Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16148/19.5T9PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
AGRAVAÇÃO
DIREITO À HONRA E BOM NOME
FIGURA PÚBLICA
POLÍTICO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO À INFORMAÇÃO
CRÍTICA
INTERESSE PÚBLICO
INTERESSE LEGÍTIMO
INTERESSE RELEVANTE
PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP2024011716148/19.5T9PRT.P2
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Estando as figuras públicas e políticas inevitável e conscientemente expostas ao escrutínio minucioso dos seus atos, sendo os limites das críticas aceitáveis mais amplos, então as expressões criticas utilizadas, ainda que grosseiras e desagradáveis, não sendo desproporcionadas à discussão mais acesa do ato controverso publicado, devem prevalecer numa ótica de proporcionalidade, sobre a honra e o bom nome do assistente, enquanto Presidente da Câmara, sobretudo quando se trate de questões de interesse geral e público.
II – Mesmo que as expressões usadas sejam suscetíveis de ofender a honra do assistente, num Estado de Direito Democrático devem ser toleradas no exercício da liberdade de expressão e critica, entendida em sentido amplo conforme a interpretação do TEDH sobre o art.10º, nº1, da CEDH, no contexto especifico e interligação das noticias a que estão associadas relativas ao desempenho autárquico daquele.
III – O TEDH tem sublinhado a necessidade de ponderar o sentido das expressões, integrando-as no contexto em que surgiram e considerando que “mesmo os juízos de valor suscetíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas, nomeadamente, prestações, desempenhos, realizações, trabalhos e obras, em assunto de interesse público ou em debate de natureza política.
IV – Mais tem sido considerado pelo TEDH que os políticos e outras figuras públicas, com cargos públicos ou incumbidos de funções públicas, pela sua exposição, pela discutibilidade das suas ideias e até pelo controle a que devem ser sujeitos, quer pela comunicação social, quer pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, sendo admissível um maior grau de intensidade das críticas.
V – Quando não considerados atípicos, o julgador deverá considerar excluída a ilicitude de comentários ofensivos da honra do assistente quando necessário para garantir o núcleo essencial da liberdade de expressão.
VI – Quem ofende a honra de uma figura pública no exercício legitimo do direito à liberdade de expressão não atua ilicitamente, nos termos do art.31º, nº2, al.b), do Código Penal.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 16148/19.5T9PRT.P2

Relator:
João Pedro Pereira Cardoso
Adjuntos:
1º - William Themudo Gilman
2º - Manuel Henrique Ramos Soares

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 1614819.5T9PRT do Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 2, foi em 19 de junho de 2023 proferida sentença, na qual se decidiu (transcrição):
- “julgo a acusação constante do requerimento de abertura de instrução deduzido por AA contra BB - relativamente aos post’s publicados no facebook deste, em 31.08.2019, 03.09.2019 e 03.09.2019 -, procedente, por provada e, em consequência:
A) Condeno o arguido BB pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de difamação agravada na pessoa de AA, p. e p. pelo art.º 180º, n.º1, 182º, 183º, n.º2, e 184º, todos do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros), o que perfaz o montante global de € 1.440,00 (mil, quatrocentos e quarenta euros)”.
*
Inconformado com esta decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que aqui se sintetizam:
Das conclusões:
I) Ao contrário do que o Tribunal considerou provado no facto n.º 1 (e do que resulta dos documentos juntos com a queixa e do documento n.º 1, junto com a contestação), o arguido não “colocou” qualquer «fotografia com a epígrafe “A...: Câmara ... agiu com esperteza saloia”». O que o arguido fez foi partilhar uma notícia da edição on-line do jornal B... (B....PT), sendo a expressão “A...: Câmara ... agiu com esperteza saloia” o título original da referida notícia. A fotografia que aparece no post é da notícia original e gerada automaticamente ao partilhar-se a notícia na rede social Facebook.
II) Ao dar como provado que o recorrente colocou “uma fotografia com a epígrafe “A...: Câmara ... agiu com esperteza saloia”, sem indicar que a epígrafe era o título de uma notícia, partilhada pelo arguido, dando a entender ser o recorrente o autor daquela epígrafe, incorreu o Tribunal recorrido em erro notório na apreciação da prova.
III) Deve, por isso, a redacção do referido facto ser alterada, nos termos do art.º 410.º, n.º 1, al. c) do CPC, passando a ser a seguinte:
1. No dia 31.08.2019, partilhando uma notícia da edição on-line do jornal B..., com o título “A...: Câmara ... agiu com esperteza saloia”, o arguido escreveu no seu mural do facebook: “Saloio o Autarca que autoriza e depois retira!... Mais uma “Chico espert…” do Alcaide!... Não deram dinheiro a quem recebe!...”.
IV) Tal conclusão decorre inequivocamente do confronto do facto provado n.º 1 com o facto provado n.º 7 e com os referidos documentos juntos aos autos.
V) O Tribunal julgou provado, como facto n.º 4, que “[a]través das referidas publicações logrou o arguido, sem qualquer facto que sustentasse as suas afirmações, levantar um manto de suspeição sobre a prática, por parte do assistente, no exercício das suas funções, de condutas potencialmente ilícitas.”
VI) Porém, o que resulta da prova documental produzida (das cópias das publicações do arguido) e dos próprios factos provados n.ºs 7, 9 e 11 é que as afirmações imputadas ao arguido se fundaram em factos ou, pelo menos, em notícias da imprensa de referência, que descreviam factos que indiciavam comportamentos, no mínimo, de legalidade ou de eticidade duvidosas por parte do Município ... ou do seu presidente.
VII) Os comentários pelos quais o recorrente foi condenado são comentários a essas notícias, não sendo neles criado qualquer “manto de suspeição” que não resultasse já das notícias comentadas.
VIII) Constitui, por isso, erro notório no julgamento da matéria de facto afirmar-se que as expressões imputadas ao recorrente não têm qualquer facto que as sustente: as afirmações do recorrente estão contextualizadas em notícias que referem expressamente comportamentos do Assistente ou que este, na qualidade de Presidente da Câmara Municipal ..., não podia ignorar.
IX) Deste modo, ao julgar como provado o referido facto n.º 4, o tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova, incorrendo ainda em contradição entre a factualidade provada, já que o trecho “sem qualquer facto que sustentasse as suas afirmações” é contrariado pelos factos provados sob os n.ºs 7, 9 e 11.
X) Deve, por isso, o facto provado sob o n.º 4 ser eliminado do rol dos factos provados, nos termos da alínea c) do art.º 410.º, n.º 2 do Código Penal.
XI) Na motivação do julgamento da matéria de facto não se vislumbra qualquer fundamento para o julgamento de provado dos factos n.ºs 5 e 6.
XII) Lê-se na motivação que “[o] arguido prestou declarações, afirmando que se limitou a comentar as noticias, que confiou que fossem verdadeiras […] o arguido estava a par das mesmas [das notícias hiperligadas], tanto que as tentou explicar em audiência de julgamento. […] De referir que, no contexto em apreço, a utilização das iniciais “AA” e não o nome completo demonstra, desde logo, consciência, por parte do arguido, de que a sua conduta é de molde a produzir e ofensa da honra e consideração do visado, sendo que a lei não exige o propósito de ofender a honra e consideração de alguém, bastando-se com a consciência de que o pode fazer.” [sublinhado meu].
XIII) Apesar de, na fundamentação, se ter considerado provada a consciência de que a conduta é de molde a produzir ofensa da honra e consideração do visado, não foi apenas isso que o tribunal julgou provado como facto. Não existe, por isso, qualquer suporte para o trecho inserido no facto n.º 5, segundo o qual o arguido agiu “deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de atingir o assistente na sua honra”.
