Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5377/21.1T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FURTO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
PROVA POR DECLARAÇÕES DE PARTE
Nº do Documento: RP202404085377/21.1T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A prova por declarações de parte deve merecer, em abstrato, a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis, sendo apreciada livremente pelo tribunal.
II - O ónus da prova da verificação do furto, enquanto elemento constitutivo do direito à indemnização, e dos danos correlativos, tratando-se de matéria impugnada pela seguradora, impende sobre o segurado.
III - Na apreciação da prova o tribunal deve ter em consideração o circunstancialismo inerente ao facto de o furto ser um ato de terceiro, realizado, em princípio, de forma oculta, pelo que será apenas exigível a prova de factos integradores, que imprimam verosimilhança à alegação.
IV - A circunstância de o veículo ter desaparecido quando se encontrava estacionado dentro da malha urbana, sem vidros partidos ao redor e o facto de as coberturas do contrato de seguro referentes ao veículo terem sido alargadas meses antes da participação do furto não são suficientes para abalar a credibilidade envolvida na sua subtração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 5377/21.T8VNG.P1

Relatora: Teresa Fonseca
1.º adjunto: Manuel Fernandes
2.ª adjunta: Eugénia Cunha

Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
“A... Unipessoal, Lda.” intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “B..., S.A.”.
Pede que a R. seja condenada a pagar-lhe € 10427,18, acrescidos de juros de mora desde a data da citação até pagamento.
Alegou que veículo de que é proprietária, relativamente ao qual a responsabilidade por furto se encontrava transferida para a R., desapareceu contra a sua vontade.
A R. contestou, impugnando a factualidade alegada pela A. e pugnando pela absolvição do pedido.
Teve lugar julgamento e foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. € 9770,27, acrescidos de juros de mora desde a citação até pagamento.
Inconformada, a R. interpôs o presente recurso, finalizando como segue.
2. Conclusões.
I. A prova do sinistro relatado no petitório assenta única e exclusivamente nas declarações de parte do A., como se vê designadamente de 33 dos factos provados e se extrai igualmente do depoimento da companheira do legal representante da A. transcrito nestas linhas;
II. Aliás, em relação a este último, é ainda de realçar - e o que não faz não nenhum sentido, em termos normais - que esta testemunha, mesmo tendo passado pela manhã no local (iluminado, como revelou) onde alegadamente se encontrava o veículo estacionado, não teve sequer a curiosidade (de modo contraditório com outra preocupação mais “comezinha” a que aludiu) de olhar para esse local;
III. Ora, s. m. o., o sentido constante da jurisprudência (cfr. p. ex. os acs. do T. R. Porto de 10.09.2015 e de 20.06.2016, o primeiro dos quais, ao que se pensa, não publicado) sobre esta possibilidade conferida às partes desde 2013 vai no sentido da valoração das declarações de parte com reservas, demandando um mínimo de corroboração de outras provas, o que não sucede e de forma nenhuma (muito visivelmente, de resto) in casu;
IV. Percebe-se essa preocupação, uma vez que existe o sério risco de um “grau de comprometimento” demasiado grande com as versões apresentadas nomeadamente nos articulados iniciais, sendo razoavelmente expectável que essas declarações não caminhem em direção oposta à dos interesses dos declarantes (identicamente, ao menos de alguma maneira, assim sucede quando se trata, p. ex., de ouvir, na qualidade de testemunhas, proprietários não inscritos registalmente de um veículo e quando este é afinal bem comum juntamente com aquele(a) que no registo figura como seu proprietário(a) );
V. Em seu contraponto, numa situação como esta, importa que sejam devidamente valorados os elementos probatórios (e eles existem neste caso) que coloquem em crise as versões apresentadas, designadamente no âmbito do que deve ser a “normalidade do acontecer”.
Dito isto,
VI. Em primeiro lugar, é de sublinhar que a informação prestada pela plataforma Uber (fls. 206), não permite concluir o que decorre de 39 dos factos provados, mas antes o seu contrário, ou seja, que não é possível efetuar serviços não declarados naquela plataforma/App, sendo certo que isso também não ocorre mesmo que apenas com o depoimento de parte/declarações de parte do legal representante da A. (não parece, aliás, que aquele representante legal da A. tenha dito o que quer que seja a propósito do dado como provado nesse ponto e aí está a totalidade – ou quase – da transcrição das suas declarações para confirmar essa conclusão);
VII. Por isso, aquele facto provado nº 39 deve merecer uma resposta negativa e passar a figurar no rol de factos não provados;
VIII. Em segundo lugar, e como antecipado, os pontos 17 a 24 que figuram no acervo dos factos provados devem, também eles, transitar para os factos não provados, posto que, como dito e se vê da sua transcrição praticamente integral, têm como único “suporte probatório” as declarações de parte do A. que não foram confirmadas, por pouco que fosse, por outro meio de prova (e repare-se ainda, mais não seja a título de mera curiosidade, que nem um só facto deu origem a assentada no âmbito do depoimento de parte, o que, de certa forma, também confirma o antes defendido);
IX. Na verdade, impunha-se que a sentença em crise ponderasse devidamente outros factos dados como provados – e, salvo o devido respeito, fê-lo apenas pela “rama” e sem os valorizar devidamente – tais como p. ex. os pontos 33 a 38 e 41 a 43;
X. Por outro lado, na opinião da R., a sentença também não decidiu bem quanto às respostas negativas aos pontos A, B, F e G dos factos não provados;
XI. Quanto ao ponto B, e com base no depoimento transcrito de AA, resulta claro que o local é e estava iluminado, pelo que se entende que esse ponto B deve “migrar” para os factos provados com a mesma redação que tem atualmente;
XII. No que diz respeito aos pontos A e F da factualidade não provada, e socorrendo-nos dos depoimentos de BB e CC também transcritos, pode concluir-se desde logo que não é exato que o valor atribuído ao veículo tenha resultado de indicação da A., mas não é menos verdade que se pode também inferir que aquele valor resultou da aplicação “cega” de uma tabela existente (a que a A. não se opôs, note-se) e que nessa altura não foram tidas em consideração (precisamente pela utilização dessa tabela) algumas “características” relevantes do veículo XE;
XIII. Portanto não se pode extrair (como a sentença faz) a conclusão de que aquele seria o valor real e de mercado do veículo, seja no momento, seja no momento do alegado furto/desaparecimento (e é ainda de notar que, para a sentença do tribunal a quo, esse valor era idêntico num momento e no outro, separados por praticamente três meses);
XIV. Entende assim a R. que se pode extrair a ilação (também por documentos juntos) de que o valor do veículo à data da celebração do contrato de seguro era de não mais de 8.000,00€ e que na(s) data(s) do alegado furto/desaparecimento tal valor não ultrapassaria os 7.000,00€ - 7.500,00€.
XV. Assim, essa matéria de facto deve passar para o elenco dos factos provados (e, naturalmente, também considerada na decisão a proferir) com a seguinte sugerida redação:
- ponto 44 dos factos provados: provado que «O valor de 10.427,18€ em que foi fixado o capital seguro resultou apenas da aplicação da tabela Eurotax, sem ter em consideração nomeadamente a utilização que era dada ao veículo e quaisquer outros critérios, e mereceu a concordância da A., através do seu legal representante.»;
- ponto 45 dos factos provados: provado que «Na data de celebração do contrato de seguro, o veículo XE apresentava valor não superior a 8.000,00€ e que em 12 – 13 de Janeiro de 2021 o seu valor era não mais de 7.000,00 – 7.500,00 €.»;
XVI. Por seu turno, e mais não fosse porque se defende que o ponto A dos factos não provados deve passar para o rol de factos provados, ainda que com diferente redação, o ponto 25 dos atuais factos provados, atenta a inequívoca “ligação” com aquele, deve fazer o percurso inverso, sendo julgado não provado;
XVII. Quanto agora ao ponto G dos factos não provados, a R. também discorda dessa decisão, estribando essa sua opinião nos depoimentos transcritos de DD e de EE;
XVIII. Neste passo, convém até recordar que a formulação daquele ponto G tem que ver com uma comunicação oral – “disse” - (e não escrita) que ambas as referidas testemunhas confirmaram que lhes foi transmitido pelo legal representante da A. (e, pelo menos, uma delas até identificou o local onde essa informação verbal lhes foi transmitida);
XIX. Ora, considerando, além do mais, que esse depoimento não foi, por pouco que fosse, contrariado sequer pelo depoimento de parte/declarações de parte e bem assim a irrelevância do que este escreveu (e nada se escreveu aí sobre o modo de pagamento, note-se) não sobeja nenhuma razão válida para que essa matéria não deva ser dada como provada exatamente com a sua redação atual;
Isto posto,
XX. A exemplo do decidido designadamente no ac. do T. R. Guimarães de 16.05.2019 (proc. nº 3164/17.0T8VNF.G1, consultável em www.dgsi.pt), entende a R. que se justificava que a sentença em crise tivesse sido mais exigente com a prova, em especial, e como dito, atenta a constatação incontornável que a prova que incumbia à A. está ancorada apenas nas declarações de parte do seu legal representante;
XXI. Ora, no caso concreto impunha-se que tivessem sido analisadas “com outros olhos” e valoradas com “outro peso” as dúvidas sobre tudo (e não apenas sobre o alegado furto/desaparecimento propriamente dito) que o processo revela e que resultam do “trabalho” de prova (melhor: de contraprova) da R./recorrente (veja-se, de resto, o que nos parece ser um claro equívoco em que incorreu a sentença, quando considerou e manifestamente valorou, ao arrepio da informação prestada pela marca do veículo, que as chaves do veículo – e falta saber, já agora, se eram as originais, sendo certo que essa não era prova que cabia à R. – deviam permitir a leitura de dados relevantes);
XXII. Na verdade, não se nos afigura razoável e muito menos normal, à luz – passe, de algum modo, a repetição - da “normalidade do acontecer”, que uma sociedade que se dedica em exclusivo à atividade de TVDE (as restantes atividades são do seu sócio-gerente) “desperdice” p. ex. despesas que podem ser abatidas aos seus proventos, tanto mais que se trata de sociedade, obrigada que está à contabilidade organizada;
XXIII. Referimo-nos, claro está, e desde logo, aos custos com a Via Verde (em portagens e parques de estacionamento) que, muito curiosamente, nem sequer se consegue associar a este veículo XE e muito menos à sociedade A. (porque em nome do seu sócio-gerente, o que, salvo o devido respeito, não tem explicação “racional”);
XXIII. Referimo-nos também (e como resulta bem explicado dos depoimentos de DD e EE e, curiosamente, mais uma vez, sem qualquer explicação da parte da A.), à questão bem ”nebulosa” da aquisição do veículo (são contraditórios, aliás, os pontos 41 e 42 dos factos provados), seja quanto à ausência de fatura, seja quanto à identificação estranha e não coincidente de quem terá sido o vendedor, à forma de pagamento (em numerário), ao facto de alegadamente ter sido “passado” dinheiro - muito ou pouco, pouco importa - para um particular que não se conhecia de lado nenhum (do C...), etc.;
XXIV. Mas ainda ao facto de aquela Via Verde (partindo do princípio, apenas para efeitos deste raciocínio, que era daquele veículo) ter sido utilizada pela última vez cerca de 1 mês e ½ (29 de Novembro de 2020) antes do alegado furto, o que não é certamente compaginável com uma utilização principal e nomeadamente com o exercício da atividade de TVDE;
XXV. Bem assim – e o que é outra vez muito estranho - a circunstância de o último serviço para aquela plataforma/App ter sido no dia 5 de Janeiro de 2021 (cerca de 1 semana antes do alegado desaparecimento do XE), não havendo, como se viu da primeira parte deste recurso e da declaração daquela plataforma, qualquer hipótese de serem efetuados serviços não declarados;
XXVI. Além disso, e sendo claro que a sentença do tribunal a quo desvalorizou nitidamente o ponto nº 43 dos factos provados, entende a R. que essa não foi a decisão correta, porquanto, vista nomeadamente a atividade da sociedade A. que se manteve, importava perceber - se os “riscos” eram por isso os que sempre foram - qual teria sido a razão plausível para alteração da cobertura do seguro. E essa, a A. nunca a explicou ou, melhor dito, não fez prova de que havia uma explicação minimamente “racional” e entendível para tal;
XXVII. Entende a R./recorrente, salvo sempre o respeito devido, que a sentença violou designadamente o disposto no artigo 342º nº 1 do Cód. Civil, bem como o disposto no artigo 798º do mesmo Código, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que absolva a R. do pedido formulado pela A..
Sem prescindir,
XXVIII. Se se entender que a condenação da R. é de manter – o que se admite apenas para efeitos deste raciocínio -, então face ao depoimento informado e claramente sabedor de CC, sob pena, de assim não acontecendo, ocorrer violação nomeadamente do disposto nos artigos 128º e 130º do RJCS, deve o valor do veículo a considerar à data (qualquer que seja, 12 ou 13 de Janeiro de 2021) do alegado desaparecimento/furto ser fixada em não mais de (uma média) de 7.250,00€.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, se fará inteira JUSTIÇA.
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A A. contra-alegou, finalizando da forma que em seguida se reproduz.
1. Pela decisão a quo foi julgada parcialmente procedente a ação e, em consequência: a) Condenou a Ré a pagar à Autora, € 9.770,27, acrescida de juros de mora contabilizados desde a data da citação até integral e efetivo pagamento; b) Absolveu a Ré de demais peticionado pela Autora; c) Condenou a autora e a ré no pagamento das custas processuais na medida dos respetivos decaimentos, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código Processo Civil (CPC).
2. Não concordando com tal decisão, a Ré interpôs o presente recurso, impugnando a matéria de facto e de direito.
3. À Recorrente não assiste razão na pretensão que deduz no presente recurso.
A) Da impugnação da matéria de facto:
4. No que tange aos factos vertidos de 17.º a 24. da matéria assente, alega a Ré que a Juiz a quo fundamentou a sua decisão unicamente nas declarações de parte, realizadas pela Autora na pessoa do seu legal representante, o que, na sua ótica, se revela legalmente inadmissível.
5. Porém, é falso o alegado, pois, a matéria assente resulta da conjugação de toda a prova, sendo indubitável que a decisão neste âmbito tem que atender às suas especificidades.
6. “A credibilidade das declarações da parte, no segmento em que não integrem confissão, deve ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas que, desde logo, desvalorizem o seu depoimento apenas porque é parte, nada impedindo que as suas declarações possam servir para dar certo facto que lhe é favorável como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação, maxime quando sejam confirmadas, em maior ou menor medida, por outros subsídios probatórios que hajam sido carreados para o processo.” - vide Ac. da RP de 21.02.2018, disponível in www.dgsi.pt.
7. Tratando-se de sinistro em que o sinistrado se encontrava as suas declarações são essenciais, sendo este o único que poderá relatar a sequência factual.
8. Como afirma a Decisão a quo, as declarações da A., na pessoa do seu legal representante, foram genuínas e concretizadas, sendo corroboradas pela restante prova testemunhal – analisada na sua integralidade e de forma conjugada -, designadamente pelas declarações da namorada – AA, prestadas em audiência de julgamento, no dia 10/10/2023.
9. A testemunha AA relatou ter visto a viatura furtada – XE – no dia 12/01/2021, pelas 21.30horas, quando chegou a casa, estacionada perto da entrada da sua residência, no entanto, como não tinha lugar “ao lado”, teve que “estacionar do outro lado da rua”. Sendo que, já no dia 13/01/2021, saiu, de casa, por volta das 5/6 horas, e não se apercebeu, se o veículo ainda se encontrava aparcada no mesmo local, o que é expectável em face das regras da experiência comum (cf. ao minuto 00.02.33 a 00.05.13, conforme ata de audiência, a fls. …).
10. Não é de estranhar que ao chegar à sua residência, esta procure estacionar o seu veículo em paralelo (ao lado) daquele que é utilizado pelo seu companheiro – o XE – para evitar riscos e amolgadelas nas portas (situações comuns), no entanto, tendo esta estacionado noutro local, não seria expectável que a mesma, pelas 5/6 horas, quando se ausentou para trabalhar, fosse confirmar se o “XE” ainda estaria no local esperado, pois, atento ao “Bonus Pater Familia” ou teoria do homem médio, não seria suposto ou previsível que o veículo tivesse sido furtado, à porta da sua residência, no período compreendido entre as 21 horas de 12/01/2021 e as 6 horas do dia 13/01/2021, pelo que, não seria essa a sua preocupação no momento.
11. A testemunha AA foi surpreendida pelo Sr. FF, legal representante da A., por telefone, que, no dia 13/01/2021, a indagou se havia utilizado o veículo XE, pois, havia desaparecido, corroborando, desde modo, a descrição factual apresentada pelo Legal Representante da Autora, em declarações de parte.
12. A Autora invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro com a Ré, em consequência do furto, pelo que lhe incumbe a prova da verificação do furto – cf. artigo 342.º, n.º 1 do C.P.C..
13. Todavia, “embora o segurado tenha o ónus da prova de que o veículo foi furtado, para tal bastará a existência de uma participação feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança” – Ac. TRL de 22.11.2018 (disponível in www.dgsi.pt).
14. Numa situação como a dos autos não se pode exigir que a A. faça uma prova pessoal e direta do desaparecimento do veículo em consequência de furto, porque este é normalmente praticado de forma sub-reptícia, em que não há contacto direto entre quem pratica o furto do automóvel e o seu proprietário.
15. Aliás, o entendimento em sentido diverso, importaria a imposição de um esforço probatório que se poderia qualificar como diabólico, atendendo às circunstâncias que usualmente acompanham o furto.
16. Nesta perspetiva, é à seguradora que cabe depois a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto que resulta daquela participação, o que não logrou alcançar.
17. “A inexistência de testemunhas diretas do cometimento do furto não tem qualquer significado e não pode ser utilizado como argumento no sentido da sua não ocorrência, até porque, neste tipo de situações não existem normalmente testemunhas presenciais” (vide Ac. TRP de 07/10/2019, disponível in www.dgsi.pt).
18. É entendimento unânime que cumpre o ónus da prova, plasmado no artigo 342.º do C.C., o autor que, tendo apresentado a queixa pela ocorrência do furto, fornece ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente à queixa apresentada e que se objetivem factualmente na fundada probabilidade do veículo ter sido estacionado nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas naquela queixa e de ter desaparecido daquele lugar sem motivo aparente (cf. Ac. RG de 16.5.2019, disponível inwww.dgsi.pt.), o que se vislumbra no caso sub judice.
19. No que tange ao facto vertido no paragrafo 25. dos factos provados, por força das declarações prestadas pela testemunha BB, mediador do contrato de seguro (10/10/2023, entre 00.00.01 e 00.16.42, conforme ata a fls. …), resulta que o valor do veículo XE foi alcançado com recurso à tabela Eurotax imposta pela Companhia de seguros, aqui Recorrente.
20. O tomador do seguro apenas pode acatar, subscrevendo o contrato de seguro (que tem natureza de contrato de adesão).
21. Mas mais, na subscrição do contrato de seguro é necessário indicar a atividade a desenvolver pela viatura, por forma a ser avaliado o risco e fixado o capital seguro e o respetivo prémio de seguro, o qual sai agravado pelo facto de a mesma, in casu, se destinar a TVDE, logo, a atividade de TVDE e o facto de o veículo ser importado são fatores que existiam à data da celebração do contrato, não havendo nenhum elemento novo que após três meses contribuísse para alterar o valor então fixado pela Recorrente
22. Nesta senda, sufraga-se o Ac. TRP, de 25/01/2022, disponível in www.dgsi.pt, o qual defende que: “tendo o valor sido fixado pela seguradora sem intervenção do segurado, corresponde a um verdadeiro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pôr em causa esse valor quando chamada a honrar o contrato de seguro celebrado.”
23. Subsidiariamente, sustenta a Apelante a existência de uma situação de sobresseguro, alegando que o valor do veículo à data do furto era de € 7.000,00/8.000,00, e não €10.427.18, valor pelo qual o veículo foi segurado.
24. Nessa conformidade, caberia à apelante provar que o valor do veículo era inferior ao que constava do contrato, o que não logrou fazer como se alcança do ponto F da matéria de facto não provada.
25. Pugnando a Recorrente para que facto não provado vertido na alínea A) seja considerado como provado, a mesma revela muita incoerência, na medida em que afirma que: “não é inteiramente correto que o valor de € 10.427,18 resultou da indicação da A.” – negrito e sublinhado nosso.
26. Ora, se não é inteiramente correto que o valor foi indicado pela A., é porque essa afirmação incorre em falácia.
27. Conclusão que sai reforçada com o depoimento da testemunha BB que esclarece que o valor resulta da aplicação de uma tabela imposta pela Seguradora, acrescentando que, e passa-se a citar: “…Mesmo que o cliente quisesse segurar o carro por mais dinheiro ou por menos não é uma situação que é admissível” (cf. declarações, datadas de 10/10/2023, ao minuto 00.00.01 a 00.13.45 – vide ata de audiência de julgamento).
28. Destarte, sobre o facto valorado na alínea A) como não provado nunca poderia recair decisão diversa daquela que foi prolatada.
29. A conclusão de que, à data do furto, o veículo segurado tinha o mesmo valor indicado à data da subscrição do contrato de seguro, cerca de três meses antes, resulta das regras da experiência comum, com a certeza que nenhum elemento foi carreado para o processo que fizesse concluir em sentido contrário e/ou diverso.
30. Sobre o facto 39. da matéria assente entende, a Recorrente, não ser essa a afirmação mais correta, pelo que, tal facto deverá ser julgado como não provado.
31. TVDE visa o transporte individual de passageiros, com recurso a plataformas eletrónicas, como a UBER e a BOLT, da mesma forma que podem ser assegurados serviços de transporte de passageiros contratados diretamente por particulares.
32. Por conseguinte, todos os serviços alheios à plataforma UBER, não se encontram nesta registados ou declarados.
33. Facto esse que foi confirmado pela UBER, mediante informações prestadas aos presentes autos a fls. 206.
34. O legal representante da recorrida afirmou que: “Certo. O carro era para TVDE, UBER… Mas eu faço uso dele para outras atividades profissionais” (cf. declarações, datadas de 10/10/2023, do minuto 00.05.45 a 00.06.35, cf. ata a fls. …).
35. Assim, provado que está que a Autora tem como escopo o TVDE (cf. factos provados n.º 1. e 2.º), e que o veículo “XE” estava destinado a esse fim e a outras atividades, é perentório concluir-se, como fez o Douto Tribunal de 1.ª Instância que: “A autora efetuava serviços não declarados na plataforma Uber”.
36. Sobre os factos não provados vertidos nas Alíneas A e F, remete-se para o supra exposto quanto ao facto vertido no paragrafo 25 da matéria assente.
37. No que concerne ao facto vertido na Alínea B dos factos não provados, pretende que o mesmo seja declarado provado por força das declarações prestadas pela testemunha AA, no entanto a mesma apenas afirma que a rua tem muita luminosidade cf. declarações, de 10/10/2023, ao minuto 00.04.07 a 00.04.32, cf. ata a fls. …).
38. O facto de a rua ter muita luminosidade não significa que advenha da iluminação pública, e, por outro lado, no dia exato em que o veículo desapareceu desconhece-se se efetivamente a iluminação pública estaria em funcionamento.
39. Logo, a Meritíssima Juiz apenas poderia ter valorado tal facto negativamente.
40. No que tange ao facto não provado pela alínea G) - (“FF disse ao averiguador da ré que o preço de aquisição do veículo XE (€ 12.500,00), foi pago em dinheiro”), defende a Recorrente que, não obstante tal facto não ter sido reduzido a escrito pela autora, junto do averiguador, as testemunhas DD e EE terão ouvido essa versão, pelo que, deve ser valorado como provado.
41. Porém, nos termos do artigo 421.º do C.P.C., a contrario sensu, “as declarações que são prestadas perante um averiguador pago por uma seguradora, sem a presença da parte contrária e sem o controlo do juiz, como neste caso terá sucedido, não valem como elementos de prova utilizáveis no tribunal, sejam elas corporizadas em escrito feito na sequência das mesmas ou transmitidas pelo averiguados como testemunha” (vide Ac. TRL de 22/11/2018, citado pelo Ac. TRP de 07/10/2019, ambos disponíveis in www.dgsi.pt).
42. Sendo de sublinhar as contradições evidenciadas por estas testemunhas, já que a testemunha DD afirma (ao minuto 00.18.21 a 00.18.23, em 10/10/2023, conforme ata a fls. ) que o preço terá sido “todo pago na totalidade”, enquanto a testemunha EE referiu que o pagamento do preço havia sido efetivado em “duas tranches” (cf. minuto 00.06.29 a 00.06.51, em 10/10/2023, conforme ata a fls.).
43. Logo, bem andou o Tribunal a quo.
B) Da Impugnação da decisão de mérito:
44. Sem questionar a validade e vigência do contrato de seguro, a Ré recusou indemnizar a Autora por não reconhecer a ocorrência do evento aleatório alegado, traduzido em furto do veículo automóvel XE.
45. À Recorrida impende o ónus de prova do elemento constitutivo do seu direito à indemnização - furto, nos termos do artigo 342.º, 1, do CC.
46. O crime de furto de veículo automóvel é praticado, em regra, de forma oculta, para evitar que o seu autor ou autores sejam responsabilizados criminalmente.
