Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1052/18.2T8MAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RP202401111052/18.2T8MAI-A.P1
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DESATENDIDA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - São coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte.
II - O que se impõe ao julgador é que decida a questão posta pelas partes e não já que aprecie todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº1052/18.2T8MAI-A.P1


Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Deolinda Varão
Francisca Micaela da Mota Vieira




Acordam (em Conferência) na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto



Notificada que foi do acórdão proferido nos autos veio a apelante AA reclamar para a conferência nos termos das disposições conjugadas dos artigos 666º e 613º a 617º do CPC.
Para tanto veio arguir a nulidade da mesma decisão, chamando à colação o disposto no art.º 615º, nº1, alínea d), 1ª parte do mesmo diploma legal.
A tal pretensão veio a apelada A... ACE responder.
Cumpridas todas as necessárias formalidades legais, cumpre pois apurar da viabilidade de tal pretensão.
Como é por demais sabido, por força do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 666º do CPC, é aplicável à 2ª instância o que se acha previsto nos artigos 613º a 617º do mesmo diploma legal.
Por outro lado e agora de acordo com o nº3 do supra citado art.º 666º, a rectificação, aclaração ou reforma do acórdão, bem como a arguição de nulidade, têm que ser decididas em conferência.
Sabe-se, igualmente, que esgotado que esteja o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria de causa, não pode este alterar a decisão proferida, nem modificar os seus fundamentos.
Nas palavras de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Volume I, a pág. 738/739, “a regra sobre o esgotamento do poder jurisdicional encontra um desvio nos casos em que exista erro decisório em matéria de custas e de multa e ainda quando se verifique um lapso manifesto relativamente a algum dos aspectos referidos no nº2. O lapso manifesto a que reporta o nº2 tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido.
São considerados pertinentes para efeitos de admissibilidade da reforma (especialmente nos casos em que não é admissível recurso da decisão) os lapsos manifestos do juiz na determinação da norma aplicável ou na sua interpretação (…).”
Na tese da apelante ora reclamante, o acórdão proferido padece da nulidade prevista na 1ª parte da alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC, porque não se pronunciou sobre a questão da “liquidação da obrigação da embargante”.
Sabemos todos que tal omissão consiste no facto de na decisão o tribunal não se pronunciar sobre questões que devia conhecer, por força do disposto no art.º 608º, nº2 do CPC, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nas palavras do Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume V, pág. 143, não enferma desta nulidade a decisão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito.
E isto porque são coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte.
Assim o que se impõe ao julgado é que decida a questão posta pelas partes e não já que aprecie todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões.
Perante tais considerações no caso dos autos o que se verifica é o seguinte:
Resulta manifesto que no acórdão ora reclamado foram apreciadas e decididas todas as questões suscitadas pela apelante AA.
Tal resulta, nomeadamente, dos segmentos da referida decisão que agora passamos a transcrever, para melhor entendimento:
“Perante o exposto, resulta claro serem as seguintes as questões suscitadas no ressente recurso:
(…)
2ª) A procedência total dos embargos e a consequente extinção da execução.
(…)
Como antes já vimos, neste seu recurso a apelante/embargante reitera a ideia de que os embargos devem ser julgados procedentes por estarem verificados no caso os fundamentos de oposição à execução previstos nas alíneas a) e e) do art.º 729º do CPC.
Não tem no entanto razão nesta sua argumentação, continuando a valer os argumentos que sustentam a decisão recorrida.
Vejamos:
Como bem se afirmou na decisão recorrida, nos autos a embargante veio invocar a inexequibilidade do título em virtude de o negócio não ter existido, do título não resultar o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação em relação à embargante, nem tal resultar em relação à mãe da embargante, não permitindo o título que a dívida se tenha por certa ou exigível, sendo que, face à nulidade do contrato, é nula a convenção de solidariedade das devedoras.
Mais invocou a nulidade do contrato de mútuo subjacente ao título dado à execução em virtude de não ter sido celebrado por escritura pública.
Alegou ainda que o imóvel em causa era propriedade do casal da BB e de CC, casados no regime de comunhão geral de bens, que o mesmo integrava a herança daquela CC, cujos titulares eram a BB e as ora executadas e que a exequente não podia ignorar que a titularidade do imóvel não era a aposta na declaração dada à execução
Perante tal alegação, chamou-se à colação o disposto no art.º 1142º, do Código Civil, segundo o qual “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”
Fez-se notar a circunstância de ter ficado provado que a exequente constitui um agrupamento complementar de empresas que tem por objecto a construção de auto-estradas, actividade no âmbito da qual procedeu à execução dos trabalhos de construção da SCUT Grande Porto, A4/IP4, sublanço …/Via Norte.
Salientou também o facto de ter ficado provado que a executada DD e sua mãe BB eram comproprietárias do prédio sito na freguesia ..., concelho de Matosinhos, inscrito na matriz urbana sob o nº ...15 e que o IEP – Instituto das Estradas de Portugal, actual EP – Estradas de Portugal, S.A., obteve a declaração de utilidade pública da expropriação da parcela de terreno à qual foi atribuído o nº...5, declaração necessária à execução dessa obra, correspondente ao mencionado prédio.
Aludiu-se ainda à circunstância de ter ficado provado que por forma a acelerar a libertação da parcela, entre exequente e executada DD e sua mãe BB, foi celebrado no dia 31 de Maio de 2006 um acordo mediante o qual a exequente entregou àquelas a quantia de €330.000,00 (trezentos e trinta mil euros).
Perante todos estes elementos de facto, concluiu-se e bem, ser inequívoco que entre a exequente e a executada DD e a falecida BB, mãe da ora embargante, foi celebrado um contrato de mútuo, através do qual a exequente entregou àquelas a quantia de €330.000,00 (trezentos e trinta mil euros), no âmbito do qual a executada DD e a falecida BB se comprometeram a devolver logo que recebessem do Estado Português ou de outra entidade em sua representação, a indemnização, ou parte dela, que lhes viesse a caber em virtude da expropriação do prédio do qual são comproprietários, sito na freguesia ..., concelho de Matosinhos, correspondente à parcela nº ...5.
Ora ninguém questiona por estar provado que a referida quantia foi entregue pela exequente à executada DD e à sua mãe BB,
Segundo o Tribunal “a quo”, para este efeito não releva a circunstância de não resultar do título o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação em relação à embargante, atento o facto da mesma estar a ser demandada na qualidade de herdeira de sua mãe, a mutuária falecida BB.
Considerou-se, igualmente, ser inócuo que o imóvel em causa fosse propriedade do casal da BB e de CC, casados no regime de comunhão geral de bens, que o mesmo integrasse a herança daquela CC, cujos titulares eram a BB e as ora executadas e que a exequente não pudesse ignorar que a titularidade do imóvel não era a aposta na declaração dada à execução.
Entendeu-se ainda que em relação à mutuária falecida BB, o que resulta claro é que o documento dado à execução importa a constituição e o reconhecimento de obrigações pecuniárias perante a exequente.
Por fim, considerou-se que atenta a natureza real do contrato de mútuo, no caso dos autos o mesmo se completou com a entrega da referida quantia pela exequente à executada DD e à falecida BB, mãe da ora embargante.
Impõe-se dizer que nenhum reparo nos merece tal encadeamento de ideias e por ser assim também nós consideramos que face ao exposto não colhia nem colhe a alegação da embargante ora apelante AA.
Quanto à nulidade por falta de forma do contrato de mútuo o que se deve dizer é o seguinte, continuando a sufragar a argumentação inscrita na decisão proferida:
Segundo o que decorre do disposto no art.º 1143º, do Código Civil, na redacção do D.L. nº 343/98, de 6 de Novembro, aqui aplicável, “O contrato de mútuo de valor superior a 20.000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2.000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário.”
Nestes termos, cabe concluir que sendo o contrato de mútuo titulado pelo documento particular dado à execução, outorgado no dia 31 de Maio de 2006, é nulo por falta de forma, face ao respectivo valor, sendo tal nulidade invocável por qualquer interessado e podendo ainda ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 220º, 286º e 1143º, do Código Civil.
Importa agora recordar que conforme resulta expressamente do documento particular dado à execução, na respectiva cláusula segunda foi expressamente acordado pelas partes o seguinte:
“Segunda – Que reconhecendo a obrigação de restituir a quantia emprestada por força da invalidade decorrente da falta de celebração deste empréstimo mediante escritura pública, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 289º e no artigo 1143º, ambos do Código Civil, se consideram e afirmam devedores da referida quantia de €330.000,00 (trezentos e trinta mil euros), perante o A..., ACE.”
Perante tal clausulado conclui o Tribunal “a quo” que foram as próprias mutuárias quem reconheceu terem recebido a quantia mutuada, fazendo ainda consignar no documento dado à execução a declaração de que reconheciam a obrigação de restituir a quantia emprestada por força da invalidade decorrente da falta de celebração do empréstimo mediante escritura pública, nos termos do disposto no nº1, do art.º 289º e no art.º 1143º, ambos do Código Civil, considerando-se inda devedoras perante a mutuante ora exequente da referida quantia de €330.000,00 (trezentos e trinta mil euros).
Perante tal circunstancialismo considerou-se na decisão recorrida que não era legítimo à embargante vir invocar a nulidade do contrato por falta de forma.
E isto tendo por base a figura do abuso de direito prevista, como todos sabemos, no art.º 334º do Código Civil.
Justifica tal entendimento na circunstância da embargante ter vindo deduzir tal pretensão muito tempo depois de ter sido celebrado com a exequente o contrato de mútuo, já depois de a mutuária, mãe da embargante, ter recebido da exequente a quantia mutuada e de ter utilizado a mesma em seu proveito sem nunca ter procedido ao seu pagamento.
Estribou-se ainda no facto de não ter ficado provado que a mutuária falecida BB invocou, por alguma vez, junto da exequente a invalidade do contrato por falta de forma
Mais fez notar que tal alegação da embargante só surgiu depois de a mutuária falecida BB ter beneficiado do cumprimento do contrato de mútuo por parte da exequente, e de o comportamento adoptado por aquela durante anos, ser passível de criar na exequente a legítima convicção de que tal direito não viria a ser exercido.
Por fim, salientou que tal alegação apenas surgiu no momento em que a exequente veio exigir judicialmente o pagamento das quantias devidas na sequência da não restituição da quantia mutuada e já depois da mutuária falecida ter usufruído das vantagens que as mesmas lhe proporcionaram.
E foi em face de tais considerações que conclui e bem que a embargante AA não podia vir agora exercer um direito em contradição com a conduta anterior da parte a quem sucedeu (a mutuária sua mãe), em que a exequente confiou, invocando a nulidade do contrato por falta de forma, por tal actuação constituir manifestamente um abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Aderindo nós a tal entendimento, subscrevemos pois a ideia de que deveria manter-se a obrigação de restituição do capital e do pagamento dos juros de mora, mas contados estes apenas desde a data da citação para acção executiva.
O Tribunal “a quo” defendeu ainda o entendimento de que mesmo a não ser esta a tese a subscrever ainda assim manter-se-ia sempre a obrigação de restituição do capital mutuado.
Tudo por força do que decorre do disposto no art.º 289º, nº1 do Código Civil e atenta a jurisprudência fixada no AUJ de 12.12.2017, proferido no processo nº1181/13.9TBMCN-A.P1.S1, em www.dgsi.pt., onde ficou decidido o seguinte: “O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, nº1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado”.
Nestes termos, também nós consideramos que nos autos o documento dado à execução goza de exequibilidade em relação ao capital e aos juros de mora, contados desde a data da citação.
Assim sendo, cabe concluir como na decisão recorrida que “o documento particular dado à execução constitui um título executivo válido, impendendo por isso sobre as executadas a obrigação de pagar ao exequente a quantia titulada pelo mesmo, bem como os respectivos juros de mora, contados desde a data da citação, com a especificidade acima referida em relação à embargante.”
Improcedem também nesta parte o recurso aqui interposto, restando apenas confirmar o que ficou decidido.”
Perante o acabado de referir, mostra-se evidente que no acórdão proferido e agora objecto de reclamação foram apreciadas e decididas todas as questões suscitadas no recurso que veio interpor pela apelante AA.
O mesmo não padece por isso da nulidade que lhe vem apontada.
Assim, na improcedência total da reclamação aqui deduzida pela apelante AA confirma-se o decidido no acórdão objecto da mesma.
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Custas a cargo da mesma apelante ora reclamante (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 11 de Janeiro de 2024
Carlos Portela
Deolinda Varão
Francisca Mota Vieira