Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2755/20.7T8OAZ-D.P1
Nº Convencional: JTRP00
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
FUNDAMENTOS
INIBIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
QUANTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP202407102755/20.7T8OAZ-D.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Tendo-se provado que à empresa insolvente apenas foram apreendidos os bens com o valor de €2.065,00 e que lhe foram reconhecidos créditos no valor global de €291.326,40 e, que nas declarações de IES dos anos de 2017, 2018 e 2019 a mesma declarou sempre ativos superiores ao passivo e um volume de capital próprio, e ainda que se tendo mantido em atividade até janeiro de 2021, o último balanço disponível diz respeito a junho de 2020, não tendo a sociedade a sua contabilidade organizada após essa data, não se mostra, sem mais, que a mesma, por intermédio do seu gerente, tenha incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, cfr. al. h) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE.
II - Provando-se que gerente da empresa insolvente e enquanto a mesma se manteve em atividade, mesmo depois da declaração de insolvência, ou seja, até janeiro de 2021, não informou o AI da atividade que foi desenvolvida pela insolvente, nem lhe prestou contas relativamente a essa atividade, mas não resultando provado que essas informações lhe foram solicitadas pelo AI, ou que essa colaboração lhe foi pedida pelo AI, e ainda que o apelante tenha reiteradamente recusado prestar tais informações, não se mostra preenchido o fundamento previsto na al. i) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE.
III – Na fixação do quantum indemnizatório a fixar ao gerente da insolvente há que apreciar as circunstâncias do caso em apreço, mormente a gravidade da ilicitude da sua atuação tida por relevante para a qualificação da insolvência da como culposa, ou dito de outra forma, há que apreciar da ilicitude do comportamento do mesmo e da contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência da empresa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 2755/20.7 T8OAZ-D. P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis – Juiz 2


Recorrente – AA
Recorrida – A..., Unipessoal, Ld.ª




Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Márcia Portela
Desemb. Maria da Luz Teles Meneses de Seabra










Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – Por apenso aos autos de insolvência que correm termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis e onde foi declarada a insolvência da sociedade B... Ld.ª veio o credor A..., Unipessoal, Ld.ª pugnar pela qualificação da insolvência como culposa e pedindo ainda que fosse afetado por tal qualificação o requerido AA.
O A.I. apresentou parecer, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa e pela afetação do requerido pela mesma.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa e pela consequente afetação do requerido.
O requerido AA deduziu oposição, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.
Foi proferido despacho saneador, identificou-se o objeto do litígio e selecionaram os temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e após foi proferida sentença de onde consta: “Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos, o Tribunal decide:
a) qualificar como culposa a insolvência da sociedade “B... Ld.ª”;
b) considerar afetado, pela qualificação da insolvência da sociedade “B... Ld.ª” como culposa, o requerido AA;
c) decretar a inibição do requerido AA para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses;
d) condenar o requerido AA ao pagamento de uma indemnização no valor de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a pagar aos credores da sociedade “B... Ld.ª”, na proporção dos respetivos créditos, a liquidar até às forças do respetivo património.
Sem tributação autónoma – cfr. art.ºs 303.º e 304.º do CIRE.
Registe e notifique”.


Inconformado com tal decisão, dela veio AA recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e substituição por outra que qualifique a insolvência como fortuita.
O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
I. Vem, o presente recurso, interposto da douta decisão que qualifica a insolvência de B... Ld.ª como culposa, determinando a afetação de tal qualificação ao aqui recorrente.
II. Conforme decorre da douta sentença, o Tribunal a quo qualificou como culposa a insolvência da sociedade B... Ld.ª, considerando afetado pela qualificação da insolvência o requerido AA.
III. Mais decretou a sentença recorrida a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, condenando-o ainda ao pagamento de uma indemnização no valor de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a pagar aos credores.
IV. Não se conformando com a decisão proferida em primeira instância, visa o recorrente, com o presente recurso, questionar a apreciação e valoração da prova produzida, assim como evidenciar a evidente inconformidade entre os factos dados como provados e a decisão aqui recorrida, que determinou a incorreta aplicação das normas jurídicas aplicáveis.
V. Atenta toda a prova nos autos produzida (e a prova não produzida), somos a crer que impunha uma decisão sobre os pontos da matéria de facto dada como provada e não provada diversa da recorrida.
VI. No que refere ao facto dado como provado n.º 13 da sentença que se recorre, no qual o Tribunal a quo dá como provado que AA procedeu ao levantamento e/ou transferência para contas por si tituladas e/ou por seus familiares de quantia não inferior a €16.405,02, afigura-se que existem factos cuja prova foi produzida e não foi posta em crise, pelo que deverão ser dados como provados, procedendo-se ao devido aditamento do facto n.º 13 dado como provado.
VII. Por um lado, ficou provado que se trata de uma empresa familiar onde trabalhava o recorrente, o seu cônjuge, o seu filho e outras conforme lista de créditos reconhecidos.
VIII. Acrescendo, decorre das declarações do Administrador de Insolvência, BB, prestadas na Audiência de na Audiência realizada a 15.02.2023, gravadas no Ficheiro Áudio Diligencia_2755-20.7T8OAZ-D_2023-02-15_10-25-02.mp3. que se tratava de uma pequena empresa de cariz familiar, rústica e com equipamentos sem valor comercial.
IX. Do mesmo modo, quanto ao assunto em questão, também AA se pronunciou, conforme declarações prestadas em Audiência de 25.10.2023 e registadas no Ficheiro Áudio Diligência_2755-20.7T8OAZ-D_2023-10-25_10-48- 54.mp3 realizada a 25.10.2023, que tais levantamentos se destinavam ao pagamento de várias despesas da insolvente, como salários, rendas e despesas de caixa.
X. Não foi produzida qualquer prova, até porque as únicas três testemunhas (o recorrente, a contabilista e o Sr. Administrador de Insolvência) estiveram todos de acordo, não podendo as declarações dos mesmos suscetíveis de pôr em crise as declarações prestadas, motivo pelo qual se impõe a alteração do facto dado como provado n.º 13, devendo o mesmo passar a ter a seguinte redação: “13. Desde julho de 2020, AA procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares, também funcionários da insolvente, de quantia não inferior a €16.405,02, destinando-se estas quantias ao pagamento de salários dos funcionários, rendas e outras despesas de caixa”.
XI. A prova produzida determina, ainda, a alteração do facto n.º 14 dado como provado.
XII. Se, por um lado, não existe qualquer prova documental ou testemunhal que expressamente determine que o Sr. Administrador de Insolvência veio requerer qualquer esclarecimento sobre qualquer negócio concreto, por outro lado, das declarações prestadas pelo mesmo releva atender às claras e transparentes declarações prestadas por Sr. Administrador de Insolvência, na Audiência realizada a 15.02.2023, gravadas no Ficheiro Áudio Diligencia_2755-20.7T8OAZ-D_2023- 02-15_10-25-02.mp3em Audiência, decorre clara e inequívoca que o recorrente nunca colocou qualquer obstáculo, nunca impediu a entrada, nunca deixou de o pôr em contato com a contabilista, para que fossem fornecidos todos os elementos necessários
XIII. Somos do entendimento que a prova produzida impõe a alteração da matéria dada como provada na sentença proferida em primeira instância, eliminando-se o facto n.º 14 dados como provados, passando a configurar como factos não dados como provados.
XIV. Retificada que está a matéria factual assente, em conformidade com a valoração da prova produzida, importa agora valorar corretamente os factos provados e não provados, de modo a que não exista contradição com a decisão recorrida e garantindo uma correta aplicação das normas legais.
XV. Ora, o processo de insolvência foi introduzido no CIRE pela Lei 16/2012, de 20 de abril, que lhe veio aditar os artigos 17.-ºA a 17.º- I, destinando-se a permitir ao devedor que, comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordos conducentes à sua revitalização.
XVI. A sentença aqui recorrida determina ainda que no caso em apreço, a insolvência também sempre deveria ser considerada como culposa em face do que dispõe o artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CIRE.
XVII. Atenta toda a prova produzida e considerando os factos dados como provados (e os factos que deverão ser dados como provados), cumpre expor que, no presente caso, não se verifica o pressuposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, porquanto o património da devedora não foi destruído, não foi danificado, não foi inutilizado, não foi ocultado e não foi feito desaparecer.
XVIII. O Tribunal a quo entende as transferências para pagamentos de dívidas da insolvente determinam a dissipação do património da B... Ld.ª.
XIX. No entanto as referidas transferências dizem respeito a atos de gestão que não destruíram, danificaram, inutilizaram, ocultaram, ou fizeram desaparecer o património da devedora.
XX. Pelo que em momento algum se pode pugnar pelo preenchimento da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
XXI. Não se verificando o preenchimento qualquer pressuposto legal que determine a qualificação da insolvência da Sociedade B..., Ld.ª como culposa, deverá a mesma ser declarada fortuita, com todos os devidos e legais efeitos.
XXII. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a sentença proferida é manifestamente desproporcional na determinação do período de inibição, devendo o mesmo ser reduzido em conformidade com os critérios de justiça e equidade.
XXIII. Quanto ao valor da indemnização, o Tribunal a quo determina que só da circunstância das transferências no valor total de €16.405,02 foram motivo de agravamento da situação de insolvência, quando os créditos reconhecidos são de €291.326,20.
XXIV. Não podemos estar em maior desacordo quanto a tal entendimento, uma vez que além das transferências se destinarem ao pagamento de dívidas da insolvente, é manifestamente descabido que a importância de €16.405,02 se torne no motivo da insolvência, não se pode valer o tribunal desta falácia de raciocínio para determinar o quantum indemnizatório.
XXV. O quantum indemnizatório deverá incidir sobre o prejuízo concreto que foi causado aos credores, de acordo com critérios de proporcionalidade e equidade.
XXVI. Não foi, nos presentes autos, provado qualquer prejuízo causado aos credores, nem o proveito económico obtido pelas pessoas afetadas pela qualificação, pelo que se impõe a redução do quantum indemnizatório, a fixar de acordo com os critérios de justiça e equidade.


Não há contra-alegações.


II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. Em 14.09.2020, a sociedade “A..., Unipessoal Ld.ª requereu a declaração de insolvência da sociedade “B... Ld.ª”, na sequência de fornecimento de cortiça, em maio e junho de 2019, ascendendo o valor em dívida, desde, pelo menos, janeiro de 2020, a €120.600,45, acrescido dos respetivos juros de mora, tendo a sociedade “B... Ld.ª” sido citada em 22.09.2020.
2. Por sentença de 13.11.2020, foi declarada a insolvência da sociedade “B... Ld.ª”, tendo sido o processo de insolvência encerrado, por insuficiência da massa insolvente, em 10.08.2022.
3. A administração da massa insolvente esteve entregue à devedora até 06.01.2021, data em que foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação.
4. A sociedade “B... Ld.ª” foi constituída em 2015, sendo, desde a sua constituição, AA o seu único gerente.
5. Foram reconhecidos créditos no valor global de €291.326,40.
6. Na declaração IES, relativa ao ano de 2017, a sociedade “B... Ld.ª” declarou um ativo de €139.199,59, um passivo de €100.399,07 e um capital próprio de €38.800,52.
7. Na declaração IES, relativa ao ano de 2018, a sociedade “B... Ld.ª” declarou um ativo de €108.229,27, um passivo de €67.723,52 e um capital próprio de €40.505,75.
8. Na declaração IES, relativa ao ano de 2019, a sociedade “B... Ld.ª” declarou um ativo de €216.916,17, um passivo de €175.212,92 e um capital próprio de €41.703,25.
9. Foram apreendidos os bens identificados no apenso A, com o valor atribuído de €2.065,00.
10. O último balanço disponível diz respeito a junho de 2020, não tendo a sociedade “B... Ld.ª” a sua contabilidade organizada após essa data.
11. Após a declaração de insolvência, a sociedade “B... Ld.ª” emitiu e recebeu as quantias tituladas pelas seguintes faturas:
12.



13. Durante o ano de 2020, a sociedade insolvente “B... Ld.ª” faturou e recebeu as seguintes quantias:
- €4.920,00 da sociedade C..., Ld.ª;
- €2.978,81 da sociedade D... Ld.ª;
- €29.816,27 da sociedade E..., S.A.;
- €33.228,61 da sociedade F..., Ld.ª;
- €11.474,42 da sociedade G... Ld.ª;
- €50.042,43 da sociedade H... S.A.;
- €8.900,42 da sociedade I..., S.A.;
- €25.954,85 da sociedade J..., S.A.;
- €7.289,97 da sociedade K..., S.A.;
- €4.634,64 da sociedade L... Ld.ª;
- €1.665,11 da sociedade M..., Unipessoal, Ld.ª
- €26.602,52 da sociedade N... Unipessoal, Ld.ª (onde se inclui as
referidas em 11.).
14. Desde julho de 2020, AA procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares de quantia não inferior a €16.405,02.
15. O Sr. A.I. não foi informado da atividade desenvolvida pela sociedade insolvente após a declaração de insolvência, nem lhe foram prestadas contas relativamente a essa atividade.


Não se julgaram provados os seguintes factos:
a) AA não fez suas quaisquer verbas da empresa, nem beneficiou qualquer credor ou terceiros.
b) AA não dispôs dos bens da devedora em proveito pessoal ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas.
c) Para além do referido em 14., AA não colaborou com o Sr. A.I.



III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*

Ora, visto o teor das alegações do requerido/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
2.ª – Da qualificação da insolvência e suas consequências.

O caso dos autos, temos que a 1.ª instância qualificou como culposa a insolvência da sociedade B... Ld.ª e considerou afetado, pela qualificação dessa insolvência o requerido/apelante AA com as consequências que mais resulta da decisão recorrida.
Para tanto, consignou-se na sentença recorrida, além do mais, que: “(…) Da prova produzida resultou que, desde a sua constituição, o requerido AA foi o único gerente da sociedade “B... Ld.ª”. Dos factos provados resulta, ainda, o preenchimento das alíneas a), d), f), h) e i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.
De facto, ao proceder ao levantamento e ao transferir das contas da sociedade insolvente quantia não inferior a €16.405,02, o requerido AA fez desaparecer parte considerável do património da sociedade insolvente - recorde-se que apenas foram apreendidos bens no valor de €2.065,00 - dispondo de tais quantias em seu proveito e em proveito de familiares, ou seja, terceiros com ele especialmente relacionados.
Fez o requerido AA dos bens da sociedade uso contrário ao interesse desta,
em seu proveito e em proveito de terceiros.
Por outro lado, provou-se que, desde junho de 2020, a sociedade insolvente “B... Ld.ª” deixou de ter contabilidade organizada, tendo prosseguido a sua atividade até janeiro de 2021.
Finalmente, o requerido não informou, nem prestou contas perante o Sr. A.I. da atividade desenvolvida pela sociedade “B... Ld.ª” desde a declaração de insolvência e até à data em que foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação, violando, assim, os deveres de colaboração que sobre si impendiam.
A culpa do requerido e o nexo causal entre a conduta do requerido e o agravamento da situação de insolvência presume-se de forma taxativa e inilidível, ou seja, sem possibilidade de prova em contrário.
Considerando os factos provados não nos é possível afirmar desde que data se encontrava insolvente a sociedade “B... Lda.” e se foi ou não incumprido o dever de apresentação à insolvência, considerando, ainda, que o dever de apresentação à insolvência esteve suspenso desde 9 de março de 2020 até 5 de julho de 2023 – cfr. art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e suas sucessivas alterações e Lei n.º 31/2023, de 4 de julho.
Contabilisticamente, em finais de 2019, a sociedade “B... Ld.ª” apresentava capitais próprios positivos. Por outro lado, a sociedade “B... Ld.ª” realizou um pagamento à sociedade requerente da insolvência em janeiro de 2020.
Não se pode afirmar que se verificava até 9 de março de 2020 e há pelo menos três meses um incumprimento generalizado de dívidas do tipo previsto no art.º 20.º n.º1 al. g) do CIRE. que a insolvência da sociedade “B... Ld.ª” terá de ser qualificada como culposa.
Referia o art.º 189.º do CIRE que:
(…)
Atualmente prevê este normativo que:
(…)
Dúvidas não restam que terá de ser afetado pela qualificação o requerido AA, enquanto gerente da sociedade “B... Ld.ª”
No que respeita à medida da inibição, à luz do princípio da proporcionalidade, considerando toda a factualidade provada e a concreta atuação do requerido, entende-se adequado fixar a inibição para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa em 3 (três) anos e 6 (seis) meses. Não se determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela requerida, nem a sua condenação a restituir os bens ou direitos que haja recebido em pagamento desses créditos porquanto o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente. Por último, deverá ser o requerido condenado nos termos do artigo 189.º, n.º 2, e) do CIRE.
Quanto à interpretação deste normativo, importa atentar ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc.1430/13.3TBFIG-C.C1, de 16.12.2015, in www.dgsi.pt, onde se refere o seguinte:
(…)
No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.09.2019, Proc. 7639/18.6T8VNG-D.P1, in www.dgsi.pt:
(…)
Nos autos, verifica-se que a conduta do requerido se afigura ilícita, porquanto violadora de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, para além de se presumir a sua culpa – cfr. artigo 483.º, n.º 1, 2.ª parte do Código Civil.
Quanto à fixação do “quantum” indemnizatório, afigura-se-nos que as condutas que permitiram concluir pela qualificação da insolvência como culposa não permitem reconhecer à atuação do requerido um grau de censurabilidade correspondente à totalidade do passivo.
De facto, não é seguro inferir que tivesse o requerido assumido conduta diversa seria possível o ressarcimento total dos credores.
Por outro lado, se a materialidade provada não fornece critério preciso para a fixação desse montante indemnizatório, também não se afigura que num eventual incidente de liquidação se pudesse avançar nessa indagação.
E, assim sendo, entendemos ser de fixar a indemnização por apelo à equidade,
atendendo ao disposto nos artigos 4.º, al. a) e 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Pelo exposto, lançando mão da equidade, tendo em consideração a factualidade e dada como provada (nomeadamente o referido em 13.) e a gravidade da conduta do requerido, entende-se ser de fixar a indemnização em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a liquidar até às forças do respetivo património e a repartir pelos credores da sociedade “B....,ª” na proporção dos respetivos créditos (…)”.
*

1.ª questão – Impugnação da decisão da matéria de facto.
Defende o apelante que a 1.ª instância errou aquando da apreciação da prova produzida nos autos, designadamente no que concerne à prova pessoal/testemunhal e consequentemente entende que os factos julgados provados em 1.ª instância e elencados na fundamentação de facto da sentença recorrida sob os n.ºs 13 e 14, entendendo que o primeiro deveria ter outra redação e que o segundo deveria ser julgado não provado.
O apelante para tanto chama à colação os depoimentos prestados por si próprio, pelo administrador da insolvência e pela testemunha CC, pedindo a reapreciação destes meios de prova e consequentemente a alteração da decisão dada em 1.ª instância, passando a constar do facto provado n.º13 que ”Desde Julho de 2020, AA procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares, também funcionários da insolvente, de quantia não inferior a €16.405,02, destinando-se estas quantias ao pagamento de salários dos funcionários, rendas e outras despesas de caixa” e o facto provado n.º14 julgado não provado.
Ora, a 1.ª instância deu como provado, além do mais, que:
13. Desde julho de 2020, AA procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares de quantia não inferior a €16.405,02.
14. O Sr. A.I. não foi informado da atividade desenvolvida pela sociedade insolvente após a declaração de insolvência, nem lhe foram prestadas contas relativamente a essa atividade.
O tribunal recorrido fundamentou cabal e detalhadamente essa decisão escrevendo-se na decisão recorrida que: “A convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto controvertida resultou do conjunto da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como dos documentos juntos aos autos, tudo apreciado livremente e de forma conjugada com as regras de experiência comum, em conformidade com o disposto no art.º 607.º do C.P.C.
(…)
Dos extratos e informações bancários juntos sob as ref.ªs 14194322, 14231975 e 15026292 decorre, também, o provado em 13.
De facto, destes documentos é possível constatar levantamentos e transferências
várias em benefício do requerido e seus familiares, parte deles já depois da declaração de insolvência. P.ex. da conta do Banco 1... o requerido transferiu, após a declaração de insolvência, para contas tituladas por si e seus familiares, a quantia de €6.973,88. Da conta da Banco 2..., o requerido levantou, após a declaração de insolvência, a quantia de €1.731,14, sendo que, em julho de 2020, já tinha levantado, dessa mesma conta, a quantia de €7.700,00.
Relativamente a estes movimentos, dúvidas inexistem quanto ao seu destino, sendo certo que muitos outros movimentos constam dos extratos bancários juntos que indiciam que o requerido utilizou em proveito próprio outras quantias pertencentes à sociedade insolvente (p.ex. em refeições de montante elevado, no pagamento de quantias substanciais pela utilização de cartão de crédito, através de levantamentos em ATM, etc.), sem que, contudo, se possa afirmar, com a certeza exigível, que o requerido se apropriou de quantia superior à referida em 13.
O Sr. A.I. confirmou que a sociedade insolvente não tinha contabilidade organizada desde junho de 2020, que o requerido foi colaborando, mas que não lhe foram prestadas quaisquer informações relativas à atividade desenvolvida pela sociedade insolvente após a declaração de insolvência.
O requerido AA confirmou ter sido o único gerente da sociedade “B... Ld.ª.” Mais referiu que todos os fornecimentos realizados pela insolvente foram recebidos/pagos e que sempre colaborou com o Sr. A.I., remetendo-o para a contabilista. Confirmou ter utilizado parte dos montantes recebidos pela sociedade insolvente após junho de 2020 para pagar salários e outras despesas dele e da família. CC, contabilista da sociedade “B... Ld.ª”, confirmou que a mesma sempre foi gerida pelo requerido AA, referindo que apenas processou a contabilidade até junho de 2020, porque não mais lhe foram fornecidos os documentos necessários para o efeito”.

Ora, no que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil. E como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta exceções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro. Mas não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto direto, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reações do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”.
Quanto ao resultado da apreciação da prova pessoal/testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, “O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória, os depoimentos das testemunhas, estes são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Atendo em atenção o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
a) - especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; b) -indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição, c) -devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável e c) -indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso em apreço, podemos considerar que o apelante cumpriu minimamente aqueles ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil.
1.1. -Da reapreciação da prova.
Depois de ouvida, cuidadosamente, a gravação de todos os depoimentos prestados em audiência, ou seja, os chamados à colação pelo apelante, e intuindo dos silêncios, das frases incompletas, das contradições, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, e tudo interpretado e analisado à luz do teor dos documentos juntos aos autos, não se encontram razões que permitam concluir que a decisão sobre a matéria de facto ora impugnada se encontre eivada de erro e, menos ainda, de erro manifesto ou grosseiro.
Mas vejamos.
BB, AI da sociedade insolvente, o mesmo foi confrontado com o relatório junto aos autos da sociedade insolvente esclareceu o que dele consta e as razões, que segundo ele, determinaram a insolvência da empresa e no fundo tentou perceber se os clientes (cerca de 10/11) que compraram produtos à empresa tinham pago e quando, porque tais valores mostravam-se em aberto na contabilidade. Todos responderam e todos asseguraram e, alguns até comprovaram documentalmente, que tinham pago.
Referiu, quanto à colaboração da insolvente consigo, que “…nunca ninguém me impediu de entrar… nunca ninguém me colocou obstáculo…de me por em contato com a contabilista …” .Mais referiu que a contabilidade existente era muito fraca, arcaica e sem controlo das contas bancárias, dos saldos “… mas não havendo documentos…não se pode fazer milagres…”. Todavia, confirmou que o requerido nunca lhe respondeu às questões que lhe foi colocando, nem às que consequentemente lhe foram feitas pelo tribunal, sendo que apenas a contabilista acabou por entregar a documentação solicitada e responder às questões colocadas, após solicitação do tribunal, assim como nunca lhe prestou quaisquer informações sobre a atividade da empresa insolvente desde a declaração de insolvência e até ao encerramento da atividade. Não obstante lhas ter solicitado.
O apelante AA confirmou a sua atuação como gerente da sociedade insolvente e quanto à questão de não existir contabilidade organizada desde junho de 2020, foi manifestamente evasivo, dizendo tão só que tal devia ser preguntado à contabilista “…por eu acho que tinha...”. O mesmo referiu também que não obstante a declaração de insolvência a empresa manteve-se em atividade até janeiro de 2021.
Quanto ao destino dado pela empresa insolvente às quantias recebidas de clientes já depois da data da insolvência, cerca de €61.000 euros em 06.11.2020, o mesmo respondeu também de forma evasiva, “… não me recordo de nada disso…”, dizendo ainda que tal deveria ser perguntado à empregada de escritório, no caso, a sua mulher porque era ela que tratava do escritório. E quanto à quantia total de cerca de €200.000,00, registada como pagamentos de clientes em dezembro de 2020, respondeu “…é impossível…” , “…todos pagaram e por transferências bancárias …”, “…isso é enganador, está tudo registado na contabilidade e se não entrou nas contas da empresa… não sei… não sou eu que faço a contabilidade…”, e quanto ao destino dado a essas quantias declarou que “…foi para pagar rendas, salários aos empregados, tudo…”, e ainda “precisava de dinheiro para comprar outras coisas … vendi ao desbarato…”. E mais há frente esclareceu que “…posso ter levantado algumas quantias do multibanco para coisas pequenas … gasóleo, almoços, … mas nada de especial…”.
Quanto à questão da colaboração com o AI, disse que “…foi pedido tudo à contabilidade e eles mandavam as coisas para ele…”. Por fim, o requerido/apelante, confrontado pelo tribunal, deu autorização para o tribunal aceder às contas bancárias da empresa insolvente, e mais o Tribunal notificou os clientes da empresa insolvente para comprovaram os pagamentos, cujos saldos estão em aberto na contabilidade.
Posteriormente, o mesmo foi confrontado com o teor dos documentos chegados ao tribunal, e o mesmo respondeu que fez pagamentos a fornecedores da empresa insolvente e, quanto a outros montantes levantados, por si, da conta bancária da empresa, referiu que ou punha na sua conta pessoal ou dava à mulher. Mais referiu que eram quantias destinadas ao pagamento do seu salário, do salário do seu filho e do da sua esposa… para pagar o empréstimo da sua casa…ou para ela ir às compras “…de resto não levantava para mais nada…”.
A testemunha CC, economista e contabilista a qual declarou que a insolvente era sua cliente, pois fazia a contabilidade da empresa, onde ia regularmente uma vez por mês, buscar a documentação necessária e fez tal desde a constituição da empresa até à data da insolvência. Esclareceu mais tarde que apenas fez essa contabilidade até junho de 2020 (encerrado contabilisticamente em setembro), e apesar da empresa ter continuado a sua atividade até janeiro de 2021, nada mais fez porque também não lhe pagaram mais os seus honorários, nem o programa… Mais referiu que a maioria dos clientes da insolvente faziam os pagamentos por transferência bancária. Daí que tendo a empresa programas de faturação, pelo que emitia as faturas e as guias de transporte, “…eles por hábito não emitiam recibos…” “…e o documento do banco servia a nível de contabilidade como pagamento”. A empresa tinha vários credores, pelos menos aquando do PER, e mais declarou que os clientes da insolvente acabaram por lhe pagar tudo o que havia em dívida, referindo que tal não resultará da contabilidade porque dada a declaração de insolvência o ano não foi devidamente encerrado.
De relevante a testemunha declarou que durante o tempo em que fez a contabilidade da insolvente apenas reparou, nas 2 contas bancárias da empresa (na Banco 2... e no Banco 1...), a ocorrência normal de pequenos levantamentos, depois justificados como para gasóleo, etc…
Da interpretação da prova assim produzida, dúvidas não temos de que efetivamente o AI não foi informado, pelo requerido/apelante da atividade desenvolvida pela sociedade insolvente após a declaração de insolvência, nem lhe foram prestadas contas relativamente a essa atividade, pelo que nenhuma censura nos merece o facto julgado provado e elencado sob o n.º14 que assim se mantém inalterado. Quanto ao facto n.º13, analisando criticamente as declarações do requerido/apelante é nossa convicção de que não foi feita prova segura e cabal do destino dado por si aos montantes que confirmou ter levantado das contas bancárias da empresa insolvente imediatamente antes e depois da declaração da insolvência desta, pelo que também julgamos estar suficientemente provado nos autos que desde julho de 2020, o requerido/apelante procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares de quantia não inferior a €16.405,02, pelo que tal facto também se manterá inalterado.
Pelo que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, e como é sabido, devendo o juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.º 607.º n.º5 do C.P.Civil, julgamos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em apreço neste recurso deve manter-se inalterada, já que não se vislumbra que a mesma enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo esta, por isso, qualquer censura.
Improcedem, as respetivas conclusões do apelante.

2.ª questão – Da qualificação da insolvência e suas consequências.
Defende o apelante que, tendo as quantias por si levantadas e/ou transferidas das contas bancárias da empresa insolvente sido destinada ao pagamento de salários - seus, da sua esposa e do seu filho - todos trabalhadores da empresa, o tribunal de 1.ª instância não teve em consideração que, sendo estes trabalhadores da empresa não podem ser confundidos com pessoas especialmente relacionadas. Todavia, e como acima se deixou consignado, prova segura e cabal não foi feita nos autos da finalidade das quantias (no mínimo €16.405,02) levantadas pelo apelante, mas tão só do seu destino – para contas bancárias por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares.
E assim sendo, e como é sabido, estatui o n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Está comumente assente que o incidente de qualificação da insolvência, tal como está configurado no CIRE, é inovador em relação à legislação anterior e vem de encontro a um problema, cada vez maior na sociedade, em geral, e na economia, em particular, que é a perceção social do uso das pessoas coletivas, por parte das pessoas individuais, como um meio de defraudar as legítimas expectativas dos credores daquelas e, muitas vezes, um instrumento de enriquecimento ilegítimo por parte dos administradores, de direito e/ou de facto, de tais pessoas coletivas. Daí que conste do DL n.º 53/2004, de 18.03 (que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas- CIRE), que um dos objectivos da reforma foi a obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilidade dos titulares de empresa, sendo essa a finalidade do incidente, bem como o propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, objectivo que não seria alcançado se não sobreviessem quaisquer consequências sempre que os titulares de empresas hajam contribuído para tais situações, para tanto, pode ler-se nesse diploma legal que, “o incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos) do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e indicando-se que esta é sempre considerada culposa em caso de prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”.
Ora, como se sabe, o art.º 185.º do CIRE limita a qualificação da insolvência a duas formas: a culposa e a fortuita.
E o art.º 186.º, por sua vez, para além de definir o conceito de insolvência culposa, ou seja, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”, cfr. n.º1; estabelece um conjunto de factos típicos ou factos-índices que, se verificados, conduzem, à qualificação da insolvência como culposa, cfr. n.º 2; e consigna uma presunção de culpa grave dos administradores do devedor que não seja uma pessoa singular, verificadas as situações aí previstas, n.º 3 do citado art.º 186.º do CIRE.
Assim, a norma do n.º 1 do art.º 186.º do CIRE, resulta claramente que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que interceda em termos de causalidade - criando-a ou agravando-a - a actuação do devedor, actuação que tem de ser dolosa ou com culpa grave, sendo que os afectados com a qualificação da insolvência como culposa hão-de ser os administradores de facto ou de direito da sociedade insolvente. E, como vem sendo defendido, quase por unanimidade, na Doutrina e na nossa Jurisprudência maioritária, entende-se que o n.º 2 do citado art.º 186.º do CIRE estabelece, em termos objetivos (desde que verificados/provados os factos integrantes das circunstâncias previstas em cada uma das suas alíneas), uma presunção “juris et de jure”, (inilidível), de insolvência culposa, o que pressupõe e presume a existência de nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência, neste mesmo sentido, enquanto que o n.º 3 desse mesmo preceito consagra apenas, ou pelo contrário, uma presunção “juris tantum”, (ilidível), de culpa grave dos administradores, cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, pág. 14 e Menezes Leitão, in “Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 175.
Dito de outro modo, num caso (o do n.º 2), a verificação dos factos aí, taxativamente, previstos implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa; no outro (o do n.º 3), faz, tão só, presumir a culpa grave dos administradores, os quais podem ilidi-la, fazendo a prova em contrário, cfr. art.º 350.º n.º 2 do C. Civil.
No entanto, ainda que provada a culpa grave (nos casos do n.º 3 do art.º 186.º), tal não tem como consequência direta e necessária a qualificação da insolvência como culposa, pois, para que tal possa suceder, é ainda necessário que se demonstre a existência de um nexo de causalidade entre a conduta incumpridora dos administradores e a situação de insolvência do devedor.
Conforme já referimos, no n.º 2 do art.º 186º do CIRE estipula-se logo que, nas situações aí previstas, se considera sempre como culposa a insolvência (isto é, causada ou agravada por dolo ou culpa grave do devedor ou dos administradores, desde que provadas objectivamente quaisquer das situações aí indicadas). Em tal disposição legal temos situações objectivas, impossíveis de transformação/geração de qualificação da insolvência como fortuita, porque a lei impõe que mediante a verificação das situações aí previstas a insolvência é sempre considerada culposa (presunções juris et de jure).
No que respeita ao grau de culpabilidade, tradicionalmente, a nossa Jurisprudência e Doutrina costumam distinguir três formas de culpa quanto ao seu grau, isto é, quanto à sua maior ou menor intensidade. Fala-se assim em culpa lata (também denominada grave ou grosseira), culpa leve e culpa levíssima, aferindo-se sob um critério de apreciação objetiva, aferindo-se pelo confronto com um tipo abstrato de pessoa. Quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o “bonus pater famílias”– se absteria. Entendendo-se por culpa grave a situação de negligência grosseira, em que a conduta do agente só seria suscetível de ser realizada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas não procederia da mesma forma. Ou seja, a que consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio adotam. A culpa grave apresenta-se assim como uma situação de negligência grosseira, “nimia” ou “magnata negligentia”.

In casu”, face aos factos provados nos autos, mormente que:
-A sociedade “B... Ld.ª” foi constituída em 2015, sendo, desde a sua constituição, AA o seu único gerente.
-Foram reconhecidos créditos no valor global de €291.326,40.
-Na declaração IES, relativa ao ano de 2017, a sociedade “B... Ld.ª” declarou um ativo de €139.199,59, um passivo de €100.399,07 e um capital próprio de €38.800,52.
-Na declaração IES, relativa ao ano de 2018, a sociedade “B... Ld.ª” declarou um ativo de €108.229,27, um passivo de €67.723,52 e um capital próprio de €40.505,75.
-Na declaração IES, relativa ao ano de 2019, a sociedade “B... Ld.ª” declarou um ativo de €216.916,17, um passivo de €175.212,92 e um capital próprio de €41.703,25.
-Foram apreendidos os bens identificados no apenso A, com o valor atribuído de €2.065,00.
-O último balanço disponível diz respeito a junho de 2020, não tendo a sociedade “B... Ld.ª” a sua contabilidade organizada após essa data.
-Após a declaração de insolvência, a sociedade “B... Ld.ª” emitiu e recebeu as quantias tituladas pelas seguintes faturas:



-Durante o ano de 2020, a sociedade insolvente “B... Ld.ª” faturou e recebeu as seguintes quantias:
- €4.920,00 da sociedade C..., Ld.ª;
- €2.978,81 da sociedade D... Ld.ª;
- €29.816,27 da sociedade E..., S.A.;
- €33.228,61 da sociedade F..., Ld.ª;
- €11.474,42 da sociedade G... Ld.ª;
- €50.042,43 da sociedade H... S.A.;
- €8.900,42 da sociedade I..., S.A.;
- €25.954,85 da sociedade J..., S.A.;
- €7.289,97 da sociedade K..., S.A.;
- €4.634,64 da sociedade L... Ld.ª;
- €1.665,11 da sociedade M..., Unipessoal, Ld.ª
- €26.602,52 da sociedade N... Unipessoal, Ld.ª (onde se inclui as referidas em 11.).
- Desde julho de 2020, AA procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares de quantia não inferior a €16.405,02.
-O Sr. A.I. não foi informado da atividade desenvolvida pela sociedade insolvente após a declaração de insolvência, nem lhe foram prestadas contas relativamente a essa atividade – e considerando preceituado nos n.ºs 1 e 2 al. d) do art.º 186.º do CIRE, ou seja, que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. E “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros” dúvidas não nos restam de que a insolvência da sociedade “B... Ld.ª” terá de ser qualificada como culposa, mas tão só pelos fundamentos constantes na al. d) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE, e não das demais aludidas na decisão recorrida.
Pois na verdade, e não obstante se ter provado que à empresa insolvente apenas foram apreendidos os bens identificados no apenso A, com o valor atribuído de €2.065,00 e que lhe foram reconhecidos créditos no valor global de €291.326,40 e, que nas declarações de IES dos anos de 2017, 2018 e 2019 a empresa declarou sempre ativos superiores ao passivo e um volume de capital próprio, e mais se provou ainda que a sociedade insolvente se tendo mantido em atividade até janeiro de 2021, mas que o último balanço disponível diz respeito a junho de 2020, não tendo a sociedade a sua contabilidade organizada após essa data, entendemos que daí não decorre, sem mais, que a mesma, por intermédio do seu gerente, ora apelante, tenha incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, cfr. al. h) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE.
Também dos factos assim provados nos autos julgamos que não resulta, sem mais, que, por via da atuação provada nos autos do gerente da empresa insolvente, ora apelante, tenha sido destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”, cfr. al. a) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE.

Finalmente, como se sabe, decorre do disposto no art.º 83.º do CIRE que: “1 - O devedor insolvente fica obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
(…)
c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa (…).
Ora, considerando o que resulta provado nos autos, temos por certo que o ora apelante, enquanto gerente da empresa insolvente e enquanto a mesma se manteve em atividade, mesmo depois da declaração de insolvência, ou seja, até janeiro de 2021, não informou o AI da atividade que foi desenvolvida pela insolvente, nem lhe prestou contas relativamente a essa atividade, mas não resulta provado nos factos assentes nos autos que essas informações lhe foram solicitadas pelo AI, ou que essa colaboração lhe foi pedida pelo AI, e ainda que o apelante tenha reiteradamente recusado tais informações, destarte é nossa segura convicção que não está suficientemente preenchido o fundamento previsto na al. i) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE.
Posto isto e, sem necessidade de outos considerandos, toda a atuação assim comprovada da insolvente, sob o “comando” do ora apelante indiscutivelmente integra a circunstância prevista na al. d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, ou seja, a insolvência é sempre culposa, pois que a situação foi criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do ora apelante, pois este já depois da declaração da insolvência, e enquanto a empresa insolvente se manteve em atividade, dispôs dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros, “in casu” o apelante, desde julho de 2020, procedeu ao levantamento e/ou à transferência para contas por si tituladas e/ou tituladas por seus familiares de quantia não inferior a €16.405,02, mas de tal facto não se pode concluir que tal foi feito em contrário ao interesse da insolvente, cfr. al. f) do n.º2 do art.º 186.º do CIRE, como parece ter sido o entendimento alcançado em 1.ª instância.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, é para nós evidente que a insolvência da sociedade comercial “B....,ª é qualificada como culposa, cfr. art.º 186.º n.ºs 1 e 2 al. d) do CIRE, pois que ao assim ter-se agido, indubitavelmente agravou-se a situação de insolvência da empresa devedora.
Pelo que procedem, parcialmente, as respectivas conclusões do apelante.

2.2. – Das consequências da qualificação da insolvência como culposa – do período de inibição.
Dispõe o n.º2 do art.º 189.º do CIRE que: “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
(…)
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
(…)
4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”.
No caso dos autos e no que concerne ao período de inibição do afetado pela qualificação como culposa da insolvência da sociedade “B....,ª, do ora apelante, escreveu-se na decisão recorrida que “(…) Dúvidas não restam que terá de ser afetado pela qualificação o requerido AA, enquanto gerente da sociedade “B... Ld.ª.”
No que respeita à medida da inibição, à luz do princípio da proporcionalidade, considerando toda a factualidade provada e a concreta atuação do requerido, entende-se adequado fixar a inibição para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa em 3 (três) anos e 6 (seis) meses (…)”.
Ora, por via do presente recurso defende o apelante que o período de inibição fixado em 1.ª instância é manifestamente desproporcional, devendo ser reduzido em conformidade com os critérios de justiça e equidade.
Vejamos.
Quanto a esta questão, em sede de Doutrina aceitamos os ensinamentos, de Maria do Rosário Epifânio, in “Manuel do Direito de Insolvência”, pág. 159, segundo a qual e no que se refere à inibição prevista nas als. b) e c) do n.º2 do art.º 189.º do CIRE, deve-se “ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n.º 2 ou do n.º 3”, esclarecendo ainda mais adiante que “deve entender-se a proibição de exercício do comércio, seja este realizado de forma direta ou indireta (por interposta pessoa: v.g., o exercício do comércio por intermédio de familiares do inibido), seja este realizado em nome próprio ou em nome alheio.”. E, mais concretamente no que concerne à inibição prevista na al. c), refere a mesma autora que se deverá, uma vez mais, “ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n.º 2 ou do n.º 3”, mais concretizando que “deve entender-se a proibição de exercício do comércio, seja este realizado de forma direta ou indireta (por interposta pessoa: v.g., o exercício do comércio por intermédio de familiares do inibido), seja este realizado em nome próprio ou em nome alheio”.
Ora, retornando ao caso concreto destes autos, tendo em consideração que apenas foi apurada uma conduta ilícita por parte do gerente da sociedade insolvente, subsumível ao disposto no n.ºs 1 e 2 al. d) do art.º 186.º do CIRE, que tal conduta contribuiu, não para a situação de insolvência, mas sim para o seu agravamento, e em face das demais circunstâncias apuradas com relação à atuação em causa, e atendendo ainda que o período de inibição tem como limite mínimo 2 anos e como limite máximo 10 anos, julgamos ser justo, equitativo e proporcional ao grau de ilicitude e de culpa que se extraiam da conduta do ora apelante, fixar a inibição a aludem as als. b) e c), em dois anos e seis meses.
Procedem, parcialmente, as derradeiras conclusões do apelante.

2.3. – Das consequências da qualificação da insolvência como culposa - quantum indemnizatório.
Sem pejo de nos repetirmos, preceitua-se no n.º2 do art.º 189.º do CIRE que:
“Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
(…)
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
(…)
4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”.
In casu”, e no que respeita ao quantum indemnizatório, entendeu a 1.ª instância, como acima já se deixou consignado que: “(…) Dúvidas não restam que terá de ser afetado pela qualificação o requerido AA, enquanto gerente da sociedade “B... Ld.ª”
(…)
Por último, deverá ser o requerido condenado nos termos do artigo 189.º, n.º 2, e) do CIRE.
Quanto à interpretação deste normativo, importa atentar ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc.1430/13.3TBFIG-C.C1, de 16.12.2015, in www.dgsi.pt,
(…)
No mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.09.
2019, Proc. 7639/18.6T8VNG-D.P1, in www.dgsi.pt:
(…)
Nos autos, verifica-se que a conduta do requerido se afigura ilícita, porquanto violadora de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, para além de se presumir a sua culpa – cfr. artigo 483.º, n.º 1, 2.ª parte do Código Civil.
Quanto à fixação do “quantum” indemnizatório, afigura-se-nos que as condutas que permitiram concluir pela qualificação da insolvência como culposa não permitem reconhecer à atuação do requerido um grau de censurabilidade correspondente à totalidade do passivo.
De facto, não é seguro inferir que tivesse o requerido assumido conduta diversa seria possível o ressarcimento total dos credores.
Por outro lado, se a materialidade provada não fornece critério preciso para a fixação desse montante indemnizatório, também não se afigura que num eventual incidente de liquidação se pudesse avançar nessa indagação.
E, assim sendo, entendemos ser de fixar a indemnização por apelo à equidade, atendendo ao disposto nos artigos 4.º, al. a) e 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Pelo exposto, lançando mão da equidade, tendo em consideração a factualidade
dada como provada (nomeadamente o referido em 13.) e a gravidade da conduta do requerido, entende-se ser de fixar a indemnização em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a liquidar até às forças do respetivo património e a repartir pelos credores da sociedade “B... Ld.ª.” na proporção dos respetivos créditos”.
Defende o apelante que o quantum indemnizatório deverá incidir sobre o prejuízo concreto que foi causado aos credores, de acordo com critérios de proporcionalidade e equidade, mas que nos autos não ficou provado qualquer prejuízo causado aos credores, nem o proveito económico obtido pelas pessoas afetadas pela qualificação, pelo que se impõe a redução do quantum indemnizatório.
Escreveu-se no Ac. do STJ de 22.06.2021, in www.dgsi.pt, cuja jurisprudência entendemos por escrupulosa, que: “(…) independentemente do tipo de responsabilidade que se considere ter sido consagrada no art.º 189.º/2/e) – seja de cariz meramente ressarcitório, seja de cariz sancionatório, seja de cariz misto – quer-nos parecer que sempre a mesma terá que ser considerada como sujeita a algum controlo de proporcionalidade, ou seja, por exigência do princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso (que decorre da própria ideia de Estado de Direito e que é claramente traçado no art.º 18.º/2 da CRP, na parte em que se diz que devem “as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”), o dever de indemnizar estabelecido no art.º 189.º/2/e) do CIRE tem que ter “limites”, tem de algum modo que se relacionar com o grau de culpa das pessoas afetadas e/ou com a gravidade da ilicitude (contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência).
Sem prejuízo, claro está, dos “limites” e do controlo de proporcionalidade (ou porventura mais exatamente de não desproporcionalidade) não ter que ser exatamente o mesmo, quer se considere que o art.º 189.º/2/e) do CIRE enuncia uma sanção (ou também uma sanção), quer se considere que tem um cariz meramente ressarcitório.
Sendo que para nós – enfrentando tal questão – a obrigação de indemnizar consagrada no art.º 189.º/2/e) do CIRE e a responsabilidade aí imposta (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) deve ser considerada como tendo, com todo o respeito por opinião diversa, uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, terá também uma dimensão punitiva ou sancionatória.
O art.º 126.º-B/1 do CPEREF limitava o dever de indemnizar dos administradores à conexão causal entre o comportamento ilícito e o dano: o administrador só respondia (só tinha de responder) pelo montante do dano concretamente causado; ora, não parece, atento o texto do art.º 189.º/2/e) e 4 do CIRE, que se tenha querido recuperar o art.º 126.º-B/1 do CPEREF e limitar o dever de indemnizar dos administradores à conexão causal entre o seu comportamento ilícito e o dano.
Perante os problemas/dificuldades de prova do dano e principalmente de prova da relação de causalidade entre o comportamento ilícito dos administradores e o dano, a responsabilidade (por insolvência culposa) legislativamente consagrada tem justamente o propósito de tornar desnecessária a prova do dano que foi causado pelo comportamento ilícito da pessoa afetada.
É isto que, a nosso ver, se extrai do texto do art.º 189.º/2/e) e 4 do CIRE (e do seu confronto com o texto do art.º 126.º-B/1 do CPEREF), que não inclui, entre os pressupostos de tal responsabilidade, qualquer referência ao dano causado pelo comportamento ilícito da pessoa afetada e que não exige que a concreta atuação da pessoa afetada seja causa da insuficiência do património do insolvente para a satisfação dos créditos não satisfeitos, cfr. neste sentido Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, pág. 390.
Embora tal responsabilidade, prevista e regulada pelo direito da insolvência, tenha em vista, no caso de pessoas coletivas como sociedades, responsabilizar os administradores pelos danos indiretos causados aos credores e nessa medida cumpra uma função ressarcitória, de indemnização de danos, a verdade é que é diferente – pelos seus pressupostos e por utilizar uma “técnica” que, ao contrário da responsabilidade ressarcitória, não se baseia na prova do dano e da relação de causalidade entre o comportamento ilícito e o dano – “especifica” e autónoma da responsabilidade civil dos administradores prevista e regulada pelo direito das sociedades comerciais (cfr. art.ºs 72.º e 78.º do CSC), desempenhando também uma função punitiva dos administradores – sendo, nesta medida, uma responsabilidade também sancionatória – que são condenados, não no dano que causaram, mas sim, na redação do art.º 189.º/2/e) do CIRE, nos “créditos não satisfeitos”, o mesmo é dizer, no deficit patrimonial que decorre da liquidação do património da sociedade.
(…)
Não nos parece pois, com todo o respeito por opinião diversa (como é o caso de Nuno Pinto de Oliveira, in Responsabilidade Civil dos Administradores, pág. 229; ou de Catarina Serra, in Lições de Direito de Insolvência, pág. 166), que o art.º 189.º/2/e) do CIRE consagre uma inversão do ónus da prova: uma presunção de dano e de causalidade, ou seja, a presunção de que a contribuição dos administradores para a insolvência causou um dano aos credores e, em segundo lugar, a presunção de que o dano causado corresponde aos créditos não satisfeitos; e que, nesta linha de raciocínio, o art.º 189.º/4 do CIRE reflita o facto de tais presunções serem ilidíveis, querendo-se com isto dizer que as pessoas afetadas poderão alegar e provar que o seu comportamento não causou nenhum dano ou que o seu comportamento causou um dano inferior ao montante dos créditos não satisfeitos (e que, se não o alegarem ou não o conseguirem provar, se a aplicará a alínea e) do n.º 2).
(…)
Em todo o caso, tal não pode significar, como já referimos, que tais medidas/sanções/indemnizações, pese embora o seu objetivo moralizador, possam ser impostas sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade).
Tudo isto para dizer que não pode ser automaticamente, mas sim atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (o que está provado no processo e o que levou à qualificação), que o juiz pode-deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas.
E entre as circunstâncias com significado para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização.
Resulta do que se acaba de dizer que, sem prejuízo de não vermos (como referimos) no art.º 189.º/2/e do CIRE a consagração duma inversão do ónus da prova, cabe/interessa ao requerido (e sob afetação) alegar e provar todas os factos e circunstâncias que diminuam a contribuição do seu comportamento para a criação ou agravamento da insolvência (e para a mitigação da sua culpa) ou até (o que se antevê como raro, mas que não é de excluir) alegar e provar factos e circunstâncias que demonstrem que o seu comportamento não causou qualquer dano.
Pelo que, caso o requerido (e sob afetação) nada alegue ou prove, terá que ser atendendo às circunstâncias provadas no processo e que conduziram à qualificação e afetação, que o juiz (usando o seu poder-dever) fixará, com prudência e não perdendo de vista a dimensão também sancionatória de tal condenação, as indemnizações, que têm como limite o montante dos créditos não satisfeitos na liquidação do processo de insolvência e que devem estar relacionadas com a sua contribuição (com o seu comportamento ou os comportamentos em que que participou) para a insolvência e para o montante dos créditos não satisfeitos”.
“In casu” apreciando as circunstâncias do caso em apreço, mormente a gravidade da ilicitude da atuação do apelante, acima tida por relevante para a qualificação da insolvência da empresa B... Ld.ª como culposa, ou dito de outra forma, da ilicitude do comportamento do apelante e da contribuição desse comportamento para o agravamento da situação de insolvência da empresa, somos de concluir que “in casu” o fator/proporção em que o comportamento do apelante contribuiu para o agravamento da insolvência da empresa determinante no apuramento do quantum indemnizatório não pode ser fixado em termos de proporcionalidade e à luz de um juízo de equidade em montante superior a €20.000,00.
Pelo que sem necessidade de outros considerandos se julga justo, adequado e proporcional condenar o apelante no pagamento de uma indemnização no valor de €20.000,00 (vinte mil euros), a pagar aos credores da sociedade insolvente, na proporção dos respetivos créditos, a liquidar até às forças do respetivo património.
Procedem, parcialmente, as derradeiras conclusões do apelante.


IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação parcialmente procedente, confirmando-se a decisão recorrida no que concerne à qualificação da insolvência da sociedade comercial B... Ld.ª como culposa, mas apenas à luz do disposto nos n.ºs 1 e 2 al. d) do art.º 186.º do CIRE.
Decreta-se a inibição de AA, gerente da insolvente para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
Condena-se o AA, gerente da insolvente, no pagamento de uma indemnização no valor de €20.000,00 (vinte mil euros), a pagar aos credores da insolvente, na proporção dos respetivos créditos, a liquidar até às forças do respetivo património.
No mais confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante na proporção do respetivo decaimento.

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Sumário:
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Porto, 2024.07.10
Anabela Dias da Silva
Márcia Portela
Maria da Luz Seabra