Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7404/11.1YYPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PENHORA
CRÉDITOS DE IMPOSTOS
IRS
IMPENHORABILIDADE
Nº do Documento: RP202203217404/11.1YYPRT-B.P1
Data do Acordão: 03/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 738º/1 CPC só é parcialmente penhorável o crédito objeto de penhora que constitui um rendimento auferido por atividade que o executado exerce destinado a assegurar a subsistência do executado e seu agregado familiar.
II - A penhora que recai sobre o crédito de reembolso de IRS, resultante de excesso de imposto retido na fonte pela entidade processadora da pensão de reforma, tem a natureza de pensão de reforma, parcialmente penhorável se demonstrado que tal crédito se destina a garantir a subsistência do executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: OposPenhora-IRS-7404/11.1YYPRT-B.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Nos presentes autos de oposição à penhora, que seguem os seus termos por apenso à execução para pagamento de quantia certa em que figuram como:
- Exequente: P..., SA, Av. ..., ..., ... LISBOA; e
- Executado: AA, Rua ..., ..., ... Póvoa de Varzim,
pede o executado que se ordene o levantamento da penhora sobre o valor do I.R.S., restituído pela Autoridade Tributária.
Alegou para o efeito que viu penhorado o valor do Reembolso de IRS relativo ao ano fiscal de 2020, no valor de 5.346,38 € (cinco mil, trezentos e quarenta e seis euros e trinta e oito cêntimos).
O reembolso em causa resulta do excesso de imposto que foi e é retido na fonte e entregue à A.T. pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores sobre a aposentadoria/reforma que o Executado aufere atenta a sua idade (quase 67 anos) e inscrição na Caixa de previdência desde o mês de Janeiro de 1978.
Mais alegou que a pensão que o Executado aufere já há muito se encontra penhorada pelo valor máximo estipulado no nº 3 do art.º 738º do C.P.C. à ordem do processo de execução nº 3411/11.2TBTVD do 3º Juízo Extinto, que corre termos no Juízo de Execução de Torres Vedras, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.
Assim a penhora levada a efeito pela Exequente através da A.E. ofendeu o limite máximo da impenhorabilidade relativo ao valor da pensão que o Executado aufere.
Tal ato de penhora, ao ultrapassar o limite máximo, violou a restrição de impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida da prestação periódica paga a título de aposentação, pelo que violou o disposto nos arts.º 1º, 18º nº2 e 63º nº3 da C.R.P.., por retirar ao executado um valor indispensável à sua sobrevivência de acordo com o seu estatuto e condição social, sacrificando assim a satisfação das necessidades do executado em inequívoco favorecimento dos interesses do credor.
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Proferiu-se despacho que admitiu liminarmente a oposição e determinou a notificação do exequente para contestar.
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O exequente notificado, veio apresentar contestação, na qual se defende por impugnação, alegando em síntese que quando o legislador estabeleceu a impenhorabilidade de 2/3 do salário teve apenas em vista a prestação mensal periódica recebida pelo executado e não quaisquer outras.
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Proferiu-se despacho saneador e por se considerar que o processo continha os elementos necessários à prolação de uma decisão conscienciosa e segura, conheceu-se do mérito da causa.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, julgo a oposição à penhora improcedente.
Custas pelo opoente.
R.N.
Dê conhecimento ao AE”.
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O executado AA veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
A) Cumpre a presente apelação evidenciar na sentença proferida a existência de violação do disposto no art.º 738.º do CPC, já que o Exmo. Sr. Juiz a quo considerou não ser de enquadrar a quantia penhorada abrangida por tal previsão, para além de que, para efeitos de penhora do valor relativo ao reembolso de IRS, entendeu não assumir qualquer relevância as circunstâncias invocadas pelo Recorrente/Executado;
B) Na fundamentação e decisão, o Exmo. Sr. Juiz a quo violou, por um lado, a restrição de impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida da prestação periódica paga a título de aposentação, imposta legalmente pelo n.º3 do artigo 738.º do CPC e, por outro, o disposto nos artigos 1.º, 18.º, n.º2 e 63.º, n.º3 da Constituição relativamente ao direito a não ser privado de um mínimo de existência condigna, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiteradamente entendido como um direito fundamental baseado no reconhecimento da dignidade da pessoa humana;
C) O Executado viu penhorado o valor do reembolso de IRS relativo ao ano fiscal de 2020, no valor de 5.346,38 €, quantia que resulta do excesso de imposto que foi e é retido na fonte e entregue à AT pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores sobre a aposentadoria/reforma que o Executado aufere atenta a sua idade e inscrição na CPAS desde o mês de Janeiro de 1978;
D) De resto não ignora o Tribunal que a pensão que o Executado/Recorrente aufere já há muito se encontra penhorada PELO VALOR MÁXIMO PERMITIDO pelo no n.º3 do art.º 738.º do CPC à ordem de outro processo de execução, razão de ser da Oposição à penhora que foi deduzida;
E) Por isso, a penhora levada a efeito pela Exequente através da Sra. Agente de Execução ofendeu o limite máximo da impenhorabilidade relativo ao valor da pensão que o Executado aufere, pois tal acto de penhora, ao ultrapassar o limite máximo, violou necessária e inequivocamente a restrição de impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida da prestação periódica paga a título de aposentação, além dos preceitos constitucionais já referidos, dado que é retirado um valor indispensável à sua sobrevivência de acordo com o seu estatuto e condição social, sacrificando assim a satisfação das suas necessidades em inequívoco favorecimento dos interesses do credor;
F) In casu, a restituição resulta do valor cobrado a mais pelo Estado sobre a pensão que o Executado/Recorrente aufere, dado que os rendimentos do seu trabalho, com a crise e agora com a situação atual pandémica, mal dão para as despesas suportadas; aliás, este reembolso era e é uma quantia que o Executado estava a aguardar para assegurar a sua vida e subsistência, assumindo-se como imprescindível para acautelar os seus cuidados de saúde, atendendo aos vários problemas de saúde de que padece, como resulta provado até dos próprios autos;
G) Isto posto, da análise deste regime resulta inequivocamente que se encontram excluídos da execução os bens absolutamente indispensáveis ao sustento do executado e do seu agregado familiar por estarem em causa interesses vitais do Executado, configurando portanto uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana plasmado no artigo 1.º da Lei Fundamental;
H) Sustentamos tal entendimento no douto acórdão do Tribunal Constitucional (n.º 353/2021 Proc. 471/2020 disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que quanto às problemáticas elencadas supra responde da seguinte forma “existindo o referido conflito, o legislador não pode deixar de garantir a tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana (…) sacrificando o direito do credor na parte que for absolutamente necessária”;
I) Por fim, no que concerne ao âmbito de aplicação deste preceito ao crédito relativo ao reembolso de IRS, questão em que também divergimos com o referido na sentença proferida pelo Exmo. Sr. Juiz a quo, temos a expor que, salvo melhor entendimento e douta opinião, a proteção estabelecida no artigo 738.º do CPC estende-se às quantias em dinheiro e aos depósitos bancários, conforme dispõe o artigo 739.º do CPC, por se presumir que igualmente se destinam a assegurar as subsistências do Executado;
J) Dito isto, e estando em causa um crédito resultante do reembolso de IRS devido ao Executado, não pode o Tribunal olvidar e ignorar que na origem ao crédito em apreciação se encontram aludidos descontos operados no vencimento do Executado/Recorrente;
K) Por esta mesma razão deve ser acautelada a possibilidade de se destinar aquele crédito à mesma finalidade que é a de assegurar a subsistência do Executado, apoiando-nos para tal convicção no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (de 27 de Fevereiro de 2020, Proc. 1831/10.9TBABF-D.E1, disponível em www.dgsi.pt) que nos elucida no seguinte sentido: “deverá a proteção prevista no artigo 738.º, nºs 1 e 3 do CPC, através da impenhorabilidade relativa que estabelece, estender-se ao crédito relativo ao reembolso de IRS, desde que destinado a assegurar a subsistência do Recorrente/Executado”;
L) Neste mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (de 13 de Novembro de 2019, Proc. 3739/12.4TJCBR-C.C1, disponível em www.dgsi.pt) que decide “assim sendo, também nesta situação se nos afigura que este crédito a título de IRS terá de assumir a natureza do facto que lhe deu origem”;
M) Isto posto, estando em causa a devolução pela AT de montante relativo a descontos operados em excesso no salário auferido pelo Executado e alegando o mesmo factualidade com base na qual sustenta a inadmissibilidade da penhora efetuada ou da extensão com que foi realizada, não poderá concluir o Tribunal a quo pela manifesta improcedência do incidente, pois que a proteção prevista no artigo 738.º n.º1 e 3 do CPC deve estender-se ao crédito relativo ao reembolso de IRS.
Termina por pedir que se julgue procedente o recurso e procedente a oposição à penhora e se ordene o levantamento da penhora sobre o valor do I.R.S. restituído pela AT.
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A exequente-embargada veio apresentar resposta ao recurso, concluindo que a decisão não merece censura, pois interpretou corretamente os factos e aplicou de forma adequada o Direito, não violando quaisquer normas jurídicas, designadamente, as invocadas pelos Recorrentes.
Termina por pedir que se negue provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em apurar se o crédito respeitante a reembolso de IRS do ano fiscal de 2020 é impenhorável, atento o critério do art. 738º/1/3 CPC.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1.A quantia exequenda ascende a €105.300,68.
2. No âmbito do processo nº 3411/11.2TBTVD, do Juízo de Execução de Torres Veras encontra-se penhorado 1/3 da pensão auferida pelo opoente.
3. Nos presentes autos foi penhorado o crédito de IRS referente ao exercício do ano de 2020, no valor de €5.346,38.
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3. O direito
O apelante insurge-se contra a decisão recorrida que julgou improcedente a oposição à penhora e manteve a penhora do crédito a título de reembolso de IRS do ano fiscal de 2020, no montante de € 5 346,38,
Na fundamentação da decisão, considerou-se, como se passa a transcrever:
“Dispõe o artº 738º, do C.P.C.:
“1 - São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
2 - Para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios.(…).
No nº1 o legislador deixou claro que a impenhorabilidade atinge 2/3 de todas e quaisquer prestações Periódicas auferidas pelos executados e sejam adequadas a assegurar a sua subsistência. Desse modo, a referida impenhorabilidade assente em dois pressupostos de verificação cumulativa. Por um lado, exige-se que os rendimentos tenham natureza periódica, independentemente da sua dilação temporal e, por outro, que sem o seu recebimento a subsistência do executado possa ser posta em risco.
Os rendimentos periodicamente renováveis, salvo melhor opinião, são aqueles que, nas palavras de Galvão Telles, "(…) resolvem-se em atos sucessivos, com intervalos regulares ou irregulares, como a obrigação do inquilino de pagar as rendas ou a do fornecedor de fazer entregas à medida que forem solicitadas".
Em relação ao salário, este tem de ser entendido como a prestação de carácter “regular”, como prestação não arbitrária, que segue uma regra permanente, sendo, pois, constante.” E ao exigir o carácter “periódico” para que a prestação se integre na retribuição, a lei considera que ela deve ser paga em períodos certos no tempo ou aproximadamente certos, de forma a inserir-se na própria ideia de periodicidade típica do contrato de trabalho e das necessidades recíprocas dos dois contraentes.
Ora, temos para nós que o crédito de reembolso de IRS não é um rendimento periodicamente renovável. Pode verificar-se, ou não, dependendo de critérios que podem ser alterados ano a ano. Não assume carácter de permanência.
Porém, ainda que não se entendesse e se sufragasse o entendimento plasmado no Ac. Tribunal da Relação de Évora de 27.02.20204 no sentido de “A proteção prevista no artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, através da impenhorabilidade relativa que estabelece, deve estender-se ao crédito relativo ao reembolso de IRS, decorrente de descontos operados em excesso no vencimento do contribuinte”, sempre se exigiria, como nele se refere, “… que a quantia em causa de destine a assegurar subsistência do executado e do seu agregado familiar”, isto é, sempre teria o opoente de alegar factos concretos que, a provarem-se, demonstrariam que a quantia ia ser aplicada à satisfação dessas necessidades, o que não ocorreu no caso em apreço, uma vez que o opoente limitou-se à alegação da matéria de direito, carecida de factos da vida que pudessem provar o destino da referida quantia, não tendo cumprido o ónus que sobre si impendia (artº 342º, nº2, do C.C.).
Concluímos, pois, inexistir violação do disposto no artº 738º, do C.P.C”.
Considera o apelante que por aplicação do regime previsto no art. 738º/1/3 CPC a decisão violou a restrição de impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida da prestação periódica paga a título de aposentação, pois o crédito objeto de penhora reveste tal natureza, sendo certo que o valor penhorado se destina a assegurar a subsistência do executado.
Está em causa apreciar se o concreto crédito - reembolso de IRS – objeto de penhora está abrangido pelos limites previstos no art. 738º/1 CPC.
O património do devedor constitui a garantia geral das obrigações, estatuindo o artigo 601.º do Código Civil que, pelo cumprimento da obrigação, respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.
Este princípio geral é reafirmado no artigo 735.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ao dispor que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida.
Contudo, em sede de processo executivo, encontra-se regulado um regime de proteção dos meios necessários ao sustento do devedor e do seu agregado familiar, designadamente por via da definição de bens total ou parcialmente impenhoráveis, os quais não respondem pelo cumprimento da obrigação exequenda.
Os artigos 736.º, 737.º e 738.º do Código de Processo Civil indicam, respetivamente, os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, os bens relativamente impenhoráveis e os bens parcialmente penhoráveis.
O art. 738.º do CPC trata das “bens parcialmente penhoráveis”(cujo regime nos merece particular atenção no caso concreto) e no citado preceito prevê-se:
“1 - São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
2 - Para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios.
3 - A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
4 - O disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.
5 - Na penhora de dinheiro ou de saldo bancário, é impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional ou, tratando-se de obrigação de alimentos, o previsto no número anterior.
6 - Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excecionalmente e a requerimento do executado, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora.
7 - Não são cumuláveis as impenhorabilidades previstas nos n.os 1 e 5.
8 - Aos rendimentos auferidos no âmbito das atividades especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, aplica-se o disposto nos n.os 1 a 4 deste artigo, com as seguintes adaptações:
a) A parte líquida dos rendimentos corresponde à aplicação do coeficiente 0,75 ao montante total pago ou colocado à disposição do executado, excluído o IVA liquidado;
b) O limite máximo e mínimo da impenhorabilidade é apurado globalmente, para cada mês, com base no total do rendimento mensal esperado do executado, sendo aqueles limites aplicados à globalidade dos rendimentos esperados proporcionalmente aos rendimentos esperados de cada entidade devedora;
c) A impenhorabilidade prevista neste número é aplicável apenas aos executados que não aufiram, no mês a que se refere a apreensão, vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assegurem a sua subsistência;
d) A aplicação desta impenhorabilidade depende de opção do executado a apresentar por via eletrónica no Portal das Finanças, ficando aquele obrigado a comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT):
i) A identificação das entidades devedoras dos rendimentos em causa com menção de que os mesmos são auferidos no âmbito de uma das atividades especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS;
ii) O montante global de rendimentos que, previsivelmente, vai auferir, de cada uma das entidades devedoras em cada mês;
iii) A inexistência de vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a sua subsistência;
e) Com base nas informações prestadas nos termos da alínea anterior é emitida uma declaração relativa aos limites máximo e mínimo da impenhorabilidade de todas as entidades pagadoras, que pode ser consultada no Portal das Finanças pelo exequente e pelas entidades devedoras dos rendimentos, a quem o executado deve fornecer um código de acesso especificamente facultado pela AT para este efeito;
f) A aplicação desta impenhorabilidade cessa pelo período de dois anos a contar do conhecimento da inexatidão da comunicação a que se refere a alínea d), quando o executado preste com inexatidões essa comunicação de forma a impossibilitar a penhora do crédito;
g) Para o exercício da competência prevista neste artigo, a AT pode utilizar toda a informação relevante para o efeito disponível nas suas bases de dados.
O art.739º CPC prevê que são “impenhoráveis a quantia em dinheiro ou depósito bancário resultantes da satisfação de crédito impenhorável, nos mesmos termos em que o era o crédito originariamente existente”.
O disposto no artigo 739º CPC tem o alcance de que o regime de imparcialidade parcial previsto no nº1 é aplicável qualquer que seja a configuração jurídica formal do valor a penhorar[2].
A opção do legislador em estabelecer um limite para a penhora das prestações pagas a título de salário, pensão, prestação social ou outra prestação de natureza semelhante, já vinha do art.º 824.º n.º 1 e n.º 2 do anterior Código de Processo Civil, encontrando-se agora contemplado no art.º 738.º do atual C.P.C. assim se dando acolhimento ao princípio da dignidade da pessoa humana inerente a um Estado de Direito, em conformidade com o consagrado constitucionalmente nos art.º 1.º, 59.º n.º 2 al. a) e 65.º da CRP, como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional de nº 96/2004, de 11.02.2004 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), e que é concretizado na obrigação de manter na disponibilidade do executado um valor pelo menos equivalente ao salário mínimo nacional, que lhe permita manter uma existência minimamente digna.
A alteração introduzida pela Lei 114/2017 de 29 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2018) estendeu tal limite aos rendimentos auferidos no âmbito das atividades especificamente previstas na tabela a que se refere o art. 151º do Código do IRS (atual nº 8 art.º 738.º do C.P.C) e, ainda, os princípios que lhe estão subjacentes, na sua interpretação e designadamente quanto a determinar quais são os créditos suscetíveis de beneficiar da limitação da penhora aí prevista e de ser qualificados como bens parcialmente impenhoráveis.
Como se observa no Ac. Rel. Porto 10 de maio de 2018, Proc. 380/14.0TBFLG-A.P1 (acessível em www.dgsi.pt); “[…]importará ter em conta não apenas aqueles créditos que aí são enumerados expressamente, mas antes todos os créditos relativamente aos quais se possa formular um juízo idêntico, no sentido de apresentarem as mesmas características que levaram o legislador a determinar a redução da penhora para outros créditos. Aliás, a parte final do n.º 1 do art.º 738.º ao estabelecer a impenhorabilidade de dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários e outros créditos que aí prevê expressamente, sempre refere na sua parte final “ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”.
No mesmo sentido Ac. Rel. Porto de 20 de fevereiro 2017 no Proc. 1034/10.2TBLSD-E.P1 (acessível em www.dgsi.pt), refere: “[a]figura-se-nos, todavia, que, em consonância com a sublinhada ratio da citada dimensão normativa, a impenhorabilidade relativa (ou parcial) não está tanto na periodicidade do pagamento das atribuições patrimoniais nela mencionadas, mas fundamentalmente no seu destino, ou seja, estarem essencialmente vocacionadas a garantir a satisfação das necessidades do executado (e do seu agregado familiar), interpretação esta que se mostra perfeitamente consonante com o texto legal já que nele se alude a “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, o que dá a entender que o que é relevante é o facto de a prestação poder assegurar a manutenção ordinária da vida financeira básica do executado e não tanto a natureza da mesma (designadamente, ser ou não periódica)”.
Torna-se, assim, determinante apurar se o crédito objeto de penhora constitui um rendimento auferido por atividade que o executado exerce, destinado a assegurar a subsistência do executado e seu agregado familiar[3]. Evidencia-se o caráter funcional.
O n.º 3 do preceito, referindo-se à previsão do n.º 1, vem estabelecer como limite máximo da impenhorabilidade, à data de cada apreensão, o montante equivalente a três salários mínimos nacionais e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
No caso concreto o crédito penhorado não reveste a natureza de pensão, vencimento, salário, prestação periódica paga a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia.
O reembolso de IRS constitui um crédito do devedor sobre as Finanças, constituindo o direito do contribuinte a receber determinada quantia a título de IRS por parte da Administração Fiscal, tendo em conta o escalão de IRS em que se situa, as deduções que lhe foram sendo efetuadas a título de retenção na fonte e a composição do seu agregado familiar.
O direito a reembolso a título de IRS significa que as retenções que mensalmente lhe foram sendo feitas por conta de IRS no vencimento do executado, o foram em montante superior ao devido e apurado a final.
Perante tais circunstâncias considerou-se no Ac. Rel. Coimbra 13 de novembro de 2019, Proc. 3739/12.4TJCBR-C.C1 e com argumentos que foram de igual forma acolhidos no Ac. Rel. Évora de 27 de fevereiro de 2020, Proc. 1831/10.9TBABF-D.E1 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt e citados nas alíneas K) e L) das conclusões de recurso) que:”[o] montante a devolver respeita a vencimento da executada que lhe foi descontado indevidamente” e concluiu-se que “[a]ssim sendo, também nesta situação se nos afigura que este crédito a título de reembolso de IRS terá de assumir a natureza do facto que lhe deu origem”.
Concordamos com tal posição, mas entendemos que o crédito só é parcialmente impenhorável se se destinar a assegurar a subsistência do executado.
A penhora incidiu sobre um crédito respeitante ao reembolso de IRS relativo ao ano fiscal de 2020, o qual resulta do excesso de imposto que foi e é retido na fonte e entregue à Autoridade Tributária pela Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores sobre a aposentadoria/reforma que o executado aufere, aliás, como o próprio apelante admite na alínea C) das conclusões de recurso.
O crédito mantém a natureza do facto que lhe deu origem, sendo por isso, um rendimento auferido a título de aposentadoria. Nesta parte não se acompanha a sentença recorrida e entende-se que verificando-se os demais pressupostos, pode o crédito considerar-se parcialmente impenhorável, nos termos do art. 738º/1 CPC.
Porém, como se defendeu na sentença, apenas poderá ser parcialmente penhorado se tal quantia se destinar a assegurar a subsistência do executado, o que no caso não se provou.
Argumenta o apelante sob as alíneas E) e F) das conclusões de recurso que a penhora levada a efeito pela Exequente através da Sra. Agente de Execução ofendeu o limite máximo da impenhorabilidade relativo ao valor da pensão que o Executado aufere, pois tal ato de penhora, ao ultrapassar o limite máximo, violou necessária e inequivocamente a restrição de impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida da prestação periódica paga a titulo de aposentação, além dos preceitos constitucionais já referidos, dado que é retirado um valor indispensável à sua sobrevivência de acordo com o seu estatuto e condição social, sacrificando assim a satisfação das suas necessidades em inequívoco favorecimento dos interesses do credor.
A restituição resulta do valor cobrado a mais pelo Estado sobre a pensão que o Executado/Recorrente aufere, dado que os rendimentos do seu trabalho, com a crise e agora com a situação atual pandémica, mal dão para as despesas suportadas; aliás, este reembolso era e é uma quantia que o Executado estava a aguardar para assegurar a sua vida e subsistência, assumindo-se como imprescindível para acautelar os seus cuidados de saúde, atendendo aos vários problemas de saúde de que padece, como resulta provado até dos próprios autos.
Na posição defendida pelo apelante seria impenhorável 2/3 do valor do crédito penhorado, por aplicação da regra contida no art. 738º/1 CPC, ainda que termine por pedir o levantamento integral da penhora.
Cumpre ter presente que o crédito objeto de penhora não constitui o único rendimento do executado, porque resulta dos factos provados que aufere uma pensão de reforma, a qual foi objeto de penhora pelo valor máximo permitido: um terço. O executado mantém na sua disponibilidade, pelo menos, os restantes dois terços da pensão de reforma, cujo montante exato não se chegou a apurar.
Como se deixou dito, a impenhorabilidade fixada no nº1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais. Não alegou o executado factos que permitissem proceder a tais cálculos, sendo certo que acima do valor que representa o limite máximo é possível proceder à penhora do rendimento.
Por outro lado, a penhora não incidiu diretamente sobre a pensão de reforma que o executado aufere, mas sobre um crédito que tem a mesma origem.
O executado não logrou provar que o crédito se destinava a assegurar a subsistência do executado, pois não basta para o efeito que se alegue que “é retirado um valor indispensável à sua sobrevivência de acordo com o seu estatuto e condição social, sacrificando a satisfação das suas necessidades”, por se tratar de uma alegação conclusiva.
Acresce que os argumentos expostos sob a alínea F), ainda que de forma conclusiva, apenas foram apresentados em sede de recurso e por isso, não podem ser considerados, quando o recurso se destina a reapreciar decisões e não emitir novos juízos ou julgamentos assentes em nova matéria de facto que não foi considerada na decisão recorrida por não ter sido alegada (art. 627º CPC).
Recaía sobre o apelante-executado o ónus da prova de tais factos, suscetíveis de configurar o caráter funcional do rendimento obtido, no sentido de garantir a “subsistência do executado”, impeditivos do direito do exequente (art. 342º/2 CC).
Cumpre também referir que não tem aplicação ao caso concreto a jurisprudência citada do Tribunal Constitucional – Ac TC 353/2021, Proc. 471/2020 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) - porque não está em causa a aplicação do regime previsto no art. 738º/8 CPC, versando o juízo de constitucionalidade sobre a aplicação da alínea d) do citado preceito.
Por fim, não se compreende, como sob a alínea M) das conclusões de recurso, o apelante venha defender que a Autoridade Tributária vai proceder ao reembolso dos descontos operados em excesso no salário auferido pelo executado, quando o próprio admitiu que o reembolso corresponde a quantias indevidamente retidas a título de imposto que incidem sobre a pensão de reforma.
Conclui-se do exposto que a penhora incide sobre um crédito do executado, sobre o qual não se verifica qualquer limite para a respetiva penhora, nomeadamente o limite previsto no art. 738º/1 CPC, não merecendo censura a decisão que manteve a penhora.
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão.
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Custas a cargo do apelante.
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Porto, 21 de março de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Cfr. Ac. Rel Coimbra 13 de novembro de 2019, Proc. 3739/12.4TJCBR-C.C1, acessível em www.dgsi.pt
[3] Cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, vol. II, Almedina, Coimbra, maio de 2020, pag. 105