Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3087/19.9T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP202411253087/19.9T8AVR.P1
Data do Acordão: 11/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Fundo de Garantia Automóvel é uma entidade de vocação eminentemente social.
II - Ocorre abuso do direito se o detentor de um determinado direito previsto no ordenamento jurídico o exercita desenquadrado da razão que levou o legislador e prevê-lo.
III - Age em abuso do direito o A. que sofre os danos na sequência de acidente de viação em que o veículo causador não dispunha de seguro válido, seguindo na viatura com um grupo de amigos referenciados em vaga de assaltos, transportando apetrechos adequados à prática de crimes, em que o embate se dá na sequência de fuga em alta velocidade a perseguição de autoridade policial, comprometendo-se o A. partilhar a indemnização a suportar pelo Fundo de Garantia Automóvel com o condutor da viatura e co-R..
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 3087/19.9T8AVR.P1

Sumário

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Relatora: Teresa Maria Fonseca

1.ª adjunta: Ana Olívia Loureiro

2.ª adjunta: Maria Fernanda Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

AA intentou a presente ação com processo comum contra BB, CC e Fundo de Garantia Automóvel.

Pede a condenação solidária destes a pagarem-lhe quantia não inferior a € 300.000,00 a título de incapacidade, quantia não inferior a € 50.000,00 referente a quantum doloris, dano estético, rebate profissional e prejuízo de afirmação pessoal, valores estes acrescidos de juros de mora à taxa legal a partir da citação.

Alega que:

- em 29-3-2017, pelas 2h10 mn, no cruzamento da Rua ..., na freguesia ..., ..., circulava como passageiro no veículo de matrícula ..-..-LI, conduzido pelo R. BB;

- que foram acionados os sinais de emergência rotativos e efetuados sinais sonoros a partir de veículo da Guarda Nacional Republicana, devidamente caraterizado, com vista à imobilização do veículo ..-..-LI;

- que o R. BB assumiu um comportamento inconstante na condução do veículo, tanto abrandando a marcha como acelerando, circulando durante sensivelmente um quilómetro, em velocidade não inferior a 120 km/hora, numa zona onde a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora, e que ao efetuar uma curva apertada à direita, de reduzida visibilidade, o veículo se despistou e embateu frontalmente contra o muro de uma propriedade, imobilizando-se;

- que como consequência da colisão, ficou encarcerado no interior do automóvel, tendo sofrido lesões e ferimentos que descreveu;

- que o 1.º R. conduzia o veículo ..-..-LI com conhecimento, autorização e sob as ordens do 2.º R. CC;

- que este veículo não beneficiava de seguro automóvel válido e eficaz, não sendo o A. disso sabedor.

O R. CC contestou. Excecionou a sua ilegitimidade por à data do sinistro já não ser proprietário do veículo de matrícula ..-..-LI, tendo-o vendido ao 1.º R. BB em 20-5-2016. Alegou desconhecer a dinâmica do sinistro, bem como as lesões sofridas pelo A..

O R. Fundo de Garantia Automóvel (FGA) contestou. Aceitou que a responsabilidade pela verificação do acidente de viação se ficou a dever ao condutor do veículo de matrícula ..-..-LI, mas que não impende sobre si a obrigação de indemnizar o A. pelos danos que este veio a sofrer com o acidente por todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicarem à prática de crimes de furto e roubo, motivo pelo qual decidiram encetar uma fuga quando foram intercetados por uma brigada da GNR. Após o acidente os agentes da autoridade vieram a apreender objetos e ferramentas que se encontravam no interior do veículo e que eram utilizados pelos ocupantes do veículo na execução daqueles crimes. O veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução dessas atividades ilícitas, pelo que todos os membros que compunham o grupo tinham interesse na circulação daquele e dela retiravam vantagens económicas.

O A. respondeu, mantendo a versão apresentada na petição inicial.


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Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade do R. CC.

Foram elaborados temas da prova.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais.

Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, absolvendo o R. CC dos pedidos contra si deduzidos e condenando solidariamente os RR. BB e o Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao A.:

a) € 180.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação até pagamento;

b) € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença, até pagamento.


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Inconformado, o Fundo de Garantia Automóvel interpôs o presente recurso, finalizando com as conclusões que em seguida se transcrevem.

i. Do Auto de Notícia constante dos autos, elaborado pelo Órgão de Polícia Criminal DD, Guarda n.º ...15, resultam explícitas as circunstâncias em que o acidente em crise nos presentes autos ocorreu e os factos apurados nessa decorrência, designadamente que a viatura na qual o Autor circulava foi avistada pelo Guarda DD e pelo Guarda EE, que se encontravam a fazer uma ronda na área em virtude da ocorrência de uma série de furtos e roubos durante o período noturno, tendo sido considerada suspeita, por se encontrarem quatro indivíduos dentro de um veículo já em estado degradado e com a pintura gasta.

ii. O acidente de viação dá-se em virtude de um despiste ocorrido pelo facto de o condutor e ocupantes do veículo LI se terem colocado em fuga na sequência da ordem de imobilização da viatura pela GNR.

iii. Resulta indubitável do Auto em apreço que os ocupantes da viatura se encontravam, à data, sobejamente referenciados por vários ilícitos criminais, entre os quais crimes contra o património, sendo que designadamente, quanto ao autor, é expressamente mencionado que o mesmo está referenciado por vários crimes contra o património e contra a propriedade.

iv. É facto indubitavelmente demonstrado que na viatura em apreço foram encontrados e apreendidos uma série de objetos que encontram conexão direta com a onda de furtos e roubos que ocorriam naquela zona, à época, perpetrados por quatro indivíduos com as mesmas características dos ocupantes da viatura LI, ocupantes esses que já se encontravam devidamente referenciados pelas autoridades, sendo já conhecidos pelas mesmas pela prática de ilícitos criminais.

v. Após este acidente aqueles furtos e roubos cessaram.

vi. Os ocupantes do veículo eram conhecidos como sendo um grupo de amigos, sendo que se deslocavam juntos e atuavam juntos na prática de ilícitos criminais.

vii. Avaliando a prova documental junta aos autos e os testemunhos produzidos, bem como, especificamente, o requerimento e Declaração apresentados pelo réu BB em 15-02-2023, do qual resulta claro que existe uma combinação entre este e o Autor para partilha da indemnização arbitrada no âmbito deste processo, não poderá o FGA conformar-se com a procedência da presente ação e o sucesso de um conluio no sentido de defraudar a sua verdadeira missão e funções, o que redundaria numa tremenda injustiça e na abertura de um perigoso precedente.

viii. Ficou cabalmente demonstrada a natureza da relação entre os ocupantes do veículo bem como o uso dado ao mesmo e, consequentemente, a total contribuição do próprio autor para a produção dos danos.

ix. Resultou cabalmente demonstrado quer do teor do Auto de Notícia juntos aos autos, quer dos depoimentos prestados e supra transcritos dos GNR EE, DD e FF que todos os ocupantes do veículo se dedicavam à prática de ilícitos criminais, em grupo, e usando a viatura em apreço, onde foram encontrados objetos correspondentes a variadíssimos desses ilícitos.

x. Devem ser considerados provados os factos descritos na sentença como matéria de facto não provada sob as alíneas f) g) e h);

xi. Ademais, tal decorre do depoimento transcrito do réu BB e das testemunhas GG, FF, DD e EE;

xii. Todos os ocupantes do veículo detinham a direção efetiva do mesmo, pelo que logicamente todos tinham conhecimento que a circulação do veículo automóvel em causa não se encontrava garantida por qualquer contrato de seguro, pelo que os danos corporais sofridos pelo Autor estão inelutavelmente excluídos da garantia do FGA, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do artigo 52.º do Dec. Lei n.º 291/2017, de 21 de agosto;

xiii. Ainda que assim não se considerasse, sempre cumpre referir que a própria conduta do Autor, enquanto beneficiário da circulação da viatura para perpretação, em grupo, de atividade criminosa, contribuiu de forma decisiva para a produção dos danos em, no mínimo 90%, o que haverá de ser atendido para efeitos do disposto no artigo 570.º do Código Civil.

xiv. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 52.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto e 570.º do Código Civil.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. muito doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente ser a sentença recorrida revogada e sendo o FGA absolvido do pedido ou, sem conceder, sem a indemnização arbitrada reduzida em, no mínimo, 90% ao abrigo do disposto no artigo 570.º do Código Civil.

Decidindo deste modo, farão V. Exas., aliás como sempre, um ato da mais elementar Justiça!

O A. contra-alegou. Invocou que o R. não respeitou o ónus da impugnação da matéria de facto e pugnou pela manutenção da sentença recorrida.


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II - Questões a dirimir

A - Da reapreciação de matéria de facto

B - Da repercussão da reapreciação da decisão da matéria de facto na subsunção jurídica - se se mostram reunidos os pressupostos da responsabilização do R. Fundo de Garantia Automóvel:

a - do direito do A. a ver-se indemnizado pelo R. Fundo por o responsável conhecido não beneficiar de seguro válido e eficaz;

b - se se verifica a existência de um ato culposo do A. que haja concorrido para a produção ou agravamento dos danos;

c - se o direito do A. à indemnização deve ser travado por abuso do direito.


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III - Fundamentação de facto (constante da sentença)

1 - O ora R. BB foi condenado, por sentença proferida a 15/11/2018, no processo comum singular n.º …., transitada em julgado a 17/12/2018, pela prática, como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 14.º, n.º 1, 15.º, b), 26.º, 1.ª proposição, e 291.º, 1, b), e 2, todos do C. Penal, na pena de 10 meses de prisão, pena esta cuja execução foi suspensa pelo período de um ano, mediante sujeição a regime de prova - fls. 112/121 (A).

2 - Na sentença proferida no processo comum singular n.º … foram dados como provados (além do mais que não interessa reproduzir) os seguintes factos:

1. No dia 29 de março de 2017, pelas 02,10 horas, no cruzamento da Rua ..., na freguesia ..., ..., o arguido BB conduzia o veículo automóvel ligeiro de marca ..., matrícula ..-..-LI, seguindo consigo no interior do automóvel os passageiros HH, II e AA.

2. No mesmo momento, aproximou-se daquele cruzamento um automóvel da GNR, devidamente caracterizado, conduzido pelo Guarda DD, acompanhado pelo Guarda EE.

3. O automóvel conduzido pelo arguido iniciou a sua marcha na direção de ..., seguindo na sua retaguarda o automóvel da GNR.

4. Após cerca de 300 metros, o veículo da GNR acionou os sinais de emergência rotativos, com vista à imobilização da viatura conduzida pelo arguido, mais tendo efetuado pelo menos dois sinais sonoros.

5. Nessa altura, o arguido passou a assumir um comportamento inconstante na condução do veículo, tanto abrandando a marcha a dar impressão de que iria parar, como acelerando a velocidade.

6. Ato contínuo, o arguido acelerou de forma brusca o automóvel que conduzia, virou repentinamente à direita, entrando na EN ...33, e de imediato foi seguido pelo automóvel da GNR.

7. O veículo conduzido pelo arguido circulou então durante sensivelmente um quilómetro, em velocidade concretamente não determinada, mas não inferior a 120 km/hora, numa zona onde a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora.

8. Ao efetuar uma curva apertada à direita, de reduzida visibilidade, o automóvel conduzido pelo arguido despistou-se e embateu frontalmente contra o muro da residência propriedade de JJ, imobilizando-se de imediato.

9. Como consequência da colisão, o ocupante HH foi projetado para o pavimento e os demais passageiros ficaram retidos no interior do automóvel, tendo os mesmos sofrido as seguintes lesões, que necessitaram de tratamento hospitalar:

- II: lesão no eixo sagital da face à direita, com necessidade de sutura; lesão na região frontal direita, com necessidade de sutura; lesão na coxa esquerda; fratura da linha média da mandíbula, com deslocamento antero-posterior; fratura com desalinhamento do arco zigomático direito, atingindo também as paredes do seio maxilar desse lado e o pavimento orbitário;

- HH: lesão na região frontal direita, com cerca de 3 cm e necessidade de sutura; lesão na região frontal esquerda, com cerca de 2 cm e necessidade de sutura; lesão na região occipital à direita; hematoma epicraniano frontal com predomínio direito e extensão periorbitária e malar desse lado;

- AA: fratura exposta do antebraço esquerdo; escoriação do joelho esquerdo; lesão mesencefálica e do globo ocular.

10. Devido aos ferimentos sofridos, todos os passageiros foram transportados ao hospital, sendo HH e II concretamente ao “CHBV, EPE”.

11. O arguido sabia que não podia conduzir naquela via pública à velocidade a que seguia, por dessa forma poder colocar em perigo a vida ou integridade física de passageiros do seu veículo ou de outros utentes da via, assim como de bens patrimoniais alheios de valor elevado, perigo esse que apenas por imprevidência não chegou sequer a representar;

12. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sem usar do cuidado que lhe era exigível e de que era capaz.

13. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

25. Possui as seguintes condenações:

- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 24 de janeiro de 2006, pelo qual foi condenado na pena de 120 dias de multa, por decisão proferida no PS n.º ..., do 2.º Juízo Criminal de S. M. Feira, transitada em julgado em 8 de fevereiro de 2006;

- Um crime de furto qualificado, praticado em 7 de janeiro de 2008, pelo qual foi condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, por decisão proferida no PCC n.º ..., da 2.ª Vara Mista de V. N. Gaia, transitada em julgado em 12 de março de 2009;

- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 15 de abril de 2013, pelo qual foi condenado na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, por decisão proferida no PS n.º ..., do 2.º Juízo Criminal de S. M. Feira, transitada em julgado em 15 de maio de 2013;

- Um crime de dano, praticado em 14 de junho de 2013, pelo qual foi condenado na pena de 150 dias de multa, por decisão proferida no P. Sumaríssimo n.º ..., do 1.º Juízo Criminal de Oliveira de Azeméis, transitada em julgado em 30 de janeiro de 2014;

- Um crime de consumo de estupefacientes, praticado em 25 de janeiro de 2013, pelo qual foi condenado na pena de 40 dias de multa, por decisão proferida no PCC n.º ..., da Instância Central Criminal do Porto - J11, transitada em julgado em 5 de março de 2015;

- Um crime de burla, praticado em 22 de dezembro de 2014, pelo qual foi condenado na pena de 9 meses de prisão, substituída por 270 horas de PTFC, por decisão proferida no PCS nº ..., da Instância Local Criminal de Coimbra - J2, transitada em julgado em 13 de fevereiro de 2017;

- Um crime de desobediência, praticado em 28 de maio de 2015, pelo qual foi condenado na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, por decisão proferida no PCS nº ..., da Instância Local Criminal de V. N. Gaia - J1, transitada em julgado em 24 de abril de 2017;

- Um crime de detenção de arma proibida, praticado em 14 de julho de 2014, pelo qual foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, por decisão proferida no PCS nº ..., da Instância Local Criminal de V. N. Gaia - J4, transitada em julgado em 10 de julho de 2017;

- Um crime de falsas declarações, praticado em 16 de dezembro de 2014, pelo qual foi condenado na pena de 60 dias de multa, por decisão proferida no P. Sumaríssimo n.º ..., da Instância Local Criminal de V. N. Gaia - J2, transitada em julgado em 22 de fevereiro de 2018 (B).

3 - O veículo de marca ... e matrícula ..-..-LI encontra-se registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome do ora R. CC desde 15/06/2015 - fls. 37 (C).

4 - O veículo de matrícula ..-..-LI circulava no dia 29/03/2017 sem beneficiar de seguro automóvel válido e eficaz (D).

5 – O A., AA, nasceu a ../../1992 – fls. 259.

6 – O A., após o acidente, foi conduzido, de urgência, para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), tendo sido admitido no Serviço de Urgência pelas 05,39 horas do dia 29/03/2017.