47. Nesta senda, os Tribunais Superiores têm considerado suficiente, para esse efeito, a prova indireta e indiciária com as características apontadas supra, desde que a seguradora não consiga afastar tal prova de primeira aparência.
48. No caso dos autos, da factualidade julgada provada e descrita sob os respetivos pontos 4, 17 a 24 e 26, para além de se retirar a qualidade da Autora como legítima proprietária e possuidora do veículo em questão nos dias 12 e 13 de Janeiro de 2021, resulta com toda a clarividência o desaparecimento do mesmo veículo nas circunstâncias de tempo e lugar apuradas, ocorrência que a Autora denunciou no dia em que tomou conhecimento.
49. Tal factualidade é bastante, na esteira da jurisprudência citada, para se poder afirmar a ocorrência do evento infortunístico “furto de veículo automóvel”, para efeitos de cobertura pelo contrato de seguro firmado entre Autora e Ré.
50. Tanto mais que esta, não obstante as suspeitas apontadas, não logrou demonstrar o quer que seja com o mínimo de relevância para se poder imputar à Autora qualquer comportamento fraudulento, ou então para afastar a prova de primeira aparência da ocorrência daquele evento.
51. Veja-se a propósito o alegado pela Recorrente quanto ao sistema de chaves, que foi infirmada pelas informações prestadas pela concessionária da marca de veículo, que transmitiu aos autos não ser possível ou suposto as chaves do veículo XE fazer essa leitura ou apresentar esse registo (cf. doc. a fls. 105).
52. A Apelante pôs em causa a atividade desenvolvida pela Apelada, mostrando estranheza que o último serviço registado na plataforma UBER seja datado de 05/01/2021 (cerca de uma semana antes da ocorrência do sinistro), já que a atividade principal da Autora é o TVDE.
53. No entanto, concatenando todo o quadro factual e prova, se conclui que não asiste razão à Apelante, desde logo, porque a atividade de TVDE não se resume à UBER, outras aplicações existem, do mesmo modo que podem ser prestados serviços de transporte negociados diretamente com o particular, os quais, como é óbvio, não são registados na plataforma UBER.
54. Motivo pelo qual foi dado como provado, assente na informação prestada por esta, que: “A autora efetuava serviços não declarados na plataforma Uber” (cf. facto provado – 39. – Sentença).
55. Acresce ainda que se provou que FF “é o gerente da autora e o condutor habitual do veículo”, o qual “exerce a também a atividade de segurança privada e de vigilante” (cf. Sentença – factos assentes 17 e 40).
56. Sendo este que utilizava o veículo XE 24/24 horas (cf. declarações de FF, datadas de 10/10/2023, ao minuto 00.11.27 a 00.11.33; e declarações da testemunha AA, em igual data, ao minuto 00.05.19 a 00.05.27 e 00.07.00 a 00.07.30 – cf. ata de audiência de julgamento a fls….).
57. Não sendo despiciendo sublinhar que, à data do furto do veículo XE, 12/13 de Janeiro de 2021, o legal representante da Apelada estava incumbido de fazer a vigilância de umas obras, nuns pavilhões, sitos na estrada nacional ..., nos ..., em Vila Nova de Gaia (cf. declarações de FF, datadas de 10/10/2023, ao minuto 00.10.25 a 00.11.35).
58. O serviço foi prestado em Vila Nova de Gaia, comarca onde reside aquele, consequentemente o equipamento via verde não era utilizado nessas deslocações.
59. No que tange à titularidade do identificador da Via Verde, sufraga-se integralmente o defendido pela Meritíssima Juiz a quo, na Douta Sentença a fls. …
60. Por outro lado, nenhuma vicissitude se vislumbra em torno da aquisição do direito de propriedade sobre o veículo em causa, pese embora a Recorrente pretenda fazer crer o contrário.
61. O alegado por esta nenhum relevo assume a ponto de contrariar o juízo probatório afirmado, apresentando-se antes consentânea com a prática do comércio jurídico em situações idênticas.
62. Resulta da certidão de registo automóvel que o veículo XE teve como anteriores proprietários: - A D..., Unipessoal, Lda., sob o registo n.º ...; - O Sr. FF, legal representante da Autora, sob o registo n.º ..., datado de 06/08/2019; - Em 30/12/2019, sob o registo n.º ..., o direito de propriedade foi transmitido a favor da aqui Recorrida, por aquele (cf. doc. n.º 12 junto com a contestação, a fls. …), o que fez através de um mero documento particular (Declaração), sem ter por subjacente qualquer fatura e/ou recibo.
63. Por conseguinte, o veículo foi adquirido pelo Exmo. Sr. FF a um particular, devendo este ser entendido como a sociedade D..., Unipessoal, Lda., por intermédio do seu vendedor.
64. Quanto ao meio de pagamento do XE, pelo Sr. FF, remete-se para o supra expendido.
65. Sublinhe-se que a aquisição do veículo XE foi concretizada pelo Legal representante da Autora, em benefício próprio, em 06/08/2019, data em que a Autora ainda nem sequer havia sido constituída, tendo sido transferido o direito de propriedade, a favor da Autora, apenas em 30/12/2019, por mero documento particular para fins contabilísticos, sem envolver qualquer pagamento, pelo que, a A. não dispõe de qualquer fatura/recibo.
66. Por fim, no que tange ao Seguro celebrado com a E..., o mesmo venceu-se em 13/10/2020, no entanto, a legislação especial vigente por força da Pandemia, provocada pela Covid 19, fê-lo prorrogar-se por mais 60 dias – 13/12/2020, data em que foi anulado por falta de pagamento (cf. doc. a fls. …).
67. A dita coexistência dos dois seguros é alheia à vontade da Recorrida, a qual apenas quis reforçar a cobertura do veículo e como tal, não pagando o prémio do seguro celebrado com a E... (vencido em 13/10/2020), fê-lo cessar e celebrou um novo contrato com a Recorrente, que se encontrava em vigor à data do furto.
68. Como é consabido o simples não pagamento do prémio do seguro é apto a fazer cessar os seus efeitos, determinando, assim, a cessação do contrato.
69. Nesta esteira, o alegado pela Recorrente nenhum relevo assume a ponto de contrariar o juízo probatório carreado para os autos.
70. No que concerne ao valor do veículo e à questão do sobresseguro, remete-se para o supra referido.
71. Pelo exposto, nada do alegado pela Recorrente permite afastar a convicção criada no espírito do julgador do Tribunal a quo, porque perfeitamente adequada à prova produzida e à legislação vigente.
72. Nenhum normativo foi por este violado, não merecendo qualquer censura a Douta Decisão, que aqui se sufraga na íntegra.
Nestes termos e sempre com mui douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser mantida a Douta Decisão da 1ª instância.
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II - Questões a dirimir:
a - da reapreciação da matéria de facto;
b - se em face da matéria de facto adquirida existe fundamento para alterar a decisão jurídica da causa, assinaladamente, se o ónus da prova do evento desencadeador da responsabilidade civil impende sobre a segurada e em que circunstâncias se deve considerar que a factualidade avançada por esta foi descredibilizada.
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III - Fundamentação de facto
1. A A. é uma sociedade comercial, unipessoal, por quotas, a qual tem como escopo o transporte de passageiros em veículos ligeiros, atividades postais e de courier, organização de atividades de animação turística, aluguer de veículos automóveis ligeiros.
2. Enquanto empresa de transporte privado de passageiros com recurso a plataformas eletrónicas, vulgo TVDE, para o exercício da referida atividade, a autora é titular da Licença n. º ..., válida até 02/12/2029.
3. A A. celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional com a Companhia de Seguros B... S.A., e o seguro de acidentes pessoais.
4. Para a prossecução do seu escopo social, a autora adquiriu, em meados de 2019, a viatura automóvel de marca PEUGEOT, modelo ..., com a matrícula ..-XE-...
5. A autora celebrou com a Ré, em 16/10/2020, o seguro automóvel titulado pela apólice n.º ..., através do qual a Ré assegurou o risco de circulação, na modalidade de responsabilidade civil obrigatória (perante terceiros) e de danos próprios, com cobertura de furto ou roubo (este sem franquia), incêndio , raio ou explosão, fenómenos da natureza, choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros, com o capital seguro de € 10.427,18, tendo por objeto o veículo automóvel identificado em 4.
6. O contrato de seguro foi celebrado pelo período de um ano.
7. A autora e o réu acordaram que os capitais atinentes às coberturas de “Danos Próprios” subscritas se encontram sujeitos à tabela de desvalorização automática constante das Condições Particulares da Apólice.
8. De acordo com a tabela de desvalorização, considerando o período decorrido até à data do sinistro, o capital do seguro para a cobertura intitulada de “Furto ou Roubo” prevista no contrato era de 9.770,27€ (= 10.427,18€ x 6,30%).
9. A cláusula 1.ª das condições especiais do contrato de seguro, respeitante ao Furto ou Roubo, estipula o seguinte: “Para efeito da presente condição especial considera-se FURTO OU ROUBO o desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados).”
10. Acrescentando a cláusula 4.ª, sob a epígrafe de condições de funcionamento da cobertura: “1. Ocorrendo furto ou roubo, e querendo o Segurado usar dos direitos que a presente Condição Especial lhe confere, deverá apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime. 2. Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.”
11. Lê-se na Cláusula 3ª da Condição Especial intitulada “Furto ou Roubo”, “…não ficam garantidas ao abrigo da presente Condição Especial as seguintes situações: a) Danos que consistam em lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados para o Tomador do Seguro e/ou Segurado em consequência de privações de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro; b) Furto ou roubo cometido por pessoas que coabitem ou dependam economicamente do Tomador do Seguro/Segurado, pessoas que se encontram ao seu serviço, ou por quem, em geral, aqueles sejam civilmente responsáveis; c) Danos diretamente produzidos por lama ou alcatrão ou outros materiais utilizados na construção das vias; d) Danos causados em extras, tal como definido na cláusula 38.ª, incluindo o teto de abrir, quando os mesmos não forem devidamente valorizados e identificados nas Condições Particulares; e) Danos em capotas de lona.”
12. De acordo com a Cláusula 40ª, números 1 b) e 2 d) das Condições Gerais da Apólice, o contrato de seguro não garante ao abrigo da cobertura facultativa intitulada “Furto ou Roubo” “danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro…”, nem tão pouco “…lucros cessantes ou perdas de benefícios ou resultados advindos ao Tomador do Seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais…”.
13. No que respeita as condições de funcionamento desta cobertura, estipula a Cláusula 4ª da Condição Especial intitulada “Furto ou Roubo”: “1. Ocorrendo furto ou roubo, e querendo o Segurado usar dos direitos que a presente Condição Especial lhe confere, deverá apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime. 2. Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.”
14. No que tange as coberturas facultativas, a Cláusula 38.ª das Condições Gerais da Apólice que, para efeitos do presente Contrato, se entende por “VEÍCULO SEGURO: O veículo automóvel abrangido pela presente Apólice de seguro Automóvel e como tal designado nas Condições Particulares; VALOR EM NOVO: Preço total de venda ao público, incluindo encargos legais e impostos, do veículo seguro, em estado novo, na data de registo da primeira matrícula, inscrita no respetivo livrete; VALOR DE SUBSTITUIÇÃO EM NOVO: Preço total de venda ao público, incluindo encargos legais e impostos, do veículo seguro em novo, na data do sinistro. Caso o veículo seguro já não seja comercializado nessa data, considerar-se-á o preço do veículo de características análogas mais aproximadas; VALOR DE SUBSTITUIÇÃO: Valor necessário à aquisição de outro veículo, de características iguais às do veículo seguro, ou de características análogas, se aquele já não for comercializado, tendo sempre em conta nessa avaliação a idade, o uso e o estado de conservação do veículo sinistrado; IDADE DO VEÍCULO: O número de meses ou anos contados da data de registo da primeira matrícula inscrita no livrete, considerando para o efeito qualquer fração de mês como um mês completo; VALOR VENAL: Valor de venda do veículo seguro imediatamente antes da ocorrência de um sinistro; EXTRAS: Componentes ou equipamentos não integrados de origem no veículo seguro, devidamente identificados e valorizados pelo Tomador do Seguro, nomeadamente: - Todos os equipamentos ou componentes incorporados no veículo por decisão do adquirente e em data posterior à sua saída de fábrica; - Quaisquer letras, desenhos, emblemas, dísticos alegóricos, reclamos ou propaganda, pintados, apostos ou fixados no veículo seguro. Locais de Guarda do Veículo: Locais onde o veículo seguro pernoita e que para efeitos do presente Contrato serão os Concelhos de residência do Tomador do Seguro e/ou do Condutor indicados nas Condições Particulares.”
15. Nos termos estabelecidos na Cláusula 42.ª das Condições Gerais da Apólice, “1. Com exceção das coberturas com capitais próprios, a determinação dos valores seguros para cada cobertura facultativa contratada, devidamente identificados nas Condições Particulares, será da responsabilidade do Tomador do Seguro e/ou do Segurado. 2. Salvo estipulação em contrário nas Condições Particulares, o valor seguro para as coberturas previstas nas alíneas b), c), d), g) e h) do n.º 1. da cláusula 39.ª corresponde ao valor atual do veículo no momento do início da produção de efeitos do contrato, ou das suas alterações, podendo ser determinado de acordo com uma das seguintes formas: a) Por indicação do respetivo valor em novo, tal como definido na cláusula 38ª, deduzido, se o veículo for usado, do coeficiente de desvalorização constante na tabela de desvalorização aplicável ao veículo e prevista nas Condições Particulares; b) Por estipulação entre as partes de outro critério de determinação de valor seguro. 3. Salvo estipulação em contrário prevista nas Condições Particulares, o valor dos extras seguros indicado pelo Segurado no momento da celebração do contrato, deverá corresponder ao respetivo valor em novo
16. Na Cláusula 43.ª das Condições Gerais da Apólice, mostra-se estabelecido que, “1. Após a determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável. 2. Se no mesmo contrato de seguro, conjuntamente com o veículo estiver garantido um reboque, a menos que em sentido contrário seja acordado e expresso nas Condições Particulares, as regras de desvalorização aplicáveis serão autónomas, aplicando-se em relação a cada objeto seguro as respetivas tabelas identificadas nas Condições Particulares. 3. Salvo estipulação em contrário nas Condições Particulares, o valor seguro dos extras, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com os fatores de desvalorização aplicados ao veículo seguro.”
17. Em 12/01/2021, pelas 19.30 horas, o gerente da autora e condutor habitual do veículo, FF, estacionou a dita viatura na via pública, em local de aparcamento contíguo à entrada da sua residência, na Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia.
18. Para o efeito, FF travou o veículo, desligou o motor, confirmou o fecho dos vidros, bloqueou as portas através do comando à distância e, em ato contínuo, dirigiu-se para o interior da sua residência, na posse das chaves do veículo automóvel, não mais tendo saído.
19. No dia seguinte, 13/01/2021, pelas 11 horas, pretendendo iniciar mais uma jornada de trabalho, FF dirigiu-se ao local onde havia aparcado o veículo.
20. No entanto, o veículo não se encontrava no lugar onde o estacionara no dia anterior, pelas 19.30 horas.
21. O veículo havia desaparecido.
22. Não havia vidros partidos no local.
23. No porta-luvas do veículo encontravam-se os respetivos documentos, designadamente, o documento único automóvel (DUA), com registo de propriedade a favor da Autora, o certificado de seguro e os manuais de instalação e utilização do veículo, os quais desapareceram com o veículo.
24. FF apenas ficou com as duas chaves da viatura.
25. À data do seu desaparecimento, o veículo valia €10.427,18.
26. No dia 13/01/2021, pelas 12.21 horas, a Autora apresentou queixa-crime contra desconhecidos, a qual deu origem ao processo, ainda na fase de inquérito, com o n.º 27/21.9PIVNG.
27. A A., por intermédio do seu mediador, participou o sinistro à Ré.
28. Em 21/04/2021, a autora remeteu à ré e-mail, interpelando-a ao pagamento de indemnização ao abrigo do referido contrato de seguro.
29. O local de estacionado descrito em 17 corresponde a zona habitacional com edifícios habitacionais em altura.
30. A Rua ... descreve, naquele ponto, uma reta com, pelo menos, cem metros de extensão, com uma faixa de rodagem larga e visibilidade de, pelo menos, cinquenta metros.
31. A zona destinada ao aparcamento de veículos indicada em 18 desenvolve-se perpendicularmente à faixa de rodagem da Rua ....
32. Não foram deixados no local vestígios de furto.
33. O gerente da autora não indicou testemunhas à seguradora.
34. A autora entregou a averiguador mandatado pela R., a pedido deste, duas chaves que disse serem do veículo XE.
35. Dos extratos da Via Verde entregues pela autora ao averiguador mandatado pela ré não consta a matrícula do XE.
36. Dos extratos da Via Verde entregues pela autora ao averiguador mandatado pela ré consta o nome FF no local destinado ao cliente.
