclusive que desde 2016 esse modelo está descontinuado (1:04:16), dizendo “não sou nenhum especialista, mas também não sou tapadinho, até porque sou apaixonado pelos carros (1:05:30), gosto de ver debates e leio constantemente sobre vantagens e desvantagens (1:05:39).
39 Indicou que sabia que o veículo tinha sido importado, que sendo motorista Internacional (até França) sabia como eram limpas as estradas por causa da neve (1:07:19), pelo que, veículos, que circulam nestas
estradas, apresentam probabilidade elevada de terem este tipo de problemas com o Chassis, que deveria saber que Países que utilizam sal para limpar estradas, devia saber disso, confessou que sim (“sei” 1:07:41).
40 Nestes casos, pois, a doutrina e o TJUE excluem responsabilidade do vendedor, que age com um consumidor com capacidade profissional.
41 Acresce à exclusão o dever de diligência de, perante um porta-luvas, tão amplo, e o uso de viatura durante meses, não ter diligência para ver livro de revisões, aspeto que não se desliga aliás da confissão dos AA de que nunca foi referida questão da Quilometragem (declaração do Autor) ou de que “nunca foi discutida a questão de Kms e preços” (confissão da Autora, minuto 25:09, gravação 20211125114622_3921047_2870303).
42 Constitui abuso de direito denunciar contrato e resolver esse sem ter sequer, aliás de acordo com a nova lei, optar por outra forma menos lesiva dos interesses da contraparte.
43 Na verdade, nenhuma prova há de que o A comprou à Ré, que como importadora teria que ter carro em seu nome, fazendo transferência bancária para o vendedor do estrangeiro, o que nunca sucedeu.
44 Existindo pelo contrário prova documental suficiente, quer do facto 34 e 35, quer dos documentos que instruíram o processo de legalização de viatura, que o Autor comprou diretamente no estrangeiro a cidadão estrangeiro, que teve na sua posse vários meses antes de contrair empréstimo, apenas concedido em março, então é porque dispor de valor anterior para pagar esse, o que constitui prova fática que se deduz até pelo elemento racional de que ninguém se financia para comprar veiculo se já obteve meio para o fazer, a não ser que seja para liquidar a terceiro obrigações decorrentes de adiantamento de valor para aquela aquisição.
45 Julgará de acordo com as regras da experiência da vida que tais factos alegados pela Ré estão alegados e sustentados de forma coerente, escrupulosa e diligente, e que os factos contrariam em absoluto a tese dos AA, de que compraram em março, data em que obtiveram o empréstimo, mas cujas inspeções e legalização são de novembro do ano anterior.
46 Pese embora a compra e venda em Portugal seja meramente consensual, a compra de veiculo no exterior, em vários Países como Alemanha, é feita por traditio de documentos, cancelamento de matricula no estrangeiro, suportada, apesar de tudo por documento, que o vendedor exige, para ‘por segurança dele”, saber a quem vende, onde está o veiculo e garantir responsabilidade a partir dessa declaração, como nos autos foi exemplarmente declarado pela testemunha HH, que procedeu à legalização do citado veiculo, junto do IMT e AT.
47 Por outro lado, se um veículo estrangeiro é sujeito a inspeção da categoria B, que é extraordinária e em que se inspecionam aspetos relevantes da viatura, para segurança e qualidade, se tal facto está certificado, ele faz prova plena que afasta outro tipo de prova, incluindo a existência de vício no momento da entrega do veículo com inspeção para aquisição da matrícula portuguesa.
48 Pelo que não agiu a Ré de má-fé, sendo que os factos sustentam o contrário, isto é, a falta de diligência e abuso de direito pelos Autores, devendo ser pago à Ré os valores da reconvenção e exonerada da responsabilidade inerente a contrato de compra e venda de bem de consumo.
49 Não provou o consumidor a falta de conformidade do bem adquirido de acordo com o convencionado; e não fez prova de que não tinha conhecimento dos pretensos defeitos, no momento em que for celebrado o contrato, por não ter tido conhecimento deles ou de que não podia razoavelmente ignorar esses, indo, naturalmente, tal regra contra os ditames da boa-fé.
50 Ademais, provou a Ré que a falta de cumprimento não procedeu por culpa sua, mas sim do Autor, atentas as modificações da matéria fática alegadas.
51 A Ré não litiga de má-fé, tanto mais que nada vendeu. Má-fé processual é a ação de litigância com consciência e vontade de invocar factos que sabe não serem verdadeiros nem qualquer outro facto que integre o artigo 542.º do CPC. Se o Autor alega que comprou veículo em 2019 e todos os documentos provam que o fez em 2018, a defesa disso não constitui má-fé.
52 Assim, foram violadas as disposições do artigo 5 nº 2, al. a e b, artigo, o artigo 607.º, n.º 4 e do n.º 5, este em articulação com o artigo 341.º, 342.º e 347.º do Código Civil, não tendo tido ação que integre o artigo 542.º do CPC. Foram violados ainda o artigo 1.º, 2.º, 4, e 5 do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, bem como o artigo 799.º, n.º 1 do CC e 334.º do CC.
Termos em que,
Reapreciando-se a fundamentação da douta sentença, julgando esta nula e ou alterando-se os factos provados e não provados, de acordo com os meios de prova que se invocam e o sentido em que a decisão deve ser tomada, condenando-se os AA a pagar à Ré o valor pedido na reconvenção, por serviços prestados, se fará Justiça.
Não houve resposta. Nada obsta ao mérito.

O OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).

Em consonância e atentas as conclusões da recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
1-. Saber se devem ser aditados à fundamentação da sentença os factos instrumentais requeridos.
2- Saber se há erro no julgamento dos pontos impugnados da matéria de facto tal qual consta da sentença recorrida.
3- Reapreciar o direito aplicado, na vertente do direito de resolução do contrato sub iudice e à luz do abuso de direito.
4. Reapreciar a condenação da Ré como litigante de má-fé.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a factualidade supra.

FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
I
O REQUERIDO ADITAMENTO DE FACTOS INSTRUMENTAIS .
Os factos instrumentais são os que interessam indiretamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da exceção. Neste sentido NETO, ABILIO - Novo Código de Processo Civil anotado. 2º Edição revista e ampliada. Lisboa: Ediforum. Janeiro/2014, pp.25-26 escreve que os factos instrumentais que resultam da instrução da causa, como resulta do artigo 5º nº 2 co Código de Processo Civil, são aqueles que são suscetíveis de esclarecer e clarificar os factos essenciais que são parte integrante da discussão da causa .
Ora, se por um lado, não se entende como esclarecedor de factos essenciais o acervo factual descrito nas conclusões da apelante, quanto à descrição do Autor, por outro lado nada foi invocado na contestação em sede de exceção ao direito do Autor, daí que esta questão é questão nova, e como tal subtraída ao conhecimento deste tribunal.
I-2
Pretende ainda a apelante que passe a constar do acervo dos factos provados as declarações constantes dos diversos documentos juntos aos autos as quais elenca.
Neste segmento do recurso toma-se em consideração que os documentos e as declarações que emanam dos mesmos são meios de prova de factos, não são factos (vde artigo 362º do CC) ao que
cresce que o tribunal pode sempre socorrer-se das declarações constantes dos mesmos para com base nas mesmas fundar um facto (artigo 607º nº 5 do Código de Processo Civil). No caso dos autos, não se vislumbra qualquer utilidade no aditamento de factos instrumentais como vem proposto, porquanto dos mesmos não se retira factualidade essencial ao direito, razão pela qual vai indeferido o que se requer.

II
A IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A sustentação do recurso no que respeita à impugnação:
II.1
QUANTOS AOS FACTOS PROVADOS SOB OS Nºs 2, 3, 4 e 6, a saber:
“2) Em data não concretamente apurada, mas situada entre setembro e outubro de 2018, os autores comunicaram ao sócio da ré, CC, que pretendiam adquirir uma viatura Nissan ..., modelo ....
3) Mais referiram que o veículo deveria ter quilometragem reduzida, estar em bom estado de conservação e com valor máximo até 20.000€.
4) Solicitaram ainda que a viatura viesse equipada com GPS e fosse de cor cinza.
6) Apesar de não ser habitual comercializar no seu estabelecimento este tipo de veículos, a ré obrigou-se perante os autores a entregar-lhes uma viatura com as características elencadas em 2) a 4)”.

A impugnação da Ré:
As declarações escritas juntas pela Ré: formulário de compra e venda do veiculo, emitido por sociedade austríaca de comércio de veículos que contém o nome do vendedor; o nome do comprador, moradas e data da matricula do veiculo e numero de chassis além da data do outorga do contrato.
A certidão do IMT
As declarações das testemunhas HH “agente alfandegário que afirmou que a Ré é sua cliente há mais de 6 anos, e que por várias vezes legalizou viaturas que esta importa, (…) que a declaração de venda por regra vem assinada pelo vendedor e pelo comprador (…)
Adita ainda as declarações de parte quer do Autor, quer da Autora. A fundamentação da sentença, ao que interessa:
(…) - FF, proprietário da oficina P..., Lda., efetuou o tratamento anti corrosão na viatura dos autores, a que se refere a fatura a fls. 19. Referiu que o autor marido disse ter sido encaminhado para este estabelecimento por indicação de CC, funcionário da ré que, quando comunicou ao autor marido o estado em que se encontrava o chassis da viatura, este ficou surpreendido e afirmou que iria pedir o reembolso ao stand (aqui ré).
- JJ, amigo do autor e seu antigo empregador, entre 2018 e meados de 2020. A testemunha mencionou que o autor lhe confidenciou que tinha adquirido uma viatura automóvel ao CC (ou seja, à ré), através do recurso a crédito automóvel, e que descobriu que esta padecia de defeitos ao nível da ferrugem.
- HH, agente aduaneiro que tratou do processo de legalização da viatura que a ré é sua cliente há cerca de 6 anos (…), o autor ter-se-á deslocado ao seu estabelecimento para assinar a documentação necessária para finalização do processo, Explicou ainda que necessita dos documentos originais da viatura, como o livrete e o contrato de aquisição, e confirmou o recebimento do contrato junto a fls. 57 dos autos.
No que concerne à Declaração Aduaneira de Veículo, a testemunha indicou que, após o preenchimento da declaração, a fls. 57 verso e 58, é emitida uma nota de liquidação com um prazo para pagamento do Imposto sobre Veículos.
- CC, exerce funções de responsável do setor financeiro da ré desde junho de 2018 e conhece os autores há 20 anos.
Para concluir pelo acordado entre autores e ré relativamente à aquisição de uma viatura automóvel, consideramos, em primeiro lugar, as declarações dos primeiros, que refletem o processo de seleção – no qual CC remetia fotografias de viaturas com a tipologia pretendida para o autor marido, que partilhava com a autora, como se pode extrair do teor dos documentos juntos a fls. 69 a 74v.