7 – Da documentação clínica do CHUC consta:

"(...) Cirurgia. Politraumatizado. Acidente de viação (lugar pendura). Apresentava anisocoria, estado de consciência flutuante e crise convulsiva tendo sido entubado e ventilado no local. # exposta do MSE # arcos costais à direita (...) A: Entubado e ventilado. Via aérea patente com proteção cervical. B: Sem desvio aparente da traqueia, diminuição da expansibilidade torácica à direita. Percussão parenquimatosa. AP: MV + simétrico, bilateralmente. SaO2 (aa): 100%. C: Palidez cutânea. Hemodinamicamente estável (TA 107/64 mmHg; FC 87 bpm); Pulso regular. Tempo de perfusão capilar discretamente aumentado. Abdómen mole e depressível. # exposta do MSE e escoriação anterior do joelho esquerdo. Sem sinais de instabilidade pélvica à compressão L-L ou A-P. Escoriação frontal sob o couro cabeludo. Hematoma peri-orbitário direito e aparentemente retro-ocular. D: EG 6-8, anisocoria, sem sinais de lateralização motora. E: Sem hipotermia, sem lesões aparentes de qualquer outra parte anatómica. Sem lesões perineais. (...).Ortopedia. Doente vítima de acidente de viação. Do ponto de vista ortopédico, apresenta # exposta do antebraço esquerdo grau II gustilo-anderson e escoriação do joelho esquerdo. (...).

Medicina intensiva. Politraumatizado (...). No local teria escala de Glasgow de 15 com mobilização dos membros (...) RX tórax e TAC tórax sem evidência de hemopneumotorax ou fratura de costelas. ECOfast não mostra derrame peritoneal. Bacia, coluna dorsal e lombar aparentemente sem lesões. Cervical sem lesões. TC CE com suspeita de lesão axonal difusa. (...).

Neurocirurgia (...) Ao EO: sedado e ventilado. Colar de Philadelphia. Anisocoria OD>OE. TC-CE: Pequenas coleções hemorrágicas dispersas, nomeadamente mesencefálicas e alta convexidade. Sulcos patentes, sem estigmas de edema cerebral. Proptose do globo ocular direito. TC cervical sem aparentes fraturas. Plano: De momento sem necessidade de terapêutica neurocirúrgica. Anisocoria em relação com provável lesão mesencefálica e/ou lesão do globo ocular. (...).

Medicina Intensiva» Vai ao bloco pela ortopedia e posteriormente será internado no SMI.

Oftalmologia (...) Anisocoria poderá ser explicada por lesão axonal e hipotropia ligeira do OD por possível fratura do pavimento da órbita. (...).

Ortopedia» Doente com # exposta dos ossos do antebraço esquerdo. Para tratamento cirúrgico (...).

Alta em 29/03/2017 pelas 08h30 para o Serviço de Internamento.

8 - Da documentação clínica do Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga (CHEDV) consta:

- Relatório de Alta - Serviço de Ortopedia e Traumatologia.

Data de admissão 07/04/2017 e data de alta 10/04/2017

"Doente internado no CHUC Coimbra em 29/03/2017 (onde esteve internado até dia 7 de abril (...). Vítima de politraumatismo com TCE em contexto de acidente de viação de que resultou fratura dos ossos do antebraço esquerdo. Foi intervencionado em Coimbra onde foi submetido a desbridamento cirúrgico e osteossíntese de fratura dos ossos do antebraço esquerdo. No dia 07/04/2017 foi transferido erradamente para o Hospital .... Internado nesta instituição de 07 a 10.04.2017 para vigilância, por ser área de residência do utente. (...)

- Consulta de Ortopedia.

08/05/2017 - "Fratura dos ossos do antebraço esquerdo operada a 28 03 (desbridamento e osteossíntese com placa e parafusos). Défice marcado nos movimentos dos dedos da mão esquerda. Clinicamente alterações sugestivas de lesão do nervo mediano. Cicatrizes bem (...)".

03/07/2017 - "Queixas dolorosas ocasionais. Iniciou fisioterapia há 2 semanas. Sente-se a melhorar. EMG - muito severa lesão radial esquerda, mediano esquerdo (incompleta). Lesão acentuada do nervo cubital. Mantém fisio. (...)".

11/12/2017 - "Mantém queixas dolorosas no punho e mão esquerda. Parestesias nos dedos da mão e marcadas alterações da sensibilidade (mais marcada do mediano). Flexão preservada nos 4.º e 5.º dedos. Deformidade em flexão de D2 e D3. Pouco melhor com fisio. (...)".

- Relatório Médico - Neurologia - fevereiro de 2018

"Jovem de 25 anos, avaliado por mim aquando do internamento no S. Ortopedia em abril de 2017 e, posteriormente, em Consulta Externa em Maio do mesmo ano. Faltou à consulta agendada bem como aos exames auxiliares de diagnóstico solicitados (RM Coluna Cervical e Plexo Braquial + EMG/VC) e à consulta de Medicina Física e Reabilitação. Assim, transcrevo as minhas notas da consulta de maio de 2017 (...) Jovem de 24 anos de idade. Teve acidente de viação em abril deste ano, com TCE e com fratura do rádio e do cúbito esquerdos. Inicialmente assistido no CHUC, onde foi submetido a cirurgia ortopédica ao antebraço esquerdo. Transferido para ao A. Ortopedia do CHEDV (...) Observado no internamento, por alterações cognitivas e ataxia. Transcreve-se a avaliação dessa data: "Sentado no cadeirão, colaborante e orientado no espaço. Não se lembra do acidente, nem da cronologia exata dos acontecimentos até hoje mas reconhece a cirurgia ao antebraço e fornece dados da anamnese. Diz estar assintomático agora. Não tem alterações da linguagem nem hemianópsia. Ao exame dos pares cranianos: discreta anisocoria por maior diâmetro da pupila direita (sem ptose mas talvez com uma discreta limitação da supraversão do olho direito) + sugestão de parésia facial direita, central, involuntária; sem qualquer outra alteração, nomeadamente diplopia, aprésia de pares cranianos mais baixos. Sem défices motores. Sugestão de dismetria na prova dedo-nariz-dedo à direita (à esquerda é impossível de avaliar pela limitação ortopédica atual). Marcha com base alargada." Por suspeita de Lesão Axonal Difusa fez RM CE após a alta, cujo resultado se transcreve: "coleções subdurais frontais anteriores bilaterais, mais extensa à direita, onde apresenta cerca de 10 mm (5 mm de espessuara, à esquerda) (...) sugerindo hematomas subdurais crónicos, em relação com os antecedentes traumáticos conhecidos. Condicionam atenuação do parenquima subjacente, mas sem desvio das estruturas da linha média. Admite-se descontinuidade óssea na região frontal anterior à direita (orifício de trépano?). Observa-se provável contusão no pedúnculo cerebral esquerdo, vertente lateral (...) sugerindo componente hemático. Existe ainda contusão hemorrágica subcortical frontal esquerda, pericentimetrica, sem efeito de massa associado. (...) múltiplos focos de hipossinal dispersos na substância branca subcortical frontal, bilateralmente e mais escassos na região temporal direita e na vertente anterior e medial do pedúnculo cerebral esquerdo, sugerindo hemorragias petequiais, evocando lesão axonal difusa/múltiplos focos contusionais. O sistema ventricular tem dimensões normais, sem evidência de hidrocefalia." Atualmente: Muito melhor do ponto de vista cognitivo e sem ataxia da marcha. Persistem queixas de diplopia e de dormência do hemicorpo direito. Retirou gesso e apresenta hipoestesia nos 3 dedos (polegar, 1º e 2º dedo) da mão esquerda. Limitação na extensão do punho, nos movimentos de oponência do polegar e sugestão de atrofia da eminência tenar. Reflexos: abolido o C6. Impressão: - não se confirma a lesão axonal difusa; tem alguns focos de contusão que justificam as queixas de diplopia e de dormência do hemicorpo direito, neste momento sem necessidade de reabilitação cognitiva. - perda de função da mão, com possível dano neurológico que só agora é possível avaliar (estava com gesso) - peço RMN Cervical (raízes) e do plexo braquial esquerdo + EMG/VC".

- Registos de Consulta:

MFR 21/08/2017 – “Melhoria parcial. Já não refere dor. EO: Cotovelo: -5/130º. Mantém restantes alterações. Fez EMG: muito severa lesão incompleta do radial esquerdo + muito severa mas incompleta lesão do nervo mediano + lesão acentuada mas comparativamente mais moderada do nervo cubital. Plano: continua reabilitação”. MFR 26/10/2017 – “Tem faltado aos tratamentos, recusou fazer a tala prescrita. EO: Rigidez acentuada do punho, 3º, 4º e 5º dedos (…)”.

Neurologia 30/11/2018 – “# Sequelas de TCE e de lesão de nervos periféricos do MS esquerdo. O 2º EMG confirmou a lesão grave do radial, mediano e cubital do MS esquerdo. (…) Sem mais a propor por Neurologia uma vez que as sequelas cognitivas estão muito melhoradas, espontaneamente”.

Ortopedia 26/11/2018 - “Mantém marcada deformidade e impotência funcional da mão esquerda (…).

9 - O A. apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.

10 - O A. apresenta as seguintes sequelas relacionáveis com o acidente dos autos:

- Membro superior esquerdo: cicatriz com 19cm na face antero-lateral do antebraço. Cicatriz com 15cm na face posterior do antebraço. Cicatriz com 1.5cm na face anterior do terço médio do antebraço. Cicatriz com 5cm na face anterior do punho. Perda marcada de massa muscular no braço e antebraço. Hipossensibilidade e sensação de parestesias ao toque do antebraço e mão. Dor na palpação das regiões cicatriciais. Mobilidade dos ombro e cotovelo mantidos. Rotação interna da metade inferior do antebraço. Punho em flexão de 40º. Amplitude de movimento ativo do punho de 5º. Todos os dedos em flexão. Quarto e quinto dedos com flexão e extensão possíveis, estando a extensão limitada nos últimos graus. Primeiro dedo em extensão, com amplitude de movimentos residual. Segundo e terceiro dedos com articulação metacarpofalangica em extensão e interfalângicas em flexão com amplitude de movimentos residual. Diminuição da força muscular do antebraço, punho e mão.

- Membro inferior esquerdo: cicatriz com 3cm por 2cm na face medial do joelho.

11 – A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15/05/2019.

12 – O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 13 dias (entre 29/03/2017 e 10/04/2017).

13 – O período de défice funcional temporário parcial é fixável em 765 dias (entre 11/04/2027 e 15/05/2019).

14 – O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 778 dias (entre 29/03/2017 e 15/05/2019).

15 – O quantum doloris é fixável no grau 5/7.

16 - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 36 pontos.

17 – É de perspetivar a existência de dano futuro, por ser certa a perda funcional do pouco movimento ainda presente e a necessidade de correção posicional através de cirurgia.

18 – As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

19 – Dano estético permanente: é fixável no grau 4/7.

20 – Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7.

21 - Repercussão permanente na atividade sexual: é fixável no grau 2/7.

22 – Dependências permanentes de ajudas: ajuda de terceira pessoa para atividades que necessitem impreterivelmente da mão esquerda ou do uso das duas mãos, como, por exemplo, vestir/despir, apertar cordões, alimentação.

23 – Do atestado médico de incapacidade multiuso junto a fls. 51, datado de 15/05/2019, consta que o ora A. é portador de incapacidade que lhe confere uma incapacidade permanente global de 62,23%.

24 – O A. trabalhou durante um curto período de tempo como jardineiro.

25 – O A. gozava, à data do acidente, de boa saúde.

26 – As lesões que sofreu no acidente causaram-lhe e causam-lhe, pela deficiência de que ficou a padecer, uma profunda e enorme tristeza e dor, bem como um permanente sentimento de revolta e frustração.

27 – E sente-se profundamente desgostoso por ver o seu corpo deformado.

28 – O acidente provocou no A. medo e angústia.

29 – E teve incómodos e muitas dores com os transportes para os hospitais e os diversos tratamentos médico-cirúrgicos a que teve de ser submetido.

30 – Durante todo o longo período de incapacidade, o A. sentiu medo e sentiu-se angustiado atentas as dores inerentes às lesões que sofreu e às intervenções e tratamentos a que foi sujeito.

31 – Sentiu e sente grande ansiedade, fácil irritabilidade e angústia não só pelas dores, mas também pela impossibilidade de realizar bastantes gestos e executar inúmeras tarefas.

32 – E de necessitar para muitos atos da vida quotidiana da assistência de terceira pessoa.

33 - Todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI estavam referenciados pela prática de crimes, designadamente contra o património.

34 - Motivo pelo qual, naquele dia e àquela hora, o condutor do veículo de matrícula ..-..-LI decidiu encetar uma fuga quando este veículo foi intercetado por uma brigada da GNR.

35 - Após o acidente, os agentes da autoridade vieram a apreender vários objetos e ferramentas que se encontravam no interior do veículo de matrícula ..-..-LI, que se encontram discriminados no “auto de notícia” junto a fls. 93/97v. e que eram suscetíveis de serem utilizados na execução dos mencionados crimes contra o património.

36 - O R. CC vendeu o veículo automóvel da marca ... com a matrícula ..-..-LI ao co-R. BB em março de 2016.

37 - O co-R. BB celebrou um contrato de seguro com a A..., tendo sido emitida a Apólice n.º AP- ...27, com data de emissão de 20-05-2016, através do qual transferiu para esta seguradora os riscos decorrentes da circulação do veículo com matrícula ..-..-LI

38 - Posteriormente, a 10-02-2017, celebrou novo contrato de seguro, para o mesmo veículo, com a seguradora B..., S.A., tendo sido emitida a Apólice n.º ...38, que se manteve em vigor até 10-03-2017, tendo sido anulado a pedido do segurado BB em 10-03-2017.


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Não se provou que:

a) os passageiros do ..-..-LI – entre os quais o ora A. – advertiram e avisaram o aqui R. BB de que não havia qualquer necessidade de conduzir da forma referida em 2 dos Factos Provados, sendo que este, não obstante, não acatou tais pedidos, prosseguindo a sua marcha, em nada alterando o seu comportamento e/ou conduta;

b) o A., à data do acidente, tinha a profissão de mecânico de automóveis;

c) o A., à data do acidente, vivia de forma alegre e harmoniosa, sendo um jovem feliz e dinâmico;

d) o A. perdeu a vontade de viver;

e) o R. BB conduzia o ..-..-LI com o conhecimento, autorização, sob as ordens, por conta e direção efetiva do R. CC, proprietário de tal viatura;

f) o A. tinha conhecimento de que a circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-LI não se encontrava garantida por qualquer contrato de seguro;

g) todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicavam à prática de ilícitos criminais, designadamente, crimes de furto e roubo;

h) o veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução de todas essas atividades ilícitas, pelo que, todos os membros que compunham esse grupo, tinham interesse na circulação desse veículo e retiravam vantagens económicas dessa circulação.


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IV - Fundamentação jurídica

A - Da reapreciação da matéria de facto

O apelante pretende que se dê como assente a factualidade que foi dada como não provada nas alíneas f), g) e h).

É essa matéria a seguinte:

f) o A. tinha conhecimento de que a circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-LI não se encontrava garantida por qualquer contrato de seguro;

g) todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicavam à prática de ilícitos criminais, designadamente, crimes de furto e roubo;

h) o veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução de todas essas atividades ilícitas, pelo que, todos os membros que compunham esse grupo, tinham interesse na circulação desse veículo e retiravam vantagens económicas dessa circulação.

O apelado considera que o Fundo de Garantia Automóvel não cumpriu os ónus de impugnação por não ter identificado suficientemente os meios de prova em que esteia o seu pedido.

Nos termos do disposto no art.º 639.º/1 do C.P.C. o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto versa o art.º 640.º/1 do C.P.C.. De acordo com este normativo, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O art.º 640.º/2/a) do C.P.C. preceitua que, quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Vem-se entendendo que de acordo com as normas conjugadas dos arts. 635.º/3 a 5 e 639.º/1/2 do C.P.C. são as conclusões que delimitam o objeto do recurso.

António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2022, 7.ª edição, Almedina, pp. 134/135) escreve: em resultado do que consta do art.º 639.º, n.º 1, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ao das exceções, na contestação.

No caso concreto, a recorrente identifica os pontos de facto cuja reapreciação pretende (os pontos f), g) e h) da matéria não assente) e indica a matéria que pretende seja dada como assente. Bem assim, identifica os depoimentos em que se apoia para que se verifique a inflexão da prova por si visada.

Entende-se, assim, mostrarem-se reunidos os requisitos que permitem a reapreciação peticionada.


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Relativamente à alínea f) da matéria dada como não apurada, pugna o apelante por que seja dado como assente que o A. tinha conhecimento de que a circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-LI não se encontrava garantida por qualquer contrato de seguro. O seu requerimento parece estear-se na consideração genérica de que, dadas as circunstâncias do caso concreto, o A. estaria ciente de tal facto.

Entendemos que não assiste razão ao recorrente. Nem o A., nem o R. BB depuseram neste sentido. O A. aduziu simplesmente que não sabia se o veículo tinha ou não seguro. Do contexto em que o veículo circulava não é possível retirar que não dispusesse de seguro. Veja-se que o veículo dispôs de seguro até 10-3-2017, tendo sido anulado a pedido do R. BB nessa data (cf. factos 36, 37 e 38).

Indefere-se, por isso, esta pretensão.

Quanto à alínea g) (todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicavam à prática de ilícitos criminais, designadamente, crimes de furto e roubo) consta do facto assente n.º 33 que todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI estavam referenciados pela prática de crimes, designadamente contra o património. Da conjugação da prova produzida, avultando o depoimento do R. BB, que disse que a profissão do AA (…) era roubar e do esclarecimento de que a declaração do A. no sentido de partilhar eventual indemnização conseguida com a presente ação com o R. BB, conforme requerimento do R. BB de 15-2-2023, foi alcançada quando ambos se encontravam em estabelecimento prisional, no Porto, é notório que o A. era indiciado por crimes de natureza patrimonial. Nada mais, porém, foi feito constar nos autos a este propósito, assinaladamente certificado de registo criminal. Em conformidade, indefere-se o requerido pelo apelante.

No que concerne ao teor da alínea h) da matéria não provada (o veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução de todas essas atividades ilícitas, pelo que todos os membros que compunham esse grupo tinham interesse na circulação desse veículo e retiravam vantagens económicas dessa circulação) não existem elementos concretos nos autos que permitam firmar a convicção no sentido de que era aquele o veículo concretamente utilizado pelo grupo em atividade de índole criminal que em conjunto desenvolvessem. Por outro lado, nada se alcançou acerca do apuramento de vantagens económicas extraídas da respetiva circulação. Não existe, pois, fundamento, para acolher a versão do Fundo.

É, porém, possível retirar da prova produzida, avultando os depoimentos de GG, FF, DD e EE, o modo como A. e R. e os demais ocupantes do veículo na madrugada do sinistro se organizaram entre si.

Do depoimento de GG, que conhece o A., o R. e os demais ocupantes do veículo, do café que habitualmente frequenta, por estes também aí se deslocarem, emergiu que constituem um grupo de amigos.

FF, guarda nacional republicano, depôs no sentido de que existiam quatro indivíduos referenciados numa vaga de furtos da zona passíveis de coincidir com os quatro elementos que se faziam deslocar no veículo sinistrado.

DD, também ele GNR, a propósito da pessoa do A., referiu existir uma listagem de processos referentes a crimes contra o património e a propriedade.

O colega das duas testemunhas antecedentes EE descreveu o modo como se deu a abordagem à viatura e quanto nela foi encontrado.

Cremos ser possível retirar que o A., o R. e os demais ocupantes do veículo constituíam um grupo de amigos que na noite do sinistro se encontrava em área em que vinha ocorrendo uma vaga de crimes contra a propriedade perpetrados por quatro indivíduos com o perfil dos aludidos. Bem assim, que dentro da viatura foi encontrado material adequando à prática de crimes contra à propriedade e que a vaga de criminalidade terminou imediatamente após o sinistro.

Em face do exposto, adita-se à matéria assente os seguintes factos:

Facto 39 - O A., o R. e os demais ocupantes do veículo constituíam um grupo de amigos que na noite do sinistro se encontrava em área em que vinha ocorrendo uma vaga de crimes contra a propriedade, perpetrados por quatro indivíduos com o respetivo perfil.

Facto 40 - No interior da viatura foi encontrado o material descrito no auto de notícia elaborado pela G.N.R., conforme doc. carreado para os autos pelo R. Fundo de Garantia Automóvel, e fotografado conforme doc. 4 junto com a petição inicial, assinaladamente lanternas, luvas, gorro, máscara, alicates, chaves estrela, chaves de fendas, pé de cabra, marretas e ponteiros de pedreiro.

Facto 41 - A vaga de criminalidade existente na zona cessou após o sinistro.

Tendo em atenção que a matéria de facto adquirida deve espelhar de forma tão concreta quanto possível a prova produzida nos autos, atentas todas as soluções plausíveis de direito, adita-se ainda a seguinte factualidade, esteada no doc. que o R. BB fez carrear para os autos por requerimento de 15-2-2023. Na sequência desse requerimento, o A. inteirou os autos de que assinou a declaração em apreço a pedido do co-R. BB, pelo que não restam dúvidas acerca da respetiva autenticidade e autoria.

Assim, nos factos assentes passará a figurar o seguinte:

42 - O A. emitiu declaração, que entregou ao R. BB, com o seguinte teor: AA, B.I. ...66, NIF ...92..., detido no Estabelecimento Prisional ..., declara para todos os devidos e legais efeitos que, na hipótese de receber uma indemnização superior a € 100.000,00 (cem mil euros) no âmbito do P.º …, a correr termos pelo Juiz Central Cível de Aveiro (J1), se compromete a entregar a BB a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), por cheque à ordem deste e emitido por forma a poder ser levantado; na hipótese de a indemnização for inferior àquele valor, a entrega será apenas de 10% do valor recebido, a pagar nos mesmos termos anteriormente referidos.

43 - A declaração termina com a assinatura do A., o local (Porto) e a data, 18-1-2023.


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B - Da reapreciação da matéria jurídica da causa: se se mostram reunidos os pressupostos da responsabilização do R. Fundo de Garantia Automóvel.

a - Do direito do A. a ver-se indemnizado pelo R. Fundo por o responsável conhecido não beneficiar de seguro válido e eficaz;

Está em causa a responsabilidade do R. Fundo de Garantia Automóvel.

Dispõe o art.º 62.º/1 da Lei do Seguro Obrigatório (aprovado pelo decreto-lei 291/2007, de 21-8-2007), sob a epígrafe legitimidade, que as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.

A sentença recorrida, no essencial, considerou o R. Fundo responsável pelo pagamento da indemnização fixada ao A. na sequência de acidente de viação em que seguia como passageiro em veículo relativamente ao qual a responsabilidade inerente à sua circulação não havia sido transferida através de contrato de seguro válido e eficaz.

O decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio (5.ª Diretiva sobre o seguro automóvel) e, à semelhança do que já ocorria na vigência do decreto-lei 522/85, de 31 de dezembro, impõe a obrigatoriedade de seguro que cubra os riscos decorrentes da circulação de veículos automóveis.

No respetivo preâmbulo consignou-se: o vetor do aumento da proteção dos lesados de acidentes de viação assegurada pelo sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, adiante designado por sistema SORCA, enforma diversas matérias ao nível de ambos os pilares do sistema (o pilar-seguro obrigatório e o pilar-FGA).

A Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de setembro de 2009 procedeu à codificação das diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, inclusive da aludida Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2 005 (que alterou as Diretivas 72/1 66/CEE, 84 /5/CEE, 88/3 57/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/26/CE relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis).

No considerando 14.º da aludida Diretiva 2009/103/CE prevê-se a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso de o veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado

Nos termos do art.º 47.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto o Fundo garante a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel. E o art.º 48.º/a estabelece que essa responsabilidade compreende as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório, tenha o veículo e estacionamento habitual em Portugal ou matrícula em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros.

O Fundo de Garantia Automóvel tem, pois, por finalidade salvaguardar as indemnizações devidas aos lesados em consequência de acidentes de viação nas situações em que, apesar da obrigatoriedade do seguro, não se mostre viável que uma seguradora responda pelos danos de responsabilidade civil automóvel, seja porque o responsável é desconhecido e, consequentemente, desconhecida a suposta seguradora, seja porque não foi cumprida a obrigação de celebração do seguro.

O Fundo não é, porém, um devedor, mas sim um mero garante do cumprimento da obrigação do responsável civil de reparar os danos causados ao lesado (cf. ac. da Relação de Évora de 20-9-2012, proc. 2444/07.8TBABF.E1, Mata Ribeiro).

Assinala-se esta qualidade diferenciada do R. Fundo, enquanto responsável pelo ressarcimento de danos, pelas consequências que ela possa ter na solução jurídica do caso concreto.

Vejamos a argumentação tecida pelo Fundo em primeira linha com vista a que a sua tese de improcedência da ação no que lhe diz respeito seja acolhida.

O recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel esteia-se, em primeira linha, na asserção segundo a qual o A. tinha conhecimento de que o veículo não dispunha de seguro válido e eficaz. Pediu a reapreciação da prova neste âmbito. Não obteve, porém, sucesso no seu pedido de ver a matéria de facto revertida. É, pois, inatendível a pretensão de exclusão da responsabilidade do Fundo com fundamento no conhecimento pelo lesado da ausência de seguro.


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B - Se se verifica a existência de um ato culposo do A. que haja concorrido para a produção ou agravamento dos danos.

Em segundo lugar, o recorrente pediu que a matéria jurídica da causa fosse reavaliada em função da invocada culpa do A..

Os arts. 503.º a 508.º do Código Civil (C.C.) contêm o essencial do regime da responsabilidade objetiva ocasionada por veículos de circulação terrestre, sendo relevantes para o caso dos autos as normas dos arts. 503.º e 505.º.

Dispõe o art.º 503.º/1 do Código Civil (com a epígrafe acidentes causados por veículos) que aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

E o art.º 505.º (exclusão da responsabilidade) que, sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Preceitua o art.º 570.º/1 do Código Civil, invocado no art.º antecedente, sob a epígrafe culpa do lesado, que quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Ponderemos se a factualidade assente é de molde a que possamos concluir que se verifica a existência de um ato culposo do A. que haja concorrido para a produção ou agravamento dos danos.

Respigamos a factualidade que mais diretamente é suscetível de relevar para a questão:

Facto 33 - Todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI estavam referenciados pela prática de crimes, designadamente contra o património.

Facto 34 - Motivo pelo qual, naquele dia àquela hora, o condutor do veículo de matrícula ..-..-LI decidiu encetar uma fuga quando este veículo foi intercetado por uma brigada da GNR.

Facto 35 - Após o acidente, os agentes da autoridade vieram a apreender vários objetos e ferramentas que se encontravam no interior do veículo de matrícula ..-..-LI, que se encontram discriminados no “auto de notícia” junto a fls. 93/97v. e que eram suscetíveis de serem utilizados na execução dos mencionados crimes contra o património.

Facto 39 - O A., o R. e os demais ocupantes do veículo constituíam um grupo de amigos que na noite do sinistro se encontrava em área em que vinha ocorrendo uma vaga de crimes contra a propriedade perpetrados por quatro indivíduos com o perfil dos aludidos.

Facto 40 - A vaga de criminalidade existente na zona terminou imediatamente após o sinistro.

Facto 41 - O A. emitiu declaração, que entregou ao R. BB, com o seguinte teor: AA, B.I. ...66, NIF ...92..., detido no Estabelecimento Prisional ..., declara para todos os devidos e legais efeitos que, na hipótese de receber uma indemnização superior a € 100.000,00 (cem mil euros) no âmbito do P.º …, a correr termos pelo Juiz Central Cível de Aveiro (J1), se compromete a entregar a BB a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), por cheque à ordem deste e emitido por forma a poder ser levantado; na hipótese de a indemnização for inferior àquele valor, a entrega será apenas de 10% do valor recebido, a pagar nos mesmos termos anteriormente referidos.

A tese do apelante funda-se na seguinte perspetiva: o acidente dá-se num contexto de fuga à autoridade policial em que o A. não é o condutor do veículo, mas em que se colocou voluntariamente numa situação propícia à ocorrência do acidente, pelo que teria expressivamente propiciado o mesmo, não podendo ver o seu prejuízo ressarcido ou, pelo menos, integralmente ressarcido.

Procuraremos aprofundar a ideia subjacente a esta proposição.

Não se exclui, obviamente, a responsabilidade do R. BB pela respetiva verificação - o R. foi, aliás, julgado e condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário. Impõe-se, sim, discernir se a conduta do A., no contexto que a rodeia, ao alinhar com o R., e outros companheiros, na descrita situação, aderindo à mesma, concorreu para a produção ou agravamento dos danos.

Subjacente à responsabilidade civil por acidentes de viação está a proteção dos lesados.

Sem embargo, se lesado, consciente do risco e perigo inerentes à sua atuação, contribuir significativamente para o evento lesivo, nos termos do aludido art.º 570.º do C.C., deve ser responsabilizado, podendo a indemnização vir a ser reduzida ou até mesmo totalmente excluída.

Em suma, o fundamento subjacente ao art.º 570.º do C.C. é a autorresponsabilidade do lesado, pois todos temos o dever de cuidar com prudência, zelo, e diligência dos nossos próprios interesses, salvaguardando-os contra potenciais eventos danosos.

Trata-se de fazer apelo a um princípio geral de responsabilidade, que faz impender sobre os agentes jurídicos uma obrigação de prudência e diligência nas suas atuações. Brandão Proença fala de imputação autoresponsabilizante, invocando como ratio deste instituto um princípio valorativo de autorresponsabilidade, princípio elementar de Justiça, configurador de certas consequências para o lesado em face dos prejuízos sofridos, nos quais a sua conduta também constituiu causa contributiva (cf. Proença, José Carlos Brandão, A Conduta do Lesado Como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Coleção Teses, Almedina, p. 101).

No tocante à caracterização da culpa do lesado, e, de um modo particular, à relevância do seu contributo para a produção dos danos, centrada numa ideia de autorresponsabilidade, discorre Brandão Proença (op. cit., p. 417) que haverá que ponderar a autorresponsabilidade do lesado, no sentido de uma imputação das consequências patrimoniais decorrentes de opções livres que tomou e que se revelaram desvantajosas para os seus interesses. E prossegue: não estando, em geral, a conduta do lesado enquadrada em moldes normativos, cremos melhor fundada uma perspetiva que faça imputar ao lesado os efeitos negativos da sua ação contributiva, consista ela em se ter exposto descuidada e injustificadamente ao perigo de sofrer o dano, quer tenha resultado da falta de observância de certas medidas de segurança, cujo cumprimento reduziria ou evitaria o dano. O “desvalor” da conduta não radica pois numa reprovação estrita, mas nesse mero “responder” (na aceção de se suportar as consequências), em maior ou menor medida, e, em primeiro lugar, pelas ações pessoais “culposas”.

Baptista Machado, por sua vez, valora uma culpa que não corresponde a uma negligência censurável, mas a uma espécie de culpa do agente perante si próprio, no sentido de que conscientemente assim se quis conduzir (Baptista Machado, João, R.L.J., ano 118.º, p. 171, col. esquerda).

A propósito da figura da aceitação dos riscos em que o lesado incorreu, Brandão Proença (op. cit., pp. 616 e 617) fala em aceitação tácita de um risco conhecido e compreendido, na assunção de um risco conhecido, criado com violação do duty of care, situada na fronteira com a contributory negligence. O mesmo A. não deixa, porém, de enfatizar a tendência moderna de desculpabilização das culpas ligeiras do lesado (máxime em áreas mais sensíveis) (op. cit., p. 609).

Calvão da Silva (in Revista de Legislação e Jurisprudência, 134.º/115) conclui mesmo que “a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”.

Foi esta esta a solução sustentada no ac. do S.T.J. de 4-10-07 (Santos Bernardino), publicado e comentado na Revista de Legislação e Jurisprudência, 137.º, pp. 35 e ss., em que se assumiu que o texto do art.º 505.º do C.C. deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro.

A questão da responsabilização da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado conduziu à apresentação ao Tribunal de Justiça da União Europeia de processos de reenvio prejudicial pela eventual desconformidade entre o direito nacional regulador da responsabilidade civil automóvel e o regime dimanado das Diretivas Europeias sobre Seguro Automóvel.

O Tribunal de Justiça, no âmbito do Proc. C-409/09, proferiu o acórdão de 9-6-2011, em que concluiu que as Diretivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ).

No caso concreto está em causa a defesa de a circunstância de o A. acompanhar o R. e os demais passageiros do veículo, no contexto em que o fazia, transportando os objetos inventariados, se subsumir à previsão do art.º 570.º/1 do C.C., por estarem em causa atos censuráveis, aos quais é atribuído forte desvalor jurídico, inclusivamente com relevância penal, e que contribuíram ativamente para a produção dos danos.

O A. conhecia o enquadramento em que se fazia transportar, os riscos associados e, se bem que não pudesse prever que naquele dia e hora o veículo seria intercetado por autoridade policial, com os riscos inerentes, não podia deixar de prefigurar que tal pudesse ocorrer. Em resumo, o facto de o A. - e os outros elementos do grupo - se fazerem transportar nas assinaladas circunstâncias teria concorrido de forma decisiva para a produção do dano: a fuga à entidade policial ter-se-ia ficado a dever aos riscos que o A. - como os demais passageiros da viatura - sabiam correr.

Não se nos afigura que esta tese, com as consequências que dela o apelante pretende extrair, seja defensável.

É certo que se tem aprofundado na dogmática entendimento segundo o qual é possível um concurso entre culpa do lesante e risco do veículo, o qual se deve ter por assente nos termos do art.º 505.º, por razões de justiça e por constituir a solução que melhor se coaduna com o nosso ordenamento (cf. Sinde Monteiro, Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil - Da Legislação Europeia sobre o Seguro Automóvel e sua repercussão no regime dos Acidentes Causados por Veículos. A propósito dos Acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE, in RLJ, ano 142.º, n.º 3977, Coimbra: Coimbra Editora, 2012., p. 127).

E é claro que existe uma relação de condicionalidade, na aceção dada por Pereira Coelho (cf. Pereira Coelho, Francisco Manuel, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Coleção Teses, Almedina, pp. 29/30) entre os danos sofridos pelo A. e o facto de acompanhar o R. na viagem de carro que faziam.

Ao cabo e ao resto, se o A. não acompanhasse o R. - e dos factos enunciados é possível concluir, sem ligeireza, que o fazia por motivos tendencialmente censuráveis - não teria sido acidentado.

Não se verifica, todavia, uma relação de adequação entre um e outro dos factos descritos, isto é, o acidente não se dá porque o A. se encontrava dentro do veículo ao lado do condutor R.. A condução perigosa da viatura é causadora do sinistro; já não assim o embarque do A. no veículo. Verifica-se uma relação de condicionalidade na atuação do A., mas não de adequação.

Recorde-se que o art.º 563.º do C.C. consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa, isto é, a inadequação de uma causa para um resultado deriva da sua indiferença para a produção dele, pois que o resultado só ocorre por força de outras circunstâncias. De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.

Ensina-se no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 2-11-2010 (proc. 2290/04 - 0TBBCL.G1. S1, Sebastião Póvoas): a causalidade é de apreciar em duas perspetivas. A naturalística, ou seja, no averiguar se o processo sequencial foi, ou não, fator desencadeador, ou gerador do dano. Trata-se de apurar uma mera relação de causa-efeito, ou seja, no percurso do “iter” causal-naturalístico verificar se a conduta do lesante foi desencadeadora do resultado lesivo. Esta perspetiva naturalística insere-se num plano puramente factual (cf., v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1998, P.º 660/98-2.ª; de 11 de Junho de 2002 – P.º 1810/02, 2.ª; e, desta Conferência, os Acórdãos de 13 de Março de 2008 – 08 A369; e de 17 de Junho de 2008 – 08 A1700). E a (causalidade) legal, resultando da pura aplicação dos princípios do artigo 563.º do Código Civil (cf. Prof. Pereira Coelho, “O nexo de causalidade na responsabilidade civil”, in “Revista de Direito e Estudos Sociais”, VI, 1, 2, 3, 113 e ss., e “A causalidade na responsabilidade civil em direito português”, cit., “R.D Estudos Sociais”, XII, 3, 39 e ss, e 4, 1 ss.) que consagra a teoria da causalidade adequada afirmando “uma ligação positiva, em termos de juízo de probabilidade entre o facto jurídico e o dano.” (Prof. Pessoa Jorge, in “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 413 e nota 374 a citar o Prof. Vaz Serra – BMJ – 100-127, nota 269). (…) disse-se no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2006, deste Coletivo: “Como já se insinuou, o artigo 563.° do Código Civil consagra o princípio da causalidade adequada na sua formulação negativa. E este Supremo Tribunal vem entendendo que ‘o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto’ (cf. ainda os Acórdãos de 4 de Novembro de 2004 - P.° 2855/04-2.ª, de 13 de Janeiro de 2005 - P.° 4063/04-7ª; Prof. A. Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, 10.ª ed, 1, 893, 899, 890/1 - ‘... do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano’).

É a consagração do ensinado por Enneccerus-Lehman, que para o Dr. Ribeiro de Faria, conduz a que ‘a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu ‘pelas referidas circunstâncias excecionais ou extraordinárias’ (apud ‘Direito das Obrigações’, 1, 502) e que o Prof. Almeida Costa diz dever interpretar-se no sentido de que ‘o facto que atua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais sendo que a citada doutrina da causalidade adequada ‘não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano.’ (in ‘Direito das Obrigações’, 632). Parte-se, pois, de uma situação real, posterior ao facto, e até ao dano, e afirma-se que o segundo decorreria daquele perante um desenvolvimento normal, ou seja, o dever de indemnizar existe em relação aos danos que terão provavelmente resultado da lesão. Ou como julgou este Supremo Tribunal ‘a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excecionais ou extraordinárias’ (Acórdão de 20 de Outubro de 2005 - 05B2286). O facto terá de ser, em concreto, ‘conditio sine qua non’ do dano mas também ser, em abstrato, causa normal, ou adequada da sua verificação. E o que a doutrina que o direito Norte-Americano chama de “substantial factor formula.”

Ao menos neste sentido, que é o sentido jurídico que nesta sede cabe enfatizar, não é correto sustentar que a atuação do A., nos termos e para os efeitos do preceituado no art.º 570.º/1 do C.C., contribuiu para a produção ou agravamento dos danos,.

Os danos provenientes do acidente são resultado da ação do R. BB, condução desastrada e imprevidente em fuga à interceção pela G.N.R., e não da presença do A. no veículo, mesmo sendo censurável o contexto em que esta ocorria.

A conduta do A. tampouco quebra o nexo de causalidade adequado entre os riscos inerentes à circulação do veículo e os danos provocados (quebra na aceção do Supremo Tribunal de Justiça no seu ac. de 1-6-2017, proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, Lopes do Rego, em que, assinaladamente, se lê quebrando-se o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, fica afastada a responsabilidade objetiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para seguradora.

Em conclusão, as faltas do lesado não se integram na dinâmica do acidente, pelo que, de um ponto de vista jurídico, aquele de que interessa cuidar, não lhe é de assacar responsabilidade pela ocorrência do mesmo.


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c - Se o direito do A. à indemnização deve ser travado por abuso do direito.

Afastada que está a concorrência do A. para o resultado, persistem várias questões. O A. deve beneficiar da função social e de proteção de terceiros para a qual a figura do Fundo de Garantia Automóvel e as atribuições que lhe são cometidas foram gizadas? Atuará o A. em abuso do direito? O apelo a este instituto neutralizará a pretensão indemnizatória do A.?

Sendo as normas jurídicas gerais e abstratas, nem sempre conduzem diretamente a soluções de justiça e de equidade. É neste contexto que surge o instituto do abuso do direito, figura recondutível ao âmbito mais vasto da boa-fé expressamente prevista no art.º 334.º do C.C..

Segundo o disposto neste artigo, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A boa-fé exprime os valores fundamentais do sistema, que tem exigências que se projetam nos direitos subjetivos. O desrespeito por essas exigências dá azo ao abuso do direito. Não se pretende cometer ao juiz, para além da função jurisdicional, uma função ética ou política, mas remeter para o ordenamento jurídico de um ponto de vista sistemático

A propósito do art.º 334.º do .C.C., escreve Menezes Cordeiro (Cordeiro, António Menezes, Da Boa-Fé, vol. II, Coimbra, Almedina, pp. 661 e 662) que há a considerar "(...) três áreas atinentes à previsão; em causa ficam limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dos direitos (...) o sujeito exerce um direito - move-se dentro de uma permissão normativa de aproveitamento específico -, o que, já por si, implica a incidência de realidades normativas e deve, além disso, observar os limites impostos pelos três fatores acima isolados, dos quais um, a boa-fé".

A lei emprega conceitos indeterminados, como sejam a boa-fé, bons costumes, fim social ou económico do direito, para ver alcançados instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, p. 198).

No âmbito da elaboração periférica do exercício da boa-fé, as figuras de comportamento inadmissível mais vulgarmente admitidas são o venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio, a exceptio doli, a inalegabilidade formal, o tu quoque e o exercício em desequilíbrio.

Trata-se de uma válvula de segurança que visa obstar a eventuais injustiças decorrentes do exercício do direito. Ao lado da justiça, encontra-se a paz jurídica como expressão da ideia de direito (Baptista Machado, João, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, p. 346).

O excesso cometido deve ser manifesto, clamoroso, ofensiva do sentido ético-jurídico dominante na coletividade (boa-fé e bons costumes), ou desvirtuar os juízos de valor positivamente nele consagrados (fim social ou económico).

O fim social ou económico do direito convoca uma construção historicamente enquadrada, apelando a uma interpretação que dê valor à dimensão teleológica, fazendo-a preponderar.

Segundo Louis Josserand, seria necessário, para um exercício legítimo dos direitos subjetivos, respeitar a função que justificara a atribuição (De l’Esprit et de leur Relativité. Theórie de l’abus des droits, 2.ª ed., 1939, pp. 312 ss., 364 ss. e 388, citado por António Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas, https://www.oa.pt/conteudos/artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=45614).

Prossegue Menezes Cordeiro, no artigo que se vem de citar: cedo, porém, a meditação científica revelaria que a busca da função dos direitos mais não fazia do que encobrir a necessidade de proceder a uma interpretação mais cuidada das normas jurídicas envolvidas. Pois bem: superada a fase puramente exegética da interpretação e vincada a existência de elementos teleológicos no apuramento das normas jurídicas, ficava satisfeita a necessidade fundamental que ditara, nesta fase, o sucesso da teoria do abuso do direito.

Não oferece dúvidas que o Fundo de Garantia Automóvel, no âmbito daquilo de que ora importa cuidar, tem como propósito fundador a proteção dos lesados em acidente de viação que não possam obter o ressarcimento dos seus prejuízos junto de seguradora.

Filipe Albuquerque Matos (in O Fundo de Garantia Automóvel. Um Organismo com uma Vocação Eminentemente Social, Revistas da UCP, consultável em Users/MJ01629/Downloads/11507-Artigo-20776-1-10-20220530%20(3).pdf) escreve: - pp. 559, 560: ao admitir-se a ressarcibilidade dos prejuízos sofridos pelos lesados de acidentes de viação nas hipóteses em que o autor do acidente, sendo conhecido, não goza, porém, de seguro válido e eficaz, e naqueloutras de desconhecimento do responsável, assim como nas situações de insolvência das empresas de seguros, podemos, então, constatar que a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel vem assegurar a cobertura de danos, não obstante, as vítimas dos acidentes de viação não poderem reclamar as respetivas indemnizações das companhias seguradoras. Assim sendo, a instituição do Fundo de Garantia Automóvel representa inevitavelmente um marco significativo no processo de socialização do risco, já antes iniciado com a admissibilidade em vários domínios da atividade socioeconómica da responsabilidade objetiva;

- p. 561: apenas quando a comunidade de riscos - seguradora para a qual o responsável (definido de acordo com as regras substantivas da responsabilidade civil) tenha transferido, ex contractu, a obrigação de indemnizar que sobre si eventualmente recaia não intervenha, é que se abre a possibilidade ao lesado de acionar o Fundo de Garantia Automóvel. Razão por que relativamente à atuação desta entidade se pode afirmar com maior intensidade a característica da independência da sua posição face às regras da responsabilidade civil;

- p. 564): (…) o Fundo de Garantia Automóvel é uma entidade que desde o momento da sua instituição foi caracterizada pela sua vocação eminentemente social. Basta ter em conta o âmbito material da sua intervenção - acidentes causados por responsável conhecido que não beneficie de seguro válido e eficaz, bem como os provocados por autor desconhecido, e ainda as situações de insolvência das seguradoras -, para concluirmos que o objetivo fundamental da atuação do Fundo se traduz na proteção dos terceiros lesados pelos acidentes de viação ocorridos nas situações mencionadas;

- p. 574: A mesma linha de rumo perpassa na exclusão prevista na al. b) do n.º 2 do art.º 52.º - danos causados aos passageiros que voluntariamente se encontrassem no veículo causador do acidente, sempre que o Fundo prove que tinham conhecimento de que o veículo não estava seguro. Nesta hipótese, para além da intenção de intensificar a segurança rodoviária, resulta ainda manifesto o objetivo de reagir contra quem se colocou numa posição de assunção voluntária do risco. Sem querer entrar aqui na problemática de apurar se o pedido de indemnização pelo lesado nestas situações poderia configurar um autêntico venire contra factum proprium, atentas as dificuldades decorrentes da interferência regulativa da boa-fé se afirmar nas relações intersubjetivas, certo é que podemos detetar aqui um afloramento de uma reação contra a culpa do lesado, centrada numa ideia de auto-responsabilidade deste.

Castanheira Neves (Neves, António Castanheira, Questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da jurisdicidade (Ensaio de uma reposição crítica) I - A crise (1967), 524) considera abuso do direito o comportamento que não contrariando a estrutura formal-definidora de um direito “…viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado…”

E prossegue dizendo que as cláusulas gerais (boa-fé, bons costumes) constituem afloramentos dos princípios do direito justo - princípios que valem para além e com independência de toda e qualquer prescrição positiva, como expressões que são da própria Ideia de Direito (ibidem, 529).

Através do abuso, a ordem jurídica reage aí (…), à injustiça da situação de facto que se produziria em virtude um comportamento inconsequente (Frada, Manuel A. Carneiro da, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 861).

Cremos ser acertado afirmar que ocorre abuso do direito se o detentor de um determinado direito, previsto no ordenamento jurídico, o exercita desenquadrado da razão que levou o legislador e prevê-lo.

Será ainda correto concluir que é o que se verifica no caso concreto. O A., lesado em acidente de viação em que o veículo causador daquele não dispunha de seguro válido, pretende exercer o direito a ver-se indemnizado em situação em que seguia na viatura acompanhado por um grupo de amigos, todos eles referenciados como suspeitos numa vaga de assaltos que vinham sucedendo na zona em que circulavam. Ademais, transportavam no veículo uma plêiade de apetrechos adequados a perpetrar crimes contra o património. E é ao serem desrespeitadas as ordens legítimas de paragem com origem na autoridade policial, que circulava em carro devidamente caraterizado, no contexto de condução perigosa e na fuga à perseguição policial, que o A. sofre os danos cuja reparação visa através da presente ação.

Assinala-se ainda que o A. se propôs mesmo partilhar, nas condições que bem explicitou na declaração que entregou ao R. BB, também por si demandado, a indemnização que viesse a perceber. Tal pacto é altamente indiciador do nível de entendimento pelo menos daqueles dois ocupantes do veículo e da aceitação pelo A. do risco em que se viu envolvido no contexto assinalado e de que o R. conduzisse da forma perigosa em que o fez.

No caso concreto, o exercício do direito à reparação operaria, a ser acomodado, à margem do seu objetivo natural e da razão que presidiu à existência de legislação nesse sentido, contrariando, quanto a nós ostensivamente, o pulsar jurídico dominante. Face às específicas circunstâncias verificadas, o acolhimento da pretensão do A., ainda que emergente do exercício de um direito legalmente conferido, conduziria a uma situação de injustiça chocante e reprovável para o sentimento ético-jurídico comummente aceite e partilhado na comunidade.

É, por isso, de julgar a presente apelação totalmente procedente, revogando-se a sentença proferida na parte sob recurso.


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V - Dispositivo

Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte recorrida, absolvendo-se o R. Fundo de Garantia Automóvel da totalidade do pedido.


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Custas pelo apelado, por o R. Fundo de Garantia Automóvel ter obtido inteiro vencimento na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).

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Porto, 25.11.2024.

Teresa Fonseca

Ana Olívia Loureiro

Fernanda Almeida