37. Dos extratos da Via Verde entregues pela autora ao averiguador mandatado pela ré não consta registo de passagem do veículo XE nos corredores destinados à Via Verde, em pórticos ou parques de estacionamento após 29 de Novembro de 2020.
38. De acordo com a plataforma Uber, o último serviço prestado pelo veículo XE ocorreu no dia 5 de Janeiro de 2021.
39. A autora efetuava serviços não declarados na plataforma Uber. 40. FF exerce também a atividade de segurança privada e de vigilante.
41. FF disse ao averiguador da ré que o veículo XE fora adquirido a particular após ver de anúncio no C....
42. Figura no registo automóvel como proprietário anterior do veículo XE a sociedade D... Unipessoal, Lda., com sede em ..., Vila Nova de Gaia.
43. O XE esteve seguro na E... - Companhia de Seguros. S.A., através de um contrato de seguro que com início em 14.07.2020 e termo em 12.12.2020 que não cobria danos próprios, nomeadamente, furto ou roubo.
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Factos não provados
A. O valor 10.427,18€ em que foi fixado o capital seguro resultou de indicação da autora.
B. A Rua ... dispunha de iluminação pública que, à data dos factos, se encontrava em funcionamento.
C. Só o XE, de entre vários veículos que se encontravam estacionados no mesmo local, desapareceu.
D. As chaves do veículo XE possuem um sistema integrado de memória que regista informações relacionadas com o veículo a que pertencem, nomeadamente, a data da última vez em que foi acionado o motor da viatura, bem como o número de quilómetros percorridos pela mesma, na data dessa última utilização.
E. O averiguador solicitou a concessionário da marca do veículo (Peugeot) e a estabelecimento comercial especializado em chaves a análise das chaves entregues pela autora, não tendo sido detetada qualquer informação.
F. Na data da celebração do contrato de seguro, o veículo XE apresentava valor não superior a € 8.000,00.
G. FF disse ao averiguador da ré que o preço de aquisição do veículo XE (€ 12.500,00) foi pago em dinheiro.
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IV - Subsunção jurídica
A - Da reapreciação da matéria de facto
A apelante impugna a decisão proferida quanto aos pontos 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 39 dos factos provados e aos pontos A, B, F e G dos factos não provados.
Relativamente aos pontos 17 a 24, a recorrente impugna-os com fundamento na alegação de que foram dados como assentes exclusivamente com base nas declarações de parte.
Está em causa a seguinte matéria:
17. Em 12/01/2021, pelas 19.30 horas, o gerente da autora e condutor habitual do veículo, FF, estacionou a dita viatura na via pública, em local de aparcamento contíguo à entrada da sua residência, na Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia.
18. Para o efeito, FF travou o veículo, desligou o motor, confirmou o fecho dos vidros, bloqueou as portas através do comando à distância e, em ato contínuo, dirigiu-se para o interior da sua residência, na posse das chaves do veículo automóvel, não mais tendo saído.
19. No dia seguinte, 13/01/2021, pelas 11 horas, pretendendo iniciar mais uma jornada de trabalho, FF dirigiu-se ao local onde havia aparcado o veículo.
20. No entanto, o veículo não se encontrava no lugar onde o estacionara no dia anterior, pelas 19.30 horas.
21. O veículo havia desaparecido.
22. Não havia vidros partidos no local.
23. No porta-luvas do veículo encontravam-se os respetivos documentos, designadamente, o documento único automóvel (DUA), com registo de propriedade a favor da Autora, o certificado de seguro e os manuais de instalação e utilização do veículo, os quais desapareceram com o veículo.
24. FF apenas ficou com as duas chaves da viatura.
Antes de mais, sempre se dirá que a prova em causa não se esteou exclusivamente nas declarações de parte do representante legal da A., pese embora a circunstância de, atenta a materialidade em causa, no grau de pormenor descrito, sendo o próprio o condutor do veículo, na hipótese relatada de ter chegado a casa desacompanhado, só este a poder conhecer.
O depoimento de AA, companheira do representante legal da A., permitiu também firmar os factos contidos nos pontos 17 e 18, assinaladamente o local e modo de estacionamento do veículo e a circunstância de ter ficado em casa com FF, após terem ambos chegado a casa vindos do trabalho.
Relativamente ao ponto 18, este mais não descreve do que a atividade normal de quem parqueia um veículo, que integra o fecho dos vidros, o desligar do motor, o encerramento da viatura.
Nos termos do disposto no art.º 466.º/3 do C.P.C., o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Tem vindo a ser discutido na doutrina e na jurisprudência o modo como esta apreciação deve ocorrer.
Enquanto síntese dessa polémica, lê-se no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/04/2018 (proc. 18591/15.0T8SNT.L.1, Luís Filipe Pires de Sousa, disponível in www.dgsi.pt) que as várias posições relativas à função e valoração das declarações de parte são reconduzíveis a três teses essenciais:
- a tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
- a tese do princípio de prova;
- a tese da auto-suficiência das declarações de parte.
E mais adiante no mesmo aresto: os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.
Adere-se à terceira das teses referidas, também no seguimento de Luís Filipe Pires de Sousa, in Declarações de Parte. Uma síntese, in www.trl.mj.pt, 2017 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, p. 539 e ss., em anotação ao citado art.º 466.º. Segundo estes autores, as declarações de parte estão ao mesmo nível que os demais meios de prova, sendo valoradas de forma autónoma e integrada, sem que se estabeleça qualquer hierarquia entre os vários elementos probatórios. As declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova, sem prejuízo de eventual confissão.
É evidente que não é irrelevante o facto de nos encontrarmos perante afirmações de um sujeito processual interessado no objeto do litígio por nele ser parte, cujo discurso tenderá a ser parcial. Avulta, então, o princípio da livre convicção do tribunal na apreciação da prova (art.º 607.º/5 do C.P.C.)., sem que tal se confunda com uma análise arbitrária dos elementos probatórios, antes devendo assentar numa ponderação conscienciosa dos elementos coligidos e das circunstâncias que os envolvem.
Em suma, a prova por declarações de parte deve merecer, em abstrato, a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis, sendo apreciada livremente pelo tribunal.
Outrossim, deverá tomar-se em consideração a maior ou menor possibilidade de a prova poder ser produzida através de outros meios.
No caso vertente, por um lado, estando em causa o estacionamento do veículo em que se chega a casa, é natural que seja o condutor do mesmo, e só este, que conheça as exatas condições em que tal ocorre, estando em causa situações tão simples como o encerramento dos vidros e do veículo e que no dia seguinte pretendia usar o carro para ir trabalhar.
Ouvida a prova gravada, diga-se que, quer o depoimento do representante legal da A., quer de AA se afiguraram circunspetos e sérios, ponderando devidamente as respostas ao que foi perguntado e afirmando nada saber quando tal se lhes ofereceu, sem que a todo o custo tivessem tentado criar uma imagem completa dos eventos.
Assim, no caso dos autos, analisados conjugada e criticamente as declarações de parte do representante legal do A. e a demais prova produzida, constata-se ter havido lugar a adequada valoração dos meios de prova atinentes, que, por isso, se secunda.
No que se refere ao ponto 39 dos factos assentes, também posto em crise pela apelante, pondera esta que a informação prestada pela plataforma Uber a fls. 206 não permite concluir o que decorre do aludido ponto, mas antes o seu contrário, ou seja, que não é possível efetuar serviços não declarados naquela plataforma. Mais aduz que mesmo o legal representante da A. não depôs no sentido ali vertido.
O ponto 39 dos factos assentes tem o seguinte teor: A autora efetuava serviços não declarados na plataforma Uber.
Não se nos afigura que o ponto 39 tenha o sentido visado pela recorrente, de que a A. efetuava serviços de Uber sem que estes estivessem declarados na plataforma correspondente.
O que foi transmitido pelo representante legal da A., e confirmado pela companheira, foi que aquele desempenhava outras atividades profissionais enquanto vigilante/segurança. E para essas atividades socorria-se do veículo em causa. É facto que não está demonstrado que tais atividades se prendessem ou fossem desempenhadas no âmbito do objeto social da “A...”.
Assim, de molde a refletir com a maior acuidade possível a prova produzida, altera-se o ponto 39 dos factos assentes, que passará a adotar o seguinte teor:
A A., na pessoa do seu representante legal FF, efetuava serviços para a plataforma Uber, sendo que este último desempenhava outras atividades profissionais de vigilância e segurança.
A apelante requer que os pontos A, B, F e G dos factos não provados passem a constar como assentes.
Quanto ao ponto B, tem este o seguinte teor:
B. A Rua ... dispunha de iluminação pública que, à data dos factos, se encontrava em funcionamento.
A recorrente considera que deve migrar para os factos provados por do depoimento de AA resultar claro que o local é e se encontrava iluminado.
Na verdade, perguntada a testemunha sobre se o local tinha luminosidade, cingiu-se esta a responder que tem, que há partes da rua que tem, que a rua principal tem luminosidade. A testemunha tão pouco esclareceu que tipo de iluminação estaria em causa, tendo, porém, elucidado tratar-se de uma rua sem saída.
O tribunal não considera estes trechos esclarecedores e menos ainda conclusivos sobre a iluminação da extensão da rua em que o veículo em causa estaria estacionado ou o porquê da referência a rua principal, como se o veículo estivesse estacionado numa outra. As fotografias do local carreadas para a ação juntamente com a petição inicial permitem surpreender estacionamento contíguo aos edifícios habitacionais e a morada de FF e sede da A. referem tratar-se das traseiras do prédio.
Indefere-se, por isso, a alteração.
Os pontos A e F dos factos não provados têm o seguinte teor:
A. O valor 10.427,18€ em que foi fixado o capital seguro resultou de indicação da autora.
F. Na data da celebração do contrato de seguro, o veículo XE apresentava valor não superior a € 8 000,00.
A apelante sugere a seguinte redação:
- ponto 44 dos factos provados: provado que «O valor de 10.427,18€ em que foi fixado o capital seguro resultou apenas da aplicação da tabela Eurotax, sem ter em consideração nomeadamente a utilização que era dada ao veículo e quaisquer outros critérios, e mereceu a concordância da A., através do seu legal representante.»;
- ponto 45 dos factos provados: provado que «Na data de celebração do contrato de seguro, o veículo XE apresentava valor não superior a 8.000,00€ e que em 12 – 13 de Janeiro de 2021 o seu valor era não mais de 7.000,00 – 7.500,00 €.»
De acordo com a seguradora R., decorre dos depoimentos de BB e CC que o valor atribuído ao veículo não emergiu de indicação da A., mas que é de inferir ter resultado da aplicação “cega” de uma tabela existente (a que a A. não se opôs) e que nessa altura não foram tidas em consideração (precisamente pela utilização dessa tabela) algumas “características” relevantes do veículo XE. Mais realça que de acordo com a sentença, embora separada a avaliação por praticamente três meses, para o tribunal o valor do veículo manteve-se mesmo.
Entende a R. que se pode extrair a ilação (também por documentos juntos) de que o valor do veículo à data da celebração do contrato de seguro era de não mais de 8 000, 00 e que na data do alegado furto/desaparecimento tal valor não ultrapassaria os € 7 000, 00 - € 7 500, 00.
A testemunha BB aduziu que o valor emerge de uma tabela imposta pela seguradora e que mesmo que o cliente quisesse valorizar o veículo por valor diverso tal não seria admitido.
Do relatado já se vê que a apelante reconhece que o valor de € 10 427, 18 em que foi fixado o capital seguro não resultou de indicação da A. e pretende que o tribunal extraia ilações e enfatize aspetos como sejam que a representante legal da A. não se opôs ao valor das tabelas fornecidas pela própria seguradora, o que não está em causa.
Não oferece, por conseguinte, quaisquer dúvidas que o teor da alínea A dos factos não assentes não ficou demonstrado, pelo que não há fundamento para proceder à alteração requerida.
No que se refere ao efetivo valor do veículo à data da celebração do contrato de seguro, não se poderá deixar de realçar que o valor alcançado foi o fornecido pela própria apelante, de acordo com as tabelas por si aplicadas e abstraindo de outras circunstâncias, nenhuma outra prova relevante em contrário tendo sido produzida.
No que concerne à desvalorização do veículo pelo mesmo montante cerca de três meses depois, na ausência de quaisquer outros elementos, não se entrevê fundamento para decidir diversamente. Trata-se de um lapso temporal curto, impendendo sobre a R. o ónus da demonstração de qual seria o valor mais adequado.
Sem embargo, na sentença foi tomada em consideração para efeitos indemnizatórios a aplicação da tabela de desvalorização do veículo incluída no contrato de seguro (€ 10 427,18 x 6, 30 % = € 9 770, 27).
A pretensão da apelante está, por isso, votada ao insucesso.
Concomitantemente, indefere-se também que seja dado como não provado o facto assente 25, cujo teor consiste em que à data do seu desaparecimento, o veículo valia €10. 427, 18.
A recorrente discorda outrossim de que tenha sido dado como não provado o facto que integra o ponto G, a saber, que FF disse ao averiguador da ré que o preço de aquisição do veículo XE (€ 12.500,00) foi pago em dinheiro. Ressalta-se que não se questiona se houve ou não dinheiro envolvido na transação, mas sim o que FF terá transmitido ao averiguador da R..
Considerando os depoimentos de DD e de EE, em nada contrariados em sede de declarações de parte ou por prova documental, entende-se ter resultado suficientemente indicado o que se vem de referir a propósito do modo de pagamento. Assinala-se que, a ter o preço suportado sido entregue de outra forma, justificar-se-ia a prova de tal circunstância. Por outra parte, o que resulta da certidão do registo automóvel, como, aliás, explicitado pela recorrida, é que o veículo foi adquirido por FF a “D..., Unipessoal, Lda.” e que foi este FF, sócio da recorrida, que o transmitiu a favor desta. Queda, pois, nebuloso se foi a transmissão da “D..., Unipessoal, Lda.” a favor de FF que foi paga em dinheiro, se a transmissão deste a favor da A., ou se esta teve até lugar sem que houvesse lugar a contrapartida pecuniária, que é aquilo que se retira das alegações da apelada.
Assim, suprime-se o ponto G dos factos não provados e acrescenta-se aos factos assentes o seguinte ponto
44 - FF disse ao averiguador da ré que o preço de aquisição do veículo XE (€ 12.500,00) foi pago em dinheiro.
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B - Da reapreciação da matéria jurídica da causa: do ónus da prova do furto e se se verificam circunstâncias descredibilizantes de que este ocorreu
A apelante insurge-se quanto à solução jurídica da causa porquanto estariam reunidos os elementos suficientes para pôr em crise que o veículo seguro tivesse sido furtado nas circunstâncias descritas pela apelada. Mais considera que, em todo o caso, o valor a considerar para efeitos indemnizatórios não será aquele pelo qual foi valorizado à data do sinistro.
Coligiu, em abono da sua tese, factos que indiciariam que os factos tais como relatados pela A. não corresponderiam à realidade.
Essa materialidade foi já abordada no contexto da reapreciação da matéria de facto, mas sê-lo-á agora na ótica da demonstração dos factos constitutivos do direito que a A. se arroga e dos factos impeditivos invocados pela R..
De acordo com a defesa da R. ora apelante, constituiriam indícios da inexistência do furto:
- que a companheira do legal representante da A. não tivesse reparado que o veículo não se encontrava no local onde no dia anterior o viu estacionado, assinaladamente em função do grau de iluminação da rua;
- a inexistência de vidros partidos no local;
- o valor pelo qual o veículo foi seguro, segundo a apelante, em sobreavaliação;
- que o contrato com a Via Verde tivesse sido celebrado com o legal representante da A. e não com esta e que esta não procurasse contabilizar as despesas inerentes;
- que o registo da última utilização da Via Verde datasse de há mais de um mês por referência ao dia reportado como sendo o do desaparecimento da viatura;
- que o último serviço registado na aplicação da Uber para a qual a A. prestava serviço fosse de 5-1-2021, sendo o putativo desaparecimento de 12/13-1-2021;
- que o veículo tivesse sido pago em dinheiro;
- que o seguro anteriormente celebrado não cobrisse danos próprios.
Analisados tais elementos, dir-se-á no que se refere à circunstância de a companheira de FF ter deposto no sentido de que reparou no veículo quando chegou a casa no dia anterior, mas já não assim quando saiu, entre as 5 e as 6 da manhã do dia subsequente, que não se entrevê como tais declarações, prestadas, aliás, de forma simples e desinteressada, possam concorrer para firmar a convicção de que o veículo não foi furtado, estivesse ou não a rua ampla ou difusamente iluminada.
Também a inexistência de vidros não comprova que o veículo tenha sido removido do local por meio lícito, pois o furto de veículos pode ocorrer por outros meios, nomeadamente eletrónicos.
Relativamente à avaliação do veículo, remete-se para a reapreciação da matéria de facto a este propósito, cingindo-nos agora a afirmar que o valor correspondeu ao integrante de tabelas propostas pela própria recorrente.
