Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0353145
Nº Convencional: JTRP00036258
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
COMPENSAÇÃO
Nº do Documento: RP200306230353145
Data do Acordão: 06/23/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 J CIV V N GAIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de abertura de crédito documentário é utilizado como meio de financiamento de operações comerciais internacionais, quer visando o pagamento, quer a obtenção de crédito a ele destinado.
II - Sendo a abertura de tal crédito irrevogável, o banco emitente (ou ordenante) não pode, unilateralmente, tal como o banco confirmante (se o houver) fazer cessar os efeitos da concessão de crédito.
III - Parte substancial da doutrina portuguesa qualifica tal tipo de contrato, como mandato sem representação.
IV - Se o banco ordenante encarrega outro banco, noutro país, como confirmador, da abertura de crédito, constitui-se, entre eles uma relação de mandato, não se obrigando, em princípio, o banco notificador a proceder ao pagamento.
V - Se, após o decurso do prazo de validade do contrato, o banco ordenante, violando as Regras e Usos Uniformes Relativos ao Crédito Documentário -RUU- revoga, sem fundamento, a cláusula de irrevogabilidade, e o banco notificador procede ao pagamento, após ter contactado o banco ordenante, aquele banco (notificador) paga no âmbito de uma relação de sub-mandato (inoponível ao recebedor), assumindo obrigação própria, que se não confunde com contrato de desconto bancário.
VI - Se este banco age como confirmante e não como notificador - como lhe fora solicitado - não pode meses após o pagamento - retirar da conta de depósitos à ordem do vendedor/exportador, o valor que havia pago, mais juros e impostos, invocando ter pago indevidamente por via de desconto bancário, e invocar a compensação de créditos com o saldo da conta do recebedor existente no banco.
VII - Tal compensação viola os princípios da boa-fé e é ilegítima, por o banco "compensante" ao pagar, ter assumido a obrigação do banco ordenante, constituindo-se, por via da ilegal compensação, na obrigação de indemnizar por danos causados pela retirada, sem pré-aviso, da quantia que antes pagara.
VIII - Se, a par do banco ordenante, um outro banco, por incumbência daquele, age como banco confirmador, a obrigação assumida é plural do lado passivo, mas daí não nasce obrigação conjunta, mas disjunta; o pagamento por um dos bancos libera do pagamento o outro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

“F..............., Ldª”, intentou, em 13.12.1991, pelo Tribunal Judicial da Comarca de ......... – .. Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

C........., S.A.,

Banco ........., S.A., e;

S............, S.A.

Pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de 7.537.176$00, sendo 5.206.830$00 do montante do crédito documentário e 2.330.345$50 dos juros vencidos até 9.12.91, para além dos vincendos até efectivo e integral pagamento, à taxa anual de 19%, e ainda da indemnização cuja liquidação relega para execução de sentença, acrescida de juros moratórios legais, desde a sua liquidação.

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, resumidamente, o seguinte:

- que acordou com a 3a ré a venda de determinados produtos de seu fabrico, tendo esta, para o pagamento do preço, aberto um crédito documentário irrevogável em seu favor:

- que tal crédito foi ordenado pela 3a ré, emitido pelo 2°réu, e notificado à beneficiária-autora pelo 1° réu, instituição bancária nele autorizada a pagar, sem nenhuma espécie de reserva;

- que, em 12.6.89, o 1° réu enviou-lhe ofício informando o “desconto”, e o facto de, pelo montante do crédito, 5.206.830$00, haver sido creditada a sua conta, convencendo-se a autora que assim ficou liquidada a operação;

- que, em 31.10.89, e com data valor de 1.8.89, recebeu do 1° réu um aviso de débito informando-a da “anulação do desconto efectuado em 12.6.89”, tendo sido a conta da autora debitada pela importância de 5.338.998$00;

- que tal operação não pode configurar um desconto bancário, pois não foi precedida de proposta de desconto subscrita pela autora, não está em causa um crédito transferível e, ainda, porque seria essencial que, com a operação, se visasse a disponibilidade dos fundos a que teria direito, em data prévia à do vencimento do crédito, o que não é o caso já que apenas os pretendeu receber e recebeu, de facto, na data permitida para a sua utilização;

- que na transmissão via “swift” enviada pelo 2° réu ao 1° réu não consta nenhuma expressão do género “seguem detalhes”; que se verifica a aparente autenticidade do crédito;

- que não obstante para tal notificado, o 2° réu não pagou ao 1° réu o montante do crédito e nem directamente à autora; que o 1° e 2° réus não devolveram os documentos à autora;

- que as mercadorias vendidas foram efectivamente entregues e que nunca foram pagas pelo 3° réu, o qual transmitiu ao 2° réu instruções nunca acordadas com a autora assim violando o contrato de compra e venda;

- que toda a descrita actuação provocou-lhe prejuízos de ordem material, por lhe ter sido retirada da sua disponibilidade e de forma ilícita a quantia correspondente ao valor do crédito documentário, ao ter que recorrer a crédito para suprir as suas necessidades imediatas, ao ser-lhe impedido o normal desenvolvimento da sua actividade, cancelando ou atrasando encomendas e compromissos, com os evidentes reflexos em termos de imagem comercial.

Concluiu pela procedência da acção.

Contestou o réu C.........., S.A., defendendo-se por excepção de litispendência e por impugnação. Para fundamentar a sua pretensão alegou, em resumo, o seguinte:

- que já intentou, antes da propositura da presente acção, uma outra para o recebimento do saldo negativo da conta de depósitos à ordem da autora, saldo que resultou do débito nessa conta da quantia referente ao desconto da remessa documentária a que alude estes autos e que mereceu contestação da autora com os mesmos fundamentos, que constam da petição inicial;

- essa acção foi julgada procedente, com decisão que se encontra pendente de recurso; que não são alegados factos imputáveis ao réu que possam ter a virtualidade de constituir ilícito extracontratual;

- que não vêm alegados factos de onde resulte estar ao réu cometida a obrigação do pagamento do preço da mercadoria exportada;

- que desconhece tudo relativamente às negociações havidas e aos termos do contrato de compra e venda;

- que se limitou a notificar a abertura de crédito feita peio 2° réu, sem o ter confirmado;

- que desconhece se havia condições adicionais acordadas entre a autora e a 3a ré, que não constavam do acordo inicialmente enviado pelo 2° réu;

- que a nenhum dos outros dois réus procedeu ao pagamento da factura.

Concluiu pela improcedência da acção e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

Contestou o réu Banco ........, S.A, mas a sua contestação foi mandada desentranhar dos autos, por não ter sido apresentada procuração outorgada pelo réu em nome do advogado signatário, nem documento que ratificasse a contestação, dentro do prazo determinado pelo tribunal.

Contestou também a ré S........., S.A., mas fora do prazo legal, tendo alegado a nulidade da sua citação.

A autora ofereceu réplica no que concerne à contestação apresentada pelo 1° réu, sustentando a improcedência da excepção de litispendência e concluindo, tal como na p.i., pela sua condenação no pedido.
***

Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, no âmbito do qual, para além de o tribunal ter sido julgado o competente e as partes dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, bem como de legitimidade, foram julgadas improcedentes as nulidades relativas à citação e a excepção de litispendência arguidas pela 3a e pela 1ª rés, respectivamente, e o processo isento de outras nulidades, excepções ou questões prévias que cumprisse conhecer, estado em que se mantém.

A 3a ré interpôs recurso da decisão proferida no despacho saneador, recurso este que não foi admitido, por despacho transitado em julgado.

A especificação e o questionário foram alvo de reclamações apresentadas pela autora e pelo 1° réu, reclamações que foram parcialmente atendidas, nos termos do despacho constante de fls. 208-209.

Foi realizada audiência de discussão e julgamento perante tribunal singular, com respeito pelo formalismo legal.
***

A final foi proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente provada e procedente e, consequentemente:

- condenou os réus C........, S.A., Banco .........., S.A. e S..........., S.A., a pagarem à autora o montante de 25.971,56 Euros (vinte e cinco mil, novecentos e setenta e um euros e cinquenta e seis cêntimos), equivalente a Esc. 5.206.830$00;

- condenou os réus Banco .........., S.A. e S............., S.A. no pagamento à autora de juros legais sobre o referido montante, vencidos desde 1/8/89, às taxas legais de 15%, até 19/4/99, e de 12%, ou outra que venha a vigorar, desde esta data até efectivo e integral pagamento;

- condenou o réu C..........., S.A. no pagamento à autora de juros de mora sobre o referido montante de 25.971,56 Euros, desde a citação, à taxa legal de 15% até 19/4/99 e à taxa legal de 12%, que venha a vigorar, desde aquela data até efectivo e integral pagamento;

- condenou ainda o réu C........., S.A. no pagamento à autora do montante que vier a ser liquidado em execução de sentença, a título de indemnização, acrescido de juros legais desde a respectiva liquidação.
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Inconformados recorreram os RR. Bancos.

O Réu C.........., S.A. alegou, formulando as seguintes conclusões:

1. A questão que suscita o presente recurso resume-se à posição a tomar quanto à compensação de créditos operada pelo apelante.

2. Ou seja, apurar-se se foi lícito ou não o banco fazer-se pagar de uma dívida sobre a F........., Ldª (emergente de um desconto bancário), com um direito de crédito desta sobre o banco (emergente de depósito bancário).

3 . São relevantes a este propósito as alíneas C, D, T, U, X, BB, CC, DD da matéria dada como provada.

4. Conforme resulta do recente estudo realizado pelo Prof. Menezes Cordeiro, “depósito bancário e compensação”, publicado na Colectânea de Jurisprudência, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano X, Tomo l – 2002, pág. 5 a 10, “a compensação em conta-corrente é lícita, sendo inclusive inoponível ao “banqueiro qualquer relação subjacente ao depósito” (pág. 6 do referido estudo), não competindo ao banco apurar “que negócios poderão estar subjacentes a qualquer depósito: vez realizado, o depósito entra na lógica da abertura de conta, da conta-corrente e das compensações que a animam” (pág. 6 do mesmo estudo).

5. No estudo refere o Prof. Menezes Cordeiro (pág. 7): “no domínio da compensação e para efeitos do seu funcionamento, a homogeneidade das prestações pecuniárias não é perturbado pela facto de elas resultarem de fontes diversas.

6. A compensação só não seria viável se operasse alguma das cláusulas de exclusão previstas no art. 853° do C.Civil ou se se verificasse a aplicabilidade de alguma regre concreta impeditiva da compensação”.

7. Veja-se ainda o entendimento do Prof. Calvão da Silva, em “Direito Bancário, Almedina”, pág. 348, onde ensina que a norma do art. 1187° alínea a) e c), relativa ao depósito, não se aplica ao depósito bancário.

8. Igual entendimento – isto é, o banco compensar um crédito seu com crédito do cliente sobre o banco (saldo credor de conta à ordem) – professam a Drª Paula Ponces Camanho (Contrato de Depósito Bancário, Almedina, pág. 226) e Prof. Ferrer Correia e Dr. Almeno de Sá, no estudo conjunto “Cessão de Créditos, Emissão de Cheques, Compensação”, CJ, Ano XV, 1990, Tomo l, pág. 447-473.

9. Dito isto, deve entender-se como válida a compensação efectuada, entendendo-se o aviso de débito a que se refere a alínea D) da matéria provada, como declaração para efeitos de compensação de créditos.

10. Entendida como válida a compensação, deverá ficar prejudicado o pedido de indemnização por danos presentes e futuros.

Termos em que revogando-se a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, absolvendo-se o apelante do pedido, se fará Justiça.
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Nas alegações apresentadas o Banco .........., S.A., formulou conclusões as seguintes:

1. Atenta a confissão do legal representante da Autora de que considera o crédito documentário referenciado na causa de pedir como pago, acha-se cumprida a obrigação do Banco ora Apelante, inexistindo em consequência, qualquer responsabilidade contratual emergente da relação de crédito constituída entre o Banco emitente e a beneficiária do crédito.

2. O banco emitente ora Apelante é terceiro, na relação creditícia e devedora, entre o C..........., S.A. e a Autora F........, Ldª que levou à declaração de compensação de créditos, não emergindo dessa controvérsia qualquer responsabilidade contratual para o Banco ora Apelante.

3. A sentença recorrida, reconhece que o banco ora Apelante estava vinculado a pôr à disposição do C..........., S.A. a quantia, de crédito documentário desconsiderando a validade e a desconformidade documental, que por via do disposto no art. 16° das Regras e Usos Uniformes relativos aos créditos documentários inibiam o C........., S.A. de concluir pela fidedignidade documental.

4. A sentença recorrida, não apreciou como lhe competia a questão da ausência de confirmação do crédito por parte do Banco ........., S.A. pelo que nesta medida, é nula por via do disposto no art. 668º , nºl, alínea d) Processo Civil.

5. Por outro lado, o fundamento invocado para a condenação do Banco ora Apelante – obrigação de colocar o monte do crédito à disposição do C........., S.A. está em contradição com a condenação a pagar à Autora o que igualmente faz incorrer a sentença na nulidade a que se a alínea c) do nºl do mesmo art. 668º do Código de Processo Civil.

6. Porquanto foi a própria Autora que reconheceu que o Crédito havia sido posto à sua disposição pelo Banco ora Apelante.

7. Pelo que o Banco ora Apelante não causou à Autor qualquer prejuízo – tendo em consequência a sentença recorrida aplicado erradamente os preceitos dos artigos 799°, 804° e 805°, nº2, alínea a) do Código Civil.

8. E em consequência da confissão da Autora, e de ter esta considerado que recebeu o preço da compra e venda subjacente à operação de crédito documentário, determina que a sentença recorrida interpretou também erradamente o disposto nos artigos 874° e 879°, alínea c) do Código Civil.

9. O facto do C........., S.A. ter assumido pagamento do crédito, por via de uma operação de desconto em 9.6.89 a que deu o número CDE 2055, significa que os fundos foram colocados à disposição da Autora, por iniciativa do C........., S.A. que assumiu o risco de crédito da operação e a desconformidade documental da operação de crédito.

10. Em consequência dessa assunção de risco, pelo C........., S.A., extinguiram-se pelo pagamento os efeitos contratuais da operação bancária entre o Banco ora Apelante e a Autora.

11. Na presente acção não está pedido pelo C........., S.A., nada ao Banco ora Apelante, pelo que ao reconhecer a sentença que o Banco ora apelante devia facultar o montante do crédito ao banco notificador - ainda que sem confirmação do Banco emitente - não podia condenar o Banco emitente a pagar à Autora aquilo, que esta se declarou paga.

12. Banco ora Apelante é terceiro na relação controvertida entre a Autora, e o C........, S.A. emergente de uma declaração de compensação de créditos.

Deve em consequência provimento ao revogando-se a sentença recorrida, que deverá ser substituída outra que absolva o Banco Apelante do pedido.
Assim se julgando se fará uma vez mais Justiça.

A contra-alegou pugnando pela confirmação da sentença.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto:

A) A ré S............, S.A. ordenou o crédito documentário, que foi emitido pelo réu Banco .........., S.A, e foi notificado à beneficiária autora pelo réu C.........., S.A., o qual se rege pelas regras e usos uniformes relativos aos créditos documentários.

B) Em 9.6.89, após a utilização do crédito e fora do prazo da validade deste, foi pelo réu C.........., S.A., a título informativo, enviado à Autora o ofício que constitui fls. 34, ao abrigo do qual seguia a cópia de um telex enviado pelo réu Banco ........., S.A., pretendendo constituir um complemento do crédito documentário e incluindo condições adicionais.

C) O réu C........., S.A. enviou, em 12.6.89, à Autora, o aviso de crédito, de que constitui fotocópia o documento de fls. 36, informando o desconto do crédito documentário de acordo com as Regras e Usos Uniformes e o lançamento, a crédito, na conta da autora do montante correspondente em dinheiro português.

D) Em 31.10.89, com data valor de 1.8.89, o réu C........, S.A. enviou à autora o aviso de débito, de que constitui fotocópia o documento de fls. 37, informando-a da anulação do desconto efectuado em 12.6.89 e de que havia sido debitada na sua conta a importância de 5.338.998$00, correspondente ao montante do crédito documentário, acrescido de juros e imposto.

E) Na transmissão via “swift”, da abertura de crédito, enviada pelo réu Banco ........, S.A. ao réu C.........., S.A., não foi utilizado nenhuma expressão do género “seguem detalhes”.

F) O telex referido na alínea B) foi enviado e recebido posteriormente ao termo da validade e à utilização do crédito documentário.

G) O réu Banco ........., S.A. não pagou ao réu C........., S.A. nem directamente à Autora o montante do crédito.

H) Também a ré S.........., S.A. não pagou ao C.........., S.A. tal crédito.

I) A notificação do crédito pelo réu C.........., S.A. à Autora foi sem a confirmação e sem qualquer garantia ou responsabilidade dele.

J) O prazo da validade do crédito documentário terminava em 6.6.89.

K) Nem a 1a nem a 2a rés devolveram à Autora os documentos referentes ao crédito documentário, os quais foram pela 1a ré enviados à 2a ré e por esta entregues à 3ª ré que permitiu a esta a efectiva entrada na posse das mercadorias.

L) Em meados de 1989, a autora e a ré S........., S.A. acordaram em aquela vender a esta os produtos do seu fabrico encomendados na factura de fls. 7.

M) Pelo preço F.O.B. de 4.044.454 pesetas.

N) Tendo ambas acordado, ainda, que para pagamento deste preço, seria aberto um crédito documentário irrevogável ordenado pela ré S........., S.A. a favor da autora.

O) O montante relativo ao crédito documentário, referido na alínea A), deveria ser pago sem nenhuma espécie de reserva.

P) Logo que recebida a notificação, antes de 6.6.89, a autora entregou ao réu C........., S.A. os documentos constantes de fls. 31, 32 e 33, destinados à instrução do crédito documentário.

Q) Do próprio crédito documentário consta a menção de ter sido utilizado.

R) As condições adicionais constantes do telex referido na alínea B) não haviam sido acordadas entre a autora e a ré S........., S.A..

S) O montante creditado pelo réu C..........., S.A. na conta da autora, referida na C), foi de 5.191.235$60.

T) Por haver sido retirada da disponibilidade da autora a quantia correspondente ao valor do crédito documentário, ela teve que recorrer ao crédito para suprir as suas necessidades financeiras imediatas.

U) Em virtude da situação descrita na primeira parte da alínea T), a autora viu impedido o normal desenvolvimento da sua actividade, atrasando encomendas e compromissos.

V) Com imediatos reflexos em termos da sua imagem comercial.

X) Os prejuízos descritos nas alíneas U) e V) continuaram a produzir-se por período de tempo não concretamente apurado e ainda subsistiam à data de propositura da acção.

Z) Recebido o “swift” referente à abertura de crédito, o réu C........., S.A. solicitou esclarecimento ao réu Banco ........, S.A..

AA) E o réu Banco ........., S.A. nenhum esclarecimento prestou durante o prazo de validade da abertura de crédito.

BB) A autora solicitou ao C........., S.A. o “desconto” do crédito documentário, por forma a obter o pagamento antecipado do respectivo montante, o que foi aceite pelo referido banco.

CC) Subscrevendo e apresentando a proposta de “desconto”, com a indicação que o produto líquido do desconto devia ser creditado na conta da autora.

DD) O prazo de vencimento foi de 60 dias, a contar da data da factura.

EE) A ré S..........., S.A. não pagou à autora o montante do crédito.

FF) O telex referido na alínea B) foi enviado e recebido posteriormente ao efectivo embarque das mercadorias.

Fundamentação:

Sendo, em princípio pelo teor das alegações do recorrente, que se afere do objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – cumpre afirmar que ambos os recorrentes pugnam pela respectiva absolvição.

O Banco ......, S.A. sustenta a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, quanto à questão de ausência de confirmação do crédito por parte do recorrente; sustenta haver contradição entre a afirmação contida na sentença de que o montante devido à Autora foi posto à sua disposição pelo C........., S.A. e a condenação imposta ao apelante, por ter causado danos àquela, isto apesar, do C........., S.A., por sua iniciativa, ter pago à Autora.

O recurso do C........, S.A. tem por objecto saber se, nas circunstâncias factuais provadas, o recorrente poderia ter procedido, como procedeu, à compensação de créditos, fazendo-se pagar de alegada dívida da Autora, com um crédito desta sobre o recorrente (emergente de depósito bancário).

Uma vez que a procederem as conclusões do recurso do Banco ......., S.A. – que pugna pela nulidade da sentença – o que a ser decretado poderá inviabilizar o conhecimento do recurso do C........, S.A. – começaremos por apreciar este recurso.

Todavia, antes demais, com apelo à Doutrina e à Jurisprudência, intentaremos definir a relação jurídico-contratual que envolveu os pleiteantes, visando definir as responsabilidades emergentes do(s) negócio(s) jurídico(s) celebrado(s).

O cerne da questão está na qualificação da relação estabelecida entre Autora, a Ré S.........., S.A. e os Bancos demandados.

É inquestionável que, entre a Autora e a 3ª Ré, foi estabelecido um contrato de compra e venda internacional, através do qual a demandante, mediante a contrapartida de um preço, transferiu o direito de propriedade sobre bens de seu fabrico – arts. 874º e 879º do Código Civil.

Porque se trata de venda internacional o esquema jurídico acordado pelas partes, para garantia do pagamento do preço, foi urdido fazendo intervir no processo de pagamento, entidade bancária, através do denominado “crédito documentário”.

O crédito documentário é utilizado como meio de financiamento de operações comerciais internacionais, quer visando o pagamento, quer a obtenção de crédito a ele destinado.

Na primeira metade do século foram reduzidas a escrito as Regras e Usos Uniformes (RUU) respeitantes à utilização dos créditos documentários, que têm vindo a ser alteradas, sendo a mais recente datada de 1993.

No caso em apreço, a figura do crédito bancário está indissociavelmente ligada ao contrato de compra e venda, já que foi utilizada pelo comprador e vendedor como forma de garantir o pagamento do preço da exportação.

Como ensina Carlos da Costa Pina, in “Créditos Documentários”, pág. 18, quando assim acontece:

“O comprador deverá solicitar a uma instituição bancária a abertura de um crédito a favor do vendedor, a satisfazer mediante a apresentação de determinados documentos, que expressamente indicará, que comprovem a expedição da mercadoria adquirida.
O banco, por sua vez, informará o vendedor da abertura do crédito efectuada e dos documentos exigidos para proceder ao pagamento do respectivo montante.
O vendedor, por seu lado, após ter expedido a mercadoria e recebido do transportador os respectivos documentos comprovativos, apresentá-los-á ao banco respectivo, juntamente com outros que sejam requeridos, e verá então satisfeito o seu crédito sobre o montante correspondente ao preço.
Posteriormente, o banco entregará esses mesmos documentos ao adquirente da mercadoria, de forma a que este possa proceder ao levantamento da mesma no local de destino, sendo agora reembolsado, contra a sua entrega, do montante anteriormente entregue ao vendedor, eventualmente acrescido, conforme tenha sido acordado, de uma comissão pelo serviço prestado ou de juros relativos ao período de tempo decorrido entre o pagamento do preço ao vendedor e a recepção do respectivo montante da parte do comprador”.

As RUU prevêem a existência de créditos documentários, revogáveis e irrevogáveis art. 7º das RUU –cfr. fls. 12.

Na revisão de 1993 (não aplicável ao caso dos autos, já que o negócio foi celebrado em 1989) fixou-se, supletivamente, a regra da irrevogabilidade, no art. 6º das RUU.

No caso sob análise, não obstante o contrato ter sido celebrado anteriormente a esta alteração (de 1993) foi convencionada a irrevogabilidade do crédito.

Voltando à lição do tratadista citado, pág. 30: - “Um crédito irrevogável significa, pois, que o mesmo não pode ser objecto de nenhum acto jurídico que, unilateralmente, – faça cessar os seus efeitos ou alterar o seu conteúdo. E vincula, quer o banco que emitiu o crédito, quer o banco que o tenha confirmado”.

Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Bancário” , pág. 555, ensina:

“A abertura de crédito documentário é revogável ou irrevogável conforme o ordenante se tenha – ou não – reservado o direito de revogar a ordem de pagamento, uma vez efectuada. O crédito documentário irrevogável funciona como uma verdadeira garantia, independente das vicissitudes ulteriores”.

Não obstante a aparente simplicidade do instituto vale a pena citar Menezes Cordeiro, obra citada, pág.546, em nota, que refere Fernando Olavo e o seu estudo onde aborda a afinidade deste tipo com outros. [Fernando Olavo, “Abertura de Crédito Documentário” cit., 100 ss., enumera e estuda, sucessivamente, a teoria da fiança, a teoria da cessão de créditos, a teoria da assunção de dívidas (com várias modalidades), a teoria da assignação passiva, a teoria da delegação, a teoria do contrato a favor de terceiro, a teoria da promessa de aceite por acto separado, a teoria do contrato de comissão, a teoria da abertura crédito verdadeira ou própria e a teoria do mandato (com várias modalidades); tendo de criticado todas essas orientações, FERNANDO OLAVO acaba por fixar-se na doutrina do criticado todas essas orientações, FERNANDO OLAVO acaba por fixar-se na doutrina do mandato sem representação – ob. Cit., 134 ss.. ]

Para Menezes Cordeiro, a abertura de crédito documentário “assenta em dois contratos distintos: o contrato entre o ordenante e o banqueiro, que tem a natureza duma abertura de crédito, dobrada por um mandato sem representação; o contrato entre o ordenante e o terceiro, que justificará o pagamento a efectuar”.

As RUU prevêem, igualmente, dois tipos de créditos – os apenas notificados e os não confirmados – obra citada, pág. 33:

“Quando se fala de créditos notificados, estão em causa créditos documentários — revogáveis ou irrevogáveis — que depois de terem sido emitidos pelo banco emitente são transmitidos por um segundo banco ao seu beneficiário.
Este banco limita-se apenas a transmitir a abertura ao crédito, sem assumir com isso qualquer compromisso com o beneficiário (art. 8.°).
Contudo, dadas, por um lado, a função de segurança que o crédito documentário desempenha e, por outro, a necessidade de garantir a credibilidade das instituições bancárias no exercício da respectiva actividade, deve o banco notificador averiguar da aparente autenticidade do crédito.
Já os créditos documentários confirmados, implicando a assunção de um compromisso por parte do banco confirmador perante o beneficiário, que acresce ao compromisso do banco emitente, só são possíveis, como vimos acima, caso tenham natureza irrevogável (art. 10º)”.