XIV) Por outro lado, não se vislumbra nem na demais factualidade provada nem na motivação da sentença qualquer fundamento que pudesse permitir ao Tribunal concluir, como matéria de facto, que o recorrente quis deliberadamente ofender a honra e consideração do assistente ou que tivesse por ele qualquer inimizade ou rancor.
XV) Pelo contrário, provou-se, isso sim, que: “22. O arguido tem opiniões politicas firmes e uma consciência cívica intensa, sempre as tendo manifestado livremente, em defesa daquilo que considera ser o interesse público” e que “23. O arguido sempre pautou a sua actuação por princípios democráticos, o que igualmente é reconhecido por todos quantos o conhecem.”
XVI) A motivação é igualmente omissa quanto ao teor do facto n.º 6. A admissão, pelo recorrente, “de que as expressões não eram correctas” não permite concluir pela consciência da ilicitude penal. XVII) Devem, por isso, ser eliminados do rol dos factos provados os factos n.ºs 5 e 6, em virtude de erro notório na apreciação da prova e de contradição entre o julgamento dos referidos factos e a respectiva fundamentação.
XVIII) Caso assim não se entenda, sempre deverá alterar-se a redacção do facto n.º 5, eliminando-se o trecho “deliberada […], com o propósito conseguido de atingir o assistente na sua honra, consideração e dignidade”, por não se ter produzido quanto a ele qualquer prova nem haver, na motivação, qualquer suporte.
XIX) No caso dos crimes contra a honra impõe-se não só a ponderação das normas penais delimitadoras do tipo, mas também das normas constitucionais e constantes de convenções internacionais a que Portugal se encontra vinculado que protegem a liberdade de expressão, na medida em que, na generalidade dos casos, as “ofensas” à honra resultarão do exercício daquela liberdade.
XX) A liberdade de expressão é um dos pilares da sociedade democrática e do Estado de Direito, prevalecendo, frequentemente e desde que numa óptica de proporcionalidade, sobre bens jurídicos como a honra e o bom nome das pessoas, ou a credibilidade – sobretudo quando se trate de questões de interesse geral e público.
XXI) O art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra a liberdade de expressão como liberdade fundamental, prevendo que os indivíduos podem expressar livremente as suas opiniões, sem qualquer interferência ou limitação (incluindo-se no conceito de interferência as decisões judiciais condenatórias) salvo se essa restrição estiver prevista na lei e corresponder a uma necessidade social imperiosa ou, no texto da própria Convenção, se “constituam providências necessárias, numa sociedade democrática”.
XXII) O Código Penal deve, por isso, ser interpretado de acordo com o texto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e com a jurisprudência firme do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
XXIII) Para o efeito, o tribunal deve proceder a um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que os artigos em causa extravasariam os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação.
XXIV) Em sucessivos acórdãos incidindo sobre aplicação do artigo 10º da Convenção, o TEDH consolidou jurisprudência segundo a qual “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais das sociedades democráticas, e uma das condições primordiais do seu progresso e desenvolvimento”, enfatizando-se que o direito à liberdade de expressão vale para as ideias ou informações consideradas favoravelmente pelo conjunto da sociedade ou que sejam inofensivas ou indiferentes mas também para as que ferem, chocam ou inquietam, pelo que, em consequência, a possibilidade de admitir excepções à liberdade de expressão deve ser entendida sob interpretação restritiva e deve corresponder a uma imperiosa necessidade social.
XXV) O TEDH tem sublinhado a necessidade de se proceder a uma valoração do conteúdo ou sentido das expressões em causa, integrando-as no contexto em que surgiram, considerando que mesmo os juízos de valor susceptíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem afinal merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas em assunto de interesse público ou em debate de natureza política.
XXVI) As três expressões atribuídas ao arguido na sentença referem-se a assuntos de manifesto interesse público, traduzindo-se, além disso, em juízos de valor ou meras opiniões do seu autor, devidamente contextualizadas.
XXVII) Tais opiniões, ainda que se considerem injustas, não preenchem qualquer tipo penal, interpretado em conformidade com a CEDH e com a referida jurisprudência firme do TEDH.
XXVIII) A aplicação ao arguido de qualquer sanção de natureza penal não satisfaz qualquer necessidade social imperiosa numa sociedade democrática.
XXIX) Os comportamentos pelos quais o arguido foi condenado não constituem qualquer crime, tendo em conta o artigo 10.º da CEDH e a jurisprudência do TEDH e ainda a ponderação dos interesses em confronto imposta pelo artigo 37.º da Constituição da República.
XXX) Assim, o juízo de prognose enunciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, referido supra na conclusão XXIII, é manifestamente desfavorável a qualquer condenação do recorrente, por ser previsível que o TEDH consideraria que tal condenação constituiria uma restrição da liberdade de expressão não permitida pelo artigo 10.º da CEDH.
XXXI) Ao decidir-se diversamente, interpretou-se e aplicou-se erradamente os artigos 180º, n.º1, 182º, 183º, n.º 2, e 184º do Código Penal.
XXXII) A interpretação das referidas disposições legais, em conformidade com o art.º 37.º da CRP e o art.º 10.º da CEDH conduziria, inevitavelmente, à conclusão de que o comportamento do arguido está contido dentro dos limites da liberdade de expressão e, como tal, não pode ser punido criminalmente.
XXXIII) A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.
XXXIV) O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.
XXXV) Perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos.
XXXVI) Em sede de ponderação dos interesses em causa e seguindose uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso, é de concluir ser a liberdade de expressão que, no caso concreto, carece de maior protecção.
XXXVII) Sendo que, no caso, atenta a matéria de facto apurada, o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os critérios de ponderação e o princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra do assistente.
XXXVIII) Deve, por isso, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o recorrente do crime que lhe imputado”.
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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Respondeu o Ministério Público e o assistente às motivações de recurso vindas de aludir, pugnando pela manutenção da decisão recorrida nos seus exatos termos e fundamentos.
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Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer que conclui pela improcedência do recurso com a manutenção da decisão impugnada.
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Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, respondeu o arguido, após o que foi efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. Fundamentação:
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Atentas as conclusões apresentadas,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são as seguintes:
- Falta de fundamentação dos factos provados sob pontos 5 e 6
- Da impugnação restrita da matéria de facto: erro notório na apreciação da prova (pontos 4 dos factos provados) e contradição entre os factos provados
- Do preenchimento do tipo de crime: liberdade de expressão
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Antes de mais importa conhecer, sobre a matéria de facto,
a sentença recorrida:
A) FACTOS PROVADOS
Da audiência de discussão e julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
(do despacho de pronúncia/acusação particular)
1. No dia 31.08.2019, colocando uma fotografia com a epígrafe “A...: Câmara ... agiu com esperteza saloia”, o arguido escreveu no seu mural do facebook: “Saloio o Autarca que autoriza e depois retira!... Mais uma “Chico espert…” do Alcaide!... Não deram dinheiro a quem recebe!...”
2. No dia 03.09.2019, colocando uma noticia com e epígrafe “Hospital ... acusa construtoras de “conluio” e “trafulhice” em Hospital 1...”, o arguido escreveu no seu mural do facebook: “Que esperavam? São uns amigos do AA…”.
3. Na mesma data, colocando uma noticia com a epígrafe “Câmara ... nega ilegalidade nos ajustes diretos a sociedade de advogados”, o arguido escreveu: “Decide em abono próprio!... Tanta mentira a que nos habituou…”.
4. Através das referidas publicações logrou o arguido, sem qualquer facto que sustentasse as suas afirmações, levantar um manto de suspeição sobre a prática, por parte do assistente, no exercício das suas funções, de condutas potencialmente ilícitas.
5. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de atingir o assistente na sua honra, consideração e dignidade, bem sabendo que as expressões escritas na sua página de facebook eram aptas e adequadas a ofendê-lo.
6. O arguido tinha perfeita noção de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
(da contestação)
7. Quanto à primeira publicação, a “fotografia” e a “epígrafe” correspondem a uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line do Jornal B..., assinada por CC.
A referida notícia foi publicada na sequência de uma outra, assinada pela jornalista DD e publicada pelo jornal C..., na sua edição de 13 de Agosto de 2019, na qual pode ler-se:
“Entre a versão da Câmara ... e a da organização do A..., evento de restauração instalado junto à estação ..., vai uma enorme distância. O desentendimento estará para durar e o promotor EE, da empresa D..., diz já estar a tomar providências para “repor a legalidade”, depois de a autarquia ter dado ordens à Polícia Municipal para encerrar o evento, alegando que este não tem as licenças necessárias para funcionar. O executivo de AA acusa a Infra-estruturas de Portugal (IP), proprietária daquele terreno, de “uso ilegal” do espaço, e diz que vai protestar junto da tutela. Mas, a 12 de Julho, mostram documentos a que o C... teve acesso, a própria câmara emitiu uma licença, com a validade de 150 dias, dando à D... autorização para fazer “prestação de serviços de restauração ou bebidas”
8. A publicação referida em 1., em 20.12.2022 (data de apresentação da contestação), tinha 1 (um) gosto e 0 (zero) comentários.
9. Quanto à segunda publicação, o texto contém uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line de 1 de Setembro de 2019 do Jornal E.... A autoria da notícia é do jornalista FF.
10. A publicação referida em 2., em 20.12.2022 (data de apresentação da contestação), tinha 1 (um) gosto e 0 (zero) comentários.
11. Quanto à terceira publicação, a mesma contém uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line do Jornal F..., de 19/07/2019, assinada pela jornalista GG, na qual pode ler-se:
“Em causa, segundo uma notícia avançada pelo Jornal G... há dias, estarão ajustes diretos no valor de meio milhão de euros desde 2013, quando AA assumiu a presidência da Câmara ..., a uma sociedade de advogados que integra elementos afetos ao movimento independente do autarca.
Segundo o que o F... apurou, as investigações estão a ser realizadas pelo Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto (DIAP), não existindo até ao momento Arguidos.”
No mesmo dia 19/07/2019, o jornal C... publicou uma notícia mais extensa, assinada pela jornalista HH, na qual podia ler-se:
“Os ajustes directos feitos pela Câmara ... com a Sociedade de Advogados II estão a ser investigados pelo Ministério Público (MP) confirmou o C... junto da Procuradoria-Geral da República. […]
Há uma semana, o Jornal G... noticiou que a Câmara ..., desde que AA é presidente, já fez ajustes directos de cerca de meio milhão de euros àquele escritório de um ex-sócio e apoiante do ... (...), o movimento político pelo qual o autarca foi eleito em 2013 e 2017.
[…]
Há uma semana, o Jornal G... afirmava que JJ é sócio da II e, ao mesmo tempo, vogal da mesa da assembleia geral do movimento político criado por AA. Todavia, a relação desta sociedade de advogados com AA é anterior à sua eleição para a Câmara ....
[…]
O autarca independente e JJ partilharam o conselho de administração da H... SGPS e da I..., duas sociedades anónimas, com o mesmo capital social: 50 mil euros. Estas duas empresas instalaram as suas sedes na Avenida ..., no Porto, onde funcionou a sede da J..., a imobiliária da família de AA, que tem um litígio com a Câmara ... por causa de um terreno na .... Esta morada é a mesma do palacete da família ..., que mais tarde deu origem ao Hotel ..., um hotel de luxo na primeira linha de mar. O palacete encontrava-se no universo da família ... desde a sua construção, em 1906. […]
As ligações entre o ... e a II não se ficam por aqui. O líder da bancada municipal e membro do conselho consultivo do ..., KK, é também sócio da II. O presidente da Assembleia Municipal ..., LL, é fundador do ... e presidente do conselho de administração da K..., à qual estão ligados outros apoiantes destacados de AA. JJ preside à mesa da assembleia geral da sociedade. O ex-ministro MM, que foi mandatário da candidatura de AA à Câmara ... e preside à mesa da assembleia geral do ..., é presidente do conselho fiscal da mesma L....”
De acordo com uma notícia publicada no dia 19/07/2019 no jornal C..., segundo o Grupo Municipal ... na Assembleia Municipal ...:
“Mais grave ainda parece-nos ser o conflito de interesses que resulta do facto do referido sócio da M... [JJ] ter sido eventualmente também sócio do presidente da câmara em várias sociedades comerciais e imobiliárias. Independentemente da eventual competência dos advogados contratados ou da qualidade dos serviços que prestam à câmara, caberia sempre ao presidente da Câmara ... evitar que uma sociedade com a qual teve ou tem tantas ligações políticas e profissionais, celebrasse contratos com a CM..., muito menos por ajuste directo e nos elevados montantes envolvidos”.
12. A publicação referida em 3., em 20.12.2022 (data de apresentação da contestação), tinha 9 (novo) gostos e 1 (um) comentário.
13. As observações imputadas ao Arguido são fundadas em notícias da imprensa de referência, sobre assuntos de manifesto interesse público.
14. Não foi o arguido o autor ou sequer a fonte das referidas noticias referidas em 7., 9. e 11.
15. As notícias partilhadas, publicadas em jornais de referência com largas dezenas de milhar de leitores foram, certamente, lidas por muitas pessoas.
16. As publicações em causa, à data da apresentação da contestação, não foram objecto de qualquer partilha (que, a ter sucedido, seria registada pela rede social no próprio “post”)
Mais de provou que:
17. O arguido não tem antecedentes criminais.
Provou-se ainda que:
18. O arguido é casado, sendo a esposa funcionária pública, e vive em casa própria.
19. O arguido é engenheiro mecânico, reformado, e desempenha funções como avaliador de jovens engenheiros, auferindo entre €1300,00 e €1.400,00 mensais.
20. Vive em casa própria e tem dois filhos, com 36 e 38 anos, em Inglaterra.
(da contestação)
21. O arguido é pessoa honesta e reputada como tal por todos quantos o conhecem.
22. O arguido tem opiniões politicas firmes e uma consciência cívica intensa, sempre as tendo manifestado livremente, em defesa daquilo que considera ser o interesse público.
23. O arguido sempre pautou a sua actuação por princípios democráticos, o que igualmente é reconhecido por todos quantos o conhecem.
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B – FACTOS NÃO PROVADOS
Da audiência de discussão e julgamento, e com interesse para a boa decisão da causa resultaram não provados os seguintes factos:
(da contestação)
a) O baixíssimo número de interacções com os textos imputados ao Arguido (entre zero e nove, como referido supra) demonstram que os referidos textos tiveram um baixíssimo número de leitores.
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O tribunal não se pronunciou sobre expressões conclusivas ou de direito, insusceptíveis de um juízo de provado ou não provado, conforme ensinamento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 02/06/2005, in www.dgsi.pt, processo nº 05P1441, só “os factos com relevo para a decisão da causa” devem constar, sendo só estes “que a lei manda enunciar na sentença, procedendo-se, se necessário, e na extensão tida por necessária, ao «aparo» ou «corte» do que, porventura em contrário e com carácter supérfluo, provenha da acusação ou, mesmo, da pronúncia, de que a sentença não é, nem pode ser, fiel serventuária”.
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C - MOTIVAÇÃO
A convicção do tribunal formou-se com base na conjugação de todos os elementos juntos aos autos com os depoimentos prestados em audiência e bem assim com as regras de experiência comum.
Desde logo, relevaram os posts juntos aos autos e noticias publicadas na imprensa nacional, cuja leitura e análise se mostrou esclarecedora, tendo o respectivo contexto sido concretizado em sede de audiência de julgamento, pelo próprio arguido.
O arguido prestou declarações, afirmando que se limitou a comentar as noticias, que confiou que fossem verdadeiras.
Desconhece-se se o arguido leu ou não as interligações para outras noticias relacionadas com as aqui em apreço. Contudo, o arguido estava a par das mesmas, tanto que as tentou explicar em audiência de julgamento, acabando por admitir, quanto à 1ª publicação – cuja noticia referia “A Câmara agiu com esperteza saloia” -, que quando utilizou expressão “Alcaide” se dirigiu ao presidente da Câmara. De facto, basta atentar na noticia e na publicação para se constatar que o arguido alterou a expressão “saloia” por “saloio”, aditou “chico espert” e ainda “Alcaide”; e na 2ª publicação, - em que a noticia referia as expressões “conluio” e “trafulhice” -, que no seu post, ao escrever “Que esperavam? São uns amigos do AA…” se referia a AA. Neste ponto em concreto, o arguido começou por referir não saber, não recordar a quem se referia para, depois, acabar por admitir que se dirigia ao assistente, esclarecendo que se referia a construtores que, pensa, se reúnem com o assistente. De referir que, no contexto em apreço, a utilização das iniciais “AA” e não o nome completo demonstra, desde logo, consciência, por parte do arguido, de que a sua conduta é de molde a produzir e ofensa da honra e consideração do visado, sendo que a lei não exige o propósito de ofender a honra e consideração de alguém, bastando-se com a consciência de que o pode fazer. Quanto à 3ª publicação – cujo titulo da noticia era “Câmara ... nega ilegalidade nos ajustes diretos a sociedade de advogados” -, quando o arguido, no seu post, escreveu “Decide em abono próprio!... Tanta mentira a que nos habituou…”, afirmou que se referia à Câmara. Não obstante, mostrando-se também conhecedor do contexto da noticia em causa, dele extrai-se uma patente ligação ao assistente (como resulta da transcrição da ligação supra), afirmada pelo próprio arguido, pelo que a imputação também a ele dirá respeito.
Por último, o arguido concretizou que teve cerca de 4 gostos em cada publicação, do grupo de amigos que gostam de comentar a politica e que os “amigos” do facbook cerca de 400 e “conhecidos” cerca de 1000.
A final, reconheceu que o português, nas expressões utilizadas, não é correcto.
O arguido prestou as suas declarações de forma hesitante e pouco segura, tendo alterado a sua versão ao longo das mesmas, iniciando por afirmar apenas se ter limitado a dar a sua opinião sobre as noticias publicadas – cujo teor explicou -, usando expressões das mesmas e nada mais, mas acabando por admitir, em parte, afinal, ter usado expressões dirigidas ao assistente e que não eram correctas.
A testemunha NN afirmou que conheceu o arguido em contexto cívico, afirmando que aquele, noutros tempos, foi um activista. Referiu-o como um homem sensível e democrata. Também o descreveu como um homem responsável, com um vínculo muito forte com a esposa. Relativamente aos factos em concreto, referiu que, do que sabe, o arguido subscreveu o que leu nas noticias, pois não lhe reconhece capacidade politica própria.
A testemunha OO disse ser amigo do arguido, também no facebook, onde interagem com as noticias e fazem comentários políticos. Reportou-se ao arguido como sendo uma pessoa crítica, assertiva, idónea e civilizada.
A testemunha PP referiu que conhece arguido há muitos anos e que comentavam as noticias. Afirmou que o arguido é uma pessoa que se preocupa com as questões sociais e fala das coisas com paixão, com gosto. Reportou-se ao mesmo como sendo uma pessoa honesta, que opina, mas não ofende as pessoas, é frontal, civilizado e honesto nas posições que toma., é muito cortez, mas não se inibe de responder. Por último, aditou que o arguido tem capacidade para ajuizar da ofensividade das expressões.
As testemunhas prestaram depoimentos singelos, serenos e claros, mostrando ser conhecedores da pessoa e personalidade do arguido, no que mereceram total credibilidade. No que concerne aos factos em concreto, contudo, mostraram desconhecer a situação em apreço.
Aqui chegados, e sem desprimor para a honorabilidade do arguido enquanto pessoa, atestada pelas testemunhas de defesa inquiridas, dúvidas não restam ao tribunal quanto aos factos praticados pelo mesmo, nos termos constantes da factualidade dada como provada.
De referir, por último, relativamente ao demais alegado na contestação, que:
Não obstante se ter dado como provada a publicação de noticias na imprensa nacional sobre os temas nelas abordados, importa notar que o facto de os juízos negativos sobre o eventual comportamento da Câmara ... ou o seu Presidente, em determinadas questões, serem partilhados por determinados partidos políticos, afigura-se, in casu, totalmente irrelevante, precisamente pela divergência de ideais que caracteriza cada força politica e que, no âmbito das suas funções, lhe cabe partilhar e defender, o que não é o caso do arguido; tal como se afigura irrelevante a existência de eventuais processos de inquérito instaurados pelo Ministério Público, precisamente por se desconhecer o seu desfecho, o que também não foi trazido aos autos pelo arguido.
A inexistência de antecedentes criminais resultou do CRC junto aos autos.
As condições socioeconómicas do arguido resultaram das declarações do próprio.
II – A factualidade dada como não provada resultou da ausência de prova nesse sentido. De facto, o facto de as publicações do arguido, à data da apresentação da contestação, terem poucos gostos e poucos ou nenhum comentário não permite tirar a conclusão directa de que tais textos tiveram um reduzido número de leitores. É do conhecimento geral que, em sede de redes sociais, o número de gostos e de comentários a uma publicação não tem correspondência direta com o número de leitores. Dir-se-á, aliás, que independentemente do número de leitores das publicações efectuadas, apenas um número reduzido de pessoas aí colocam os seus “gostos” ou “comentários” que entendam exarar.” (itálico nosso).
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Cumpre apreciar.
Da nulidade da sentença: falta de fundamentação
O arguido veio arguir expressamente a falta de fundamentação quanto à decisão da matéria de facto provada sob pontos 5 e 6, a saber:
“5. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito conseguido de atingir o assistente na sua honra, consideração e dignidade, bem sabendo que as expressões escritas na sua página de facebook eram aptas e adequadas a ofendê-lo.
6. O arguido tinha perfeita noção de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.
A sentença deve conter, sob pena de nulidade, o exame crítico da prova, que envolve a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, os motivos de determinada opção por um ou outro dos meios de prova, as razões da credibilidade atribuída aos depoimentos, valoração de documentos e exames, que interferiram na formação da convicção do tribunal, de acordo com os comandos legais vertidos nos arts. 374º, nº 2 e 379º nº 1 alínea a) do Código Processo Penal.
O que se exige é uma enunciação, ainda que sucinta, das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido.
Ora, perscrutada a motivação da decisão sobre os factos provados sob pontos 5 e 6 constatamos que dela consta a análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, ali se enunciando os motivos que alicerçaram a convicção do tribunal recorrido para dar como provados aqueles factos.
A este propósito pode ler-se na motivação da sentença:
“A convicção do tribunal formou-se com base na conjugação de todos os elementos juntos aos autos com os depoimentos prestados em audiência e bem assim com as regras de experiência comum.
Desde logo, relevaram os posts juntos aos autos e noticias publicadas na imprensa nacional, cuja leitura e análise se mostrou esclarecedora, tendo o respectivo contexto sido concretizado em sede de audiência de julgamento, pelo próprio arguido”.
E logo adiante se afirmou, em relação à 2ª publicação, na qual o arguido escreveu “Que esperavam? São uns amigos do AA…”, “o arguido começou por referir não saber, não recordar a quem se referia para, depois, acabar por admitir que se dirigia ao assistente, esclarecendo que se referia a construtores que, pensa, se reúnem com o assistente. De referir que, no contexto em apreço, a utilização das iniciais “AA” e não o nome completo demonstra, desde logo, consciência, por parte do arguido, de que a sua conduta é de molde a produzir e ofensa da honra e consideração do visado, sendo que a lei não exige o propósito de ofender a honra e consideração de alguém, bastando-se com a consciência de que o pode fazer”.
Por fim refere-se ainda na sentença que o arguido “reconheceu que o português, nas expressões utilizadas, não é correcto.
O arguido prestou as suas declarações de forma hesitante e pouco segura, tendo alterado a sua versão ao longo das mesmas, iniciando por afirmar apenas se ter limitado a dar a sua opinião sobre as noticias publicadas – cujo teor explicou -, usando expressões das mesmas e nada mais, mas acabando por admitir, em parte, afinal, ter usado expressões dirigidas ao assistente e que não eram correctas”.
Ainda que se reconheça que o exame critico das provas sobre os factos elencados nos pontos 5 e 6, de natureza eminentemente subjetiva, não seja profuso, ainda que dele se possa ou não discordar, certo é que na sentença consta na forma sobredita a respetiva e obrigatória motivação da decisão atinente àquela matéria de facto.
Posto isto, na fundamentação da sentença, mostra-se respeitado o exame critico da prova, tendo o tribunal a quo explicado a razão de ciência e o motivo pelo qual deu como provados aqueles factos.
Donde, improcede nesta parte a pretensão recursiva.
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Da impugnação restrita da matéria de facto
Do erro notório na apreciação da prova (ponto 4 dos factos provados)
O arguido invoca a existência de erro notório na apreciação da prova sob ponto 4 dos factos provados, a saber:
“4. Através das referidas publicações logrou o arguido, sem qualquer facto que sustentasse as suas afirmações, levantar um manto de suspeição sobre a prática, por parte do assistente, no exercício das suas funções, de condutas potencialmente ilícitas.”
Em torno da definição do erro notório na apreciação da prova [atr.410º, nº2, al.c) do CPP], vale a pena recordar que tal vício apenas é relevante em processo penal quando “é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.
Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O vício de erro notório na apreciação da prova, só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.
O erro tem assim de aferir-se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (sem recurso, por exemplo, a declarações ou depoimentos prestados durante o inquérito, instrução ou julgamento), tendo ainda que resultar desse texto de forma tão patente que não escape à observação do homem de formação média.
«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).
É que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detetável por qualquer pessoa» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325), o que no caso concreto não se verifica” (itálico nosso).
Ora, a motivação do recorrente permite compreender que o impugnante apenas discorda da livre apreciação da prova efetuada pelo julgador, circunstância que nada tem a ver com este vício, na medida em que faz apelo a elementos alheios ao texto da sentença recorrida, como são a interpretação subjetiva que faz da leitura e contexto dos escritos publicados.
Do texto da motivação não emerge para qualquer indivíduo de médio discernimento que o tribunal a quo tivesse dado como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou, usando um processo racional e lógico, se tenha retirado de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum.
O erro de julgamento e o erro notório na apreciação da prova são institutos distintos e como tal não devem ser confundidos, como parece acontecer com o recorrente.
Improcede, nessa parte, o recurso.
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Da contradição insanável entre os factos provados
A contradição insanável ocorre no seio da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão. A fundamentação, para efeitos deste preceito e do próprio conceito, é não só aquela que se reporta ao facto, mas, também a que se reporta à decisão e a esta na sua relação com a fundamentação de facto.
A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada e/ou a exata razão probatória que a suporta.
Ora, o arguido veio ainda invocar que o tribunal a quo incorreu em contradição insanável entre os seguintes factos:
- por um lado, dar como provado sob ponto 4 não ter o arguido qualquer facto que sustentasse as suas afirmações/comentários nas publicações em causa; e
- por outro lado, dar como provado que:
“7. Quanto à primeira publicação, a “fotografia” e a “epígrafe” correspondem a uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line do Jornal B..., assinada por CC.(…)
9. Quanto à segunda publicação, o texto contém uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line de 1 de Setembro de 2019 do Jornal E.... A autoria da notícia é do jornalista FF.(…).
11. Quanto à terceira publicação, a mesma contém uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line do Jornal F..., de 19/07/2019, assinada pela jornalista GG (…)”.
Ora, afirmar que o arguido não tinha qualquer facto para sustentar os comentários que efetuou, tidos na sentença como ofensivos da honra e consideração do assistente, não é contraditório com a referência às publicações noticiosas constantes dos pontos 7, 9 e 11 dos factos provados.
Na verdade, ainda que esses comentários ou observações do arguido se tivessem fundado naquelas publicações noticiosas, como se escreveu no ponto 13 dos factos provados, tal não significa que os juízos de valor contidos nas suas afirmações fossem suportados por estas.
Esta é a interpretação que, no entender deste tribunal, melhor se coaduna com a leitura conjugada dos pontos 4, 7, 9, 11 e 13 dos factos provados.
Por conseguinte, não decorre qualquer contradição entre o texto dos factos provados sob ponto 4, por um lado, e sob pontos 7, 9 e 11 por outro lado.
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Do preenchimento do tipo de crime
O arguido foi condenado pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de difamação agravada na pessoa de AA, p. e p. pelo art.º 180º, n.º1, 182º, 183º, n.º2, e 184º, todos do Código Penal.
Tudo por referência aos post’s publicados no seu facebook, em 31.08.2019, 03.09.2019 e 03.09.2019.
Estipula o preceito legal base deste tipo de ilícito que:
“1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.”
Por seu turno, nos termos do disposto no art.º 182º do mesmo diploma:
“À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.”
Entretanto, este tipo base sofre agravação, nos termos do art.º 183º do mesmo diploma:
“1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º:
a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou,
b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação;
as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.”
Por último, dispõe o art.º 184º que:
“As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”.
Ora, resulta da remissão ali constante que “é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…), entre outras, a circunstância de o agente (…) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas”.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra e consideração do visado [1].
Este ilícito consubstancia-se na imputação de factos concretos e determinados ou formulação de juízos que sejam ofensivos da honra e consideração do ofendido perante terceiros e sem a presença do ofendido.
Difamar é descredibilizar, desacreditar, diminuir a reputação, o conceito público em que alguém é tido, isto é, imputar a outra pessoa um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou da sua consideração.
Porém, como referido na sentença recorrida, a ofensa à honra e consideração não pode ser perspetivada em termos estritamente subjetivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra –, na perspetiva interior/exterior – para que a ofensa exista.
O caráter ofensivo da imputação ou do juízo avalia-se, entre outros critérios, a partir das condições ambientais, particularidades da linguagem utilizada no meio, classe social e cultural, grau de educação e instrução, formas de relacionamento, formação moral e laços de parentesco ou doutro género do ofendido e do agente, isto é, utiliza-se um critério baseado na impressão que as expressões em causa produziram no homem médio, do meio socioecónomico e cultural em questão, que estivesse na posição do destinatário médio e do visado [2].
Trata-se de um crime de perigo abstrato, o que significa que ocorre com a adoção, pelo agente, de um comportamento objetivamente idóneo a causar a ofensa à honra e consideração de um sujeito, independentemente da concreta causação desse perigo ou da efetiva produção do dano.
O tipo objetivo de ilícito pode ser perpetrado mediante a imputação de um facto/realidade, mesmo sob a forma de suspeita, ou a formulação de um juízo ou valoração, ofensivos da honra e consideração de outrem.
Quanto ao elemento subjetivo, basta-se este crime com o dolo genérico, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), não se exigindo, pois, um dolo específico, ou seja, o fim de injuriar ou difamar (animus injuriandi vel diffamandi).
Exige-se que o agente represente e queira o comportamento por si adotado, com consciência da ilicitude dessa conduta, ou seja, que o agente atue voluntariamente, com consciência de que o seu comportamento ofende ou pode ofender a honra e consideração alheia e de que tal é proibido por lei, não se tornando necessário que o agente atue com o propósito de ofender [3] .
Verificados que se mostrem os elementos do tipo de crime de difamação, importa indagar se as expressões mencionadas pelo arguido se encontram abrangidas pela cláusula de exclusão prevista no artº. 180º nº.2 Código Penal [4], nos termos do qual a conduta não é punível quando:
a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
A questão central lançada ao longo destes autos, a qual mereceu entendimento diferente pelo Ministério Público aquando do arquivamento do inquérito, consiste em saber se os comentários – e só estes – colocados pelo arguido no seu facebook, ainda que associados às publicações noticiosas ali referidas, devem ou não considerar-se compreendidos no exercício da sua liberdade de expressão critica (liberdade de pensamento e liberdade de exteriorização de opiniões e juízos) [art. 37.º, n.º 1, da CRP], o que depende no caso concreto da amplitude desta em cada uma das situações.
Vejamos, então, cada uma das publicações.
Na 1ª publicação, dia 31.08.2019, associado à fotografia da publicação do jornal, com a epígrafe “A...: Câmara ... agiu com esperteza saloia”, o arguido escreveu no seu mural do facebook:
“Saloio o Autarca que autoriza e depois retira!... Mais uma “Chico espert…” do Alcaide!... Não deram dinheiro a quem recebe!...”.
Não vem contestado que o comentário do arguido se refere ao presidente da Câmara ..., aqui assistente.
Não está em causa a imputação de qualquer facto, quer seja verdade ou não, mas sim, a formulação de juízo de valor sobre a atuação do autarca que autoriza e depois retira, apelidando-o nesse desempenho de saloio e chico esperto.
Em sede de contestação, veio o arguido referir que o teor dessa publicação mais não foi do que a manifestação de uma opinião, uma crítica, no exercício de um direito de liberdade de expressão.
Nas circunstâncias do caso concreto, conectado o comentário do arguido com a noticia do jornal que lhe está associado, não se vislumbra que aquele tenha manifestamente excedido os limites da liberdade de expressão e direito de critica toleráveis numa sociedade democrática (art.18º, nº2 e art.37º, nº1 e 3, da C.R.P.).
Nas sociedades democráticas e abertas, como aquela em que vivemos, o direito à crítica é um dos mais importantes desdobramentos da liberdade de expressão.
Como pode ler-se no Acórdão TC n.º 67/99, de 03/02/1999 (Paulo Mota Pinto), acessível em www.tribunalconstitucional.pt: “(…) a liberdade de expressão e a liberdade de informação – que, como a liberdade de imprensa, se encontram numa “relação intrinsecamente conflitual” com certos bens jurídicos pessoais (…) não podem deixar de conhecer restrições para tutela da inviolabilidade pessoal, e, em particular, de bens pessoais como a honra e intimidade da vida privada”.

A liberdade de expressão não é, assim, um direito absoluto, tendo limites imanentes, devendo ser objeto de restrições para tutela de direitos de personalidade em que incluem o direito à honra, à imagem e à reserva da vida privada e familiar.
Por outro lado, existem igualmente margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos.
A liberdade de expressão e informação não se esgota na narração de factos, antes supõe o direito de exprimir e divulgar o pensamento, estendendo-se também ao “direito de opinião”, o qual se exerce mediante a exteriorização de juízos de valor (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 572, da 4ª ed., da Coimbra Editora, Costa Andrade, “A liberdade de imprensa e a inviolabilidade pessoal. Uma perspectiva jurídico-criminal”, pág. 270, ed. 1996, Almedina, e Oliveira Mendes, “O direito à honra e a sua tutela penal”, pág. 63, nota 94).
JORGE DOS REIS BRAVO, in “Repensar a liberdade de expressão na Era digital (ainda) um direito humano?”, em ULP Law Review, Vol. 13, n.º 1) refere que: “A liberdade de expressão compreende (i) o direito negativo a não se ser impedido de exprimir e divulgar o pensamento, ideias, opiniões, factos, conhecimentos, mensagens publicitárias, criações artísticas, de todo o tipo e por qualquer meio, e (ii) na sua dimensão positiva, uma pretensão de acesso aos meios de expressão, bem como (iii) uma pretensão de acesso, nos termos da lei, às estruturas de serviço público de rádio e de televisão.
A liberdade de informação, por seu turno, engloba (i) o “direito de informar”, (ii) o “direito de se informar” e (iii) o “direito de ser informado”. O primeiro desdobra-se num direito análogo ao da liberdade de expressão, com a diferença de que este tem por objeto “informações”. Por seu turno, o “direito de se informar” corresponde à prerrogativa de busca de fontes de informação e de recolha de informação, ao passo que o “direito de ser informado” consiste no direito (positivo) de ser objetiva e adequadamente informado pelos Media e pelos poderes públicos.”
Conforme entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, tanto nacional, como estrangeira, “o juízo de valor desonroso não é ilícito quando resulta do exercício da liberdade de expressão (…) numa sociedade democrática e tolerante. A crítica pode ser legitimamente exercida no contexto da luta política” (Acórdão da Relação do Porto de 31/01/1996, in C.J. XXI, 1, 242).
A conduta até pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos. É o que decorre do aludido art. 37º, n.º 1 da CRP.
Nestes casos, de crítica legítima, o visado pela crítica não pode apelar à tutela da sua reputação como parte integrante da sua "vida privada" pelo art. 8º da CEDH (Acórdão do TEDH Karako v. Hungria, de 28/04/2009, que distingue claramente entre a reputação e a "integridade pessoal") - Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem”, 2ª edição atualizada, U.C.E., 2010, pág. 570.
Desenvolvendo essa doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque escreveu que a condição essencial da legitimidade do juízo de valor é a de que ele se dirija às obras, realizações ou prestações do visado e não ao visado em si mesmo, como pessoa.
De nada vale apregoar a retórica da mais ampla liberdade de expressão e critica num Estado de Direito, mormente em relação ao exercício dos cargos políticos, convocando a propósito a moderna jurisprudência dos nossos tribunais [5] e do TEDH [6] em torno do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos [7] ali onde, na verdade, a cada caso, acaba por imperar a intolerância da critica relativa a essa mesma atividade ou ao funcionamento das instituições, por muito dura – ou mesmo infundada – que seja.
Os princípios desenvolvidos pelo TEDH na área de crítica, especialmente a que incide sobre a política, e a distinção entre factos e opiniões foram reafirmados em muitos outros julgamentos, designadamente em Dalban v. Roménia (28/09/1999 (GC), Lopes Gomes da Silva v. Portugal (28/09/2000, §35) e Oberschlick v. Áustria (No. 2) (01/07/1997), enfatizando essa jurisprudência que, pese embora as opiniões constituam pontos de vista ou avaliações pessoais de um evento ou situação - e, por isso, insuscetíveis de serem comprovadas como verdadeiras ou falsas - os factos subjacentes, sobre os quais a opinião ou o juízo de valor assentam, podem ser comprovados como verdadeiros ou falsos.