No que concerne à celebração de contrato com a Via Verde, alcança-se da certidão de registo automóvel que o veículo esteve num primeiro momento registado a favor do representante legal da A.. Ora não é inusual que as pessoas, mesmo os agentes económicos como as empresas, tardem em celebrar novo contrato, seja por desleixo, seja por falta de tempo. De qualquer forma, em como tal possa contribuir para fazer crer que o veículo não desapareceu - ou, diga-se, que desapareceu - não é explícito.
Por referência à ausência de movimento registado na Via Verde imediatamente antes do furto reportado ou à distância do último serviço registado na aplicação Uber, neste último caso, cerca de uma semana, exercendo o representante legal da A. e condutor do veículo também a atividade de vigilante e segurança, vislumbra-se que o uso do veículo não fosse tão intensivo quanto preconizado pela R..
Quanto ao pagamento em dinheiro, tendo o veículo transitado da “D..., Unipessoal, Lda.” para FF e só depois para a A., compreende-se a alegação de que o pagamento teve lugar em dinheiro, o que, do estrito ponto da veracidade do desaparecimento do veículo, não suscita quaisquer dúvidas.
A apelante suscita ainda a questão de o contrato de seguro anterior não abarcar danos próprios. Não teria sido dada outra explicação para o alargamento da cobertura que não aquela decorrente da vontade de cobrir mais riscos. Não se alcança como possa o tribunal retirar que se trata de elemento que, com um mínimo de segurança, exclua que o veículo tenha sido furtado.
Diga-se ainda que nada impede a seguradora de, de molde a firmar a sua vontade de contratar, ademais quando estejam em causa danos próprios, pedir para ver a viatura e para que lhe sejam exibidos comprovativos do modo de aquisição daquela, por forma a certificar-se da existência, estado e elegibilidade para efeitos de cobertura do risco e de prevenção de risco de fraude. Nada foi, porém, alegado no sentido de a seguradora ter solicitado uma explicação para o alargamento da cobertura aquando da celebração do contrato, tendo o cuidado de se inteirar das coberturas prévias, para decidir da sua vontade de contratar.
Tudo visto, o único facto suscetível de fazer ponderar que o desaparecimento da viatura não tenha sido alheio à A. é precisamente o alargamento da cobertura escassos meses antes do invocado furto. No mais, não se entrevê matéria que, com relevo, faça perigar a alegação da A.. Parece-nos, porém, excessivo que o mero alargamento de cobertura contratual de seguro automóvel meses da comunicação do furto seja o bastante para firmar a convicção do tribunal no sentido de que não existiu furto.
Desde já se diga que não se entende que o único ónus que impende sobre o segurado que invoca o furto do veículo consista em produzir prova de que efetuou participação de furto à entidade policial.
Não se ignora que a prova da ocorrência de um facto que não foi perpetrado pelo lesado, como se verifica em caso de furto, de forma, em princípio, sub-reptícia, é passível de se revelar difícil. Deve, nesses casos, o julgador adotar uma postura flexível, não rigorosa ou formalista.
Daí não se segue que baste ao lesado produzir prova de que se acercou das autoridades policiais para efetuar uma participação - coisa que, como é evidente, qualquer pessoa, a qualquer tempo pode fazer - ou que o tribunal se há de bastar com a afirmação de que os factos ocorreram como alegado. Esta tese não encontra arrimo legal e é até contrária ao bom senso. A prova de efetivação de participação de furto não se confunde com a prova de que este se verificou.
No caso vertente, todavia, não se deixará de constatar que o tribunal a quo analisou os elementos avançados pela A. e aqueles coligidos pela R. para os contraditar, não se tendo cingido a aferir sobre qual das partes impendia o ónus da prova. Não houve adesão acrítica formalista a qualquer uma das teses, mas sim ponderação circunstanciada.
Nos termos do disposto no art.º 342.º/1 do C.P.C., o ónus da prova dos factos constitutivos do direito à indemnização emergente da celebração de contrato de seguro cabe àquele que se arroga o direito, ou seja, ao segurado. Só em caso de prova dos factos constitutivos, caberá à entidade seguradora a prova dos factos que impedem, modificam ou excluem a sua responsabilidade, conforme o preceituado no n.º 2 do mesmo art.º.
Recorda-se que nos termos do art.º 414.º do C.P.C., sob a epígrafe princípio a observar em casos de dúvida, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita
No caso dos autos, pretendendo a apelada obter indemnização a coberto do contrato de seguro celebrado com a apelante em consequência da verificação do sinistro consistente no invocado furto, esta factualidade é constitutiva do direito que aquela se arroga.
Não oferece dúvidas que o furto constitui um dos riscos abrangidos pelo seguro celebrado entre as partes. O contrato garantia, para além da responsabilidade civil obrigatória, decorrente da circulação do veículo, os danos próprios de furto.
Em súmula, constitui elemento constitutivo do direito à indemnização do segurado a verificação do sinistro e os danos correlativos. A prova da ocorrência de um e de outro impende sobre o credor/segurado. No caso dos autos está demonstrada, a existência de danos.
No ac. da Relação de Guimarães de 16-11-2017 (proc. 216/14.2T8EPS.G1, José Alberto Moreira Dias) sumaria-se:
1 - Celebrado contrato de seguro entre as partes, em que um dos riscos cobertos é o furto do veículo, incumbe ao autor a prova da verificação do furto, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório que se arroga titular perante a seguradora (art. 342º, n.º 1 do CC), competindo à última o ónus da alegação e da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 do art. 342º do CC). 2- Não cumprindo o segurado este ónus, a dúvida sobre a existência do sinistro tem de ser resolvida contra si (art. 414º do CPC).
Nesse mesmo acórdão se elenca jurisprudência, que, por simplicidade, se reproduz: Ac. RP. de 11/07/2012, Proc. 863/09.4TJVNF.P1, onde se lê: “se foi celebrado entre as partes um contrato de seguro de responsabilidade civil em que um dos riscos cobertos é o furto nas instalações da segurada, compete a esta a prova da verificação do furto e à seguradora a prova da factualidade conducente à reclamação da sua responsabilidade”. No mesmo sentido Ac. RP. de 10/11/2009, Proc.588/09.0YRPRT, onde se pondera que “o direito do segurado à reparação com base em contrato de seguro que abrange danos próprios do veículo, não depende apenas da prova da existência dos danos sofridos pelo veículo. Também depende da prova de que os danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro. O ónus da prova sobre a ocorrência do sinistro e sobre o nexo de causalidade entre esse sinistro e os danos sofridos pelo veículo compete ao segurado, enquanto titular do direito à indemnização. Não cumprindo o segurado este ónus, a dúvida sobre a existência do sinistro tem de ser resolvida contra si (art. 516º, nº 2 do CPC). Ainda RL. de 18/04/2013, Proc. 2212/09.2TBACB.L1-2, onde se lê: “ao tomador de seguro cabe a alegação e ónus da prova da verificação do risco coberto. À seguradora cabe a alegação e o ónus da prova da verificação de uma causa de exclusão do risco (com facto impeditivo do direito daquele – art. 342º, n.º 2 do CC.). Finalmente, Ac. RC. de 22/11/2012, Proc. 118/11.4TVLSB.L1-6, em que se escreve: “destinando-se a ação à reparação de um dano contratualmente seguro - a perda do veículo automóvel por furto – tem o Autor ónus de alegar e provar o conjunto fáctico gerador desse dever de indemnizar, desde logo o sinistro (furto)”.
Cabia, assim, à A. o ónus de provar a ocorrência do evento - o furto do veículo - e o nexo de causalidade entre esse evento e os danos sofridos (art.º 342.º/1 do C.C.). À R cabia o ónus de alegar e provar quaisquer factos que integrassem exclusão da garantia da cobertura contratada (art.º 342.º/2 do C.C.).
A A. logrou produzir prova bastante do desaparecimento do veículo contra a sua vontade e a R. ora apelante não logrou, por qualquer forma, pôr em crise o valor daquele e o modo como foi fixada a indemnização.
A fixação da indemnização em 1.ª instância considerou o valor do veículo com ponderação de desvalorização, com que a A. se conformou, pelo que também neste capítulo improcede a pretensão recursória da R. Seguradora
Tendo a A. logrado produzir prova do que lhe competia nos precisos termos assinalados e a R. soçobrado nos seus intentos, a ação não poderia ter deixado de proceder, decisão que ora resta confirmar.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas pela apelante por ter decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 8-4-2024
Teresa Fonseca
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha