Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8838/12.0TBVNG.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
SERVIÇOS MÉDICO-DENTÁRIOS
OBRIGAÇÕES DE RESULTADO
RESPONSABILIDADE CIVIL DA CLÍNICA
Nº do Documento: RP201703288838/12.0TBVNG.P2
Data do Acordão: 03/28/2017
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º761, FLS.133-146)
Área Temática: .
Sumário: I - Embora no universo da odontologia não possa afirmar-se, em termos genéricos, que os médicos assumem obrigações de resultado, por existirem actividades dentárias mais complexas, dependentes de factores diversos do estrito cumprimento das leges artis, que, por isso, devem ser incluídas na categoria das obrigações de meios, a colocação de próteses e certas operações onde os objectivos a alcançar não dependem senão da competência técnica dos médicos, podem e devem configurar-se como obrigações de resultado.
II - A responsabilidade da clínica onde o médico praticou os actos susceptíveis de basear a sua responsabilidade radica no disposto no art.º 800.º do Código Civil e no que tiver sido acordado no contrato que o doente tenha celebrado com aqueles.
III - Não pode assacar-se ilicitude à actuação da clínica, ou incumprimento contratual nem cumprimento defeituoso, quando ela se prontificou a proceder a todas as correcções necessárias e o doente torna impossível a conclusão dos tratamentos, recorrendo a terceiros.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 8838/12.0TBVNG.P2

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:
I. Relatório[1]

B… instaurou acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra C…, Lda., ambas melhor identificadas nos autos, alegando, em resumo, o seguinte:
Contratou a ré para, no exercício da sua actividade, efectuar tratamentos de medicina dentária nos seus maxilares, superior e inferior, com início em 2010 e termo em Fevereiro de 2012.
Pagou os honorários que foram fixados pela ré.
Porém, pelo menos a partir de final de 2011, surgiram diversas inflamações, cáries, rarefacção óssea e sucessivo sangramento de gengivas que a afectaram diariamente, impedindo-a de se alimentar e de proceder à higiene diária, o que comunicou à ré que sempre lhe disse que era consequência habitual do tratamento contratado, mas que, uma vez concluído, deixaria de ser afectada por aquelas mazelas.
Entretanto, constatou que a técnica usada e os tratamentos prestados não tinham sido adequados e foram causa adequada das lesões que sofreu.
Para tratamento dessas lesões teve que proceder à extracção dos dentes superiores, submeter-se a regeneração óssea e colocar seis implantes osteointegrados, prótese fixa provisória sobre implantes, prótese fixa metalocerâmica sobre oito implantes, o mesmo sucedendo com os dentes inferiores, com o que gastou a quantia de 26.532,00€.
Para além disso, sofreu grande traumatismo psicológico, passou dias sem comer e noites sem dormir, teve dores insuportáveis e padeceu de ansiedade e temor das sequelas dos tratamentos, danos que computa em 12.500,00€.
Concluiu indicando o valor de 39.032,00€, sem formular qualquer pedido.

A ré contestou, por excepção e impugnação, e deduziu reconvenção, alegando, em síntese, que:
A petição inicial é inepta, por falta de pedido “ou no mínimo ininteligibilidade deste”.
A autora não juntou qualquer documento que comprove o que alegou na petição inicial, onde apresenta uma versão que “carece não só de verdade como também de razoabilidade”, já que nunca contratou com a ré, mas sim com a namorada do seu filho, Dr.ª D…, que estagiou na sua clínica e prestou serviços à demandante como médica dentária, gratuitamente.
Os únicos serviços prestados pela ré à autora circunscreveram-se à colocação de 24 coroas de metalocerâmica, pelos quais lhe cobrou apenas 250,00€.
As lesões reclamadas ficaram a dever-se aos tratamentos da raiz e da polpa dos dentes, efectuados pela referida D…, e à falta de cuidados higiénicos orais por parte da autora.
A entender-se que é responsável pelos actos médicos executados pela Dr.ª D…, são-lhe devidos os respectivos honorários e os serviços que “não estavam orçamentados/contratualizados” no valor de 4.910,00€ (que inclui os montantes de 910,00€ referentes ao processo de preparação biomecânica e obturação dos canais, 1.200,00€ pela colocação de quatro coroas de metalocerâmica “extras”, 1.800,00€ pelos implantes e 1.000,00€ pelo desconto por aquela concedido).
Além disso, viu o seu bom-nome, reputação e prestígio seriamente atingidos, com a atitude da autora, causando-lhe prejuízos que estima em 10.000,00€.
Requereu a intervenção principal provocada da Dr.ª D…, como sua associada, e concluiu pedindo que seja julgada:
“A) Procedente por provada a invocada Ineptidão da P.I., por falta de formulação de pedido, julgando-se nulo todo o processo (art.º 193.º n.º 1 do C.P.Civil), e em consequência absolver-se a Ré da instância (ut Artigos 193.º n.ºs 1 e 2, 202.º, 206.º, 288.º n.º1 al. b), 493.º, 494.º al. b) e 495.º todos do Código de Processo Civil).
Ainda que assim não se ajuíze, o que não se espera,
B) Improcedente por não provada a presente acção, e a Ré absolvida dos pedidos, que nem sequer foram formulados, mas sempre e também,
C) procedente e provado o deduzido pedido reconvencional contra a A. Reconvinda condenando-se esta a pagar à R. Reconvinte o valor global de €14.910,00, sendo €4.910,00 referente aos serviços médicos executados pela Dr.ª D…, como e ainda a serviços extras que não se encontravam englobados no preço orçamentado e aceite pela A., e €10.000,00 a título de danos não patrimoniais, valores estes sempre acrescidos dos inerentes juros moratórios legais, à taxa legal, desde pelo menos a citação até efectivo e integral pagamento.
Finalmente,
D) Procedente e provada a invocada litigância de má-fé condenando-se a A. em multa condigna bem como na respectiva indemnização, nesta incluída os honorários do ora mandatário, em verba nunca inferior a €6.000,00.”

A autora replicou por impugnação e dizendo, em resumo, que:
A petição inicial foi enviada por manifesto lapso, “quando a efectiva resulta do doc. 1 que se junta e cujo teor, por razões de economia processual aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais”, “com o inerente e óbvio pedido”.
A ré/reconvinte confessou a responsabilidade pelas lesões provocadas e dispôs-se a repará-las sem qualquer encargo para a autora.
Bem sabe que a autora foi objecto de diversas consultas e pareceres que atestam os factos por si alegados e as lesões que lhe causou.
Concluiu como na petição inicial, pela improcedência da excepção invocada e pelo pedido de litigância de má fé, bem como pedindo a condenação da ré/reconvinte como litigante de má fé, incluindo o pagamento dos honorários do mandatário da autora.

A ré/reconvinte treplicou, dizendo, além do mais para aqui irrelevante, que o doc. 1 junto com a réplica é uma nova petição inicial, onde consta o pedido, mas que não substitui a inicialmente apresentada, por nem sequer ter sido convidada pelo tribunal a fazê-lo, concluindo como na contestação/reconvenção, requerendo o desentranhamento daquele documento e pela improcedência do pedido de litigância de má fé.

Admitido o requerido incidente de intervenção principal provocada, a chamada apresentou contestação, alegando que todos os serviços prestados à autora foram por esta contratados com a ré, e nunca consigo, e aqueles que prestou (tratamentos de manutenção e higienização das gengivas) foram por conta da ré, concluindo pela improcedência da contestação.
A ré deduziu oposição, concluindo como na contestação/reconvenção e pedindo também a condenação da interveniente como litigante de má fé.