Consequentemente – a par de informações ou de dados objetivos que possam ser verificados - as opiniões, críticas ou especulações (que não podem ser submetidas à "prova da verdade") estão igualmente protegidas pelo art. 10º da CEDH; além disso, julgamentos de valor, em particular aqueles expressos no campo político, gozam de uma proteção especial, enquanto exigência do pluralismo de opiniões, cruciais numa sociedade democrática.
O juízo de valor contido no comentário publicado pelo arguido não se dirige à pessoa do autarca, sequer enquanto titular do cargo politico que ocupa.
A critica extremada ali vertida pelo arguido, embora grosseira, está diretamente conectada com o ato praticado pelo autarca que a motiva (autarca que autoriza e depois retira), a partir da interpretação que o agente fez da noticia do jornal que lhe associa.
Tanto mais que as expressões saloio e chico esperto poderão ter vários significados, representando a versatilidade dos vocábulos conotações mais ou menos depreciativas, como pessoa rústica, menos sofisticada (saloio) que se acha muito esperto ou mais esperto do que os outros, espertalhão, sabichão (chico-esperto).
Estando as figuras públicas e políticas inevitável e conscientemente expostas ao escrutínio minucioso dos seus atos, sendo os limites das críticas aceitáveis mais amplos, então as expressões criticas utilizadas pelo arguido, ainda que grosseiras e desagradáveis, não são desproporcionadas à discussão mais acesa do ato controverso publicado, devendo prevalecer numa ótica de proporcionalidade, sobre a honra e o bom nome do assistente, enquanto presidente da Câmara ali visada, sobretudo quando – como foi o caso - se trate de questões de interesse geral e público.
Com o devido respeito por opinião contrária, acompanhando a posição seguida pelo Ministério Público aquando do arquivamento do inquérito, na nossa perspetiva, o que objetivamente foi escrito pelo arguido na sua página do Facebook, naquele contexto específico, interligado a links e fotografias referentes ao noticioso da atividade do Município, não pode ser considerado ofensivo da honra, consideração, dignidade e imagem do assistente, enquanto presidente da Câmara ..., em exercício de funções.
No que respeita à 2ª publicação, no dia 03.09.2019, o arguido colocou uma noticia com a epígrafe “Hospital ... acusa construtoras de “conluio” e “trafulhice” em Hospital 1...”, tendo escrito no seu mural do facebook: “Que esperavam? São uns amigos do AA…”, com uma hiperligação para uma notícia publicada numa edição on-line de 1 de setembro de 2019 do Jornal E.... A autoria da notícia é do jornalista FF.
Ora, contrariamente ao que se afirma na sentença, não vemos que o arguido, naquele seu comentário, tivesse objetivamente indiciado que no contexto noticiado o assistente “agiu da forma apelidada na noticia”.
Na 3ª publicação, na mesma data da anterior (dia 03.09.2019), colocando uma noticia com a epígrafe “Câmara ... nega ilegalidade nos ajustes diretos a sociedade de advogados”, com o arguido escreveu: “Decide em abono próprio!... Tanta mentira a que nos habituou…”.
Quanto esta terceira publicação, a mesma contém uma hiperligação para uma notícia publicada na edição on-line do Jornal F..., de 19/07/2019, assinada pela jornalista GG, na qual pode ler-se: “Em causa, segundo uma notícia avançada pelo Jornal G... há dias, estarão ajustes diretos no valor de meio milhão de euros desde 2013, quando AA assumiu a presidência da Câmara ..., a uma sociedade de advogados que integra elementos afetos ao movimento independente do autarca.
Segundo o que o F... apurou, as investigações estão a ser realizadas pelo Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto (DIAP), não existindo até ao momento Arguidos.”
Ora, associado o comentário à epigrafe da noticia, não é seguro que o arguido se refira ao assistente e não à Câmara ..., órgão a que se refere expressamente o titulo da noticia.
Não está em causa a imputação de qualquer facto ou juízo de valor atribuído ao assistente e menos ainda a utilização de uma critica despropositada, à margem da liberdade de pensamento e de expressão sugerida pelo texto noticiado.
De qualquer modo, mesmo que qualquer das expressões usadas pelo arguido fossem suscetíveis de ofender a honra do assistente, num Estado de Direito Democrático devem ser toleradas no exercício da liberdade de expressão e critica, entendida em sentido amplo, no contexto especifico e interligação das noticias a que estão associadas relativas ao desempenho autárquico do assistente.
Afinal, nas ofensas à honra estão sempre em causa dois valores constitucionais de igual valor – a honra e a liberdade de expressão (art.ºs 26º e 37º da CRP), sendo que a prevalência de um deles em cada caso tem sempre que resultar de uma ponderação das circunstâncias do caso concreto, encontrando um equilíbrio que preserve sempre a liberdade de expressão, indispensável a subsistência de um sociedade democrática, limitada pela proibição do aniquilamento da honra.
Os comentários do arguido em parte alguma resvalam da discussão critica do facto noticiado que os motiva, questões de inequívoco interesse comunitário.
Nesse enquadramento, nos termos dos art.s 18º, nº2 e 37º, nº1 e 3, da C.R.P., tais expressões não atingem o nível da ofensa pessoal desnecessária, inadequada ou desproporcional a um normal exercício do direito de expressar a opinião.
Tanto mais que a resolução das situações de conflito entre estes dois direitos fundamentais com consagração constitucional, já não é passível de ser resolvida simplesmente pela aplicação de um critério de concordância prática, à luz do art. 18º, n.º 2, da CRP.
A adesão de Portugal a instrumentos internacionais que consagram a liberdade de expressão e de opinião, nomeadamente, a DUDH de 10/12/1948, no seu art. 19º, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12 de junho, no seu art. 19º e a CEDH, no seu art. 10º, importa que, por força do disposto no art. 8º, n.º 2, da CRP, se considerem as normas destes instrumentos e, em particular da CEDH, pelo menos (e seguindo a doutrina maioritária), como direito infraconstitucional mas supralegal.
De facto, tem-se entendido e consignado de forma consistente (e em múltiplas decisões que versaram sobre a interpretação do art. 10º e o conflito entre liberdade de expressão e de opinião e direito individual à honra) que, constituindo a liberdade de expressão um dos pilares fundamentais do Estado de Direito Democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada pessoa e inexistindo sociedades democráticas sem pluralismo, tolerância e abertura de espírito, as exceções vertidas no n.º 2 do art. 10º devem ser interpretadas de modo restrito e devem corresponder a uma imperiosa necessidade social.
Neste sentido, a Jurisprudência do TEDH tem considerado que a liberdade de expressão admite e impõe a aceitação, com alguns limites, de expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.
Do mesmo modo que o TEDH tem sublinhado a necessidade de ponderar o sentido das expressões, integrando-as no contexto em que surgiram e considerando que “mesmo os juízos de valor suscetíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas, nomeadamente, prestações, desempenhos, realizações, trabalhos e obras, em assunto de interesse público ou em debate de natureza política.” (Acórdão da Relação de Lisboa de 09/10/2019, disponível em www.dgsi.pt, Proc. n.º 4161/16.9T9LSB-3).
Mais tem sido considerado pelo TEDH que os políticos e outras figuras públicas, com cargos públicos ou incumbidos de funções públicas, pela sua exposição, pela discutibilidade das suas ideias e até pelo controle a que devem ser sujeitos, quer pela comunicação social, quer pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, sendo admissível um maior grau de intensidade das críticas.
O TEDH não parte da tutela da honra para aquilatar da concordância prática da mesma com a liberdade de expressão e opinião, mas parte da liberdade de expressão e situa a honra como um fundamento para uma possível restrição à mesma.
De acordo com a jurisprudência do TEDH, na resolução do confronto entre estes valores fundamentais, deve partir-se da prevalência da liberdade de expressão, enquanto pilar da sociedade democrática, situando-se a honra num segundo momento da aplicação da lei.
Percorrido este entendimento, que aqui se segue, na situação dos autos não se acompanha a decisão do Tribunal “a quo”, ao sustentar que, no hipotético confronto entre dois direitos fundamentais– a liberdade de expressão do recorrente e direito à honra do assistente – deveria prevalecer concretamente o direito do assistente, na medida em que os comentários do Recorrente ultrapassam a crítica sustentada, objetiva e equilibrada à atuação do autarca visado.
Na verdade, salvo o devido respeito, perante o noticiário em que se fundamentam (ponto 13º dos factos provados), os comentários do arguido não traduzem uma ofensa gratuita e acrítica ao desempenho politico do autarca, que era o que estava em causa, e não meramente depreciativos da sua pessoa.
Tais expressões devem considerar-se lícitas a coberto do exercício da liberdade de expressão, aqui entendida em sentido mais amplo e prevalente, tanto mais que devem considerar-se atípicos “os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto e o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor que têm subjacente o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar.” – cfr. RG 13.07.2020, proc.º n.º 377/18.1T9BCL.G1, Jorge Bispo, in www.dgsi.pt.
O tribunal a quo, embora conheça o art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a jurisprudência do TEDH em torno do mesmo, acabou por desprezar o sentido mais amplo do valor da liberdade de expressão numa sociedade democrática, estabelecendo uma fronteira aprioristicamente mais redutora entre o que é admissível e não o é, em termos de opinião sobre uma figura pública, no campo de debate político e com respeito à sua atuação autárquica, independentemente dos fundamentos para a mesma.
E foi com base neste entendimento, diga-se, errado, que o tribunal recorrido, infletindo na jurisprudência do TEDH, voltou a colocar a honra ou a consideração, nomeadamente, no que toca à personalidade e ao carácter do visado Presidente da Câmara ..., numa posição de absoluta proeminência face à liberdade de expressão, para condenar o arguido pela prática do crime de difamação.
Ao invés, impunha-se que o tribunal a quo tivesse presente que a convocação (excecional) da tutela jurídico-penal deve estar reservada para situações extremamente graves, assim apelando, em nome do cariz especialmente fragmentário ou subsidiário deste ramo do direito, à dignidade penal e à carência de tutela penal do bem jurídico da honra.
Em resumo, quando não considerados atípicos, o tribunal a quo sempre deveria ter excluído a ilicitude ou considerar justificados os comentários ofensivos da honra do assistente por forma a garantir que o núcleo essencial da liberdade de expressão permanecia intocado.
Na verdade, a coberto do art.31º, nº2, al.b), do Código Penal, quem ofende a honra de uma figura pública no exercício legitimo do direito à liberdade de expressão não atua ilicitamente.
Seja como for, é nosso entendimento que no caso concreto não se mostra preenchido o elemento objetivo do tipo base de difamação, p. p. pelo art.180º, nº1, do Código Penal (juízo ofensivo da sua honra ou consideração), impondo-se a absolvição do arguido, com a consequente revogação da sentença recorrida.
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3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e consequentemente, revogando a sentença recorrida, absolver o arguido do crime de difamação agravado pelo qual vem condenado.
Custas pelo assistente, com taxa de justiça equivalente a três UCs – art.515º, nº1, al.b), do Código Processo Penal, e art.s 1º, nº 2, 4º, nº1, al.d), a contrario, e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).
Notifique.
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Porto, 17.1.2024
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
João Pedro Pereira Cardoso
William Themudo Gilman
Manuel Soares
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[1] A honra refere-se ao apreço de cada um por si enquanto a consideração se refere ao juízo que o público forma no sentido de considerar alguém um bom ou mau elemento social. Dito de outra forma, a honra é um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior (Comentário Conimbricense do C.Penal, Tomo I, 1999, pg. 607), enquanto a consideração é o património do bom nome, de critério, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros (Simas Santos-Leal Henriques, Código Penal Anotado, 2º vol., pg., 317).
Honra é “a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz respeito ao património pessoal e interno de cada um...”.
Consideração é “o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva (...), a forma como a sociedade vê cada cidadão” (Leal-Henriques e Simas Santos).
[2] Neste sentido defende o Prof. Beleza dos Santos, in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ, ano 92, n.º3152, pág.167, que “os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objetivamente merecedores de tutela”.
[3] Cfr. Figueiredo Dias, in RLJ, 116º, 133 e 134; Maia Gonçalves, Código Penal Anotado-8º ed., pg.657. Relativamente ao elemento subjetivo do crime de difamação a lei não exige como elemento do tipo criminal em análise qualquer dano ou lesão efetiva da honra ou da consideração, bastando, para a existência do crime, o perigo de que tal dano possa verificar-se (Oliveira Mendes, in O Direito à honra e a sua tutela penal, pág. 43 e ss). Com efeito, tratando-se de um crime de perigo, não é necessário que o agente com o seu comportamento queira "ofender a honra ou consideração alheias, nem mesmo que se haja conformado com esse resultado, ou sequer que haja previsto o perigo (previsão da efetiva possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico da honra), bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da ação previstos nas normas incriminatórias respetivas. Explicitando, dir-se-á que o dolo se verifica quando o agente actua por forma a violar o dever de abstenção implicitamente imposto nas normas incriminatórias, levando a cabo a conduta ou ação nas mesmas previstas (...), sabedor da genérica perigosidade imanente, sem que seja necessária a previsão do perigo (em concreto) (Figueiredo Dias, RLJ 115º/136).
[4] Em relação à primeira premissa visa excluir a ilicitude da conduta do agente quando a imputação por si formulada, apesar de ser suscetível de ferir a honra e a consideração do visado, o for na realização de um interesse legítimo no sentido de “interesses públicos legítimos e ainda interesses privados juridicamente protegidos, o mesmo é dizer todos os interesses privados que possam ser objeto de legítima defesa, no primeiro caso se houver uma relação de proximidade entre o agente e o interesse por ele realizado e no segundo se o agente ou alguém muito próximo dele forem o próprio titular do interesse”. O que o legislador quis com a previsão desta justa causa de exclusão da ilicitude do crime de difamação foi prever um princípio de ponderação de interesses, pois, em certos casos quando está em causa um motivo relevante, sério e determinado pela utilidade geral do fim que visa prosseguir, a imputação feita pelo agente, apesar de ser suscetível de ofender a honra e a consideração do visado, não é punível, desde que cumulativamente, se faça prova da verdade da imputação, na parte em que colide com o direito à honra ou que a mesma seja tida, de boa fé, como verdadeira pelo agente.
[5] Ac RL 11.12.2019, proc.º n.º 4695/15.2T9PRT.L1-9, Abrunhosa de Carvalho, disponível in www.dgsi.pt.
[6] cf. Acórdãos explanados no guia sobre o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos: https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_10_ENG.pdf ).
[7] Importa, a respeito, ter em linha de conta o estatuído na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, designadamente no seu art.10º, o qual estatui: «1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. 2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».
No mesmo sentido, sob epigrafe “Liberdade de expressão e de informação”, o art.19º, da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, estabelece: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
Também assim o art.19º, do PACTO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, segundo o qual:
1 - Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões.
2 - Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha.
3 - O exercício das liberdades previstas no parágrafo 2 do presente artigo comporta deveres e responsabilidades especiais. Pode, em consequência, ser submetido a certas restrições, que devem, todavia, ser expressamente fixadas na lei e que são necessárias:
a) Ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem;
b) À salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas.