Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4024/20.3T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP20210128/4024/20.3T8VNG.P1
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não existe fundamento legal para formular o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial quando os factos essenciais aí descritos são incompreensíveis e incongruentes entre si, porquanto o melhoramento da descrição da causa de pedir apenas serve para precisar insuficiências ou imprecisões narrativas (petição inicial aperfeiçoada)e não para superar incoerências graves que implodem a exposição jurídica dos factos, o que só seria ultrapassável mediante uma nova e distinta exposição dos factos (petição inicial reformulada).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 4024/20.3T8VNG.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: António Paulo Vasconcelos; Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1. No processo n.º 4024/20.3T8VNG do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, J2, da Comarca de Porto, em que são:

Recorrente/Autor: B…

Recorridos/Réus: C… e D…

foi proferida decisão em 29/jun./2020, cuja parte final é a seguinte:
“Isto dito, não se vislumbra, em concreto, a possibilidade de através do n.º 2 do artigo 590º, do Código de Processo Civil, suprir a falta da alegação dos factos concretos que permitam à autora, com fundamento no contrato de arrendamento que está junto aos autos, a tutela do pedido que formula.
A nulidade de todo o processo constitui uma excepção dilatória (alínea b) do artigo 577º, do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (artigo 578º, do Código de Processo Civil), que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (n.ºs 1 e 2 do artigo 576º, do Código de Processo Civil).
Por tudo o exposto, conhecendo da aludida excepção, absolvem-se as rés da instância. ...”
1.1. A A. interpôs a presente ação invocando um contrato de arrendamento, sem precisar factualmente o mesmo, mas remetendo para um documento, sustentando que os RR. em 27/out./2016 compraram o locado, tendo posteriormente a esta data a A. sido assediada para deixar a habitação, tendo-lhe cortado em 03/jun./2019 o acesso à água do poço, de que se servia à mais de 40 anos, em virtude de não poder aceder à rede pública de abastecimento de água. Mais sustenta que na sequência desse corte de água deduziu queixas contra os RR., assim como que a partir de janeiro de 2020 passou a ter acesso à rede pública de águia, tendo aqueles colocado um portão elétrico de grandes dimensões no “acesso à propriedade”, entregando à A. uma chave de entrada do referido portão, com uma largura de 70 cm, negando-lhe a entrega de um comando do portão. Para o efeito invoca uma servidão de águas a seu favor, tendo os RR. enquanto senhorios a obrigação de assegurar o gozo do imóvel, terminando com o seguinte pedido:
“Deve a presente ação ser julgada provada e procedente, e, por via disso seremos Réus, C… e D…, condenados:
i. Na religação da água do poço.
ii. Na entrega de um comando eletrónico para abertura do portão de entrada.
iii. No pagamento da sanção pecuniária no valor de € 5.400,00.
iv. No pagamento da indemnização por danos não patrimoniais na quantia de€ 1.500,00.”
2. A A. insurgiu-se contra aquele despacho tendo em 15/set./2020 interposto recurso, suscitando a sua revogação e substituição por outro, mediante o qual seja “notificada nos termos do n.º 4 do artigo 590.º do CPC, com vista ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando-se prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido, seguindo-se o demais termos da lei até final, como é de necessária e inteira”. Para o efeito, apresentou as seguintes conclusões:
1.O Tribunal o quo pela presente ação de processo comum absolveu as Rés da instância, julgando para tanto que, certamente por lapso, na revisão da peça processual, os artigos 1º a 3º surgem incompreensíveis (os artigos 1º e 2º não identificam as partes do contrato e, por isso, não se compreende o artigo 3º).
2.E que no contrato de arrendamento o senhorio não se obriga a dar uso e fruição aos inquilinos de nenhum poço, nem o acesso através de nenhum portão.
3.E, no entendimento do Tribunal a quo, não vislumbra, em concreto, a possibilidade de através do n.º 2 do artigo 590º, do Código de Processo Civil,suprir a falta da alegação dos factos concretos que permitam à autora, com fundamento no contrato de arrendamento que está junto aos autos, a tutelado pedido que formula.
4.A Recorrente não concorda com esta posição, pelo que a douta sentença que a absolve as rés da instância, com o devido respeito, que é muito, merece reparo, entendendo a Recorrente que houve entendimento errado do Tribunal a quo, sobre a decisão recorrida, pelo que não se pronunciou sobre questões que se deveria ter pronunciado, não se encontra devidamente fundamentada e nem fez correta interpretação da lei aos factos.
5.O artigo 590.º do C. P. Civil trata da gestão inicial do processo, ou seja, o juiz analisa o processo e “peneira-o”, não apenas das questões formais que interessa resolver como também selecionando as questões de facto (os temas da prova) que interessa apurar, programando também a atividade subsequente, até que seja proferida sentença. Este é o novo modelo do CPC
6.O “pré-saneador” pode consistir, também, num despacho para aperfeiçoamento dos articulados, convidando as partes a “suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (artigo 590.º, n.º 4).
7.Com o novo CPC, o despacho de aperfeiçoamento passou a ser vinculado. Ou seja, em vez de “o juiz pode…” do anterior artigo 508.º, n.º 3, temos agora,no novo Código, outra expressão: “incumbe ainda ao juiz…” (artigo 590.º, n.º4).
8.No caso dos autos, na verdade, por mero lapso de escrita, os artigos 1.º a 3ºaparecem incompreensíveis, por isso mesmo, nos termos do n.º 4, do artigo590.º do CPC “…incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
9.E, em cumprimento do n.º 4 do artigo 590.º do CPC, o Mm. Juiz a quo deveria convidar a Autora ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido, na medida em que os artigos 1.º a 3.º da p. i. surgem, por mero lapso de escrita, incompreensíveis.
10.No que concerne ao contrato de arrendamento, junto aos autos a fls …, o mesmo tem data de 01.05.1976, e, decorre dos factos expostos, que, desde sempre, o locador assegurou à locatária o gozo da coisa locada que, sempre compreendeu, também, a fruição da água do poço e o acesso através do portão.
11.Pelo que, o facto de a propriedade mudar de mãos não implica que a locatária veja diminuído o gozo da coisa locada, uma vez que não foi realizado outro qualquer contrato de arrendamento para substituição do já existente.
12.Pelo exposto, entende a Recorrente que houve entendimento errado do Tribunal a quo, sobre a decisão recorrida, pelo que, nos termos do n.º 4, do artigo 590.º do CPC incumbia ao Mm Juiz a quo convidar a autora ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se completasse ou corrigisse o inicialmente produzido, por forma a que os artigos 1 a 3 da petição inicial se mostrassem compreensivos.
13.Entende a Recorrente que houve entendimento errado do Tribunal a quo, sobre a decisão recorrida, pelo que não se encontra devidamente fundamentada, deixando de se pronunciar sobre questões para as quais se deveria ter pronunciado e nem fez correta interpretação da lei aos factos,violando o disposto no artigo 590.º, n.º 4 do CPCivil, sendo a mesma nula nos termos do artigo 615.º do C. P. C.
3. O recurso não foi desde logo admitido, tendo sido apenas mediante reclamação, vindo a ser autuado em 10/dez./2020, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
4. Não existem questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer ou obstem ao conhecimento do recurso.
5. O objeto do recurso incide em saber se a petição inicial é inepta ou a mesma deve ser aperfeiçoada.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
O Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121 – NCPC) estabelece no seu artigo 186.º as causas de ineptidão, as quais conduzem à nulidade de todo o processo. Para o efeito preceitua-se no n.º 1 que “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”, acrescentando o n.º 2 que “Diz-se inepta a petição: a)“Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis” – sendo nosso o negrito, agora e adiante. A ineptidão gira em torno da causa de pedir e do pedido, enquanto elementos essenciais estruturantes e estruturadores do objeto do processo e, por via disso, dos poderes de cognição do tribunal e da sua vinculação temática, de modo a assegurar a correspondente tutela jurídica. A primeira circunstância de ineptidão ocorre quando não exista qualquer narração da causa de pedir, não existindo qualquer traço descritivo, ou então não tenha sido formulado qualquer pedido. Mas também ocorre quando a causa de pedir ou/e o pedido sejam incompreensíveis, surgindo completamente indecifráveis. E torna-se percetível que assim seja, porquanto quando tal ocorre a ação não tem conteúdo/assunto ou pretensão/consequência jurídica que mereça a intervenção do tribunal. A segunda circunstância de ineptidão surge quando exista uma desarmonia irreversível entre a exposição dos factos e a pretensão jurídica formulada. Isto significa que o percurso expositivo da factualidade está em oposição com a pretendida solução jurídica, existindo um impacto entre ambas que não possibilita qualquer tutela jurisdicional. A terceira circunstância de ineptidão é revelada pela desarmonia material entre as distintas descrições da factualidade ou então entre as diversas pretensões ou consequência jurídicas que foram formuladas. Qualquer uma destas contradições faz implodir o objeto do processo.
Próximo da noção de ineptidão está a petição deficiente, o que sucede, seguindo agora o artigo 590.º, n.º 4 do NCPC, quando aquele articulado apresenta “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”, pois neste caso à lugar a convite ao aperfeiçoamento. A leitura destes normativos deve efetuar-se de modo conexionado e mediante a orientação legal do artigo 2.º do NCPC e constitucional do artigo 20.º, n.º 4 da Constituição, assegurando-se o direito a um processo justo e equitativo na modalidade de obtenção de uma decisão judicial em prazo razoável. E na decorrência do dever de gestão processual (artigo 6.º NCPC), bem como do princípio de justiça imanente ao Estado de Direito Democrático (artigo 2.º Constituição), será de conceder primazia às decisões que procuram uma justiça substantiva, em detrimento de expedientes processuais, muitas vezes mais preocupados com leituras estatísticas dos registos de pendências.
No que concerne ao ónus de alegação das partes encontramos no artigo 5.º, n.º 1 do NCPC a sua regra nuclear, ao estabelecer que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exce[p]ções invocadas”. Precisando esta carga narrativa, será de destrinçar aquilo que está a cargo de cada uma das partes, designadamente quem demanda (autor) e quem é demandado (réu). Começando pelo demandante e de acordo com o artigo 552.º, n.º 1, alínea d) do NCPC “Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”, enquanto mediante a alínea e), deve “Formular o pedido”. No que concerne ao demandado ou réu, deverá este, face ao preceituado no artigo 572.º, alínea b), “Expor as razões de facto e de direito que se opõe à pretensão do autor” e alínea c) “Expor os factos essenciais em que se baseiam as exce[p]ções deduzidas, ...”, impondo-se, como regra, que toda a defesa seja deduzida na contestação, cabendo-lhe um preciso ónus de impugnação (artigos 573.º, 574.º, n.º 1, ambos do NCPC). Mas o que são factos essenciais e o que é um pedido, conceitos operativos da linguagem jurídica, usualmente invocados?
Na decorrência do artigo 581.º NCPC, mas através do seu n.º 3, a causa de pedir corresponde à sua razão de ser factual (ratio petitum), ou seja, ao facto jurídico subjacente a esse pedido. Deste modo e no que respeita à noção de causa de pedir, o legislador afastou-se de um conceito puramente naturalista de facto, para assumir um conceito jurídico de facto. Assim, factos jurídicos são os acontecimentos ou circunstâncias da realidade, decorrentes tanto da conduta humana, como de ocorrências da natureza ou resultantes de qualquer outra origem (v.g. robótica), que têm relevância jurídica, como já deixámos referenciado no Ac. TRP de 10/jan./2019, acessível em www.dgsi.pt, assim como os demais a que não se faça uma menção expressa da sua origem – na sintética e lapidar expressão do Ac. do STJ de 07/nov./1969 (BMJ 191/219), factos são “fenómenos da natureza ou manifestações concretas dos seres vivos”. Existem, no entanto, os designados factos institucionais, os quais incorporam ou reproduzem a configuração de padrões sociais comuns de designação da realidade, ainda que com conotações jurídicas, que a jurisprudência tem assinalado como expressões de uso corrente, “ligados à concretização de certos factos” (Ac. STJ 02/dez./1982, BMJ 322/308) – tal sucede, por exemplo, com a palavra “emprestar”, como se referiu neste último acórdão, ou “renda” no âmbito de um contrato de arrendamento, para designar a contra prestação monetária a cargo do arrendado.
Por sua vez e por via instrumental do n.º 2 do artigo 581.º, do NCPC, pedido (petitum) significa o efeito jurídico pretendido, desdobrando-se este em duas vertentes: i) a declaração jurídica propriamente dita – pronunciatio (v.g. declaração/reconhecimento do direito de propriedade); ii) a subsequente consequência material – condennatio (v. g. entrega ou restituição da propriedade). Nalgumas situações, pode-se aferir a partir desta última o carácter implícito daquela, como de resto tem sido seguido pela jurisprudência, de que é exemplo o Ac. STJ de 02/dez./2008 (Cons. Hélder Roque) no âmbito de uma ação de reivindicação e mais recentemente o Ac. TRP de 08/mar./2019 (Des. Rui Moreira) relativamente à execução específica de um contrato-promessa.
Mas os poderes de cognição do tribunal não estão limitados aos factos essenciais invocados pelas partes, como decorre do n.º 2 do citado artigo 5.º do NCPC, porquanto “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:” os outros que não sejam essenciais. E estes são os factos instrumentais que resultem da instrução da causa (a), os factos complementares ou concretizadores (b) assim como os factos notórios ou de conhecimento oficioso (c) (5.º NCPC). Será o âmbito global desta factualidade, factos essenciais a cargo das partes e factos não essenciais que o tribunal está vinculado, por razões de ofício, a conhecer, que fixam o objeto do litígio. E daí que surjam os temas de prova (596.º, n.º 1 NCPC), assim como a vinculação temática por parte do tribunal, através da subsequente sentença (607.º, n.º 3; 607.º, n.º4, NCPC).
Deste primeiro quadro jurídico, podemos assentar o seguinte em relação à construção da petição inicial e ao enquadramento dos poderes disciplinadores do tribunal: i) a petição visa propiciar à defesa o conhecimento do thema petitum e, em conjugação com a contestação, apresentar ao tribunal o thema decidendum, mediante a descrição de um núcleo factual essencial e inteligível; ii) a falta absoluta deste núcleo factual, por inexistência absoluta ou ininteligibilidade integral da sua materialização, gera uma petição inepta, enquanto a sua insuficiência ou imprecisão, seja na exposição, seja na concretização, torna uma petição deficiente. Por sua vez, a apontada contradição causa de pedir/pedido e a incompatibilidade intrínseca entre causa de pedir ou entre pedidos não permite que haja qualquer tipo de tutela jurídica, porquanto o tribunal não se pode substituir às partes na narração dos factos essenciais, como na formulação dos pedidos ou então optar por uma enunciação da factualidade em detrimento de outra, o mesmo sucedendo quanto às suas consequências jurídicas.
