Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JUDITE PIRES | ||
| Descritores: | NEGÓCIO JURÍDICO EXTERIORIZAÇÃO DA VONTADE DAS PARTES DIVERGÊNCIA NÃO INTENCIONAL ERRO NA DECLARAÇÃO/ERRO OBSTÁCULO ERRO DE ESCRITA/ERRO DE CÁLCULO RETIFICAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RP202206081163/20.4T8MTS.P1 | ||
| Data do Acordão: | 06/08/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Constituindo o negócio jurídico manifestação da autonomia privada, traduzindo a vontade das partes, esta deve exteriorizar-se, por meio de declaração, para que possa produzir os efeitos que as partes visaram com a sua celebração. II - Deve, por regra, existir coincidência entre o elemento externo da vontade ou vontade declarada e o seu elemento interno ou vontade real. III - Uma das manifestações da divergência não intencional constitui o erro na declaração ou erro obstáculo. IV - No erro na declaração existe uma desconformidade entre o que a pessoa quer e o que declara, ao contrário do erro - vício, em que a pessoa declara o que quer, mas que não teria aceite o que quis e declarou se não fosse o erro que afectou o processo gestativo da sua vontade. V - A declaração negocial é, neste caso, anulável. VI - Padecendo a declaração negocial de erro material, de escrita ou de cálculo, a mesma é passível de rectificação. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1163/20.4T8MTS.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 3 Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I.RELATÓRIO. 1. AA propôs contra BB, CC, DD e marido, EE, e FF e mulher, GG, acção declarativa de condenação na forma de processo comum. Alega que, por escritura outorgada em 16.11.2016, a autora, com reserva de usufruto para si, cedeu aos quartos réus, seu filho e nora, a meação nos bens comuns do casal formado por ela e pelo seu falecido marido HH, e o quinhão hereditário que lhe pertence na herança aberta por óbito deste. E que nessa mesma escritura, os 1º, 2º e a 3ª ré mulher, cederam aos quartos réus, seu irmão e cunhada, os quinhões hereditários que lhes pertenciam na herança aberta por óbito de seu Pai, HH. Mais alega que autora e todos os réus, por lapso de transmissão ao notário, não verteram na escritura a vontade que tinham, naquele dia 16.11.2016, não tendo ficado a constar da mesma que todas as cessões efectuadas o foram no pressuposto e condição que os 4º réus tratassem da autora, enquanto viva, na saúde e na doença. Não tendo também ficado a constar, como também acordado, que as cessões dos quinhões hereditário eram efectuadas com reserva de usufruto para a autora. Peticiona, assim, que sejam os réus condenados “a reconhecer que na escritura identificada em 1 a sua vontade, bem como a da autora, foi a de para além do que da escritura consta, a cessão feita pela autora aos quartos réus foi-o sob a condição de estes tratarem da autora, enquanto viva, na saúde e na doença, e que as cessões identificadas em 2 foram efectuadas com reserva de usufruto para a autora, tudo com as legais consequências”. Os quartos réus contestaram. Partindo do pressuposto de que a autora pretende a anulação do negócio em causa, invocam a caducidade desse direito. Mais se defendem por impugnação. A autora respondeu, negando pretender a anulação do negócio. Posteriormente, respondendo a pedido de esclarecimento por parte do tribunal veio a autora, explicitar que a título de “legal consequência” do pedido formulado, pretende que a escritura seja tida “como rectificada no sentido de que todas as cessões efectuadas na mesma, foram efectuadas no pressuposto e condição que os 4º Réus tratassem da Mãe/Sogra, ora Autora, enquanto viva, na saúde e na doença, e no sentido que estas cessões dos quinhões hereditário, foram efectuadas com reserva de usufruto para a Autora”. Por despacho com a referência 424351137 foram as partes informadas da possibilidade de ser já conhecido o mérito da acção, podendo as mesmas se pronunciarem no prazo de 10 dias, nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. Nada tendo sido dito pelas partes, foi proferido despacho saneador, que afirmou a validade e regularidade processuais e, conhecendo do mérito da causa, conforme anunciado previamente, foi a acção julgada improcedente e absolvidos os réus dos pedidos contra eles formulados. 2. Não se resignando a autora com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, findando as suas alegações com as seguintes conclusões: 1ª – O presente recurso vem interposto da Sentença de fls. , que julgou a acção improcedente e absolveu os Réus, ora Apelados, do pedido, e põe em causa a absolvição dos Réus no pedido ante matéria que foi dada como não provada e o devia ter sido. 2ª – Impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto, a ora Apelante considera que foi incorrectamente julgado a matéria de facto relacionada com a reserva do usufruto acordado quanto às cessões entre os Irmãos/Réus, que foi considerado como não provada, e o devia ter sido. 3ª - Para o efeito daquela impugnação, e como lhe cumpre, fundamentará, em termos que julga concludentes, as razões por que discorda do decidido e indicou os meios probatórios que em seu entender implicavam decisão diversa da tomada pelo Tribunal quanto à matéria de facto mencionada, supra. 4ª – Considerou o Tribunal como provado que as cessões efectuadas foram no pressuposto e condição dos quatros réus tratarem da Autora, na saúde e na doença, o que resultou não só da não impugnação dos mesmos, mas também da sua confissão expressa contida em 12 da Contestação. 5ª – Notificados para o efeito, os réus não contestantes responderam ser totalmente verdadeira a versão da Mãe e referiram/confessaram expressamente que foi acordado entre todos que as cessões foram na condição dos 4º réus tratarem da Autora na saúde e na doença, e que as cessões entre os réus irmãos foi com reserva de usufruto para a Mãe, aspectos estes que não ficaram a constar na escritura lavrada. 6ª – Os quartos réus foram notificados dos documentos apresentados pelos réus não contestantes, e não impugnaram os mesmos nem o teor e as declarações proferidas pelos mesmos, pelo que se tem de considerar como assente ou provada essa matéria. 7ª – Nesta conformidade, o primeiro aspecto (já dado como provado), foi aceite expressamente pelos quartos réus, e o segundo aspecto (de que as cessões efectuadas entre os Réus filhos foram com reserva de usufruto para a Mãe Autora), foi confessado tacitamente pelos quartos réus, por não terem impugnado o teor dos documentos que lhe foram notificados, sendo que toda esta matéria, foi, de resto, confessada pelos réus não contestantes. 8ª – Acresce que na escritura de cessão onerosa de meação e de quinhões hereditários as partes consignaram a reserva de usufruto da Autora para mesma, pelo que deve ser alterada a matéria de facto como requerido, e em consequência deve ser considerada também como provada a matéria referida na cláusula 2ª, supra. 9ª – O pedido da acção delimitou o pretendido pela Autora, a condenação dos Réus a reconhecer dois aspectos que não ficaram a constar da escritura, apesar de terem acordado nesse sentido, por um lado que a cessão efectuada pela Autora aos Quartos Réus foi-o na condição de estes tratarem da Autora, enquanto viva, na saúde e na doença (já confessado expressamente), e por outro, que as cessões efectuadas entre os irmãos o foram com reserva de usufruto da Autora (já confessado tacitamente), tudo com as legais consequências, não tendo sido peticionada qualquer rectificação da escritura. 10ª – Pretende a Autora com o petitório a manutenção da escritura lavrada (nos seus precisos termos) e a prolação de uma Sentença transitada em julgado, que passaria a coexistir no ordenamento jurídico com aquela, na qual os réus fossem condenados nos termos descritos na cláusula 9ª, supra. 11ª - A existência da escritura (sem ser alterada, rectificada, ou o que quer que seja), complementada com a existência de uma Sentença na qual os Réus fossem condenados nos termos peticionados, era e é suficiente para a Autora, pois os seus interesses ficam devidamente salvaguardados, tendo em conta que há uma escritura que se mantém, esclarecida com uma Sentença Judicial. 12ª – Com a Sentença, procedendo o pedido, ficará esclarecido que as partes outorgantes da escritura, além do que consta nesta, pretenderam também consignar e não o fizeram apesar de terem acordado isso, de que a cessão era na condição de os Quartos Réus tratarem da Autora na saúde e da doença, e que a cessão efectuada entre os irmãos era com reserva de usufruto para a Mãe, uma vez que os Réus serão condenados a reconhecer isto mesmo. 13ª – Faz prova do que a Autora sempre pretendeu com a acção, e não após a prolação da Sentença por conveniência do momento, o que consta do número 3 da resposta que a Autora apresentou à excepção invocada pelos quartos réus, a manutenção das cessões no ordenamento jurídico, sem qualquer alteração ou rectificação, nunca pretendeu a rectificação da escritura. 14ª – Pretende a Autora que seja proferida uma Sentença que condene os Réus a reconhecer que para além do que consta na escritura, as partes acordaram dois aspectos que não fizeram constar, sendo, salvo devido respeito, especulação tudo que se escreva ou alegue além disto. 15ª – Quando a Autora respondeu no sentido da escritura ser havida por rectificada era no sentido de ser entendida como rectificada, mas o Tribunal “a quo”, por manifesto lapso, interpretou mal, considerando que a Autora pretendia a escritura seja tida como rectificada, o que não é verdade. Ter se ser rectificada é ser alterada e intervencionada a escritura, o que não é manifestamente o que a Autora pretende. 16ª – O ser havida ou entendida como rectificada a escritura, é uma consequência da aparição de uma Sentença no ordenamento jurídico que passa a coexistir com aquela, na qual os Réus são condenados a reconhecer que na escritura não ficaram a constar os dois aspectos já amplamente aflorados e confessados pelos réus, sem significar a intervenção ou alteração da escritura. A Autora não pretende que seja “mexida” a escritura, antes que continue nos seus precisos termos, e que em paralelo exista uma Sentença que condenando os réus nos termos peticionados, complementa aquela. 17ª - Se a presente acção for julgada totalmente procedente, como espera com a procedência do presente recurso, a Autora atinge os objectivos pretendidos com a prolação da Sentença (sem qualquer intervenção ou rectificação na escritura), por exemplo, sendo os Réus condenados a reconhecer que as partes acordaram, mas não fizeram constar da escritura, que as cessões entre os irmãos foi com usufruto da Mãe Autora, esta, sem mais, poderá exigir o acesso e posse do imóvel (uma vez que as cessões foram efectuadas com usufruto para a Mãe, como acordado). 18ª - Com os dois instrumentos – escritura e Sentença que a complementa – a Autora não precisa de mais nada para poder peticionar o acesso ao imóvel (por ter o usufruto), não fazendo sentido ter de se rectificar formalmente a escritura. 19ª – Quando da Sentença consta que “o que a Autora pretende é a rectificação da escritura aqui em causa”, não é verdade, e trata-se de um lapso manifesto do Tribunal “a quo” que interpretou mal o ser havida como rectificada (uma das consequências da prolação da Sentença), interpretando-o como a Autora pretender rectificar e intervencionar a escritura. 20ª – O Tribunal enquadrou a situação como um erro de escrita, o que não aconteceu na presente situação, porque o que se escreveu na escritura queria ter-se escrito, e a vontade declarada é igual à vontade real, pois tudo o que consta da escritura foi pretendido pelos outorgantes, faltaram, no entanto, escrever aqueles dois aspectos. 21ª - O que foi consignado na escritura está tudo bem, mas faltou consignar dois aspectos, por isso que, o ser havida a escritura como rectificada é no sentido de com a prolação da sentença, a escritura ficar complementada com esses mesmos dois aspectos). 22ª – Na escritura não consta qualquer erro como foi entendido erroneamente pelo Tribunal “a quo”, a mesma está totalmente correcta, mas os declarantes não disseram tudo o que tinham acordado, o que é muitíssimo diferente de os declarantes terem dito uma coisa quando pretendiam ter dito outra. 23ª – O conteúdo da escritura como foi outorgada e se encontra no ordenamento jurídico, é inteiramente correcto, mas está incompleto (atento o acordo que as partes fizeram), não faz sentido por isso, nem é preciso, rectificar a escritura nos moldes que o Tribunal “a quo” refere pois o conteúdo da mesma foi pretendido pelas partes, apenas está incompleto. 24ª - Não houve erro no sentido plasmado na Sentença, as partes quiseram mesmo escrever o que dela consta, haveria erro se as partes quisesse escrever uma coisa em vez de outra, o que não foi manifestamente o caso. 25ª – Assim, pode aferir-se que todo o raciocínio vertido na Sentença, com base naquele pressuposto errado, está errado, e não tem aplicação à situação concreta destes autos. A Autora com a procedência do pedido não pretende a rectificação da escritura, como consta da Sentença, pelo contrário, uma vez que as partes pretenderam tudo o que dela consta. 26ª – Tendo em conta as partes terem acordado mais dois aspectos que não fizeram constar da escritura, intentou a Autora a presente acção para obter a condenação dos Réus a reconhecer que as partes acordaram mais esses dois aspectos. A aparição no ordenamento jurídico de uma Sentença condenando os Réus nesse sentido (complementará a escritura), passando a coexistir com a escritura. 27ª – Em sentido contrário à interpretação do Tribunal “a quo”, a escritura permanecerá nos seus precisos termos, complementada com a Sentença, sendo uma consequência desta Sentença, a escritura ser havida (no sentido de ser entendida) como rectificada, isto sem qualquer intervenção, alteração, ou rectificação, ou acrescento formal na escritura propriamente dita. 28ª - À Autora basta a coexistência da escritura (nos seus precisos termos pois está correcta) com a Sentença no ordenamento jurídico, que servirá de complemento àquela, ficando a Autora salvaguardada como pretendido. 29ª – Não há qualquer declaração inexactamente transmitida, pois o transmitido pelos outorgantes na escritura é tudo exacto e está correcto, tudo o que os declarantes transmitiram é exacto, mas não disseram tudo, o que é bem diferente. Não há qualquer inexactidão, antes a omissão de dois aspectos que as partes também haviam acordado, ou uma transmissão incompleta. 30ª – Tendo em conta o raciocínio da Autora, em bom rigor, nada há a rectificar na escritura que seja susceptível de rectificação, pois o lá vertido é inteiramente exacto, sem prejuízo de não ter sido tudo declarado, aliás, como já confessado expressa e tacitamente pelos Quartos Réus, e expressamente pelos restantes Réus. 31ª – A vontade declarada corresponde à vontade real dos outorgantes, não houve qualquer erro no que foi declarado, por isso não há erro na transmissão da declaração, nem se aplicam os artigos 250º, 249º e 247º do Código Civil à presente situação, preceitos que foram violados, além do mais, pelo Tribunal “a quo”. 32ª – A escritura deve ser mantida nos seus precisos termos, sendo complementada com a prolação de uma Sentença em que proceda o pedido, aliás, já confessado pelos Réus. A Autora, não pediu nem pretende a anulabilidade da escritura, antes a sua manutenção, complementada por uma Sentença, que tem como consequência aquela ser havida ou entendida como rectificada. 33ª – Termos em que procedendo a alteração da matéria de facto requerida, deve ser revogada a Sentença proferida, e substituída por outra que julgue procedente o pedido formulado pela Autora, que com os seus 86 anos de vida ainda o espera, alcançando o sossego que necessita e merece, assim fazendo Vossas Excelências Justiça. Nestes termos, nos mais, de direito, aplicáveis, e sobretudo, nos que serão objecto do douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento à apelação e revogada a sentença recorrida, com as legais consequências”. Não foram apresentadas contra-alegações. Colhidos os vistos, cumpre apreciar. II.OBJECTO DO RECURSO. A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito. B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar: - se existe erro na apreciação da prova; - se existe fundamento para a pretendida rectificação da escritura. III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância: 1 – Por escritura outorgada em 16.11.2016 no Cartório sito na Rua ..., ..., em Matosinhos, perante o Notário ..., a autora, com reserva de usufruto para si, cedeu aos quartos Réus, seu filho e nora, a meação nos bens comuns do casal formado por ela e pelo seu falecido marido HH, e o quinhão hereditário que lhe pertence na herança aberta por óbito deste, com quem foi casada no regime da comunhão geral de bens. 2 – Na mesma escritura, os 1º, 2º e a 3ª ré mulher, cederam aos mesmos quartos réus, seu irmão e cunhada, os quinhões hereditários que lhes pertenciam na herança aberta por óbito de seu Pai, HH. 3 – A cedência referida em 1, supra, foi declarado ter sido efectuada pelo preço já recebido de 31875,00€ e a cedência referida em 2, supra, foi declarado ter sido efectuada pelo preço global já recebido de 16875,00€. 4 – Os quartos réus declararam aceitar as cessões e o 3º réu marido prestou o consentimento à sua mulher, ora 3ª ré mulher, para validade do acto. 5 – Declararam ainda que a herança compreendia bens imóveis, tudo conforme documento de fls. 8 a 10 que, no mais, aqui se dá por reproduzido. 6 – Não tendo a mesma autora e réus declarado que também fora acordado entre a autora e todos os réus seus filhos, que todas as cessões efectuadas, aludidas em 2, supra, foram efectuadas no pressuposto e condição que os 4º réus tratassem da autora, enquanto viva, na saúde e na doença. IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO. 1. Reapreciação da matéria de facto. Não se conformando a recorrente com a decisão proferida em primeira instância quanto à matéria de facto submetida a julgamento, reclamam desta instância o reexame da mesma. Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2: “A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”. Entende a recorrente ter sido “incorrectamente julgado a matéria de facto relacionada com a reserva do usufruto acordado quanto às cessões entre os Irmãos/Réus, que foi considerado como não provada, e o devia ter sido”. Sustenta, para o efeito, que o facto em causa “foi confessado tacitamente pelos quartos réus, por não terem impugnado o teor dos documentos que lhe foram notificados, sendo que toda esta matéria, foi, de resto, confessada pelos réus não contestantes”. Refere-se a recorrente às declarações escritas assinadas pelos réus não contestantes e remetidas aos autos por correio electrónico a 28.03.2021, nas quais afirmam corresponder à verdade o alegado pela autora na petição inicial, designadamente ter sido combinado entre todos (autora e réus) que a demandante “ficasse com o usufruto”. Consta, efectivamente, do artigo 11.º da petição inicial: “Acresce que, por outro lado, na cedência referida em 2, supra, também foi acordado entre todos os Réus filhos da Autora, que estas cessões dos quinhões hereditário da herança do Pai, eram efectuadas com reserva de usufruto para a sua Mãe, ora Autora”. A matéria em causa foi expressamente impugnada pelos réus FF e GG na contestação que formularam nos autos – artigos 10.º, 13.º e 14.º. No artigo 13.º da contestação sustentam os referidos réus: “No que concerne aos quinhões hereditários alienados pelos 1º, 2ª e 3ºs Réus aos aqui Réus, nunca foi acordado seriam realizadas com reserva de usufruto para a Autora”, acrescentando logo a seguir que “Tanto mais que os preços das cessões que os aqui Réus pagaram aos 1º, 2ª e 3ºs Réus, foram por estes solicitados com base em avaliação prévia que efetuaram aos bens imóveis”. Tendo os réus FF e GG impugnado especificadamente a matéria controvertida em causa, alegada pela autora no artigo 11.º da petição inicial, nenhuma consequência jurídica, nomeadamente com o sentido e alcance defendido pela recorrente, se pode extrair da circunstância de os referidos réus não haverem tomado qualquer posição quanto às declarações emitidas pelos demais réus quanto ao alegado acordo de reserva do usufruto a favor da autora. O silêncio dos mesmos quanto ao teor de tais declarações não pode, naturalmente, ser interpretado como confissão ou aceitação tácita do invocado acordo quanto ao usufruto tendo eles, pelo meio processual próprio, negado o facto, impugnando a matéria a esse respeito alegada pela autora. Assim, jamais poderá considerar-se provada a questionada matéria com base numa confissão tácita dos réus contestantes, a qual manifestamente não existe. Improcede, consequentemente, nesta parte o recurso, mantendo-se sem alterações a decisão relativa à matéria de facto. 2. Mérito do julgado. Alega a autora na petição inicial: - Por escritura outorgada em 16.11.2016 no Cartório sito na Rua ..., ..., em Matosinhos, perante o Notário ..., a Autora, com reserva de usufruto para si, cedeu aos quartos Réus, seu filho e nora, a meação nos bens comuns do casal formado por ela e pelo seu falecido marido HH, e o quinhão hereditário que lhe pertence na herança aberta por óbito deste, com quem foi casada no regime da comunhão geral de bens – artigo 1.º; – Na mesma escritura, os 1º, 2º e a 3ª Ré mulher, cederam aos mesmos quartos Réus, seu irmão e cunhada, os quinhões hereditários que lhes pertenciam na herança aberta por óbito de seu Pai, HH – artigo 2.º. – Sucede que Autora e todos os Réus não verteram a vontade que tinham naquele dia 16.11.2016, na escritura identificada em 1, por lapso de transmissão ao Notário – artigo 8.º. – Não tendo a mesma Autora e Réus declarado tudo o que tinham acordado e que pretendiam com a mesma cessão – artigo 9.º. – Na verdade, por um lado, foi acordado entre a Autora e todos os Réus filhos da Autora, que todas as cessões efectuadas, aludidas em 1 e 2, supra, foram efectuadas no pressuposto e condição que os 4º Réus tratassem da Mãe/Sogra, ora Autora, enquanto viva, na saúde e na doença- artigo 10.º. – Acresce que, por outro lado, na cedência referida em 2, supra, também foi acordado entre todos os Réus filhos da Autora, que estas cessões dos quinhões hereditário da herança do Pai, eram efectuadas com reserva de usufruto para a sua Mãe, ora Autora – artigo 11.º. Refere, em suma, a autora que a escritura em causa não traduz totalmente a vontade dos respectivos outorgantes, dela não tendo ficado a constar, apesar de tal corresponder à vontade das partes, que as cessões eram efectuadas no pressuposto e condição que os 4.ºs réus tratassem da mãe/sogra, aqui autora, enquanto viva, na saúde e na doença, e que as cessões dos quinhões hereditário da herança do pai dos réus, eram efectuadas com reserva de usufruto para a sua mãe. Com base nesses fundamentos, formulou a autora pretensão no sentido de “serem os Réus condenados a reconhecer que na escritura identificada em 1 a sua vontade, bem como a da Autora, foi a de para além do que da escritura consta, a cessão feita pela Autora aos Quartos Réus foi-o sob a condição de estes tratarem da Autora, enquanto viva, na saúde e na doença, e que as cessões identificadas em 2 foram efectuadas com reserva de usufruto para a Autora, tudo com as legais consequências”, antes referindo no artigo 17.º da petição inicial que “...a escritura carece de ser rectificada, nela se incluindo a condição referida em 10, supra, bem como que a cessão dos quinhões efectuada entre os irmãos o foi com reserva de usufruto para a Mãe, conforme referido em 11, supra”. Sobre a epígrafe “erro na declaração”, estabelece o artigo 247.º do Código Civil: “quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponde à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”. Ou seja: embora a vontade real se haja formado sem erro, a vontade declarada não lhe corresponde, por virtude de erro que afecta essa declaração. Constituindo o negócio jurídico manifestação da autonomia privada, traduzindo a vontade das partes, esta deve exteriorizar-se, por meio de declaração, para que possa produzir os efeitos que as partes visaram com a sua celebração. Deve, por regra, existir coincidência entre o elemento externo da vontade ou vontade declarada e o seu elemento interno ou vontade real. Uma das manifestações da divergência não intencional constitui o erro na declaração ou erro obstáculo. Neste, onde existe uma divergência inconsciente entre a vontade real e a declaração, verifica-se um comportamento declarativo do errante[1], que emite uma declaração de conteúdo diferente do pretendido. Vale dizer, no erro na declaração existe uma desconformidade entre o que a pessoa quer e o que declara, ao contrário do erro - vício, em que a pessoa declara o que quer, mas que não teria aceite o que quis e declarou se não fosse o erro que afectou o processo gestativo da sua vontade. Quando o erro recai só sobre a vontade (o elemento interno), não produz uma divergência entre a vontade e a declaração. Esta está em perfeita conformidade com a vontade; no entanto, é aquela que está viciada. Ocorre, então, o erro sobre os motivos, o denominado erro-vício, em que a vontade, por ser mal esclarecida ou por não ser livre, está viciada, convergindo com ela a respetiva declaração. O erro-vício, enquanto vício na formação da vontade, consiste no desconhecimento ou falsa representação da realidade que determinou ou podia ter determinado a celebração do negócio e que pode consistir numa circunstância de facto ou de direito. Situação distinta é a que se reporta ao erro que incide sobre a declaração (o elemento externo) ou quando afecta o comportamento declarativo, traduzido numa divergência entre a declaração e a vontade, que se reconduz ao erro-obstáculo, que respeita ao processo declarativo, ao processo da formulação ou da manifestação da vontade. O erro-obstáculo pressupõe uma perfeita formação da vontade contratual do declarante, nele ocorrendo, todavia, uma divergência entre o querido e o declarado, divergência não desejada pelo declarante. É este o vício que, no caso dos autos, está em causa. A vontade dos outorgantes da escritura não está por ele afectado, mas ocorre divergência entre a vontade real, validamente formada, quanto ao negócio jurídico efectivamente querido pelas partes, e a vontade declarada, não constando da escritura todos os termos do acordo que a vontade das partes logrou, sem entraves, formar. Na sequência do despacho proferido a 18.12.2020, em que, alertando para o facto de o alegado no artigo 17.º da petição inicial não se compaginar com o pedido formulado, foi convidada a autora a “esclarecer o que tiver por conveniente”, o que a mesma fez, “explicitando o pedido que umas das consequências é ser a escritura havida como rectificada no sentido de que todas as cessões efectuadas na mesma, foram efectuadas no pressuposto e condição que os 4º Réus tratassem da Mãe/Sogra, ora Autora, enquanto viva, na saúde e na doença, e no sentido que estas cessões dos quinhões hereditário, foram efectuadas com reserva de usufruto para a Autora”, mostrando, assim, de forma inequívoca que, com base nos fundamentos factuais alegados na petição inicial e na divergência entre a vontade real e a vontade declarada – dizendo a escritura menos do que o real e integral acordo das partes, que estas queriam ver nela retratado – o efeito jurídico perseguido pela acção não é a anulação da declaração negocial, mas antes a rectificação da escritura. Como dá conta a sentença recorrida, “o que a autora pretende é a rectificação da escritura aqui em causa (sendo que o primeiro pedido formalmente formulado não se destina a ser considerado autonomamente - já que não se vê qual o interesse autónomo que a autora teria no mesmo - mas sim como pressuposto e condição de procedência do pedido que efectivamente se pretende, a dita rectificação). Nos termos do artigo 249º, do CC “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio texto da declaração, ou através das circunstâncias em que a declaração é feita (…) dá direito à rectificação desta”. Ocorre um erro material sempre que, como afirma o Prof. Alberto dos Reis (Código do Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, pág. 130), se escreve “coisa diversa da que queria escrever”, quando o teor do exarado não coincide com o que se “tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada difere da vontade real”. O lapso é manifesto quando do teor do texto ou das circunstâncias se tenha que admitir, sem sombra para dúvidas, que houve erro: querendo-se escrever uma coisa, escreveu-se outra (Prof. Alberto dos Reis, ob. Cit., pág. 131). Ora do texto da escritura e do que (não) é alegado quanto às circunstâncias constáveis exteriormente aquando da sua celebração não ressalta a existência de qualquer lapso manifesto, que, ao abrigo da mencionada norma possa ser rectificado. Antes cairia a situação, face até ao alegado, ao abrigo do disposto no art. 250º, do CCivil. Mas a consequência desta inexacta transmissão da declaração é a anulabilidade, que nestes autos não vem pedida e da qual o tribunal não pode conhecer oficiosamente”. Ou seja: a solução para suprir a alegada divergência entre a vontade real das partes e a vontade declarada na escritura passaria pela anulação da declaração negocial viciada, a qual, não podendo ser oficiosamente determinada, teria de ser impulsionada pela demandante. A escritura, não a afectando erro material passível de correcção, não pode ser rectificada nos termos reclamados pela autora. Logo, acertadamente concluiu a sentença pela improcedência da acção e, consequente absolvição dos réus, e não merecendo reparo, é de manter. Improcede, assim, o recurso. * Síntese conclusiva:……………………………… ……………………………… ……………………………… * Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência do recurso, em confirmar a sentença recorrida.Custas: pela apelante [Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos] Porto, 8.06.2022 Judite Pires Aristides Rodrigues de Almeida Francisca Mota Vieira ______________ [1] Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª edição, págs. 492 e 493. |