No Ac. do S.T.J. de 17-4-1997, in BMJ 466, 526 sentenciou-se:

“I. O crédito documentário, conforme resulta das Regras e Usos Uniformes Relativos aos créditos documentários, [...] é a operação bancária formal pela qual um banco (o banco emitente), agindo por mandato ou instruções do seu cliente (o ordenador do crédito), se obriga, mediante um negócio unilateral, a carta de crédito, a pagar ou a mandar pagar a terceiro (o beneficiário) uma quantia determinada, à vista ou na data ou datas estipuladas, sob condição de o beneficiário lhe entregar os documentos exigidos (representativos de mercadorias compradas pelo ordenador ao beneficiário e outros).
II – Ao compromisso do banco emitente, quando irrevogável, pode juntar-se o compromisso de outro banco, o banco confirmador, a confirmar o crédito documentário. Neste caso, o banco confirmador, também por um negócio unilateral, a carta de confirmação, obriga-se perante o beneficiário em termos idênticos aos do banco emitente.
III – No crédito confirmado, são sujeitos passivos ou o banco emitente ou o banco confirmador, devendo o beneficiário proceder à escolha por ocasião do cumprimento.
IV – Uma vez que a obrigação é disjunta e nascida de negócios jurídicos unilaterais, o cumprimento por um dos sujeitos passivos não dá lugar a direito de regresso; o direito de compensação do banco confirmador, quando seja ele a cumprir, contra o banco emitente [artigo 16º, alínea a), das Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários] não se filia na garantia mas no sub-mandato conferido por este àquele.
V – Quando irrevogável, o crédito documentário obriga o emitente (e o mesmo vale para o confirmador) para com o beneficiário, em termos “firmes", isto é, que não podem ser rompidos ainda que o ordenador, como mandante, queira instruir o banco emitente (ou o banco emitente e o confirmador, seu submandatário) no sentido de não pagar (ou de não pagarem).
VI – Quando seja o banco confirmador a satisfazer o crédito ao beneficiário, além de se extinguirem as restantes obrigações (a do banco emitente e a do ordenador) para com o beneficiário, nasce a obrigação de o banco emitente compensar o banco confirmador”.

No caso em apreço, como vimos, o crédito documentário de que foi ordenante ao Banco ........, S.A. a 3ª ré, compradora à Autora, foi estabelecida a cláusula de irrevogabilidade. Tal crédito foi notificado à Autora pelo C......., S.A., que agiu, naturalmente, não por sua iniciativa, mas concertado com o Banco ......, S.A., no contexto de relação de sub-mandato.

Ora, como resultou provado, o Banco ........, S.A. já depois vencido o prazo de utilização do crédito, através do C........, S.A., pretendeu constituir um complemento do crédito adicional, incluindo condições adicionais, o que vale por dizer que, unilateralmente, modificou as condições em que devia proceder ao pagamento, violando a cláusula de irrevogabilidade; apenas o poderia fazer, por consenso com o ordenante e o beneficiário – a Autora – o que no caso não ocorreu. –cfr. als. A), B) C), R) e FF).

O Banco .........., S.A., como banco emitente, socorreu-se do C........, S.A. para notificar a Autora; teria agido este Banco como confirmador ou, meramente, como notificador?

Quando um banco actua como notificador, ele apenas se limita a informar o beneficiário da existência da abertura do crédito e da maneira como o deve utilizar, sem assumir qualquer compromisso. Se o banco actua como confirmador ele vincula-se perante o beneficiário do crédito, passando a sua responsabilidade a ser idêntica à do banco emitente.

Ora, tendo o C........, S.A., na sequência da abertura de crédito pelo Banco ........, S.A., comunicado esse facto à Autora e tendo, em 12.6.1989, lançado na conta da Autora o montante do preço da compra e venda, actuou na qualidade de mandatário do banco emitente, tanto mais que antes do vencimento do crédito o Banco ......., S.A. não fizera quaisquer reservas, mesmo após a solicitação que lhe foi feita pelo C........., S.A..

Nos termos do art.16º a) das RUU –“Se um Banco para tal autorizado, efectuar um pagamento, ou se comprometer a efectuar um pagamento diferido, ou a aceitar, ou a negociar, contra a apresentação de documentos que aparentemente mostrem estar em conformidade com os termos e condições de um Crédito, a parte que deu esta autorização deve reembolsar o Banco que tenha efectuado o pagamento, ou se tenha comprometido a efectuar um pagamento diferido, ou tenha aceitado ou negociado, e deve aceitar os documentos”.

No item I) dos factos provados consta –“A notificação do crédito pelo réu Crédito Predial à Autora foi sem a confirmação e sem qualquer garantia ou responsabilidade dele”.

Todavia, não deixa de ser estranho que o C........, S.A. tenha, em 12.6.89, informado a Autora do “desconto do crédito documentário [...] e o lançamento a crédito do montante correspondente em dinheiro português” – cfr. al. C) dos factos provados.

Ora, esta actuação ou conduz à conclusão de que o C........, S.A. pagou como banco confirmador, ou, não actuando nesta veste, o fez por assumir a obrigação de pagamento a outro título; inclinamo-nos a considerar que a actuação do C........., S.A. foi concludente, no sentido de ter actuado não como banco meramente informador, mas como confirmador, não obstante o teor do documento de fls.28, por si emitido.

Tanto assim parece ser, que no seu douto recurso, este Banco não pretende discutir a sua condenação por ter pago, apenas pretendendo que há lugar à compensação a que procedeu e que a sentença recorrida não validou.

Para tornear este escolho, que representa o pagamento nas circunstâncias em que foi feito, o C........., S.A. sustenta que tal pagamento, foi totalmente alheio à operação de crédito documentário, tratando-se, meramente, de uma operação de desconto bancário, a solicitação da Autora.

Tal tese não merece acolhimento, porquanto, além de serem patentes as diferenças entre o crédito documentário e desconto bancário, é incongruente que, dada a ligação umbilical existente no negócio em causa entre o Banco ........., S.A. e o C......., S.A., relacionada com o contrato de crédito documentário, o C.........., S.A., sem mais, apareça, por seu livre alvedrio, a cancelar o crédito que ao abrigo daquele negócio fizera na conta da Autora, e, depois, faça com ela um contrato de desconto bancário.

O procedimento do C........., S.A. ao pagar à Autora a quantia em dívida, foi-o por antecipação do contrato de crédito documentário e consentida pelo art. 16º a) da RUU, tanto mais que sabia que, por o crédito ser irrevogável, o Banco ordenante jamais poderia alterar as condições de pagamento.

O crédito, por virtude da cláusula de irrevogabilidade, teria sempre de ser considerado “firme”; a actuação do C........., S.A., ao pagar, exprimiu actuar como sub-mandatário.

Temos, assim, que o C.........., S.A. ao invés do que fez consignar no documento de fls.28, agiu como Banco confirmador.

Como consta no douto Acórdão do STJ, acima citado, págs. 535 e 536:

“[...]A confirmação não faz nascer outra obrigação.
O vínculo jurídico continua a ser um só, o mesmo do ponto de vista objectivo. O que nele se modifica com a adjunção respeita ao aspecto subjectivo. A obrigação de garantia deixa de ser singular, com um sujeito activo (o beneficiário) e um sujeito passivo (o banco emitente), para ser plural pelo lado passivo, visto passar a ter dois sujeitos passivos (o banco emitente e o banco confirmador).
[...] Todavia, a obrigação não é conjunta, visto que os bancos emitente e confirmador não respondem perante o beneficiário cumulativamente...Com o cumprimento por parte de um dos sujeitos passivos extingue-se a obrigação do outro...”.

Carlos Costa Pina, na obra citada, afirma que o instituto jurídico que mais se aproxima do crédito documentário é o contrato de mandato –pág. 130.

Acerca da relação existente entre o Banco emitente e os demais Bancos envolvidos na abertura do referido tipo de crédito, escreve na pág. 133:

“Ora, consistindo a questão em saber se estes bancos assumem a posição de substitutos ou de auxiliares, propendemos decididamente para a primeira alternativa uma vez que aqueles não se encontram, como acontece com os auxiliares, numa posição de meros colaboradores, normalmente dependentes do banco emitente.
Pelo contrário, pela substituição colocam-se os substitutos na própria posição do banco emitente — maxime no caso do banco confirmador — e de tal forma assim se passa que é como se, perante o ordenador, fosse aquele a actuar. E é precisamente esta circunstância que permite fazer com que a actividade seja prestada por conta do ordenador”.

Pelo que expusemos, e uma vez que o C........, S.A. pagou à Autora a quantia em causa, tratando-se, como entendemos, de pagamento feito à Autora, senão na veste de banco confirmador, [de acordo com a doutrina do douto Acórdão do STJ, que temos vindo a citar], pelo menos na posição de substituto do Banco emitente, o que só por si conduz à absolvição do Banco ........., S.A., visto não existir condenação solidária dos bancos. A obrigação é disjunta.

Apreciando o recurso do Banco ..........., S.A..

O recorrente baseia as suas críticas à sentença, fundamentalmente, com base nas nulidades que aponta.

Todavia, não deixaremos de assinalar que a decisão recorrida não enferma de nulidades, por não conter os vícios que o apelante lhe assaca, nas conclusões 4ª e 5ª.

Com efeito, relativamente à conclusão 4ª, a sentença considerou que o C........, S.A. tinha agido na qualidade de Banco informador pelo que, ainda que de modo não ostensivo, decidiu não ter agido como confirmador do crédito; de outro modo, assim teria considerado.

Quanto à alegada contradição, aludida na conclusão 5ª. Efectivamente a legal representante da Autora, a fls. 342, em depoimento de parte, confessou que o C......., S.A. creditou, na conta da sua representada, em 9.6.89, o montante correspondente ao “crédito documentário” – quesito 18º.

Lê-se, na acta de audiência de discussão e julgamento, a propósito do depoimento de parte da legal representante da Autora : –“Refere ainda que, por esta via, foi obtida pela autora uma antecipação do pagamento da quantia referente a tal crédito documentário, uma vez que o prazo de vencimento do mesmo era de 60 dias a contar da data da factura, confessando, portanto, a matéria de facto do quesito 20°”.

Sendo, assim, e também por aquilo que antes expusemos, não pode o ora apelante ser condenado, uma vez que o pagamento que a legal representante da Autora refere, foi feito a título de desconto antecipado do crédito documentário, o que confirmando o que dissemos acerca da intervenção do C.........., S.A., assim exonera, o apelante, do pagamento, sendo inútil a exigência, pelo C........., S.A., de colocação dos meios à sua disposição, pelo Banco emitente.

Assim, sem necessidade de outras considerações, procede o recurso do Banco ......., S.A..

Do recurso do C.........., S.A..

Prende-se tal recurso com saber, se foi lícito ou não, o Banco recorrente fazer-se pagar de uma alegada dívida da “F.........., Ldª”, com um direito de crédito desta, sobre o Banco.

Como vimos, o C..........., S.A., em 31.10.89, com data-valor de 1.8.89, informou a Autora que anulara o desconto, que havia feito, em 12.6.89, e que debitara a sua conta, na quantia de 5.338.998$00, “correspondente ao crédito documentário, acrescido de juros e imposto” –cfr. D) dos factos provados.

Dado o tratamento que as questões debatidas na sentença tiveram, foi considerado que o C........., S.A. tinha um direito de crédito sobre a Autora, por lhe ter antecipado o pagamento da quantia em causa, tanto mais que a não recebera do Banco ........, S.A..

O C........., S.A. procedeu ao desconto da quantia em causa, operando a compensação, com créditos da Autora, depositados em conta de depósito à ordem (da Autora), no Banco ora apelante.

A sentença recorrida decidiu que tal compensação não poderia ter sido efectuada.

No recurso o apelante pretende que tal compensação é legitima.

Vejamos:

Pelos motivos que antes enunciamos, entendemos que o C..........., S.A. procedeu ao pagamento à Autora, no contexto de uma obrigação assumida negocialmente, baseada no contrato de crédito documentário, em articulação com o Banco emitente do crédito.

Daí que não sufraguemos a tese do desconto bancário ou documentário indevido.

Por isso, a anulação do pagamento, além de ilegal, viola as regras da boa-fé contratual e traduz incumprimento do contrato.

Mas, mesmo que seja de acolher a argumentação da sentença, quanto à operação que levou a que o agora apelante creditasse a conta da Autora, entendemos que não poderia ele, anulando tal operação, proceder, sem autorização, a compensação com saldo de conta existente no Banco.

É muito debatida a questão de saber se os bancos podem compensar créditos seus à custa de intervenção, não consentida, em contas de que são titulares os clientes devedores, existentes no Banco.

Remetemos nesta parte para as doutas alegações do apelante e para os tratadistas que aí cita em defesa de tal possibilidade.

A abertura de conta num banco e os depósitos pecuniários, bem como a sua movimentação a crédito e a débito, designadamente, por meio de cheques nela efectuados, evidencia a existência de contrato de depósito bancário, que é um contrato real, cuja perfeição só se alcança através da prática material da entrega de dinheiro, não sendo suficiente o mero acordo entre os depositantes e o banco depositário.

“O depósito bancário é um contrato unilateral, uma vez que dele só resultam obrigações para o banco. Este tem como obrigação a restituição da quantia depositada e, em alguns casos, a obrigação de pagamento de juros, e a estas não se contrapõe qualquer obrigação a cargo do depositante”- cfr. “O Contrato de Depósito Bancário”, de Paula Ponces Camanho, 1998, pág.117-118.

Acerca da a natureza do depósito bancário é mais comum a sua qualificação como depósito irregular - arts. 1205º e 1206º do Código Civil.

Tratando-se de um depósito irregular, a propriedade da importância depositada transfere-se para o depositário. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 4aed., 860) definem depósito irregular como um contrato translativo do domínio sobre a coisa estando o depositário, no entanto, obrigado a restituir igual importância em moeda correspondente à depositada, perante esta obrigação de restituição, está vedado depositário proceder à compensação mediante simples declaração ao titular devedor, impondo, assim, de forma unilateral, a extinção da obrigação. – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 24 de Outubro de 2000, in CJ, 2000, IV, 41.

“O banco não tem o direito de dispor em seu benefício de quantias nele depositadas, através do mecanismo extintivo da compensação, a menos que tal tenha sido convencionado com o seu cliente titular da conta respectiva”.- Ac. da Relação de Lisboa, de 6.5.1999, in C.J, 1999, III, 84.

Pressupondo o depósito bancário, inquestionavelmente, uma relação de confiança entre o depositante e o banqueiro, e tratando-se de conta depósitos à ordem onde, a cada momento, o depositante pode pedir a restituição dinheiro, a possibilidade de, unilateralmente, o Banco proceder à compensação, sem consentimento do depositante, viola as regras da boa-fé e da segurança negocial, por exprimir uma extinção não consentida da obrigação.

Temos, assim, que ao apelante estava vedado proceder à compensação do seu alegado crédito, à custa do depósito de que era titular a demandante, não só por a compensação não ser legítima no caso em apreço, como também porque havia pago em cumprimento de obrigação assumida no âmbito da relação negocial invocada como causa de pedir – incumprimento do contrato de crédito documentário.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em:

1. Conceder provimento ao recurso do Banco ........., S.A., revogando-se a sentença que o condenou, absolvendo-o, agora, dos pedidos.

2. Negar provimento ao recurso do C........, S.A., confirmando quanto a ele, a sentença recorrida.

Custas pela Autora, no que concerne ao recurso do Banco ........, S.A., em ambas as instâncias.
As custas do recurso do C.........., S.A. são da sua responsabilidade.

Porto, 23 de Junho de 2003
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale