Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1280/23.9T8MTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAQUEL CORREIA DE LIMA
Descritores: VENDA DE VEÍCULO DEFEITUOSO
DIREITO DO CONSUMO
PRODUTOR
INTERVENÇÃO PROVOCADA ACESSÓRIA
Nº do Documento: RP202502251280/23.9T8MTS-A.P1
Data do Acordão: 02/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o Autor optado, no caso da venda de veículo defeituoso, por demandar apenas o vendedor, sendo admissível que demandasse o produtor ao abrigo do D.L. n.º 67/2003, tal não significa que o réu possa fazer intervir este último a título de intervenção principal.
II - De acordo com o modo como foi configurada a acção, pelo autor, ao réu resta fazer intervir aquele terceiro, provocando a sua intervenção a título acessório, assegurando o seu direito de regresso em caso de procedência da acção.

(Sumário da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 4

Processo n.º 1280/23.9T8MTS








ACÓRDÃO





I. RELATÓRIO



AA e BB vieram intentar acção sob a forma de processo comum contra A... S.A, pedindo se condene a Ré:
· à substituição do veículo, objeto dos presentes autos, por outra viatura nova da mesma marca, modelo, versão e ano;
ou, em alternativa,
· à resolução do contrato de compra e venda in casu, condenando-a à restituição do preço do bem pago pelos AA., no montante de 29.900,00€ (vinte e nove mil e novecentos euros) acrescido de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
em todo o caso:
· b) proceder ao pagamento de indemnização por danos não patrimoniais no valor de €5.000,00 (cinco mil euros) acrescido de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
· c) proceder ao pagamento das custas, procuradoria condigna e demais encargos legais.
Para tanto alegam que adquiriram, para uso pessoal, o automóvel de marca ..., Modelo ..., matrícula ..-..-DO, através de contrato de compra e venda celebrado entre a R. e os AA. pelo preço de 29.900,00 € (vinte e nove mil e novecentos euros).
Ademais, à compra do automóvel supramencionado juntou-se a extensão de garantia por mais 3 (três) anos. Sucede que em maio de 2021, os AA. detetaram um defeito na câmara de marcha atrás do veículo supramencionado, deixando a mesma de funcionar. Tal defeito foi comunicado à R., tendo o automóvel dado entrada nas oficinas da R. em 25/06/2021 para verificação e possível reparação. A ação da R. revelou-se infrutífera mantendo-se a anomalia, tendo em agosto de 2021 o veículo dos AA. voltado ao espaço da R. e em outubro de 2021 a câmara traseira foi integralmente substituída.
Ora, em dezembro 2021 e em janeiro de 2022 foram reportadas à R., novamente, falhas na câmara de marcha atrás e o carro deu de novo entrada no estabelecimento da R., em janeiro de 2022, para nova tentativa de reparação. Em fevereiro de 2022, a câmara continuou a falhar e o veículo regressou ao espaço da R., no início de março do mesmo ano, tendo a R. indicado que a marca iria fazer um “update” do software, pelo que teria de se aguardar pelo mesmo até à semana 42 do ano de 2022.
Sucede que, a data do “update” indicada pela R. foi constantemente adiada até à transata semana, em que no dia 22 de fevereiro de 2023, o veículo deu entrada nas instalações da R. para se proceder à tão aguardada atualização do software. Contudo, esta atualização ainda não estava disponível para o veículo dos AA,. Na verdade, para além da pendência da atualização do software, entre as partes, existiram negociações extrajudiciais tendentes à resolução do presente litígio, mas estas concluíram-se por malogradas.
*

A Ré A..., S.A contestou impugnando a versão dada pelos Autores.
Veio pedir a intervenção da “B..., S.A.” dizendo: há que aferir da legitimidade da Ré que, conforme constataremos infra, não deverá constar na presente ação, por si só, como sujeito passivo, atendendo à relação material controvertida. Para tal, é necessário uma análise exaustiva da lei aplicável, concretamente, de dois diplomas legais: o Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril (aplicável, à data da verificação dos alegados defeitos) e o Decreto-lei n.º 383/89, de 6 de novembro, relativo à Responsabilidade decorrente de produtos defeituosos. O DL n.º 383/89, de 6 de novembro transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 85/374/CEE, que fixa a responsabilidade do produtor perante produtos colocados em circulação que padeçam de defeitos. O seu artigo 1.º estabelece que “O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação”. – sublinhado nosso. Ora, este diploma legal considerou como “defeito”, num produto, quando o mesmo “[…] não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar […]” –abarcando, somente, as situações em que o defeito coloca em causa a própria segurança do bem defeituoso. Contudo, numa tentativa de colmatar a desproteção do consumidor, a Diretiva n.º 1999/44/CE, estipulou a responsabilidade direta do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição de coisa defeituosa, dando origem ao Decreto Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na Ordem Jurídica Interna Portuguesa. No n.º 1 do artigo 6.º deste último diploma legal, pode ler-se: “[…] o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa pode optar por exigir do produtor a sua reparação ou substituição […]” – sublinhado e negrito nossos. Assim, o DL n.º 67/2003, de 8 de abril veio estender o conceito de “defeito” constante no DL 383/89, de 9 de novembro e, simultaneamente, estender a responsabilidade do produtor, logo no seu preâmbulo, onde refere: “Trata-se, nesta solução, tão-só de estender ao domínio da qualidade a responsabilidade do produtor pelos defeitos de segurança, já hoje prevista no Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de novembro, com um regime de proteção do comprador que já existe em vários países europeus e para que a directiva que ora se transpõe também já aponta.”.
Destarte, tecidas as considerações necessárias no concernente aos preceitos legais aplicáveis, comporta agora aplicar ao caso concreto: conforme referido no início desta peça processual, os Autores deduziram pedidos alternativos, sendo o primeiro deles a substituição do veículo aqui em causa, por outro idêntico, com as mesmas características – uma vez que o veículo apresentou, desde o momento da sua aquisição, um defeito de fabrico. Sendo, por conseguinte, de aplicar o n.º 1 do artigo 6.º do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, na parte em que refere que o consumidor pode exigir, por parte do produtor, a sua “reparação ou substituição”. Estando em causa a sua substituição, têm os Autores a possibilidade de demandar, também, o produtor do veículo automóvel em causa que, no caso, não foi a Ré, mas sim a representante da Marca do automóvel em Portugal, isto é, a “B..., S.A.”. Caso assim não suceda, o vendedor (rectius, a Ré), detém sobre o produtor o Direito de regresso, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 7.º do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, que refere: “O vendedor que tenha satisfeito ao consumidor […] goza(m) de direito de regresso contra o profissional a quem adquiriram a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício daqueles direitos.” Sendo aplicável o n.º 1 do artigo 8.º do mesmo DL – quiçá, por uma questão de economia processual e para evitar mais delongas nos Tribunais. Será, consequentemente, necessária, a Intervenção Acessória Provocada da Sociedade “B..., S.A.”, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 321.º e n.º 1 do artigo 322.º, ambos do Código de Processo Civil. Em face do disposto nas normas citadas e, estando em causa nos presentes autos, a substituição de veículo automóvel por um outro novo, com as mesmas características e um eventual direito de regresso perante o produtor, a presente ação poderia ser intentada quer contra o vendedor, contra o produtor, ou contra ambos. É também este o pensamento acolhido pela Jurisprudência; vejamos, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, onde expressamente se afirma que: “A extensão dos direitos do consumidor adquirente contra o produtor pelos defeitos decorrentes da falta de conformidade do produto, mediante a possibilidade de acção directa contra este, surge com o D.L. n.º 67/2003, por via do disposto no seu art. 6º, n.º 1, limitado, no seu exercício, à reparação ou substituição da coisa. No entanto, o recurso à acção directa contra o produtor não prejudica nem exclui os direitos do consumidor adquirente contra o vendedor, podendo este optar por demandar apenas o vendedor, o produtor ou ambos.” –negrito e sublinhado nossos. No mesmo sentido vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que refere: “Constitui requisito substantivo da intervenção acessória provocada, o eventual direito de regresso da ré (fornecedora), relativamente às sociedades fabricante e importadora (art. 330.º/1 CPC).” Pelo que, desde já se requer a Intervenção Acessória Principal Provocada da pessoa coletiva “B..., S.A.”, com o NIPC ...22, com sede na Rua ..., ..., ... ..., nos termos do artigo 321.º do CPC, com os fundamentos supra descritos.

Os Autores pronunciaram-se, dizendo nada terem a opor quanto ao pedido de intervenção acessória provocada que integra o articulado da contestação apresentada pela Ré.

De seguida foi proferido o seguinte despacho:
Em sede de contestação, requereu a ré a intervenção principal provocada da sociedade B..., S.A., enquanto produtora do veículo.
Para o efeito alega que, por força do regime do Decreto-lei nº 67/2003 de 8 de abril (aplicável, à data da verificação dos alegados defeitos) e do Decreto-lei n.º 383/89 de 6 de novembro, relativo à responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, poderá verificar-se a responsabilidade do produtor perante produtos colocados em circulação que padeçam de defeitos.
Notificados do requerimento, os autores declararam nada ter a opor.
Cumpre decidir.
Conforme se retira do art. 260º conjugado com o art. 564º al. b) ambos do Código de Processo Civil, o princípio da estabilidade da instância tem por consequência a estabilização definitiva dos elementos basilares da instância, assim que citado o réu. Cristalizam-se, nesse momento, o pedido, a causa de pedir e os intervenientes.
Dispõe o art. 316º nº 1 do Código de Processo Civil, em exceção ao referido princípio da estabilidade da instância, que, quando ocorra preterição de litisconsórcio necessário – ou seja, quando esteja em falta nos autos entidade que a lei dispõe ter de ser demandada –, pode qualquer das partes chamá-la a intervir em juízo, através de incidente de intervenção acessória provocada.
Refere, ainda, o art. 318º nº 1 a) do mesmo diploma, que tal incidente deve ser deduzido até ao termo da fase dos articulados, devidamente fundamentado, competindo ao Juiz decidir da sua admissibilidade, quando oportuno e depois de cumprido o contraditório (n.º 2 desse normativo).
A legitimidade, definida pelo art. 30º do Código de Processo Civil, é aferida em função da configuração da relação material controvertida feita pelo autor (nº3) e expressa o interesse em demandar e em contradizer, conforme nos refiramos ao autor ou ao réu, respetivamente.
Algumas ações e determinadas matérias estão sujeitas a disposições específicas em matéria de legitimidade, exigindo a presença obrigatória de mais do que um sujeito, através da figura do litisconsórcio necessário, previsto no art. 33º nº 1 do Código de Processo Civil, sob pena de se verificar uma situação de ilegitimidade.
Concretamente em matéria de responsabilidade civil no âmbito da construção civil, dita o art. 21º nº 1 da Lei nº 31/2009 de 03 de julho, a obrigatoriedade de subscrição de seguro de responsabilidade civil, para as entidades abrangidas pela mesma legislação, as quais vêm elencadas no respetivo art. 2º e abrangem todas as obras de urbanização e os trabalhos de remodelação de solos para fins urbanísticos ou paisagísticos.
O requerimento foi oportunamente deduzido e encontra-se fundamentado alegando-se a eventual responsabilidade do produtor do veículo em causa, assim se evidenciando que a sociedade em causa é parte legítima.
Termos em que admito a intervenção principal provocada de da produtora do veículo, B..., S.A, ordenando a sua citação nos termos e para os efeitos do art. 319º do Código de Processo Civil.
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Uma vez citada a Chamada veio a mesma requerer a Intervenção Principal Provocada do fabricante dizendo que a Interveniente B... é o importador oficial de veículos da marca ... para Portugal, tendo adquirido a viatura objecto dos autos ao seu Fabricante – a C.... Após a introdução da viatura no território nacional a Interveniente B... vendeu-a ao concessionário, a R. A...,. no estado em que a adquiriu ao fabricante, tendo de seguida a R. A... no âmbito da sua actividade comercial, procedido à sua venda à A.. A viatura foi sempre comercializada no estado em que foi adquirida ao seu fabricante, a C.... . A garantia de fábrica do veículo objecto dos autos é dada pelo fabricante do mesmo, a C..., empresa alemã e, portanto, comunitária. Assim, as obrigações decorrentes da garantia associada a estas viaturas assumidas pela Interveniente B... são as que, solidáriamente, emergem do contrato de importador que detém com a C..., sendo a C... a responsável final pela prestação da garantia de bom funcionamento das viaturas, assumindo por isso os custos inerentes. . O apoio técnico que a Interveniente B..., Importador, prestou à viatura objecto dos presentes autos foi efectuado com recurso ao apoio técnico do fabricante da viatura. . Pelo que, admitindo-se – sem conceder - que a desconformidade em causa nos autos, resulta de um defeito de origem, ou seja, resulta do processo de fabrico e montagem da viatura, é à C... que a Interveniente B... reportará no âmbito da garantia desta viatura e, em caso de procedência da acção, o que só à cautela se admite, a Interveniente B... por ser solidariamente responsável, nos termos legais e contratuais, com a C... tem o direito de regresso sobre a C.... . Pelo que ao abrigo do disposto nos artº.s 316º. e 317º. do Código de Processo Civil, desde já se requer a intervenção da C..., com sede em ... 1, ... ..., Deutschland.
Sem conceder, e caso assim se não entenda, Intervenção Acessória Provocada No caso de se entender que não há lugar à requerida intervenção da C... como parte principal, . constatando-se que a Interveniente B... invoca a existência de direito de regresso sobre o terceiro, a C..., caso a ação seja considerada procedente, que a deverá indemnizar pelo prejuízo que a condenação na presente acção lhe cause, ao abrigo do art. 321.º do Código do Processo Civil, desde já se requer a intervenção como parte acessória da C..., com sede em ... 1, ... ..., Deutschland. Porque o direito de regresso da Interveniente B... para com a C... para existir dependerá do reconhecimento, pela sentença a proferir nesta ação, do direito da A. e do correlativo dever da Interveniente B....

De seguida foi proferido o seguinte despacho:

Em sede de contestação, a Ré B... S.A requereu a intervenção principal provocada da sociedade C... na qualidade de fabricante do veículo objecto dos autos.
Alegou, para tanto, e em síntese, que ao abrigo do regime legal aplicável a responsável final pela prestação da garantia do bom funcionamento das viaturas é a C..., sendo a responsabilidade de ambas solidária, pelo que deve esta intervir na lide a título principal.
Subsidiariamente, a mencionada Ré requer a intervenção acessória da C....
Os Autores e a Ré A..., S.A., não deduziram oposição à intervenção provocada em nenhuma das suas modalidades.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 260.º, do Código de Processo Civil, ao consagrar o princípio da estabilidade da instância, dispõe que, após a citação do réu “a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consagradas na lei”.
Entre outras situações, é admitida a modificação subjetiva da instância em virtude dos incidentes de intervenção de terceiros (cf. artigo 262.º, alínea b), do Código de Processo Civil).
Os incidentes de intervenção principal de terceiros visam a constituição como partes, na pendência da acção, de sujeitos jurídicos que não o eram inicialmente.
O artigo 316.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Civil prevê a possibilidade de o Réu deduzir o chamamento de terceiros litisconsortes voluntários da relação material controvertida, quando nisso mostre interesse atendível.
Nos termos do disposto no artigo 317.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “sendo a prestação exigida a algum dos condevedores solidários, o chamamento pode ter por fim o reconhecimento e a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação”.
Por seu turno, o artigo 318.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, dispõe que o presente incidente de intervenção deve ser deduzido na contestação ou, não pretendendo contestar, em requerimento apresentado no prazo que dispõe para o efeito.
A legitimidade, definida do artigo 30.º, do Código de Processo Civil, afere-se em função da configuração da relação material controvertida feita pelo autor (nº 3) e expressa o interesse em demandar e em contradizer, conforme nos refiramos ao autor ou ao réu, respectivamente.
Em matéria de vendas de bens de consumo e das garantias a elas relativas deve, face à data em que o contrato foi alegadamente celebrado, atentar-se no regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril.
O artigo 6.º, do mencionado regime legal prevê a responsabilidade directa do produtor, sendo que o artigo 7.º alude ao direito de regresso do vendedor sobre o produtor.
Em face do exposto, a C... integra a relação material controvertida, existindo uma situação de litisconsórcio voluntário que legitima a sua intervenção principal (cf. Artigos 32.º e 316.º, n.º 3, alínea a), ambos do Código de Processo Civil).
Pelo exposto, admito a intervenção principal provocada da sociedade C..., com sede em ... 1, ... ..., Deutschland.
Proceda à citação da interveniente, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 319.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Custas do incidente a cargo da Ré requerente.
Notifique.
**

Citada a chamada veio a mesma levantar uma questão prévia: DA INADMISSIBILIDADE DO CHAMAMENTO A TÍTULO PRINCIPAL


Para tanto diz que a fim de acautelar uma eventual ação de regresso contra a C... em caso de procedência da presente ação, a Ré B... veio requerer o chamamento da C... aos autos a título principal e, subsidiariamente, a título acessório. Em qualquer dos casos, é fundamento desse chamamento a relação contratual mantida entre C... e B..., e as obrigações assumidas entre si, enquanto fabricante e importador respetivamente, ao abrigo da qual poderia fundar-se, em abstracto, uma qualquer ação de regresso da segunda sobre a primeira.
De facto, e como com meridiana clareza se alcança do exame da Petição Inicial, a presente ação vem, única e exclusivamente, configurada no quadro do regime da compra e venda de bens defeituosos, e assim proposta apenas contra o vendedor,
Não trazendo os Autores à colação qualquer sequer putativa responsabilidade do fabricante, i.e., da C..., pelos danos alegadamente sofridos.
Acontece que a intervenção da C... foi admitida a título principal, nos termos do previsto no artigo 316.º, n.º 3, al. a) do CPC – que permite o chamamento aos autos de litisconsortes voluntários da relação material controvertida, quando nisso se mostre interesse atendível –, cf. Despacho datado de 11.12.2023, com ref. Citius n.º 454769656,
Sem embargo de aí se referir, no entanto, que “a legitimidade, definida no artigo 30.º do Código de Processo Civil, afere-se em função da configuração da relação material controvertida feita pelo autor (n.º 3) e expressa o interesse em demandar e em contradizer, conforme nos refiramos ao autor ou ao réu, respectivamente”.
Porém, in casu, não estamos, como bem se vê, perante um caso de litisconsórcio, mormente voluntário, inexistindo qualquer responsabilidade solidária no quadro da ação (i.e., da relação material controvertida) como configurada pelos Autores, perante quem não poderá a C... ser directamente responsabilizada.
Na verdade, uma eventual responsabilidade da aqui C...(que não se concede) apenas
poderia ser efetivada no âmbito de uma ação de regresso – como, aliás, é admitido pela Ré B... no requerimento de intervenção formulado.

De seguida foi proferido o seguinte DESPACHO:

A interveniente C..., na sua contestação, suscitou várias questões, nomeadamente (i) a inadmissibilidade da sua intervenção a título principal, (ii) a caducidade, (iii) a sua ilegitimidade passiva (ainda que esta não se encontre individualizada) e (iv) o comportamento abusivo dos autores.
Notifique os autores para querendo, em 10 dias, responderem a estas questões/exceções, ao abrigo do princípio do contraditório, previsto no art. 3º nº 3 do Código de Processo Civil.
Desde já se advertem os autores que caso optem por não responder nesta sede, fica precludida a possibilidade de lhe responderem em momento posterior.
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Mais notifique a interveniente B..., S.A (que foi quem requereu a intervenção da C...) para querendo, igualmente responder à questão da intervenção da C... dever ser apenas uma intervenção a título acessório, única questão relativamente à qual se entende que terá interesse em responder.
Também se adverte a interveniente B... que caso opte por não responder
nesta sede, fica precludida a possibilidade de lhe responder em momento posterior.
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Os Autores vieram responder dizendo:
A INADMISSIBILIDADE DA INTERVENÇÃO A TÍTULO PRINCIPAL

Ora, os AA. intentaram a presente a ação contra a R. A.... Na verdade, poderiam tê-lo feito diretamente contra o produtor ou fabricante, nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, tendo optado por intentar contra a Vendedora, in casu, a R. A.... Assim, os AA. são do entendimento do douto Tribunal, vertido no despacho datado de 11/12/2023, referência citius n.º 45476965, em que em suma a atenta que a “C... integra a relação material controvertida, existindo uma situação de litisconsórcio voluntário que legitima a sua intervenção principal (cf. artigos 32.º e 316.º, n.º 3, alínea a), ambos do Código de Processo Civil).”Contudo, e salvo melhor entendimento, se o douto Tribunal compreender que C... não deve intervir a titulo principal, sempre se dirá que, nos termos do 7º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril,, existirá direito de regresso das restantes R. sobre esta última, sendo que de acordo com o n.º1 do artigo 8º do mesmo diploma, “o vendedor pode exercer o direito de regresso na própria acção interposta pelo consumidor”. Intervindo, neste caso, a C... a título de intervenção acessória provocada.

De seguida foi proferido o seguinte despacho:

A interveniente C..., na sua contestação, suscitou a inadmissibilidade da sua intervenção a título principal e a sua ilegitimidade passiva.
Os autores responderam a tais exceções.
Considerando que o Tribunal já se pronunciou sobre tais questões, no despacho que admitiu a intervenção e mandou citar a interveniente, mostra-se despiciendo suscitar novamente essas questões.
Caso o Tribunal entendesse como a interveniente, não teria admitido a sua intervenção.
Ao admitir a mesma, foi porque entendeu que era parte legítima e que deveria intervir a título principal.
Pelo que julgo improcedentes tais exceções suscitadas pela interveniente C....
As partes são, pois, legítimas.”
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RECURSO
Não se conformando com o teor de tal despacho veio a C... recorrer, apresentando as seguintes conclusões:

1º Vem o presente Recurso interposto do Despacho de 15.10.2024, com a ref. CITIUS n.º 464471092, na parte em que,indeferindo o requerido pela Chamada na sua Contestação quanto ao seu chamamento à presente lide, determinou que o mesmo se mantivesse a título principal.
2.º Contrariamente ao entendido pelo Tribunal a quo no Despacho em crise, não é,
desde logo, despicienda a apreciação do suscitado pela Chamada, na medida em que, quando o Tribunal determinou o seu chamamento, esta não era ainda parte nos autos, tendo a sua Contestação sido o momento primeiro, e próprio, para essa pronúncia.
3.º O caso sub judice não é de litisconsórcio, inexistindo qualquer responsabilidade solidária no quadro da acção (i.e., da relação material controvertida) como configurada pelos Autores - no circunscrito regime jurídico da venda de bens defeituosos -, perante quem não poderá a Chamada ser directamente responsabilizada.
4.º Nessa medida, o chamamento da Recorrente apenas poderia ocorrer a título de intervenção acessória provocada, nos termos do artigo 321.º, n.º 1, do CPC (e não a título principal, cfr. 316.º, n.º 3, al. a) do CPC), uma vez que carece de legitimidade para intervir como parte principal na relação material controvertida, conforme configurada pelos Autores.
5.º Uma eventual responsabilidade da Chamada (que não se concede) apenas poderia ser efetivada no âmbito de uma acção de regresso – como, aliás, é admitido pela B... no requerimento de intervenção formulado –, no reduto de um contrato que não está aqui em apreciação.
6.º Não pode confundir-se a acção de regresso a (eventualmente) propor contra a aqui Recorrente, no âmbito de relação contratual autónoma e distinta da que constitui a causa de pedir na presente lide – e que é fonte de intervenção acessória – com o direito de regresso de um condevedor solidário, em situação de litisconsórcio voluntário – que justificaria uma intervenção principal.
7.º Em todo o caso, não é necessária consequência ou alternativa única à inadmissibilidade do chamamento da Chamada a título principal o seu não chamamento, mas, como in casu se assinalou na Contestação, o seu chamamento a título acessório, estando ao alcance do Tribunal tal convolação
8.º Ao decidir diversamente, não fazendo tal destrinça, nem daí extraindo, pois, as necessárias consequências, fez o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 32.º, 33.º, 316.º, n.º 3, al. a), 321.º, n.º 1, 595.º e 630.º, n.º 1, todos do CPC, devendo ser assim revogado o Despacho a quo, e substituído por outro que rejeite a intervenção da ora Recorrente a título principal.

Termos em que

Deve ser dado integral provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser revogada a Decisão recorrida e substituída por outra que rejeite o chamamento da Chamada a título de intervenção principal, prosseguindo os autos os demais e ulteriores termos.



Não houve contra-alegações.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.



II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

A única questão a decidir é saber se a C... devia ter sido chamada a intervir no quadro de uma intervenção principal, como decidiu o tribunal “a quo”, ou como interveniente acessória, de acordo com a posição da recorrente.



III. FUNDAMENTAÇÃO

A. OS FACTOS

Os factos a atender são aqueles que constam do relatório supra.

B. O DIREITO

A intervenção de terceiros constitui um incidente da instância e vem regulada nos artigos 311.º e ss. do Código de Processo Civil (CPC), dividindo-se essencialmente entre a intervenção principal (que pode ser espontânea ou provocada), a intervenção acessória e a oposição. A intervenção principal provocada encontra-se prevista nos artigos 316.º e ss. do CPC, estando o respetivo âmbito definido nesse mesmo artigo, visando-se, essencialmente, aquelas situações em que uma parte principal é chamada aos autos por iniciativa de uma das partes originárias do processo. De acordo com o referido artigo 316.º do CPC, quando ocorra preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária. Por sua vez, em caso de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja inicialmente demandado ou de terceiro contra quem pretenda dirigir subsidiariamente um pedido (nos termos do artigo 39.º do CPC). Quanto ao réu, este pode ter a iniciativa do chamamento de terceiro quando mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida, ou quando pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor (cf. n.º 3 do artigo 316.º do CPC), encontrando-se especialmente regulada no artigo 317.º do CPC a possibilidade de intervenção provocada de terceiro em caso de efectivação do direito de regresso. A intervenção principal provocada não pode ser requerida a todo o tempo, antes devendo respeitar os limites temporais fixados no artigo 318.º do CPC, encontrando-se os termos subsequentes em que se processa a intervenção, após a respectiva admissão pelo juiz, previstos no artigo 319.º do mesmo Código. Importa ter presente que, de acordo com o artigo 320.º do CPC, a sentença que “vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado”. A intervenção principal provocada, enquanto incidente da instância, rege-se igualmente pelas disposições gerais destes incidentes, previstas nos artigos 292.º e ss. do CPC.
Como configuram os Autores a relação material controvertida? Os autores demandam a Ré A... S.A, enquanto vendedora do veículo alegadamente com defeito. Podiam ter efectuado uma configuração diferente da acção, mas não o fizeram.
Deste modo, as intervenções requeridas pela R ou Chamada têm que se manter no âmbito da relação configurada pelos Autores, excepcionando, claro, as hipóteses de litisconsórcio necessário.
Tendo os AA demandado o vendedor, este fez intervir a importadora do veículo, incidente que já foi tramitado e decidido (foi admitida a intervenção principal desta última, pese embora ter sido pedida a intervenção acessória) e cuja bondade não cumpra aqui analisar.
De seguida, a Chamada B... vem requerer a intervenção da C....
Diz-se no despacho recorrido “Em matéria de vendas de bens de consumo e das garantias a elas relativas deve, face à data em que o contrato foi alegadamente celebrado, atentar-se no regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril. O artigo 6.º, do mencionado regime legal prevê a responsabilidade directa do produtor, sendo que o artigo 7.º alude ao direito de regresso do vendedor sobre o produtor. Em face do exposto, a C... integra a relação material controvertida, existindo uma situação de litisconsórcio voluntário que legitima a sua intervenção principal (cf. Artigos 32.º e 316.º, n.º 3, alínea a), ambos do Código de Processo Civil).”
De facto, a situação de litisconsórcio voluntário existiria, contrariando as regras gerais, em função da norma específica do DL 67/2003, ou seja, não obstante os Autores não terem tido qualquer relação jurídica com o produtor, podem demanda-lo juntamente com o vendedor.
Acontece que não foi assim que os Autores configuraram a acção. Deste modo, a intervenção requerida pelos Réus e Chamados apenas pode ser acessória.
Assim, cfr. Acórdão da Relação de Évora de 15-06-2023 tirado no processo 1539/22.2T8STR-B.E1 “1 – A intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual se deve associar têm interesse igual na causa, desenhando-se uma situação de litisconsórcio sucessivo, seja necessário, seja voluntário. 2 – O chamamento deduzido pelo réu de outros sujeitos passivos da relação material controvertida depende da análise dessa relação, tal como é configurada pelo autor na petição inicial. 3 – Se a relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, respeita apenas ao autor e ao réu, essa constatação determina o indeferimento da requerida intervenção principal provocada. 4 - A decisão sobre o chamamento de terceiro a título de intervenção acessória provocada é irrecorrível, como expressamente estatui o art. 322º nº2 do CPC.
Acórdão da Relação do Porto de 15.12.2021, tirado no processo 27/21.9T8ESP-A.P1 “ (…) III. Ainda que tivesse sido incorretamente requerida a intervenção principal provocada, sempre o tribunal poderia convolar oficiosamente o incidente para intervenção acessória provocada, considerando que foram alegados os requisitos exigidos pela norma (direito de regresso), face ao princípio essencial da realização do direito e do primado da substância sobre a mera forma.”
Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2024, tirado no processo 2692/23.3T8VIS-A.C1 “1. - No âmbito do incidente de intervenção principal provocada passiva, suscitado pela parte demandada, não cabe recurso de apelação autónoma se a decisão incidental for de rejeição liminar da intervenção (por não se verificarem os pressupostos legais de admissibilidade ou manifesta improcedência), caso em que o recurso deve ser interposto posteriormente, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 644.º do NCPCiv.. 2. - A intervenção a que alude o art.º 316.º, n.º 3, al.ª a), do NCPCiv. depende da verificação de litisconsórcio voluntário entre o réu e o interessado que se pretende chamar, o que pressupõe a existência de uma relação material controvertida – de acordo com a configuração do autor na sua petição – em que sejam sujeitos passivos tais réu e interessado. 3. - Se, num tal âmbito incidental, o autor apenas alegou a existência de uma dívida faturada (referente a transporte de frutas), de pendor contratual, de que é credor aquele e devedor o demandado, a relação material controvertida vem reportada a esses sujeitos (e respetivos interesses) e a esse horizonte contratual, e não a outra(s) sociedade(s), pelo que apenas eles têm interesse em demandar e em contradizer, sendo, pois, as partes legítimas, não se mostrando que ocorra litisconsórcio voluntário passivo com a sociedade que se pretende fazer intervir. “

Concluindo e sem necessidade de mais considerações, julga-se totalmente procedente o recurso.



IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto, revogando a decisão que admitiu a intervenção de C.... A título principal, determinando que a mesma intervenção é a título acessório – artigo 321º número 1 do Código de Processo Civil.

Custas pela interveniente B... S.A

Registe e notifique.

DN






Porto, 25 de Fevereiro de 2025

(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)

Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.



Raquel Correia Lima (Relatora)
Márcia Portela (1º Adjunto)
Maria Eiró (2º Adjunto)