Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9746/22.1T8VNG.A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: LEVANTAMENTO DE SIGILO PROFISSIONAL
DEPOIMENTO DE SOLICITADOR
Nº do Documento: RP202406039746/22.1T8VNG.A.P1
Data do Acordão: 06/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: INDEFERIMENTO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em incidente de levantamento do sigilo profissional de solicitador, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade;
II - Não tendo sido indicada a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, nem a eventual inexistência de outros meios probatórios ou qualquer elemento relativo à relevância do depoimento abrangido pelo sigilo profissional, não poderá a Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9746/22.1T8VNG-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia-J5


Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª Teresa Sena Fonseca
2º Adjunto Des. Drª Fátima Andrade



Sumário:
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I - RELATÓRIO

AA e BB intentaram ação com processo comum contra CC formulando os seguintes pedidos:
a) Reconhecer-se validade e eficácia à resolução do CPCV operada pelos AA. e, em consequência, ser declarado resolvido o CPCV por incumprimento definitivo e culposo do R., nos termos do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil. E, cumulativamente,
b) Condenar o R., nos termos do n.º 1 da Cláusula 7.ª do CPCV e da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, ao pagamento da quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), correspondente ao valor do sinal em dobro, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa legal de 4%, a contar da data de resolução do CPCV (08.07.2022), até efetivo e integral pagamento.
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Os Autores nos meios de prova apresentados requereram, além do mais, o depoimento de DD, agente de execução/solicitador.
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Aquando do seu depoimento ficou exarado em ata o seguinte:
“Prestou juramento e aos costumes disse ter efetuado uma notificação pessoal ao aqui Réu, mas que tal facto não o impede de dizer a verdade, mais referindo entender que está sujeito a sigilo profissional, já tendo requerido o respetivo levantamento ao seu Bastonário, aguardando ainda a decisão, que julga estar para breve.
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Face ao exposto, o Mmº Juiz determinou a interrupção do seu depoimento e a sua continuação em momento posterior, designando, desde já, o dia 02/11/2023, pelas 11:30 horas, para o efeito, data obtida em concertação com as agendas dos Ilustres Mandatárias aqui presentes, comprometendo-se a testemunha a informar o Tribunal se não lhe for levantado o sigilo profissional”.
Em 11/10/2023 a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução em resposta ao pedido de levantamento do sigilo profissional decidiu:



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Face ao assim decidido vieram os Autores impetrar requerimento solicitando a quebra ou levantamento do segredo profissional da testemunha em causa.
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Ao deduzido incidente veio opor-se o Réu.
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 Conclusos os autos a Sr. juiz do processo exarou o seguinte despacho:
“Incidente da quebra de sigilo de 30.10:
Pretendem os autores que a testemunha DD, Agente de Execução, preste depoimento com quebra do sigilo, que a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução não autorizou.
É, por isso, inequívoca, a legitimidade da escusa de depoimento.
No essencial, pretendem os autores que o Sr. DD relate o que lhe foi comunicado pelo réu quando este foi pessoalmente notificado (em execução de notificação judicial avulsa ordenada pelo Tribunal) da declaração resolutiva do contrato-promessa. Ora, nem a notificação judicial avulsa, como ato formal que é, admite oposição (o que parece determinar a irrelevância de qualquer declaração do réu, seja em que sentido for, a quem executa o despacho que ordena a notificação judicial) nem a causa de pedir levada à petição inicial assenta em qualquer comportamento subjetivo do réu, mas antes na ultrapassagem, pelo réu, do último prazo fixado para a celebração do contrato-prometido, findo o qual, entendem os autores, o contrato-promessa terá de ser ter por definitivamente incumprido.
Assim, suscita-se, não oficiosamente, por nisso não ver este Tribunal relevância, mas apenas porque foi requerido pelos autores, o incidente do depoimento de testemunho com quebra do sigilo profissional, da testemunha DD, junto do Tribunal da Relação do Porto, nos termos do disposto no artigo 417.º, 4 do CPC e artigo 135.º do CPP.,
Assim, por apenso, instrua a secção o presente incidente de quebra de sigilo profissional com certidão:
- da petição inicial;
- do despacho saneador;
- da ata de audiência final de 18-10-2023;
- do requerimento dos autores de 30.10.2023 a suscitar o incidente de quebra de sigilo;
- da decisão (extrato) tomada pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução sobre
o pedido de dispensa de segredo profissional apresentado pela testemunha Dr. DD, junta a 30.10.2023;
- da resposta de 2.11.2023 do réu quanto ao pedido de quebra do sigilo; e
- do presente despacho.
E, após, remeta para apreciação ao Tribunal da Relação do Porto”.
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Subidos os autos cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
A questão que importa apreciar e decidir consiste em apreciar se no caso concreto que os autos evidenciam deve (ou não) ser determinada a quebra do sigilo profissional da testemunha indicada pela Autora.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam são os que constam do relatório que antecede.
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III. O DIREITO
 Como supra se referiu a única questão que importa apreciar e decidir consiste em apreciar se no caso concreto que os autos evidenciam deve (ou não) ser determinada a quebra do sigilo profissional da testemunha DD arrolada pelos Autores.
Nos termos do artigo 417.º, nº 1, do CPCivil “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados”.
Nos termos do preceituado no nº 3, do artigo 497.º do CPCivil, “Devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no nº 4 do artº 417.º”.
Neste caso, a testemunha, identificando-se como solicitador/agente de execução chamada a depor, recusou-se a prestar depoimento, invocando para tal a violação do segredo profissional para o que já tinha solicitado a sua dispensa.
Dúvidas não existem de que o estatuto dos solicitadores/agentes de execução salvaguarda de forma inquestionável o segredo profissional dos seus membros, conforme decorre dos arts. 127.º e 141.º e 168.º da Lei 154/2015, de 14/09.
O já citado artigo 417,º n.º 4 remete o levantamento do sigilo profissional para o disposto no processo penal, que no seu artigo 135.º regula regime de quebra estabelecendo o princípio da prevalência do interesse preponderante.
De um modo geral e como refere Fernando Eloy[1], o segredo profissional deverá ser entendido como a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício.
Na verdade, o exercício de certas profissões exige, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que as pessoas que a elas tenham de recorrer revelem factos que interessam à sua esfera íntima (quer física, quer jurídica).
Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da solicitadoria) de fundamental importância colectiva[2], designadamente porque todas as pessoas carecem de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de um elevado interesse público.
Como assim, a violação da obrigação a que ficam adstritos certos profissionais de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua actividade é punível não só disciplinarmente, mas também criminalmente.
Ora, a solução nesses casos não pode deixar de passar pela tentativa de realizar a máxima concordância prática entre princípios e valores em conflito, mostrando-se fulcral para o efeito a definição dos respectivos contornos que apenas poderá ser convenientemente levada a cabo pelo tratamento jurídico-criminal dado à violação do segredo, ao qual não pode ser alheio as regras deontológicas da respectiva profissão.[3]
Isto dito, decorre do disposto no citado artigo 135.º do CPP, ao qual cumpre atender por força do n.º 4 no artigo 417.º do CPC, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade.
Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa[4]  o seguinte: “cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento /informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Explica Luís Filipe Pires de Sousa[5]  o seguinte: “A decisão final sobre a justificação da escusa invocada pela testemunha pautar-se-á sempre pelo princípio da proibição do excesso. O segmento da norma do Artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo”.
Ora, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade.
No caso presente, desconhece-se a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, considerando que não foi indicada a factualidade previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem qualquer elemento relativo à relevância do depoimento em causa.[6]
Efetivamente, no requerimento do incidente de quebra de sigilo apresentado pelos Autores em 30/10/2023, apenas se alega que a testemunha em causa “foi perentória em audiência de julgamento, referindo que teria algo a narrar aos autos, com relevância e que não constava (…) no auto por si elaborado” (artigo 7º), que a própria testemunha indicou em julgamento “ter algo a dizer” (artigo 16º), que os factos por si apreendidos no âmbito da referida diligência são importantes (artigo 13º) e que as informações a transmitir aos autos por parte do Srº AE são pertinentes para a boa decisão da causa (artigo 14º).
Portanto, não foram invocados quaisquer factos concretos do conhecimento da testemunha em causa, para que, face ao objeto de litígio nos presentes autos, se pudesse percecionar o interesse do seu depoimento que justificasse a quebra do sigilo profissional.[7]
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Mas, ainda que assim não fosse, importa ainda acentuar, tal como bem se refere no despacho prolatado pelo tribunal recorrido que, no essencial, os Autores pretendem que a testemunha em causa relate o que lhe foi comunicado pelo réu quando este foi pessoalmente notificado (em execução de notificação judicial avulsa ordenada pelo Tribunal) da declaração resolutiva do contrato-promessa.
Acontece que, a causa de pedir levada à petição inicial não assenta em qualquer comportamento subjetivo do réu, mas antes na transposição, por parte deste, do derradeiro prazo fixado para a celebração do contrato-prometido, findo o qual, entendem os autores, o contrato-promessa terá de ser ter por definitivamente incumprido, razão pela qual se não divisa que concreto conhecimento poderia ter a testemunha em causa com influência no referido thema decidendum e que terá apreendido no relato que lhe terá sido feito aquando da realização do mencionado ato (notificação judicial avulsa).
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Como, assim, mostrando-se inviável, pelos motivos expostos, o preenchimento dos requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional, cumpre indeferir o incidente.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em indeferir o incidente de levantamento do sigilo profissional.
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Custas pela parte vencida a final (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 2024/6/3.
Manuel Domingos Fernandes
Teresa Fonseca
Fátima Andrade
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[1] Da inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais", em "O Direito", ano LXXXVI, 1954, pág. 81.
[2] O segredo profissional é correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança.[3] Qualquer que seja o valor jurídico atribuído ao Código Deontológico não pode deixar de se reconhecer que, para além da sua eficácia interna, as normas deontológicas podem ser utilizadas na concretização de cláusulas gerais e enquanto critério de avaliação da ilicitude e da culpa.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 492.
[5] In Prova Testemunhal, 2016–reimpressão, Coimbra, Almedina, pág. 246.
[6] Neste sentido, cf. o acórdão da RE de 09/11/2017 proferido no processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1, consultável em www.dgsi.pt, no qual se entendeu o seguinte: “o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida”.
[7] Neste sentido, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 04/03/2015 proferido no processo n.º 60/10.6TAMGR-A.C1, consultável em www.dgsi.pt), no qual se concluiu o seguinte: “- A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a atuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; - No requerimento que deu origem ao presente incidente não foram indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, suscetíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento; - Por isso, não existe razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo”.