Em 23/5/2013, foi proferido despacho, onde foi julgada procedente a ineptidão da petição inicial, por falta de pedido, com a consequente absolvição da ré da instância e a declaração de nulidade de todo o processo.
A autora interpôs recurso desse despacho, o qual foi revogado por acórdão de 26/11/2013, desta Relação, que considerou sanada a invocada nulidade e determinou o legal prosseguimento dos autos.
Interposto recurso de revista pela apelada, foi o mesmo rejeitado, por despacho de 6/3/2014, com fundamento na falta de verificação dos fundamentos legais de respectiva admissibilidade, designadamente por o acórdão impugnado não ter conhecido do mérito da causa nem posto termo ao processo, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 671.º do NCPC, aplicável ex vi do art.º 5.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26/6.
Esse despacho foi mantido por douto despacho do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro do STJ, de 3/7/2014, proferido na reclamação contra ele apresentada, “por considerar inadmissível, seja como revista nos termos gerais seja como passível de revista excepcional, o recurso interposto do acórdão da Relação”, considerando aplicável, ao caso, o Novo CPC não só quanto ao regime recursivo, mas também “à acção declarativa em geral”, por força do n.º 1 do citado art.º 5.º.

Baixados os autos à 1.ª instância, foi proferido despacho a mandar notificar as partes para, em 15 dias, apresentarem os requerimentos probatórios ou alterarem os anteriormente apresentados, nos termos do n.º 4 do art.º 5.º da citada Lei n.º 41/2013, o que fizeram nos termos constantes de fls. 311 a 321.

Após, foi proferido despacho, onde foi dispensada a audiência prévia, foi admitida a reconvenção, foi fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador tabelar, bem como foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, tendo sido, ainda, admitida a junção dos documentos apresentados, bem como a demais prova oferecida.

A audiência de discussão e julgamento teve lugar nos dias 16, 17 e 18 de Março, 29 de Abril, 2 e 23 de Junho de 2015.
No fim da quarta sessão, no dia 29 de Abril, a autora pediu a palavra e “requereu a junção de uns documentos (recibos)” – sic.
A ré opôs-se a essa pretensão, invocando violação do disposto no art.º 423.º, n.º 1, do CPC.
Por despacho de 4/6/2015, não foi admitida a junção de tais documentos com o fundamento de que já estava em curso a audiência final e nada havia sido alegado quanto à junção tardia.
Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as correspondentes conclusões.

Não foram apresentadas contra-alegações a esse recurso da autora.

Por sentença de 21/9/2015, foi decidido:
1. Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a ré a pagar à autora a quantia de 29.032,00€, absolvendo-a do resto do pedido.
2. Julgar totalmente improcedente o pedido reconvencional e, em consequência, dele absolver a autora.
3. Condenar a ré como litigante de má fé e, em consequência, condená-la a pagar à autora e à interveniente a indemnização de 10 UCs, bem como na multa no valor de 10 UCs.

Inconformada com esta sentença, a ré interpôs recurso de apelação para este Tribunal e ofereceu as respectivas alegações com as seguintes conclusões, que, depois de aperfeiçoadas a convite do Relator, apresentam o seguinte teor:
“1. É o presente recurso interposto da Sentença que veio a ser proferida no âmbito dos autos supra à margem identificados, na qual a Recorrente foi condenada a pagar à Recorrida a quantia de 29.032,00 Euros, e condenada a pagar à Recorrida e Interveniente, indemnização no montante de 10 Ucs, bem como em multa no valor de 10 Ucs, por litigância de má-fé.
2. A Recorrida não logrou provar que a actividade desenvolvida no tratamento ocorreu em desconformidade com as leges artis, tendo o Tribunal valorado de forma manifestamente descabida o depoimento de apenas um médico dentista com interesse directo na causa, tratando-se efectivamente de quem, na tese da primeira, lhe prestou os mais recentes serviços e que por essa razão, jamais poderia depor de forma imparcial.
3. Destarte, a Recorrente trouxe ao Tribunal toda a prova necessária para que a Acção fosse julgada totalmente improcedente, e para que a Reconvenção deduzida fosse julgada procedente, contando aliás com o auxílio do depoimento da Recorrida e das testemunhas por si arroladas
4. Para a presente condenação, não basta haverem-se provado as referidas lesões, porquanto estas podem ter sucedido por inúmeros factores e, na realidade, não foi possível ao Tribunal saber porque é que as ocorrências alegadas pela Recorrida sucederem, sendo evidente que isto não é susceptível de caracterizar, por si só, um incumprimento (acto ilícito) da Recorrente, não existindo disciplina procedente no nosso sistema judicial que não demonstre o nexo de causalidade entre determinado facto e sua consequência.
5. Conclui-se, desta forma, que a Recorrida não foi capaz de demonstrar os factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil, quer seja ela contratual ou extracontratual, pelo que a Acção teria naturalmente que improceder.
6. Verdadeiramente, por todo o esforço que a Recorrente realize, esta não logrou entender o raciocínio lógico que o Mm.º Juiz encetou quanto aos concretos pontos da matéria de facto em discussão, na medida em que não indica em concreto quais os meios probatórios em que se fundou, fundamentando a decisão da matéria de facto nos seguintes termos:
“O Tribunal firma a sua convicção de que entre a A. e R. foi convencionado contrato de prestação de serviços de dentista. Esta realidade decorre por um lado nos elementos documentais, orçamentos, devidamente conjugados com os depoimentos das testemunhas familiares da A., E…, F…, que a acompanharam. Por sua vez, a testemunha G…, quanto a este aspecto como decorre do seu depoimento, é o mesmo impreciso e incoerente, razão pela qual não se atribuiu credibilidade quanto a este aspecto factual. De igual modo, a testemunha H… nada adiantou de concreto quanto a este aspecto, pois o seu discurso é incoerente e contraditório, quando afirma que a parte dos tratamentos teriam sido feitos pela interveniente, D…, quando a mesma ainda não era licenciada.
Após ponderação destes meios probatórios, levou ainda em devida nota, de modo complementar, as declarações de parte da R. e bem como o depoimento de parte da A.”; Quanto à situação em que a boca da A. estava após a aplicação dos tratamentos pela R., em primeira via o Tribunal forma a sua convicção no depoimento da testemunha I…, médico que tratou a A. após a intervenção da R.. O seu depoimento é claro, preciso e coerente, não lhe podendo apontar qualquer incoerência face a prova documental junta aos autos e que demonstram tal realidade.
Quanto ao custo que a A. teve em proceder a tais tratamentos levou o Tribunal em consideração a prova documental – cheques juntos.”; “Quanto aos efectivos tratamentos levados a cabo pela R., levou o Tribunal em devida conta a prova documental, sendo que neste caso foi ponderado o documento de fls. 38, pois que este é contemporâneo com o início da relação contratual. Já os demais documentos de folhas 39 e 40, foram emitidos após tal relação, sendo os mesmos contraditados com a prova documental de folhas 65. Não se percebe, ou se entende, que de início haja um orçamento e que mais de três anos depois apareçam mas três documentos, todos eles intitulados de orçamentos. Tanto mais, tal como decorre de folhas, é que haja um recibo emitido pela R. no valor do orçamento emitido com data do início das relações, sendo um e outro (orçamento e recibo) contemporâneos.”; “Relativamente à factualidade posterior à cessação dos tratamentos levados a cabo pela R. na pessoa da A., firma o Tribunal a sua convicção no depoimento das testemunhas familiares da A., quanto ao seu estado, tratamentos e padecimentos. Quanto ao ponto factual da R. ter prestado e entregue à A. elementos dos tratamentos levados a cabo pela R., porque nenhuma prova suficiente se produziu, deu o Tribunal como não provada tal factualidade. Sendo de notar, a dificuldade que a R. teve em apresentar diversos elementos solicitados, já em fase de audiência final.”; “Formou a sua convicção através da conjugação da vasta prova documental junta aos autos e bem assim a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, que na sua globalidade, permite dar como indiciariamente provados e não provados os factos supra enunciados.”
7. Ora, em momento algum o Mm.ª Juiz demonstra, in concretum, a(s) testemunha(s) em cujo(s) depoimento(s) as respostas assentaram. É manifesto que nada disso foi observado na sentença aqui recorrida que se quedou por um juízo meramente conclusivo ou inconcludente, omitindo-se totalmente as razões em que se baseia inúmeros factos dados como provados, juízo esse que não pode ser considerado como fundamentação bastante ou suficiente (cfr. art.ºs 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
8. Ora, o procedimento adoptado pela Meritíssima Juíza a quo revela uma manifesta insuficiência de fundamentação.
9. Da leitura da presente motivação não se encontra qualquer fundamentação relativa aos factos provados, maxime pontos CCC), ZZ), XX), Z), O), CC), FF), DDD), Q), R), S), T), U), V), W), X) e Y), que condicionaram a sentença proferida, pelo que a sua alteração, no que àqueles factos diz respeito, assume decisiva importância, e que, por essa razão, deveriam ter sido dados como não provados.
10. Por outro lado desconhece-se a que factos se referem os documentos invocados nessa motivação, qual o sentido da decisão que determinaram e o que levou efectivamente a que viessem a ser considerados.
11. Em síntese, pergunta-se: onde está o exame crítico dos documentos e especificação dos factos a que respeitam?
12. Embora constituindo questão que, hodiernamente, é de conhecimento oficioso, a Recorrente requer, hic et nunc, a baixa do processo à 1ª instância com vista à fundamentação da decisão da matéria de facto.
13. Acresce que, in casu, estamos perante diversas contradições (insanáveis) da fundamentação, chegando-se a conclusões antagónicas, reveladoras de uma motivação do julgamento incorrecta.
14. 1. Na verdade, os pontos CC), XX) e ZZ) encontram-se, como supra se demonstrou, em plena contradição, pelo que não poderiam ter sido dado como provados.
15. Entende ainda a Recorrente que não deveria ter sido dado como provado os seguintes itens: CCC), ZZ), XX), Z), O), CC), FF), DDD), Q), R), S), T), U), V), W), X) e Y), por terem sido incorrectamente julgados.
16. De outra banda, entende a Recorrente que deveriam ser dados como provados os pontos 6, 7, 8, 22, 24, 25 e 26 do elenco apresentado pela Sentença como “Não Provados”.
17. Incompreensivelmente, resulta ainda da sentença que “quanto ao custo que a A. teve em proceder a tais tratamentos levou o Tribunal em consideração prova documental – cheques juntos”, quando através de despacho sob a referência 352978889 datado de 03 de Junho de 2015, o Mm.º Juiz indeferiu a junção aos autos dos referidos cheques, e tanto assim foi que a Recorrida, a 29 de Junho de 2015, apresentou recurso da decisão de inadmissibilidade desses documentos, cujo resultado ainda se aguarda, pelo que o ponto Z “a A. gastou a quantia de 26.532,00 Euros” jamais poderia ser dado como provado.
18. Em reapreciação de gravado e acima transcrito, bem se alcança que a Sentença sob recurso fez menos adequada apreciação e valoração do depoimento prestado pela Interveniente Dra. D… e da própria Autora, aqui Recorrida, onde resulta claramente que a Recorrente se disponibilizou para reparar os alegados danos causados e que aquela se recusou, furtando-se aos tratamentos disponibilizados, recorrendo aos serviços de um terceiro.
19. A Recorrida escudou-se no regime da responsabilidade civil médica, encobrindo o que efectivamente sucedeu: o recurso à auto-tutela.
20. Por mera hipótese de raciocínio, estando perante qualquer acto negligente por parte da Recorrente, a Recorrida deveria, primeiramente, tentar obter desta a reposição da conformidade, o que alegadamente fez e a Recorrente aceitou, conforme resulta do facto provado n. º BBB.
21. Ulteriormente, se a peticionada reparação não fosse realizada, deveria então a Recorrida intentar acção de cumprimento, no sentido de exigir judicialmente essa reparação/tratamento por parte da Recorrente.
22. Por essa via, sendo esta última condenada na Acção Declarativa, e não cumprindo a sentença, à Recorrida assistiria o recurso à Acção Executiva, nos termos dos artigos 868.º e seguintes do Código de Processo Civil.
23. E se isso verdadeiramente não sucedeu, foi por causa imputável à Recorrida, que se recusou a ser tratada pela Recorrente, que nem teve hipótese de terminar o trabalho que havia iniciado.
24. É jurisprudência firme e doutrina amplamente aceite que a reparação deverá ser realizada pela parte que não cumpriu a prestação em conformidade, pelo que não poderia a aqui Recorrente entregar a reparação a um terceiro e depois fazer-se pagar pelo custo da mesma.
25. Ao assim não ter entendido, o douto Tribunal violou o artigo 808.º do Código Civil bem como os artigos 406.º, 336.º, 339.º, 798.º, 808.º e 1222.º do mesmo Diploma e ainda o artigo 868.º do Código de Processo Civil.
26. A Recorrida, escolhendo um dos direitos que tinha ao seu dispor – pedindo inicialmente à Recorrente a reparação dos alegados danos causados - fez com que os restantes estivessem naturalmente excluídos, mormente o de exigir que o serviço fosse prestado por terceiro, na medida em que a Recorrente não se recusou a proceder a qualquer reparação nem a deixou de realizar dentro de um prazo razoável, tendo inclusivamente apresentado um orçamento a custo zeros, tal como resulta do depoimento gravado supra explanado da Recorrida. (01h01m39s a 01h02m42s do depoimento).
27. Saliente-se ainda que conforme resulta do depoimento supra transcrito da Recorrida, (tempo 15m21s a 15m30s do referido depoimento), a mesma confessa que não apareceu mais na clínica e que o legal representada da Recorrente lhe telefonou a perguntar porque não comparecia, ao que aquela respondeu “eu não vou porque estou chateada com o sotôr”.
28. Se assim não se entender, mesmo assim, tendo a Recorrente se disponibilizado para reparar os alegados danos causados, a Recorrida, agiu em claro Abuso de Direito ao proceder à reparação através de um terceiro, imputando à primeira os custos envolvidos.
29. Ao decidir como decidiu, o Tribunal violou o artigo 334.º do Código Civil.
30. Mesmo que assim não se entenda – o que não se concebe e só por mero dever de patrocínio se equaciona, sem nunca se conceder - no caso em apreço, é notório que estamos perante uma causa condicionada severamente por uma elevada carga de aleatoriedade, na medida em que o seu resultado não depende apenas do estrito cumprimento das leges artis, pelo que ao contrário do que fora decidido na sentença recorrida, estaremos perante uma obrigação de meios.
31. Acresce que para se avaliar a ocorrência de um facto ilícito - primeiro elemento para aferir da responsabilidade da Ré, quer seja da responsabilidade contratual, quer seja da responsabilidade extracontratual - teria que se provar que esta havia actuado em desconformidade com as leges artis, o que no caso em apreço não sucedeu.
32. A culpa da Recorrente é inexistente, não tendo sequer logrou terminar o serviço, por causa imputável à Recorrida que nunca mais regressou à clinica.
33. Disto resulta e outra vez, que a Sentença sob recurso fez menos adequada interpretação e aplicação dos artigos 483.º, 798.º, 799.º e 342.º, todos do Código Civil, violando-os.
34. Não estão reunidos os pressupostos basilares da responsabilidade civil da Recorrente, que não praticou nenhum facto ilícito, e mesmo que se possa equacionar (sem conceder) que os incómodos referidos na sentença possam constituir danos, a verdade é que tais danos não patrimoniais são comuns.
35. Na verdade, não existe qualquer nexo de causalidade entre o putativo estado psicológico da Recorrida e qualquer actuação ilícita da Recorrente.
36. É comummente entendido pelos nossos Tribunais superiores que a ansiedade, temor e frustração são danos patrimoniais mas que nem sempre merecem a tutela do direito.
37. E mesmo que se aceite (sem conceder) que os “incómodos” referidos na Sentença possam constituir danos, a verdade é que tais danos não patrimoniais são comuns.
38. Ao não ser assim entendido, foi violado o disposto no artigo 496.º do Código Civil que estatui que “na fixação da indemnização se pode atender apenas aos danos patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.”
39. No tocante ao reconhecimento e condenação da Recorrente como litigante de má-fé, para além de infundada, violou a Sentença sob recurso o disposto sob o art. 542º do CPC e artigo 27º, nº. 4, do Regulamento das Custas Processuais.
40. Por isso, corrigidos que estejam os erros que aqui se enunciam, estará o Tribunal em condições de, por imperativo legal e de justiça, revogar a decisão da primeira instância.
Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores
Em procedência do presente recurso e revogação da Sentença em apreço, Vossas Excelências farão, como habitualmente, devida aplicação da Lei e realizarão a sã e costumeira Justiça.”

A autora contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

O recurso do despacho interlocutório foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
No entanto, porque se trata do recurso de um despacho que rejeitou meios de prova, devia ter subido imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo [cfr. art.ºs 644.º, n.º 2, al. d), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1, todos do CPC].
Porém, dado que já foi proferida sentença, da qual também foi interposto recurso, e porque o recurso só foi admitido depois do recurso desta decisão final, entendeu-se que seriam decididos conjuntamente, tal como havia subido, nada obstando ao conhecimento de ambos os recursos.
Tais recursos foram apreciados por este Tribunal, no acórdão de 3/5/2016, onde se decidiu:
1. Julgar a apelação da autora improcedente e confirmar o despacho recorrido;
2. Julgar a apelação da ré procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, na parte impugnada, quer quanto à condenação da quantia de 29.032,00€, quer quanto à condenação como litigante de má fé, delas se absolvendo.

Deste segmento decisório, referente à apelação da sentença, foi interposto recurso de revista pela ré, o qual foi apreciado pelo STJ, por douto acórdão de 26/1/2017, que, depois de se pronunciar pela inexistência das nulidades imputadas ao acórdão proferido – falta de fundamentação e de oposição entre os fundamentos e a decisão[2] - decidiu:
Nos termos expostos, anula-se o acórdão recorrido e determina-se o reenvio do processo ao Tribunal da Relação do Porto para, se possível, com intervenção dos mesmos Juízes Desembargadores e nos moldes sobreditos, ser apurada a aludida matéria de facto relevante, sem contradição, aplicando-se, de seguida, o regime jurídico tido por adequado, conhecendo inclusive, se disso for caso, das questões consideradas prejudicadas”.
Fora do novo julgamento está, pois, não só a questão da admissibilidade dos documentos apresentados em audiência (referente à apelação interposta pela autora, que não foi impugnada, nem podia ser, tendo transitado em julgado a respectiva decisão, não obstante na anulação decretada não ter sido feita qualquer ressalva), como também a necessidade de fundamentação da decisão de facto e a reapreciação de toda a matéria de facto impugnada no recurso de apelação interposto pela ré e, ainda, a litigância de má fé por parte desta, de cujo pedido foi já absolvida, por força do disposto no art.º 635.º, n.º 5, do CPC, que consagra a proibição da reformatio in pejus.

Importa, assim, em cumprimento do superiormente determinado, corrigir as falhas apontadas, esclarecendo os factos indicados, na medida em que for possível, e aplicar o regime jurídico adequado, por forma a resolver as restantes questões suscitadas no recurso de apelação da ré, que, tal como já anteriormente se disse, são:
1. Qual a qualificação da responsabilidade civil em causa;
2. Se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil e o consequente dever de indemnizar;
3. Se os danos não patrimoniais não são ressarcíveis;
4. E se existe abuso de direito na litigância da autora.
II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

A) A R. é uma sociedade comercial por quotas que persegue como objecto social, a realização de serviços médicos, medicina dentária e próteses dentárias.
B) Cuja gerência é exercida por J… e K….
C) No exercício da respectiva actividade social, a R., a pedido e solicitação da A., foi contratada para tratamentos de medicina dentária.
D) No maxilar superior e inferior, nomeadamente, implantes e próteses, provisória e fixa, sobre os implantes.
E) Os tratamentos inerentes aos serviços contratados e consultas, com início em 2010, prolongaram-se até Fevereiro de 2012.
F) De acordo com as ordens, direcção, fiscalização e prescrição da R. através do seu legal representante.
G) A A. procedeu ao pagamento dos honorários fixados pela R..
H) Sucede que, pelo menos desde final de 2011, a A. manifestou junto da R. as diversas inflamações, cáries, rarefacção óssea, sucessivo sangramento das gengivas.
I) Que afectavam o dia a dia da A., impedida assim, nomeadamente, de se alimentar, e proceder à higiene diária.
J) A R. sempre garantiu à A. que o alegado supra alínea (h) era consequência habitual do tratamento contratado.
K) Mas que, uma vez concluído, a A. deixaria de ser afectada pelo sangramento, rarefacção óssea, cárie e constante dor localizada nos maxilares.
L) A A. constatou, após observação de ortopantomografia e tomografia computorizada, que os dentes na mandíbula apresentavam tratamentos desadequados que provocaram, nomeadamente, cáries radiculares que os tornavam impossíveis de aproveitar para colocação de uma estrutura fixa.
M) Na maxila, constatou-se, igualmente, desadaptação da estrutura fixa.
N) Consequência directa de tratamentos endodônticos desadequados e imagens apicais coincidentes com inflamação crónica e rarefacção óssea.
O) Os tratamentos em causa, desadequados, foram causa directa da actuação da R., que não usou, nem cuidou, como era sua obrigação, das técnicas em uso para arte.
P) Determinando na A., as lesões indicadas.
Q) Para tratamento das lesões provocadas pela atuação da R., a A. teve proceder a extracção dos dentes superiores.
R) Submeter-se a regeneração óssea.
S) Colocação de 6 implantes Osteointegrados.
T) Colocação de prótese fixa provisória sobre implantes.
U) Colocação de Prótese Fixa metalocerâmica sobre oito implantes.
V) Sendo que no maxilar inferior, sujeitou-se a extracção dos dentes inferiores.
W) Regeneração Ossea.
X) Colocação de 6 implantes osteointegrados.
Y) Colocação de prótese fixa provisória sobre implantes e colocação de prótese fixa metalocerâmica.
Z) Para tanto, a A. gastou a quantia de 26.532,00€ (vinte e seis mil quinhentos e trinta e dois euros).
AA) A A. diligenciou junto da R. pela reparação das lesões que a actuação da mesma provocou.
BB) Sucede que a mesma não reparou qualquer lesão provocada.
CC) Apesar de inicialmente se ter disposto a tanto, posteriormente escudou-se em sucessivas desculpas.
DD) Sofreu, quer a A., quer o seu marido e filha, traumatismo psicológico.
EE) A A. não se alimentou em alguns dias.
FF) A A. e marido em alguns dias acordavam, quando a A. estava dominada pelas dores insuportáveis, sendo o marido da A. para a auxiliar.
GG) A A. sofreu ansiedade, temor, e sequelas que a sujeição a frustrado e novo e tratamento determinam.
HH) E o choque traumático que se fez sentir durante o período a que se sujeitou aos tratamentos efectivados pela R..
II) Ainda hoje se sente martirizada pela sujeição a novo e doloroso tratamento.
JJ) A instabilidade emocional da A., se agravou com a actuação da R. devido à ausência e estado de saúde da A..
KK) Quando a A. se deslocou à R., foi-lhe sugerido, após lhe ter sido dado a conhecer os procedimentos clínicos, e respectivos custos, a colocação de duas plataformas (denominadas “pontes”) metal-cerâmicas (superior e inferior) de molde a suportar as 20 próteses (mais precisamente 10 coroas nos dentes superiores, e outras 10 nos dentes inferiores) necessárias para melhorar a dentição daquela A..
LL) Na mesma altura foi também explicado à A. que para se proceder à colocação daquelas duas plataformas, seria necessário proceder-se ao processo de desvitalização dos dentes pilares que iriam “suportar” as ditas “pontes”, sendo estes os dentes 1.1, 1.2, 1.3, 2.1, 2.2, 2.3, 4.2, 4.3, 4.4, 4.5, 3.1, 3.2 e 3.3.
MM) E que este processo de desvitalização inclui sempre duas fases, ou seja, numa primeira fase ter-se-ia que proceder à preparação biomecânica dos canais, e numa segunda fase ter-se-ia que proceder à obturação dos canais.
NN) Tendo a A. aceite essa sugestão.
OO) A colocação das pontes foi efectivada, como não poderia deixar de suceder, a posteriori do processo de desvitalização dos dentes.
PP) Toda a documentação que a Ré tinha relativamente àquela A. foi entregue ao seu filho (o que namorava com a Dr.ª D…).
QQ) Os tratamentos desvitalização dos dentes pilares que suportaram as duas “pontes”, processo este que inclui a preparação biomecânica dos canais e a obturação dos canais dos dentes pilares, sendo que no caso concreto da A. tais serviços foram executados em 13 canais.
RR) A interveniente foi convidada pelo gerente da Ré, Dr. L…, para ali efectuar a sua aprendizagem profissional – na época, o estágio não fazia parte integrante do curso de medicina dentária – no mês de Fevereiro de 2009, tendo ali comparecido, pela 1ª vez, para tal efeito, em 11 ou 12 desse mesmo mês.
SS) A A., B…, iniciou o seu tratamento no 3º trimestre de 2008 - que pagou em 30.12.2008.
TT) À data em que a A. contratou com a Ré, mais precisamente com o Dr. L…, seu sócio-gerente, a prestação de serviços clínicos, a interveniente, D…, apenas era conhecida da gerência da Ré como simples cliente.
UU) No preço de cada coroa está por regra incluído o custo da respectiva aplicação que implica a desvitalização e obturação dos canais de cada dente que vai dar suporte à aludida “coroa”.
VV) Quando a interveniente, D…, iniciou a sua actividade profissional na Ré, no final de Fevereiro/2009, já que antes, desde 12/02/08, se limitara a assistir a consultas, já o maxilar superior da A. estava apto a receber a ponte, com todos os dentes talhados visto que o seu tratamento começara muito antes, em Outubro ou Novembro de 2008 e, de resto, fora integralmente pago em 30.12.2008.
WW) Cada dente, antes de “talhado” deve ser desvitalizado e obturado em ordem a permitir, com o necessário conforto para o doente, a aplicação das coroas.
XX) O único serviço prestado à A. pela interveniente, D…, por ordem do gerente da Ré, L…, consistiu em refazer 2 ou 3 desvitalizações que, por terem sido deficientemente realizadas, ficando incompletas, causavam dores à paciente, obrigando a repeti-las.
YY) Nem outro comportamento seria aceitável dada a sua completa inexperiência profissional: a sua actividade reconduzia-se aos mais elementares procedimentos da técnica profissional, tais como limpezas, desvitalizações e obstrução de canais.
ZZ) A interveniente, D…, para além dos tratamentos referidos, limitou-se a terminar, sob a supervisão pessoal e directa do Dr. L…, o desgaste de um dente do maxilar inferior que julga ter sido um incisivo.
AAA) Os reduzidos e elementares serviços clínicos que lhe prestou foram efectuados por ordem da gerência da Ré e sob a directa supervisão do Dr. L….
BBB) A Ré, representada pelo seu sócio gerente L… prontificou-se a reparar integralmente todo o tratamento, substituindo implantes e coroas de forma absolutamente gratuita, conforme o documento de folhas 65.
CCC) Os serviços clínicos que a interveniente, D…, prestou à A. resumiram-se a tratamentos de manutenção e higienização das gengivas.
DDD) Não eram estas operações que causavam o constante descolamento das pontes: bastava a A. mastigar um pouco de carne para a ponte do maxilar inferior sair, pela chamada falta de retenção.
EEE) Por outro lado, as gengivas não foram tratadas previamente pelo que, com a aplicação das peças (pontes) o seu estado agravou-se provocando enormes e constantes hemorragias.
FFF) A A. foi extremamente rigorosa nos cuidados domésticos com a sua boca, utilizando diariamente uma gama de produtos (pasta, gel e colo tório) especiais para gengivas, bem como a utilização de um jacto de água com bicarbonato, mediante a aquisição de uma máquina apropriada.
GGG) A interveniente, D…, assistiu às primeiras consultas na clínica da Ré em meados de Fevereiro de 2009.
2. De direito
2.1. Da alteração da matéria de facto
Estão em causa, agora, apenas os factos dados como provados sob as alíneas N), O), P), AA), BB), CC) e BBB) da fundamentação de facto.
Destes apenas foram impugnados os factos descritos sob as alíneas O) e CC) pela ré/apelante que pretendia que, tal como os demais que haviam sido dados como provados, por si impugnados, fossem considerados não provados.
Reapreciada a prova produzida, não se vislumbraram razões para alterar a matéria de facto impugnada.
Foi apenas declarado não escrito o teor da alínea O), oficiosamente e porque se considerou que continha «matéria conclusiva, que equivale ao julgamento de uma questão de direito da maior relevância na acção, a qual, por isso, não pode ser mantida, não obstante o actual CPC não conter norma idêntica ao art.º 646.º, n.º 4, do anterior CPC, mas cuja revogação não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado, tanto mais que a matéria de facto tem de “cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos”»[3].
Não obstante, o Supremo Tribunal de Justiça, em seu douto critério, entendeu que a eliminação total daquela alínea “na parte em que contempla apenas o nexo causal naturalístico … envolve também contradição com o que consta das alíneas N) e P).”
Com o devido respeito, afigura-se-nos que não pode haver contradição entre um facto dado como provado e matéria que foi eliminada, e, portanto, excluída dentre a mesma matéria de facto provada, a qual deixou de existir para todos os efeitos. Além disso, também se nos afigura que o nexo causal já era susceptível de resultar da matéria de facto dada como provada sob as alíneas N) e P).
Mas, para que dúvidas não subsistam, porque não há fundamento para alterar a matéria de facto provada sob as alíneas N) e P), aliás não impugnada, em obediência ao superiormente determinado, aqui se repõe na matéria de facto provada o teor da alínea O) na parte em que se poderá considerar factualidade, dando-se como provado que “Os tratamentos referidos em N) foram causa directa da actuação da ré.”
A outra contradição apontada pelo aludido Tribunal Superior reside entre a factualidade dada como provada sob as alíneas BB) e CC), por um lado, e a matéria de facto provada sob a alínea BBB), por outro, na medida em que, nas primeiras, se dá por assente que a ré se escudou em sucessivas desculpas e não procedeu a qualquer reparação e, na última, se afirma que a ré se prontificou a reparar, gratuita e integralmente, todo o tratamento.
A matéria contida nesta última alínea não foi impugnada pela recorrente, havia sido confessada pela autora na réplica e resulta do documento junto a fls. 65, ali referido.
Na verdade, esse documento reproduz o orçamento n.º 02565, de 2 de Março de 2012, elaborado pela ré, em nome da autora, referente a seis implantes e a catorze coroas de metal-cerâmica a custo zero, onde consta a declaração de “Confirmo os dados do orçamento e aceito os termos do mesmo”, com a mesma data.
Por isso, não vemos fundamento para proceder à alteração da matéria da alínea BBB), devendo manter-se provada.
Relativamente à matéria das alíneas AA) e BB), não tendo sido impugnada pela recorrente no recurso de apelação, não vemos como seja possível alterá-la, atento o disposto no art.º 662.º e visto que não é caso de intervenção oficiosa no termos do n.º 2 desse mesmo artigo, que não está em causa, sendo que a prova produzida também não permitiria qualquer alteração.
Assim, importa, apenas, harmonizar a matéria da alínea CC), no que respeita à sua parte final, para evitar qualquer contradição, como foi entendido no douto acórdão do STJ.
Reanalisada, mais uma vez, a prova produzida, não encontramos qualquer tipo de prova que permita fundamentar que a ré se tenha escudado “em sucessivas desculpas”.
Ao invés, dos depoimentos das testemunhas G… e H… resulta até que a ré não se escudou aos tratamentos com quaisquer desculpas, tendo sido, antes, a autora quem deixou de recorrer à ré para esta prosseguir os tratamentos e proceder às reparações que se prontificou e propôs fazer, o que aquela terá feito de sua livre vontade, após a saída da clínica demandada da sua, então futura e actual, nora – Dr.ª D… – aqui interveniente.
Com efeito, a G… afirmou que a autora “andou em tratamentos na clínica até 2011, altura em que a Dra. D… saiu da clínica, por conflito com esta” e a H… falou em “afastamento da autora” da clínica, em 2012.
Embora não coincidentes nas datas, estes depoimentos associam a cessação dos tratamentos na clínica demandada à saída da Dr.ª D… e fazem presumir, naturalmente, que tal cessação se deveu ou está relacionada com essa sua saída, quiçá por razões de solidariedade.
Tais depoimentos, pelo menos nessa parte, afiguram-se-nos convincentes e conhecedores da realidade, por as ditas testemunhas terem presenciado os factos, enquanto funcionárias da demandada, mostrando-se, apesar disso, isentas.
Estes depoimentos também se encontram, de algum modo, confirmados pelo teor do documento, supra aludido na alínea BBB), donde resulta a manifestação de vontade da ré em proceder à reparação do tratamento.
Por isso, importa dar como não provada a factualidade vertida na segunda parte da alínea CC), restando apenas como provado que “A ré dispôs-se a proceder à reparação das lesões”.
Esta alteração permite, segundo cremos, só por si, afastar qualquer contradição com a factualidade provada sob a alínea BBB), indo até no mesmo sentido.
Quanto ao iter e aos esclarecimentos referenciados, afigura-se-nos, salvo melhor entendimento e com o devido respeito, que é impossível obtê-los e prestá-los, porquanto não foram alegados os correspondentes factos e continua a vigorar o princípio do dispositivo, na modalidade agora denominada de princípio da controvérsia, segundo o qual compete às partes definir os contornos fácticos do litígio (cfr. art.ºs 3.º, n.º 1 e 5.º, n.º 1, ambos do CPC), parecendo-nos que não se trata de caso previsto no n.º 2 deste último preceito legal.
Destarte, concluindo e resumindo no que à alteração da matéria de facto respeita, importa alterar a matéria das alíneas O) e CC), dando como provado que:
O) Os tratamentos referidos em N) foram causa directa da actuação da ré.
CC) A ré dispôs-se a proceder à reparação das lesões.

Esta alteração em nada interfere, a nosso ver e com o devido respeito por outro entendimento, com a subsunção dos factos ao direito feita no anterior acórdão, pelo que, não havendo razões para o alterar, aqui se reproduz, na parte referente, às questões que resta apreciar nos seguintes termos:

1.2 Da qualificação da responsabilidade civil em causa
«Coloca-se, desde logo, em termos de subsunção jurídica da factualidade provada e face à motivação das alegações, a questão da qualificação da responsabilidade civil em causa, no espectro dicotómico de responsabilidade extracontratual/responsabilidade contratual, na medida em que as regras da repartição do ónus da prova, quanto à culpa do agente, são diferentes, porquanto, em sede de responsabilidade extracontratual, esse ónus recai sobre o lesado (art.º 487.º, n.º 1, do Código Civil), enquanto, no quadro da responsabilidade contratual, se presume a culpa do devedor nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do mesmo Código.
Trata-se, como é sabido, de questão polémica na doutrina e na jurisprudência, existindo situações em que podem concorrer os dois tipos de responsabilidade, caso em que tem sido empreendida uma orientação no sentido de, nesses casos de concorrência, dar prevalência à responsabilidade contratual “por se mostrar mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada”[4].
Seja como for, aquela divergência parece ficar atenuada se tivermos em conta, como vem sendo jurisprudência corrente, que a responsabilidade delitual por acto médico se traduz, em princípio, numa obrigação de meios, cabendo ao agente o ónus de provar que actuou em conformidade com a leges artis recomendáveis no contexto do caso concreto[5].
Porém, casos há em que não estão em causa obrigações de meios, mas obrigações de resultado, o que se verifica sempre que o devedor se compromete a produzir um certo resultado em benefício do credor ou de terceiro de tal modo que a obrigação apenas se considera cumprida se o resultado projectado pelas partes for alcançado[6].
Encontram-se entre estes casos as intervenções médico-dentárias com fins predominantemente estéticos, tais como colocação de próteses, restauração de dentes e até a realização de implantes, onde o resultado surge sempre como substrato imprescindível da obrigação.[7]
Embora no universo da odontologia não se deva afirmar, em termos genéricos, que os médicos assumem obrigações de resultado, por existirem actividades dentárias mais complexas, dependentes de factores diversos do estrito cumprimento das leges artis, devendo considerar-se incluídas na categoria das obrigações de meios[8], a colocação de próteses, ou certas operações onde os objectivos a alcançar não dependem senão da competência técnica dos médicos, podem e devem configurar-se como obrigações de resultado.
Cingindo-nos à responsabilidade da clínica onde os cuidados médicos foram prestados, já que apenas ela foi demandada e não, também, o médico ou médicos dentistas que procederam aos tratamentos na autora, importa referir que:
A responsabilidade da clínica onde o médico exerce a sua actividade e onde levou a cabo os actos que podiam estar na base da sua responsabilidade, circunscrita à medicina exercida no sector privado, radica no art.º 800.º do Código Civil, mais precisamente na parte final do seu n.º 1, ao dispôr que “O devedor é responsável perante o credor pelos actos … das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”, “com referência ao concreto contrato que o doente/paciente em causa tenha celebrado com o médico e a clínica”[9].
Ao referir actos “das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação”, o legislador abarca quer os auxiliares, quer os substitutos, sendo que o substituto “substitui o devedor, que não intervém no cumprimento”, havendo “então o cumprimento por terceiro”, ao passo que o auxiliar “coloca-se em plano secundário, pressupondo a intervenção principal do devedor como autor” do respectivo acto. É substituto, em sentido amplo, todo aquele que executa o acto “em vez do devedor, seja qual for a sua posição jurídica perante este: procurador, mandatário, subcontratante (em certos casos), autor de uma promessa de liberação, fiador, etc.”. Embora empregue em sentido amplo, “há todavia que fazer uma restrição para os efeitos do artigo 800º (…): a responsabilidade do devedor pelos actos do substituto só existe quando a intervenção deste decorre da iniciativa daquele”[10].
Filipe Albuquerque Matos, no local já citado, depois de referir que os contratos celebrados entre a clínica médica e o doente/cliente podem revestir as modalidades de «contrato total» ou de «contrato dividido»[11], conclui que se deve dar atenção “ao concreto acordo celebrado entre a clínica e o autor”, para se saber qual a modalidade contratual que poderá estar em causa e para se saber a amplitude da responsabilidade da clínica[12].
No caso em apreço, resulta dos factos provados que a autora celebrou com a ré um contrato, mediante o qual esta se obrigou a proceder a tratamentos de medicina dentária na autora, no maxilar superior e inferior, procedendo, nomeadamente, a implantes e próteses, provisória e fixa, sobre os implantes, tendo acordado a colocação de duas plataformas metal-cerâmicas de molde a suportar 20 próteses (10 coroas em cada maxilar), sendo necessário, para tanto, a prévia desvitalização dos dentes pilares – mais
precisamente os dentes 1.1, 1.2, 1.3, 2.1, 2.2, 2.3, 4.2, 4.3, 4.4, 4.5, 3.1, 3.2 e 3.3 -, a efectuar em duas fases, consistindo a primeira na preparação biomecânica dos canais e a segunda na obturação dos canais [cfr. alíneas C), D), F), KK), LL), MM), NN) e OO) dos factos provados].
Por sua vez, a autora obrigou-se a pagar a correspondente retribuição, que pagou, no montante de 5.000,00€, embora não conste dos factos provados, nem foi alegado, mas consta do recibo de fls. 100, referenciado na motivação da decisão de facto [cfr. factos provados sob as alíneas G) e SS)].
Do assim acordado resulta que estamos, inequivocamente, perante um caso de responsabilidade contratual, que a obrigação assumida pela ré se traduziu numa obrigação de resultado e que a sua responsabilidade se reconduz ao designado «contrato total», pois depreende-se que se responsabilizou também pelos danos que pudessem advir dos tratamentos que iriam ser realizados.»

2.3. Dos pressupostos da responsabilidade civil/dever de indemnizar

«Como é sabido, constituem pressupostos da responsabilidade civil contratual (aliás, comuns à responsabilidade civil extracontratual) o facto, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Embora comuns, existem diferenças apenas quanto ao ónus da prova da culpa.
Porém, relativamente aos demais pressupostos, nomeadamente o facto ilícito do não cumprimento ou, tratando-se de cumprimento defeituoso, o defeito verificado, já compete ao credor fazer a respectiva prova, por serem elementos constitutivos do seu direito à indemnização[13], nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.
A presunção de culpa prevista no citado art.º 799.º, n.º 1 só actua depois de se verificar o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação.
Na verdade, só quando se encontra reconhecida a falta de cumprimento de uma obrigação ou o seu cumprimento defeituoso, é que sobre o devedor recai o ónus de alegar e provar a falta de culpa, nos termos do referido art.º 799.º, n.º 1[14], porquanto a lei só presume a culpa do devedor depois de demonstrado o defeito da prestação ou o seu não cumprimento[15].
Dito isto, vejamos se estão demonstrados todos os referidos pressupostos da obrigação de indemnizar, de verificação cumulativa para que esta possa existir, começando pela ilicitude.
De acordo com a generalidade da nossa doutrina, a “ilicitude” advém da violação de direitos subjectivos e de normas de protecção ou, pura e simplesmente, da inobservância do direito (delimitação positiva) e postula que não existam causas de justificação (delimitação negativa), ou seja, que essa inobservância não seja legitimada por acção directa, legítima defesa, estado de necessidade, nem pelo cumprimento de um dever e pelo consentimento do lesado.
Enquanto alguns autores defendem uma concepção subjectiva[16], no nosso sistema jurídico predomina a concepção objectiva deste pressuposto, que considera que a ilicitude “se satisfaz com a produção do resultado danoso prefigurado na lei, sem se revelar necessário o recurso a quaisquer outros critérios complementares”[17].
No que para aqui interessa, “a ilicitude da actividade do médico será afirmada se concluirmos que a mesma se consubstancia numa violação das leges artis impostas a um profissional prudente da respectiva categoria ou especialidade”, sem necessidade de “aquilatar se, na execução ou inobservância dos deveres que lhe são exigíveis, o médico actuou com a diligência, cuidado ou prudência impostos a um profissional medianamente diligente, zeloso e cuidadoso, uma vez que tal juízo terá lugar a nível da culpa. No fundo, a ilicitude traduz-se numa desconformidade objectiva face aos comandos da ordem jurídica e a culpa num juízo de censurabilidade subjectiva à conduta desviante do lesante/devedor”[18].
A autora configurou a acção, não com base na ilicitude da actuação do médico ou médicos que a trataram, que não demandou, mas com fundamento na ilicitude da actuação da ré, decorrente do cumprimento defeituoso da sua prestação. Isto, segundo alegou na petição inicial, porque:
- os tratamentos que lhe ministrou não foram os adequados ao cumprimento da sua obrigação;
- em consequência deles, padeceu determinadas lesões que a ré não reparou.
Os factos alegados foram, no essencial, provados, sendo que, no que se refere à desadequação dos tratamentos e à falta de técnicas de acordo com a leges artis foram dados como não escritos, por serem conclusivos[19].
Para além deles, provou-se, no que agora importa considerar, que:
“A Ré, representada pelo seu sócio gerente L… prontificou-se a reparar integralmente todo o tratamento, substituindo implantes e coroas de forma absolutamente gratuita, conforme o documento de folhas 65” [cfr. alínea BBB) dos factos provados].
Porém, não obstante também ter sido dado como provado que “A A. diligenciou junto da R. pela reparação das lesões que a actuação da mesma provocou” [al. AA)], que “… a mesma não reparou qualquer lesão provocada” [al. BB)] …, a verdade é que ficou, ainda, provado que, para tratamento das lesões provocadas pela actuação da ré, a autora teve que proceder à extracção dos dentes superiores, de
se submeter a regeneração óssea, a colocação de implantes osteointegrados, de prótese fixa provisória sobre implantes e de prótese fixa metalocerâmica sobre oito implantes e, no maxilar inferior, sujeitou-se à extracção dos dentes inferiores, a regeneração óssea e à colocação de 6 implantes osteointegrados, de prótese fixa provisória sobre implantes e de prótese fixa metalocerâmica, com o que gastou a quantia de 26.532,00 € [cfr. alíneas Q) a Z)], recorrendo aos serviços de terceira entidade», apesar de a ré se ter disposto a proceder à reparação das lesões [cfr. al. CC)][20].
«Com essa atitude, a autora impossibilitou que a ré procedesse à reparação dos defeitos denunciados e ao cumprimento integral do acordado.
Quer isto dizer que, com o abandono definitivo dos tratamentos sem que estivessem concluídos, foi a autora que se colocou numa situação de incumprimento contratual, tornando impossível à ré a conclusão das tarefas que ainda estavam inacabadas ou, pelo menos, que procedesse aos acertos e rectificações que, até final do tratamento, se impusessem.
Por isso, não pode ser assacado o incumprimento ou deficiente execução do contrato pela ré, tanto mais que se prontificou a “reparar integralmente todo o tratamento”.
Da factologia que foi dada como provada não resulta que a actuação da ré tenha sido ilícita, nem que ela tenha incumprido definitivamente ou executado deficientemente o contrato.
A autora não fez, pois, prova deste requisito da obrigação de indemnizar, como lhe competia.
Em face desta constatação, fica prejudicada a análise dos demais pressupostos da responsabilidade civil contratual, supra enunciados, não havendo lugar à correspondente obrigação de indemnizar.

Prejudicada fica também a apreciação das questões da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais e do abuso do direito…».
Com o devido respeito por diferente e sábia opinião, parece-nos que a falta de prova, por parte da autora, da ilicitude, prejudica a análise dos restantes pressupostos da obrigação de indemnizar pela ré, incluindo os danos não patrimoniais, bem como da questão do abuso de direito, visto que a ausência daquele pressuposto conduz à improcedência da acção, na parte impugnada, desiderato pretendido com o recurso de apelação e que fora já alcançado.
Destarte, resulta do exposto que continua a proceder a apelação da ré, não havendo razões para alterar o regime jurídico aplicado, nem para conhecer das questões consideradas prejudicadas.
Sumariando:
1. Embora no universo da odontologia não possa afirmar-se, em termos genéricos, que os médicos assumem obrigações de resultado, por existirem actividades dentárias mais complexas, dependentes de factores diversos do estrito cumprimento das leges artis, que, por isso, devem ser incluídas na categoria das obrigações de meios, a colocação de próteses e certas operações onde os objectivos a alcançar não dependem senão da competência técnica dos médicos, podem e devem configurar-se como obrigações de resultado.
2. A responsabilidade da clínica onde o médico praticou os actos susceptíveis de basear a sua responsabilidade radica no disposto no art.º 800.º do Código Civil e no que tiver sido acordado no contrato que o doente tenha celebrado com aqueles.
3. Não pode assacar-se ilicitude à actuação da clínica, ou incumprimento contratual nem cumprimento defeituoso, quando ela se prontificou a proceder a todas as correcções necessárias e o doente torna impossível a conclusão dos tratamentos, recorrendo a terceiros.
III. Decisão
Pelo exposto decide-se julgar a apelação da ré procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, na parte impugnada, agora em apreciação, absolvendo-a do pedido por que havia sido condenada (29.032,00€).
*
Custas da acção e da apelação pela autora/apelada (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo da condenação anterior da ré pelas custas da reconvenção, aqui não apreciada.
*
Porto, 28 de Março de 2017
Fernando Samões
Vieira e Cunha (Vencido, Revi a posição assumida no anterior acórdão, Considero que pelo menos em matéria de dano não patrimonial, o comportamento do lesado Autor não desautoriza a ilicitude no nexo causal).
Maria Eiró
___
[1] Reproduzindo, na parte que aqui releva, os elaborados nos anteriores acórdãos.
[2] Tal como nos havíamos pronunciado, aquando da admissão do recurso de revista, por acórdão proferido em conferência de 13/9/2016.
[3] Neste sentido, o acórdão deste Tribunal, de 7/10/2013, processo n.º 488/08.1TBVPA.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 22/09/2011, processo n.º 674/2011.PL.S1, de 02/06/2015, no processo n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 e de 29/10/2015, processo n.º 2198/05.2TBFIG.C1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. último acórdão citado.
[6] Quanto à distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado, pode ver-se, entre outros, Antunes Varela, em “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7.ª ed., 2001, pág. 73.
[7] Cfr. acórdão desta Relação de 05/03/2013, processo n.º 3233/05.0TJPRT.P1, em que interviemos como 1.º adjunto, disponível in www.dgsi.pt/jtrp, onde é citado, no mesmo sentido, o ensinamento de Rute Teixeira Pedro, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, Centro de Direito Biomédico da Universidade de Direito de Coimbra, vol. 15, págs. 95-96.
[8] Cfr. Filipe Albuquerque Matos, in Cadernos de Direito Privado, n.º 43, Julho-Setembro 2013, págs. 68-69.
[9] Cfr. acórdão deste Tribunal e secção, de 17/6/2014, processo n.º 11279/09.2TBVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Pessoa Jorge, in “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1995, págs. 139-141; idem, Vaz Serra, in “Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais e dos Substitutos”, BMJ nº 72, págs. 272-273; aludindo apenas aos auxiliares, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed. rev. e act., págs. 57-58, citados no mencionado acórdão de 17/6/2014.
[11] Segundo o qual, no primeiro, a clínica responsabiliza-se pelos danos causados pelos respectivos funcionários na sequência do internamento e pelos danos provocados pelo médico; no segundo, a clínica só assume a responsabilidade pelos danos causados ao doente no âmbito da hospedagem/internamento e não já pelos decorrentes da prestação do serviço médico.
[12] “Cadernos …”, págs. 64-65 e nota 38.
[13] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, 9.ª reimpressão, pág. 101.
[14] Antunes Varela, RLJ, Ano 119.º, 126.
[15] Acórdãos do STJ, de 29/9/1998, CJ (STJ), Ano VI, T3, 44; de 22/4/1997, CJ (STJ), Ano V, T2, 70 e de 13/7/2010, processo n.º 5492/04.6TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, e os nossos acórdãos, de 10/2/2015, proferido no processo n.º 3872/13.5TBVFR.P1 e de 10/3/2015, no processo n.º 43/13.4TJPRT.P2.
[16] Cfr. Pessoa Jorge, obra cit., págs. 61-70 e Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, tomo III, 2010, págs. 456-457.
[17] Cfr. Filipe Albuquerque Matos, anotação citada, pág. 61; J. Sinde Monteiro, in “Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações”, 1989, págs. 300-307, citado na nota 15 daquela anotação.
[18] Filipe Albuquerque Matos, loc. cit., pág. 63.
[19] Refira-se, aqui e agora, que a alteração da alínea O) respeita apenas ao nexo causal naturalístico, nos termos supra referidos, conforme fora superiormente determinado, mas que em nada releva para o acabado de afirmar.
[20] Cfr. alteração acima referida.