DECIDINDO:
A prova testemunhal apresentada a esta matéria é uma prova indireta pouco esclarecedora, pelo que, não abona a posição do Autor.
Por outro lado, as declarações quer do Autor quer do CC são contraditórias entre si. Concludente no sentido do julgamento de facto, é no entanto a troca de emails entre ambos,
donde resulta claramente a intervenção da Ré através do CC nos atos necessários à escolha e proposta de compra da viatura, e atos subsequentes como a legalização e tratamento da viatura e entrega da mesma ao Autor.
Na verdade consta do email de 4.10.2018 do CC para o Autor: “Está uma no leilão na Holanda, já enviei a minha oferta é de 2011 cinza prata automaticamente igual à que tu queres, se te
interessar depois apita (…) tenho um amigo em Mirandela que fica com ela e com outras que eventualmente arranje”
A que o Autor respondeu: “interessa mas e valores”…
(…) não me saiu a mim a Nissan ... mas a do meu cunhado tá comprada se tiveres interesse nela falamos depois na 2ª feira” (…)
À pergunta do autor: “olha a carrinha tem GPS” o CC respondeu: Tem, mas não é radio é tipo Garmim
Mas é melhor negociar com homem e ele tirar alguns € e fica com ele e tu metes um rádio com GPS, eu posso sempre oferecer menos para comprara GPS, se te interessar claro”.
Milita ainda no sentido da versão do Autor o email remetido pelo CC ao Autor com o seguinte teor: “As barras logo que esteja tudo, eu mando vir e em 1 semana estão cá (…) ou seja ente vir Alemanha e chegar e chegam às barras depois é só montar enquanto se espera por as matrículas “
(…)
Tais declarações são indiciadoras de negociações destinadas à compra e venda do veiculo tal como o Autor vem articular na ação, posição reforçada com os emails de 25.11.2018 8.11.2018 e 25.11.2018, em que o Autor insta o CC sobre a entrega do veículo e este se justifica por o não ter feito.
São também estes documentos concludentes nesse sentido nomeadamente quanto à posse do veiculo. O que é reforçado pelo facto de ter sido entregue à Ré o dinheiro contratado com a financeira - a quantia de 20.500 euros alegadamente correspondente ao custo da viatura.
Na verdade a versão do declarante CC de que emprestou esta quantia em dinheiro ao Autor para ele adquirir a viatura não convence, não obstante o mesmo ter procurado justificar a entrega em dinheiro com o valor que recebeu de uma negócio de transmissão de estabelecimento seu que se situava em Espanha.
Por outro lado, quer a declaração de compra, assinada pelo Autor, quer a demais documentação necessária à legalização do veiculo assinadas pela mesmo Autor, não são de molde a afastar a sua versão ou a criar uma duvida séria sobre a mesma.
As declarações de compra juntas aos autos são documentos particulares, embora respeitando à mesma viatura não são coincidentes nomeadamente quanto à confirmação da quilometragem (num caso está expressa (49104) no outro não, e por outro lado no lugar destinado às assinaturas num caso está consignado o nome de AA(…) sendo certo que tais documentos têm datas diversas respetivamente 25-09-2018 e 26-10-2018, não sendo igualmente coincidentes as assinaturas apostas no lugar destinado ao comprador, pelo que não oferecem credibilidade a este tribunal, dada a impugnação de que foram alvo.
Tão pouco afasta essa versão o facto de a testemunha CC ter sido sujeita a intervenção cirúrgica uma vez que como consta da declaração médica, a mesma realizou-se em 30-10-2018, portanto, em data posterior à compra.
Com efeito estamos na presença de declarações necessariamente não excludentes do negócio de compra e venda que é um negócio de base contratual.
Daqui que se mantenha inalterada a decisão da matéria de facto neste segmento impugnado, no recurso.

II-2
O PONTO 10 DA MATÉRIA DE FACTO: “CC e DD estiveram presentes no momento da inspeção e apresentaram ao inspetor documento em língua alemã, referente a contrato de compra e venda, datado de 26/10/2018, onde figura no campo vendedor EE; no campo comprador AA; valor de 17.000€ e sem indicação de quilometragem”.
A Impugnação da Recorrente: Requer que passe a constar que o Autor apresentou na inspeção o documento contrato datado de 26.10.2018
A motivação da sentença: a factualidade apontada em 9) e 10), decorre do teor dos documentos juntos a fls. 11, 99 a 106, e do declarado pelas testemunhas CC e DD, que asseveraram a sua presença no centro de inspeções.

DECIDINDO:
A Recorrente não adita qualquer meio de prova a este facto passível de colocar em crise a convicção do tribunal que de resto se funda na própria declaração da IMT que não identificou a pessoa que levou a viatura à inspeção, sendo certo que a data da mesma (15.11.2018) é anterior à data de 25.11.2018 até à qual foram trocados email entre o Autor e o referido CC em que este era questionado sobre a data da entrega da viatura.
Tanto basta para não acolher também este segmento do recurso.

II-3
O PONTO 11 DA MATÉRIA DE FACTO: “CC entregou o veículo automóvel referido em 9) aos autores em data não concretamente apurada, mas situada entre finais de novembro e meados de dezembro de 2018”.

A impugnação da Recorrente:
A viatura foi sujeita a inspeção em 15.11.2018, pelo que sendo esta data anterior a finais de novembro implica que o facto deva ser dado como não provado.
A motivação da sentença: (…) teor das conversações a fls. 73v dos autos, sendo que, a 23/11/2018, o autor marido questiona CC acerca de quando é que a sua viatura estará pronta, ao que o mesmo responde que no dia seguinte a iria buscar à limpeza.

DECIDINDO:
Com efeito os emails trocados entre as partes e referidos supra se retira que a 23.11.2018 o Autor questionava o CC a data da entrega da viatura sendo certo que não está provado que tenha sido o Autor a levar a viatura à inspeção.
Desacolhe-se pois este segmento da impugnação de facto.
II-4
O PONTO 12 DA MATÉRIA DE FACTO: “A pedido dos autores, e por intermédio da ré, a empresa 321 C..., S.A. declarou conceder aos autores um crédito, sob o n.º 417724, para aquisição do veículo descrito em 9), no montante global de 31.790,88€, a reembolsar mediante a entrega de 108 prestações mensais, iguais e sucessivas, no montante de 294,36€, vencendo-se a primeira em Abril de 2019”.
O Recorrente requer que seja alterada a redação dada a este ponto da matéria de facto, devendo ficar a constar da redação respetiva que “o valor de 31.790,88€, respeita ao capital de 20.500,00 euros e encargos”

Adita o documento de financiamento junto aos autos.

A motivação da sentença: A factualidade vertida em 12), que espelha a contratação do crédito automóvel pelos autores, sua duração, periodicidade e valores, decorre das informações da instituição financeira a fls. 12 dos autos.

DECIDINDO.
Conforme resulta do documento junto à petição inicial, o valor do capital financiado (incluindo seguro e imposto de financiamento) para aquisição de automóvel foi o de 21.452,80 euros a pagar em 108 prestações (…) sendo o montante global do empréstimo (encargos totais) o de 31.790,88.
Altera-se correspondentemente a redação dada a esta alínea da matéria de facto devendo ficar a constar deste ponto da fundamentação que : A pedido dos autores, e por intermédio da ré, a empresa 321 C..., S.A. declarou conceder aos autores um crédito, sob o n.º 417724, para aquisição do veículo descrito em 9), no montante de 21.452,80 euros (…) sendo o capital vincendo o de 31.790,88 a reembolsar mediante a entrega de 108 prestações mensais, iguais e sucessivas, no montante de 294,36€, vencendo-se a primeira em Abril de 2019.

II-5
O PONTO 13 DA MATÉRIA DE FACTO. “No seguimento do contratado, os autores autorizaram que o montante disponibilizado a título de capital, que remontou a 20.500€, fosse entregue, como foi, à ré, a 27 de março de 2019”.

A impugnação da Recorrente:
Pretende que deve ser acrescentado a este ponto da matéria de facto “que a Ré recebeu por ter mutuado ao autor como adiantamento pelo casal CC e DD do valor recebido pela Financeira”.

A motivação da sentença:
Por sua vez, o facto provado em 13), atinente ao pagamento do valor da viatura à ré pela instituição financeira, decorre do teor do documento junto a fls. 149 e 158.

(…) DECIDINDO:
Não foi junta prova alguma do alegado empréstimo da referida quantia pelo casal CC e DD ao Autor, mediante a entrega em dinheiro, tratando-se como se trata de valor cifrado em cerca 20.000 euros.
Não é bastante para convencer as meras declarações prestadas em julgamento pelo CC de que emprestou ao Autor em dinheiro aquela quantia.
Acresce que sempre ficaria por explicar o pagamento à Ré (pessoa jurídica que não se confunde com os sócios ou gerentes) o recebimento do valor mutuado, por terceiros.
Não tem pois, apoio na prova produzida a pretendida alteração à matéria de facto que assim vai desatendida.

II-6
O PONTO 21 DA MATÉRIA DE FACTO: “Por indicação de CC, o autor marido depositou a viatura na empresa P... Lda., para tratamento do chassis”.
A Recorrente requer a substituição da expressão “tratamento” do chassis por ” limpeza“

Adita as declarações do Autor: “ Ele levou a carrinha para mandar limpar e dar uns ajustes na pintura”
A motivação da sentença: (…) compatibilização entre o documentado a fls. 18v a 36v, o aludido pela testemunha FF, mecânico, que identificou o avançado estado de corrosão do veículo e atestou o estado de surpresa do autor quando lhe comunicou tal facto, bem como o facto de o autor
referenciar que havia sido a ré, através de CC, a encaminhá-lo para a sua oficina, especialista em tratamentos anticorrosão, e a dizer que iria assumir o custo da reparação.

DECIDINDO:
Este facto relaciona-se com o facto seguinte em que se refere “no decurso de uma limpeza ao chassis”
Até pela necessidade de concordância altera-se nos termos requeridos este ponto de facto devendo ler-se “limpeza” onde se escreveu “tratamento”.

II-7
O PONTO 22º DA MATÉRIA DE FACTO: “No decurso de uma limpeza ao chassis da viatura, em Abril de 2019, FF, proprietário da empresa, informou o autor marido de que o chassis se encontrava muito danificado e com marcas visíveis de ferrugem, num estado avançado, cujo nível de desgaste era incompatível com a quilometragem apresentada”.
A impugnação da Recorrente:

Os AA pretendem ao aditamento a este ponto da matéria de facto do seguinte: “no sentido de que a corrosão de veículo também acontece em zonas marítimas ou junto á costa, incluindo onde os autores residem e que pode ser ainda motivada por circulação em estradas com neve”.
Os autos não contêm elementos seguros sobre a utilização dada ao veiculo antes da compra, pelo que não é de acolher esta alteração da factualidade tanto mais que o aditamento à matéria de facto, desta asserção não corresponde a alegação constante dos articulados e também não se encaixa na previsão do artigo 5º do Código de Processo Civil pelo que vai indeferido,

II-8
O PONTO 24º DA MATÉRIA DE FACTO: “ Após esta data, o autor marido descobriu, no porta-luvas da viatura, o livrete, certificado de garantia e livro de revisões da marca, do país de origem Luxemburgo”.
A impugnação da Recorrente: Tendo o Autor recebido a viatura em dezembro à luz das regras de experiência comum não é provável que apenas em fevereiro março tenha ido procurar ao porta luvas o livro de revisões da viatura
A motivação da sentença: (…) conjugação do teor dos documentos a fls. 37 a 39 – documentos originais da viatura – e das declarações do autor marido, que vivificou que apenas descobriu a real quilometragem do veículo quando encontrou a documentação do país de origem no porta-luvas, o que muito o surpreendeu.

DECIDINDO:
“Após esta data” inscrita no ponto da matéria de facto refere-se à data do ponto 23 ou seja 23-04-2019
Isto posto, sufragamos a posição do recorrente. A prova produzida em julgamento assente nas declarações de parte, não é suficiente para afastar a duvida sobre o momento do conhecimento. Vai deferido pois a requerida alteração à matéria de facto eliminando-se a expressão “após esta data”.

II-9
Quanto ao ponto 28 da matéria de facto com o seguinte teor: “A viatura dos autores permanece com marcas visíveis de ferrugem”.
A motivação da sentença reside nas declarações de parte dos AA.

A Impugnante não aduz nenhum elemento que possa colocar em crise esta convicção do tribunal recorrido,

DECIDINDO
Vai desatendida esta pretensão.

II-10
O PONTO 29 DA MATÉRIA DE FACTO com o seguinte teor: “Se os autores soubessem que, à data de compra e venda do veículo, este já ultrapassava, na sua quilometragem, os 50.000 km, e que apresentava desgaste por ferrugem, não o teriam adquirido”.
A Ré adita o teor dos documento juntos e o tempo que decorreu entre a entrega da viatura e o momento em que o FF viu a viatura, ou seja abril de 2019´
A motivação da sentença: (…)as declarações dos autores, aliadas às mais elementares regras de experiência comum, uma vez que foram surpreendidos com uma viatura automóvel com características distintas e com um estado de conservação bastante inferior ao pretendido, e tais elementos eram uma condição necessária para a compra.

DECIDINDO:
Nem as alegações dos AA (que não articulam esta factualidade concreta) nem a prova produzida são de molde a considerar que 50.000 km é a quilometragem máxima admitida pelo autor marido para a compra da viatura.
Na verdade os emails trocados entre as partes não especificam qualquer limite e por outro lado os próprios AA na petição inicial referem que pretendiam uma “quilometragem reduzida “alegação que transitou para o ponto 3 da matéria de facto.

Acresce que (como resulta da audição da prova a que procedemos) o Autor instado em tribunal declarou que quilometragem reduzida era 50 ou 100.00 km.
Altera-se, por conseguinte, de provado para não provado este ponto da matéria de facto que não tem correspondência na prova produzida.

II-11
O PONTO 35 DA MATÉRIA DE FACTO: “É provável que a assinatura inserta no documento aludido em 34) seja do autor marido”.
A impugnação do Recorrente: esta resposta é um non liquet. Deverá ser retirada a expressão é provável, devendo o tribunal resolver o non liquet de acordo com as regras do ónus da prova.
A fundamentação da sentença: Acerca dos factos provados em 34) e 35), resultam da compatibilização do teor do documento junto a fls. 57, e do resultado do exame pericial à letra incidente sobre a assinatura do autor marido nesse escrito, cujos resultados se encontram a fls. 119 a 143, que considera provável (entre 50% a 70%) que a assinatura tenha sido manuscrita pelo punho do autor.

DECIDINDO:
Tem razão a recorrente. Ao tribunal impõe-se a partir da valoração das provas determinar se o facto está ou não provado, o que no caso significa declarar «provado» ou «não provado» que a assinatura é do punho do autor.
Em face do resultado da prova pericial que concluiu com uma probabilidade entre 50 e 70% que a assinatura aposta no documento é da autoria do autor a resposta que se impõe é provado.
Com efeito não sendo o resultado probatório em processo civil um resultado de verdade absoluta, a afirmação positiva do facto resulta da convicção de “é mais provável que sim do que não”.
O resultado do exame pericial é concludente satisfazendo essa exigência da prova pelo que altera-se a redação dada a este ponto da matéria de facto que passa ter a seguinte formulação: ponto 35: “ A assinatura inserta no documento aludido em 34) é do punho do autor marido”

II-12
O PONTO 36 DA MATÉRIA DE FACTO tem a seguinte formulação: “ A ré deduziu contestação, com os fundamentos elencados em b) a e) e g) dos factos não provados, bem sabendo que tal não tinha correspondência com a realidade”.

DECIDINDO:
Trata-se de matéria conclusiva que por isso sem mais vai eliminada. II-13
As alíneas a) d) e g) dos factos não provados com o seguinte teor:
a) Os autores escolheram o veículo automóvel online sem qualquer intervenção da ré.
b) Os autores celebraram o negócio de compra e venda do veículo em Setembro de 2018, com GG, na República Federal da Alemanha.
c) E foram buscar o referido veículo à Alemanha.
d) Desde setembro de 2018, os autores estiveram na posse do veículo e conduziram-no diariamente com a matrícula luxemburguesa.
e) A ré apenas diligenciou pela legalização do veículo importado pelos autores e pelo pedido de financiamento.
f) Tal pedido de financiamento dos autores destinava-se a devolver a quantia monetária emprestada por CC com o fito de aqueles adquirirem o veículo automóvel.
g) A ré prestou aos autores serviços de consultadoria e intermediação de crédito, no valor de 500,00€, relativamente as quais emitiu a fatura datada de 27/03/2019.:
A Recorrente pretende que sejam dados como provados tais factos a partir da ponderação dos documentos juntos, nomeadamente a declaração de compra e venda assinada pelo autor e pedido de inspeção no IMT também assinado pelo Autor, a fatura emitida que é de prestação de serviços.
A motivação da sentença: trata-se de matéria em oposição com a factualidade considerada assente e que não foi objeto de prova credível.

DECIDINDO:
Dos documentos juntos não se retira a prova dos factos versados. Quer a declaração assinada pelo autor quer o pedido de inspeção da viatura são compatíveis com a aquisição desta por compra à Ré no contexto da prova global sobretudo na ponderação dos emails juntos aos autos.
A fatura é um documento particular sujeito à livre apreciação na valoração global da prova produzida.
Não é por consequência de admitir qualquer alteração de matéria de facto, aqui.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
I
Pretende a apelante demonstrar no recurso que não outorgou contrato de compra e venda com os AA antes se limitou a intervir como mediadora.

Os artigos. 874 e ss. do CC regulam especificamente o contrato de compra e venda, esclarecendo todas as formalidades a que está sujeito, o qual vem definido como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, mediante um preço”.
Trata-se de um contrato típico, nominado, bilateral, sinalagmático, oneroso e consensual. É um contrato típico e nominado, porque está devidamente identificado, caracterizado e positivado no Ordenamento Português. Bilateral, uma vez que é necessária a existência de duas partes com direitos e obrigações opostas. Sinalagmático, porque gera direitos e obrigações para ambas as partes; para um lado, a obrigação de pagar o preço e para a parte contrária, a obrigação de entregar a coisa. Oneroso, dado que implica o pagamento de uma quantia pecuniária ou avaliável pecuniariamente e consensual, porque a regra é a de que está sujeito a liberdade de forma, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 219.º do CC).
O contrato de compra e venda pode ter na sua base diversos objetos, desde que não estejam por natureza fora do âmbito comercial, pelo que podemos afirmar que podem ser objeto deste tipo de contrato, nomeadamente bens, direitos de crédito, direitos reais, entre outros. Nada impede que incida sobre uma coisa futura ou de titularidade incerta (artigos 880 e 881º do CC).
Impõe o artigo 882.º, n.º 1 do CC que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos.

II
Caracterizado o contrato de compra e venda, temos por adquirido que os factos constantes dos pontos 1 a 6 da matéria de facto tipificam um contrato de compra e venda, tal qual vem definido na sentença impugnada.
Os AA requerem a resolução do contrato com fundamento na desconformidade do veículo efetivamente adquirido com o constante da proposta, por se ter apurado que os km constantes do conta quilómetros da viatura não correspondem aos quilómetros constantes do livro de revisões da mesma.
A configuração dos factos convocados na sentença permite a aplicação do regime da lei do consumidor a este contrato, dada a finalidade a que os AA destinaram a viatura adquirida e, bem assim, o disposto no artigo 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec. Lei nº 67/2003, de 08 de Abril), encontrar-se-á ainda abrangida pelo regime da venda de bens de consumo constante do Dec. Lei nº 67/2003, de 8 de Abril (que veio transpor para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva 1999/44/CE relativa à venda e garantias de bens de consumo), com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec. Lei nº 84/2008, de 21.05 e lei 47/2014 de 28.07. (situação que em si mesma não foi sequer impugnada).
(Este diploma foi revogado pelo(a) Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18.10, o qual transpôs as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770), cuja redação não se aplica aos autos dada a data dos factos. (Cfra artigo 53º do normativo).

III
Com efeito, o regime contido no Dec. Lei nº 67/2003 é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, neles se incluindo a venda de bens em segunda mão – artigos 1º-A, e 1º-B, al. b), na redação do Dec. Lei nº 84/2008.
E, no caso concreto, preenche o conceito de consumidor o adquirente de uma viatura automóvel destinada a uso não profissional (como é o caso do Autor), se o respetivo fornecedor (no caso, a recorrente) exercer com caráter profissional a correspondente atividade económica - n.º 1 do art.º 2.º da LDC.

IV
O regime legal inserto no Dec. Lei 67/2003, vulgo LDC.
O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (artigos 3.º, nº 1, alínea a) e 4.º da LDC).
E tem ainda direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que o produtor desses bens é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei – seu art.º 12.
Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – artigos 3º e 4. nº 1 da LDC.
A aplicação deste regime depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim.
Com este diploma legal pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem - (seu art.º2.º/1 e 2).

V
No caso específico da venda de automóveis em segunda mão, tem sido constante a jurisprudência que entende que é relevante, para efeitos da previsão do citado artigo 2º, alínea a), a divergência entre a quilometragem efetuada pela viatura e os quilómetros que a mesma apresenta.
A título de exemplo, veja-se o acórdão deste Tribunal da Relação de 10-02-2016 (TOMÉ RAMIÃO) 4990/14.8TBVNG.P, consultável no sitio do ITIJ, onde se pode ler: “O comprador de veículo automóvel usado tem direito à resolução do contrato de compra e venda, ao abrigo do disposto no art.º 4.º/1 e 5.º desse diploma legal, por desconformidade com o contrato de compra e venda, quando a quilometragem apresentada pelo stand vendedor, aquando da sua aquisição, era de 94.650 Km, quando na realidade já tinha uma quilometragem de 156.884 Km”.
Neste citado aresto é ainda convocada a jurisprudência constante dos acórdãos, do mesmo Relator, desta Relação, proferido em 29/09/2015, proc. n.º 399/14.1TJPRT.P1, e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/3/2012, proc. n.º 777/09.8TBALQ.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.
Na mesma senda, pronunciou-se, entre outros, neste Tribunal, o Acórdão de 04-10-2021 (MIGUEL BALDAIA DE MORAIS) 30/17.3T8PRD.P1, também consultável no sítio do ITIJ entendeu que “(…) o comprador de veículo automóvel usado tem direito a resolver o contrato de compra e venda se a quilometragem apresentada pelo stand vendedor era de cerca de 190.000 Kms. quando na realidade já tinha uma quilometragem superior a 500.000 Kms”.
No mesmo sentido, o Acórdão deste Tribunal de 14-2-2005, Proc. n.º 0456802, in ITIJ decidiu: “(…) não pode considerar-se irrelevante para o comum das pessoas, que se proponham adquirir uma viatura usada, o número de quilómetros que a mesma possa ter realmente percorrido, isto é, não é de aceitar que não haja uma diferença e bastante acentuada entre duas viaturas usadas que, apesar de aparentarem as mesmas características e estado de conservação, apresentem diferente quilometragem efetivamente percorrida, designadamente quando uma apresenta 45.000 Kms. e a outra 100.000 Kms. realmente percorridos, porquanto, como é público e notório, o desgaste global da viatura aumenta com o maior número de quilómetros percorridos)”.
Adita-se ainda, a favor deste entendimento, João Calvão da Silva (Venda de Bens de Consumo”, 4ª ed., Almedina 2010, pág.116), quando refere que, na venda de automóveis usados, a qualidade e o comportamento razoavelmente esperável pelo consumidor terá em conta o tempo da precedente utilização e mesmo a idade do veículo.
Contudo, se um bem usado pressupõe um desgaste normal em função da sua utilização ou do tempo, esse desgaste não poderá nunca por em causa a sua funcionalidade e performance, tendo em consideração o fim a que o mesmo é destinado.
O comprador de um automóvel usado terá de ter a consciência de que o mesmo terá sido sujeito a algum desgaste, correspondente à sua antiguidade e aos quilómetros percorridos, que os bancos poderão estar puídos, que os pneus e outras peças de desgaste mais rápido, tendo tido algum uso, poderão ter de vir a ser substituídos num prazo mais curto que se fossem novos, de qualquer modo, será suposto que se trate de um veículo que se encontre apto a funcionar, pelo que, qualquer avaria que importe a paralisação do veículo, caberá dentro da responsabilidade do vendedor, desde que ocorra dentro daquele período de um ano após a compra, a não ser que o vendedor, com os seus especiais conhecimentos, alegue e prove que a avaria em questão se deve a alguma peça de desgaste rápido, que sempre teria de ser sujeita a substituição periódica (ou que a avaria se devesse a imprudente utilização ou ato do comprador).

VI
Sucede que, do art.º 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, resulta primordialmente a imposição de uma obrigação de entrega dos bens de consumo em conformidade com o contrato.
Como assinala Menezes Leitão ( “Direito das Obrigações”, Vol. III, 2ª ed., Almedina, 2004, pág. 139), “A imposição ao vendedor da garantia de conformidade implica uma alteração substancial bastante importante no regime da compra e venda de bens de consumo, na medida em que vem afastar a solução tradicional do caveat emptor, segundo ao qual caberia sempre ao comprador aquando da celebração do contrato, assegurar que a coisa adquirida não tem defeitos e é idónea para o fim a que se destina. Face ao novo regime da venda de bens de consumo, esta averiguação deixa de ser imposta ao consumidor para ser objeto de uma garantia específica, prestada pelo vendedor, cabendo a ele o ónus da prova, segundo as regras gerais, de ter cumprido essa obrigação de garantia”.

VII
Nos autos, o que ficou apurado foi que:
Do livro de revisões da viatura consta que, a 27 de novembro de 2014, a viatura tinha 65.583 km (facto 25).
A viatura dos autores permanece com marcas visíveis de ferrugem (facto 28).
No decurso de uma limpeza ao chassis da viatura, em abril de 2019, FF, proprietário da empresa, informou o autor marido de que o chassis se encontrava muito danificado e com marcas visíveis de ferrugem, num estado avançado, cujo nível de desgaste era incompatível com a quilometragem apresentada (facto 22).
A 15 de Novembro de 2018, a viatura com a matrícula ..., número de quadro ..., e quilometragem indicada de 50.071 km, foi sujeita a uma inspeção técnica periódica na empresa M..., Lda., em Ílhavo, tendo obtido o resultado aprovado (facto 9).
Ora, a diferença de 15.000 km registada no livro de revisões em relação aos 50.000 Km apresentados pela viatura assume especial relevância no contexto em que tal situação se verifica num momento que antecedeu temporalmente em 4 anos a data da compra, e sobretudo se atentarmos que, como resulta dos documentos que constam dos autos, a viatura é de 2011, ou seja, em cerca de 3 anos percorreu 65.000 km, do que se pode concluir que nos 4 anos de diferença entre aquelas datas terá percorrido ao menos outros tantos, considerando-se deste modo preenchida a previsão da alinea a) do nº 1 do artigo 2º da LDC..
“Na execução da obrigação de entrega da coisa, o vendedor deve respeitar escrupulosamente o contrato, pela ‘traditio da coisa convencionada e nos termos devidos, isenta de vícios ou defeitos’, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida” (Calvão da Silva, Venda de bens de consumo, 2010, pág. 81). Trata-se, tão só, de uma das concretizações do princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações.
Concluímos, assim, que está verificado o defeito relevante que legitima a ação de resolução do contrato em conformidade com o artigo 4º da LDC.

VIII
A Ré sustenta o abuso de direito do Autor.

VIII- 1
A consagração legal do abuso do direito consta do artigo 334º do Código Civil que prescreve: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Na interpretação deste normativo Menezes Cordeiro in portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star, faz apelo à interpretação atualista devendo entender-se que o legislador pretendeu dizer “é ilícito” ou “não é permitido” com a asserção “ilegítimo”; e bem assim, à adequação do conceito “manifestamente” a uma realidade definida em termos objetivos; que “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objetiva. Aparentemente, lidamos com a mesma realidade presente noutros preceitos, com relevo para os artigos 227.º/1, 239.º, 437.º/1 e 762.º/2 (princípios mediantes: “a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente)”.
Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social, equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1: regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos. “ (…) o “fim social ou económico do direito” apela a uma interpretação que dê valor à dimensão teleológica. Já a locução “direito” surge, aqui, numa aceção muito ampla, de modo a abranger o exercício de quaisquer posições jurídicas”. (…) O abuso do direito apresenta-se, afinal, como uma constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma atuação que, em princípio, se apresentaria como legítima”. Ibidem

VIII.2
O direito à resolução, no direito do consumo, tem como limite, conforme o artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, o abuso do direito, conforme expressamente previsto no nº 5 do mesmo preceito legal.
Trata-se de instituto de direito que surge aqui como válvula de escape para situações em que, em concreto, a resolução do contrato figura como um remédio desproporcionado, inapropriado, inadequado ou irrazoável em face do caso concreto impondo o recurso ao princípio da boa fé em ordem à justa composição do litígio.
Sucede que a escolha do consumidor pelo exercício de um dos direitos que a lei coloca à sua escolha no artigo 4º deve mostrar-se conforme e adequada ao vício que a coisa apresenta, razoável de acordo com a boa fé. Neste sentido, pronunciou-se o Acórdão do TRL de 19-02-2008, processo 515/2008-7, in ob. Cit., pg., 111 Calvão da Silva: “Embora podendo o comprador/consumidor optar por um dos direitos possíveis, a sua escolha deverá obedecer aos ditames da boa fé e com respeito pela conservação e perfeição do negócio”.
Com efeito, em tais casos, como ilustra o referido Autor, a pg. 112, da ob. Cit., o consumidor pode fazer o pedido principal repristinatório e, para a hipótese de sua onerosidade excessiva, um pedido subsidiário ou subordinado.
No entanto, a eliminação do defeito, no caso, não é possível, uma vez que não se podem retirar os quilómetros efetuados à viatura e não foram alegados quaisquer factos tendentes quer à substituição do veículo, quer à redução do preço, pelo que assiste ao Autor o direito a ver resolvido o contrato.
Exercendo a apelante a atividade profissional de compra e venda de veículos, terá de ser ele a suportar os prejuízos, não o comprador, de acordo com o velho brocardo latino “ubi commoda, ibi incommoda”.
Consideramos, por isso, em face de um padrão de proporcionalidade e de razoabilidade, que sempre devem presidir a situações como a presente que não é exigível no caso a manutenção do contrato.

IX
Em face da resolução, o Autor tem direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, porquanto, quanto a estes danos, há que ter presente o estabelecido no nº 4 do artigo 4º da LDC de que resulta a consagração deste direito de indemnização independentemente de culpa. Os danos patrimoniais fixados na sentença correspondem ao quantum previsto no artigo 564 e ss. do CC.
No entanto, quanto aos danos não patrimoniais, não há na LDC norma semelhante a estipular um dever de indemnização independente da culpa (vide artigo 12º), pelo que, sendo a regra geral a da responsabilidade subjetiva (artigos. 483º nº1 e 798º do CC), entende-se que a mesma só existirá em caso de culpa do vendedor, ainda que a mesma se presuma, por força do disposto no artigo 799º do CC (Cfr., neste sentido, Sara Larcher, “Contratos Celebrados Através da Internet: Garantias dos Consumidores contra vícios de Compra e Venda de Bens de Consumo”, publicado in “Estudos Do Instituto de Direito do Consumo”, vol. II, pag. 221 e 22, e João Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança”, pág. 132) .
Isto posto, dos autos não resulta a culpa da Ré, uma vez que os defeitos da viatura vendida não eram aparentes, sendo certo que esta “foi sujeita a uma inspeção técnica periódica na empresa M..., Lda., em Ílhavo, tendo obtido o resultado aprovado” (facto 9).
Afastada a culpa do vendedor na falta de qualidades apresentada pelo veículo – o veículo foi experimentado aquando da compra, não aparentando quaisquer deficiências, está também afastado o direito à falada indemnização pelos danos não patrimoniais – vide, ainda, neste sentido Acórdão deste Tribunal de 21-01-2014 (MARIA JOÃO AREIAS) 1177/12.8T2OVR.P1, consultável no ITIJ.
Procede, pois, o recurso, nesta parte.

X
DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ.
O n.º 1 do art.º 542.º do Código de Processo Civil, estabelece que, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir.
E como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Litiga de má fé a parte que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava, ou que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais, ou ainda que tiver feito um uso manifestamente reprovável dos meios processuais (art. 542º, nº 2 do Código de Processo Civil), abarcando tanto os fundamentos de facto como os de direito.
A norma refere-se atualmente quer aos comportamentos dolosos quer aos negligentes ou temerários, sendo certo que a lide será assim considerada quando o litigante sabia que não tinha razão e, apesar disso, litigou (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, p. 262, 3ª Ed.), violando assim o dever de probidade que sobre ele impende.
No presente processo, a Ré ao longo do mesmo expôs as suas posições relativamente aos factos em discussão, pugnando pela sua pretensão, mas não se demonstra que a sua atuação processual deva ser considerada reprovável ou que mereça especial censura.
Em reforço deste entendimento, convocamos o acórdão desta relação de 27-09-2022 (ANABELA DIAS DA SILVA) 1990/20.2T8OVR-A.P1, que se cita: “Como se sabe, foi no intuito de moralizar a atividade judiciária que o art.º 542.º n.º2 do Código de Processo Civil contém hoje um conceito de má-fé que abrange a negligência grave, sendo pois hoje é sancionável a título de má-fé, não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, como dela se diz quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro”.
“Com efeito, a má-fé substancial ou material direta, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que alude a al. b) do n.º 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil , ou seja, da má-fé substancial indireta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”, cfr. Prof. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 355 a 358 e Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 258 e segs”.
Por sua vez, o Ac. do STJ de 2001.12.06, in www.dgsi.pt, diz que a negligência grave é caracterizada como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um. Dizendo mais adiante que: “Conforme tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência, a conclusão no sentido da litigância de má-fé não pode ser extraída mecanicamente da verificação de comportamento processual recondutível à tipicidade das várias alíneas do n.º 2 do art.º 456.º do Código de Processo Civil (hoje n.º2 do art.º 542.º). Com efeito, a condenação nesse sentido, isto é, a delimitação dessa responsabilização impõe uma apreciação casuística, e onde deverá caber pelo que respeita à previsão da al. b), a extensão da alteração da verdade dos factos ou da omissão dos factos
relevantes”.
Da análise do n.º 2 do citado art.º 542.º, verifica-se que poderá caber no conceito de litigância de má-fé os casos de negligência grave. Trata-se de um postulado do “princípio da cooperação” previsto, nomeadamente, nos arts.º 7.º e 8.ºdo Código de Processo Civil onde se diz que “as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”.
Pode concluir-se, pois, que a má-fé se traduz na violação do dever de probidade que os arts. 7.º e 8.º do CPC impõem às partes: dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, pois que tal instituto visa sancionar os deveres impostos às partes de cooperação, de probidade, de lisura processual, em suma, de boa-fé processual.

XI
Da factualidade assente na sentença não se retira comportamento censurável nos termos expostos, na medida em que a Ré limitou-se a trazer aos autos a sua versão dos factos, a qual possível, mas que não logrou provar.

Dá-se razão ao recurso, nesta parte, pois. SEGUE DELIBERAÇÃO:

PROVIDA PARCIALMENTE A APELAÇAO, REVOGA-SE A SENTENÇA APELADA NA PARTE EM QUE CONDENOU A RÉ NO MONTANTE DE 500,00 EUROS A LIQUIDAR A CADA UM DOS AA POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS BEM ASSIM NA PARTE EM QUE CONDENA A RÉ COMO LITIGANTE DE MÁ-FÉ. CONFIRMA-SE A SENTENÇA NO MAIS.

Custas pela apelante.


Porto, 24 de novembro de 2022
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Carlos Portela