No caso em apreço temos um esboço muito ligeiro da descrição de um contrato de arrendamento, sendo certo que a invocação de um documento permite a demonstração dos correspondentes factos, mas não substitui a sua narração, mormente dos seus factos essenciais. Mas essa ligeireza sempre poderia ser superada. Mas o que não pode ser ultrapassado é a ininteligibilidade da narrativa da causa de pedir. Passando a explicitar, será de referir que desde um primeiro momento que somos levados a que o cerne da causa de pedir esteja nesse contrato de arrendamento, sendo a base factual de todas as pretensões jurídicas formuladas pela A.. Porém, esta invoca direito à água do poço e como estão expostos os acontecimentos, tal não passa por esse contrato de arrendamento, mas por uma factualidade que se mostra impercetível. E tanto é assim que a mesma não precisa geograficamente a localização desse poço, mas tudo levando a que este se situe no exterior do locado. E tanto é assim que com base num contrato de arrendamento vem adiante invocar um direito de servidão à água do poço, o qual é a seu favor e não benefício do prédio, quando se sabe que as servidões legais de águas são a favor de prédios, como decorre do artigo 1557.º, n.º1 do Código Civil. Mais será de referir que a existir a propriedade das águas particulares, como são as provenientes dos poços, estas têm por base os títulos de aquisição enunciados no artigo 1390.º do Código Civil e nada se diz a este respeito. Mas se a A. invoca a sua qualidade de arrendatária, não pode depois pretender que seja titular de um direito real de servidão de águas ou então proprietária de águas. Tais pretensões são manifestamente contraditórias. Mas nada obstava que, com base na liberdade contratual (405.º Código Civil), existisse um contrato de cedência da água desse poço. No entanto, nada foi alegado nesse sentido e a existir tal contrato o mesmo é estranho ao arrendamento aqui em causa.
Por último, na descrição minimalista que a A. faz do contrato de arrendamento, não se chega a perceber se o objeto do locado, designadamente a sua área,incorpora o referenciado portão–apenas se menciona ao “acesso à propriedade”, à dimensão de 70 cm da porta, assim como à entrega da sua chave (itens 31.º e 32.º p.i.). Mas então pergunta-se: i) em que medida é que a A., enquanto inquilina, se encontra perturbada no gozo do imóvel?; ii) foram feitas obras no locado ou, mais uma vez, num prédio distinto do locado? E tal é relevante perceber. Primeiro porque de acordo com o artigo 1037.º, n.º 1 do Código Civil “Não obstante convenção em contrário, o locador não pode praticar atos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário, com exceção dos que a lei ou os usos facultem ou o próprio locatário consinta em cada caso, mas não tem obrigação de assegurar esse gozo contra atos de terceiro”, acrescentando o n.º 2 que “O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes. Daí que seja relevante descrever a correspondente factualidade, de modo a se perceber o que está em causa, designadamente como se fazia o acesso ao locado e como agora se faz, o que não foi feito. Em segundo, de acordo com o artigo 1074.º, n.º 1 do Código Civil “Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”. E ficamos sem saber se tal sucedeu, porquanto não desconhecemos se o tal portão foi colocado na área do locado, designadamente nos seus limites, e aqui tem toda a pertinência o contrato de arrendamento, ou então no exterior do locado, que até pode ser um acesso comum a distintos prédios, e aqui temos de mudar de azimute. Nada sabemos. Isto tudo significa que a causa de pedir é ininteligível, porquanto não tem uma narrativa dos factos de modo a se perceber o que está em causa. Sendo incompreensíveis e incongruentes os factos essenciais invocados na p.i., não existe fundamento legal para formular qualquer convite à A. para melhor descrever a matéria de facto que aí consta. E isto porque o aperfeiçoamento apenas pode servir para precisar insuficiências ou imprecisões narrativas e não para superar incoerências, reformulando totalmente a exposição dos factos. Nesta conformidade, não existe nenhuma censura a fazer ao despacho recorrido.
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Na improcedência do recurso, as suas custas ficam a cargo da recorrente – 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto por B…, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas deste recurso a cargo da recorrente.

Notifique.

Porto, 28 de janeiro de 2021
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço