Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18576/22.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CONTRATO PROMESSA
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2023101018576/22.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio da cooperação, mesmo em termos amplos como aqueles que estão pressupostos no art. 7º do CPC, reconduz-se às obrigações intraprocessuais, em ordem à realização dos fins do processo, fazendo com que este seja uma ferramenta para a realização do direito em tempo útil, mas não às questões inerentes à consolidação da posição substantiva de qualquer das partes.
II - A existência de licença de utilização de um imóvel é condição essencial para a identificação do direito à execução específica de um contrato-promessa, isto é, do direito a que, prescindindo da declaração contratual de uma das partes, o tribunal se substitua à parte faltosa e enuncie ele próprio a declaração em falta.
III - Inexiste disposição processual, designadamente em sede de direito probatório, que determine que o tribunal deva providenciar junto de uma Câmara Municipal em ordem a que uma parte possa vir a obter a licença de utilização de um imóvel, que declaradamente não foi emitida e que seria condição do seu direito à execução específica de um contrato-promessa para a aquisição de um prédio urbano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 18576/22.0T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 2

REL. N.º 798
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Proença
Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO
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AA e BB instauraram a presente ação declarativa de condenação – ação de execução específica de contrato promessa de compra e venda – com forma de processo comum, contra A..., Unipessoal, Lda., pedindo que seja «proferida sentença que produza os efeitos do contrato prometido, declarando a venda, aos Autores, do prédio urbano, sito na Urbanização ..., ..., edificado na parcela de terreno para construção composta pelos lote ...... e ......, com alvará de loteamento n.º ... da União de freguesias ..., ..., ... e ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob as fichas ... e ... de ..., com os artigos matriciais ... e ..., respectivamente, com 2 pisos, com área de construção de 225m2 de acordo com o projeto apresentado pela Ré, pelo preço de € 210.000,00, considerando-se já paga a quantia de € 21.000,00 a título de sinal, bem como a quantia de € 27.089,07€, devendo o remanescente, correspondente à quantia de € 161.381,22 ser liquidada na data da escritura pública de compra e venda.
Mais pediram a condenação da ré a indemnizá-los por danos patrimoniais, em montante a liquidar ulteriormente.
Foi proferido despacho a considerar confessados os factos alegados na petição inicial (art. 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e dado cumprimento ao disposto no art. 567.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Os Autores foram notificados para «virem declarar expressamente se existe ou inexiste licença de utilização do edifício que alegam estar construído na Urbanização ..., ... e, caso exista, para […] a juntarem ao processo»; bem como, atendendo às penhoras que incidem sobre os imóveis inscritos na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ... e sob o n.º ..., ambos da freguesia ..., incidem penhoras, para «declarar expressamente que mantêm interesse no prosseguimento da ação».
Os Autores vieram dizer que «mantêm interesse no prosseguimento da presente ação, pois trata-se da sua casa de morada de família, bem como, das suas 2 filhas menores (requerimento com a refª 45465005); e que «não foi ainda emitida a licença de habitabilidade» (requerimento com a refª 45635458).
Requereram, então, que o tribunal oficiasse ao Município ..., para que lhes fosse permitido, em substituição da Ré, prosseguir com as diligências devidas de forma a obterem a licença de utilização. Manifestaram a disponibilidade para suportar todas as despesas relacionadas, pretendendo que o valor fosse descontado no preço final a pagar pelo imóvel.
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Foi, sucessivamente proferida sentença não sem antes ter sido decidido, quanto a tal requerimento, que o mesmo “extravasa o âmbito do processo”, pelo que foi indeferido.
A sentença dispôs então nos termos seguintes: “Pelo exposto, julga-se improcedente o pedido de execução específica do contrato promessa; condena-se a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 27.618,78 (vinte e sete mil, seiscentos e dezoito euros e setenta e oito cêntimos); e condena-se a Ré a pagar aos Autores quantia a liquidar ulteriormente, para ressarcimentos dos danos sofridos pelos Autores em consequência do incumprimento pela Ré dos acordos entre ambos estabelecidos.” Justificou a improcedência da pretensão de execução específica com a circunstância de a habitação prometida em venda não dispõe de licença de utilização.
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Vêm os autores interpor recurso quer daquele despacho, quer da sentença, terminando-o com a formulação das seguinte conclusões:
“1.ºVem o presente recurso interposto da Douta sentença do Tribunal a quo que:
Indeferiu o requerimento ref. 45635458 e julgou improcedente o pedido de execução especifica do contrato promessa.
2.º O Tribunal a quo indeferiu, por considerar que o requerido extravasa o âmbito do processo – nos termos do artigo 3.º do Código de Processo Civil, o pedido dos Autores de oficiar junto do Município ..., no sentido de ser permitido aos aqui Autores, em substituição da aqui Ré, o prosseguimento das diligências devidas de forma a obter a licença de utilização, do edifício construído na Urbanização ..., ....
3.º Os Autores, não podem conformar-se com tal decisão, uma vez que, que foram violados vários princípios, como Princípio do inquisitório, art. 411º, o Princípio da cooperação do artigo 7º, n.º 4, do Código Processo Civil não tendo o Tribunal a quo garantido o uso de todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, nos termos do artigo 2.º do código do Processo Civil.
4.º Salvo o devido respeito, deveria o Tribunal a quo, quando os Autores, invocaram sérias dificuldades em obter a licença de habitabilidade, uma vez que a Ré nada faz, obstando desta forma a que os Autores exerçam os seus direitos, usar os seus poderes previstos nos artigos 436.º, 432.º 417.º todos no Código Processo Civil
5.º Ao não o fazer impede-se os Autores do acesso à justiça, o direito à habitação, direitos constitucionalmente consagrados.
6.º A violação deste poder-dever do Tribunal, constitui uma irregularidade com impacto e influência na decisão proferida, impondo-se, por conseguinte, a anulação da decisão da 1ª instância, nesta parte, por outra que permita os Autores substituírem-se à Ré no sentido de prosseguirem com as diligências devidas de forma a obterem a licença de habitabilidade e consequentemente ser deferida a execução especifica do contrato promessa em apreço.
7.º O Tribunal a quo, improcedeu o pedido de execução específica do contrato promessa, nomeadamente porque considerou que objecto do contrato promessa não é uma moradia mas sim um terreno para construção e por outro lado a inexistência de licença de utilização, que só a Ré - construtora, proprietária e promitente vendedora – poderia obter.
8.º Ora, violou-se o regime legal de execução específica consagrado no artº 830º nº 1 do CC e o princípio de direito processual da correspondência entre o direito e a acção - consagrado no artº 2º nº 2 do Código de Processo Civil
9.º Salvo o devido respeito e melhor opinião, sem fundamento legal e contra o regime legal aplicável, o Tribunal a quo faz impender sobre os Autores o ónus que por lei pertence ao construtor e ou ao proprietário transmitentes, nos termos do artº 53º nº 1 do DL 555/99 e 26º nºs 1, 4 e 6 do Decreto Lei nº 445/91, na redacção do DL 250/94.
10.º Aliás, tal solução que decorre da errada qualificação da norma do artº 1º nº 1 do Decreto Lei nº 281/99 como possuindo natureza imperativa, quando a preocupação do legislador foi a de não inviabilizar a transmissão da propriedade, garantindo embora limites mínimos de segurança no tráfico jurídico, enquanto se procedesse a reflexão mais aprofundada.
11.º Assim, ao julgar imperativa a norma do artº 1º nº 1 do Decreto Lei nº 281/99, o Tribunal a quo eliminou o direito de execução específica de que os Autores são titulares, nos termos do regime consagrado no artº 830º nº 1 do Código Civil, violando ambas as disposições legais. Acresce que o n.º 2 do mesmo Decreto Lei nº 281/99 estabelece que licença de utilização poder ser substituída pela licença de construção do imóvel
12.º De facto, salvo o devido respeito, justificava-se a procedência da acção, não apenas pelo facto de a Ré não ter contestado, o que só por si implicava a confissão dos factos articulados pelos Autores, como pelo facto de não puder ser imputado aos Autores, a falta de licença de utilização, nomeadamente porque o mesmo requerem ao Tribunal a quo que oficiasse no sentido dos Autores conseguissem obter tal licença de habitabilidade.
13.º Salvo o devido respeito, estar a penalizar os Autores., com uma responsabilidade que não possuem, impedindo-os de obter uma sentença favorável numa acção não contestada é no mínimo uma flagrante violação da garantia Constitucional de acesso aos Tribunais consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
14.º A decisão recorrida violou o estatuído no artigo 2º, 5.º, 7.º, 411.º, 417.º do Código de Processo Civil, artigo 830º do Código Civil, artigo 20º e 65.º da Constituição da República Portuguesa.
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Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
Assim, importará decidir sobre se o tribunal a quo deveria ter providenciado junto da Câmara Municipal ..., segundo o pedido pelos autores, para que estes pudessem obter a licença de utilização do imóvel em causa; bem como se a situação sub judice apresentava os pressupostos necessários à execução específica do contrato-promessa invocado.
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Em razão da declaração de confissão dos factos alegados pelos autores, subsequente à ausência de contestação da ré, acabou o tribunal recorrido por não elencar expressamente os factos em que alicerçou a sua decisão.
Todavia, surpreendem-se na própria decisão esses factos essenciais.
Assim:
1º - No contrato promessa de compra e venda celebrado entre os Autores e a Ré, em 22-04-2021, o objeto descrito foi um «terreno para construção, designado por lote ...... e ......» (cfr. cláusula 2.ª do contrato promessa);
2º - Na cláusula 1.ª consta: «a Primeira Outorgante [ora Ré] declara que é a única proprietária e legítima possuidora do prédio que constitui o objeto do presente contrato»,
3º - Na parte final da cláusula 2.ª do contrato promessa, está escrito «onde será edificada uma moradia tipo T-Quatro, destinada a habitação, com 2 pisos, com área de construção de 225,00 m2».
Salientou o tribunal que, face a tal contrato, o objecto mediato não foi «o prédio urbano, sito na Urbanização ..., ..., edificado na parcela de terreno para construção composta pelos lote ...... e ......» (cfr. o pedido formulado na petição), não podendo haver execução específica quanto a uma moradia que não era objeto do contrato.
Em qualquer caso, a primeira questão do recurso reporta-se à decisão no tribunal nos termos da qual indeferiu o requerimento dos autores para que oficiasse ao Município ..., para que lhes fosse permitido, em substituição da Ré, prosseguir com as diligências devidas de forma a obterem a licença de utilização, com disponibilidade para suportar todas as despesas relacionadas, pretendendo que o valor fosse descontado no preço final a pagar pelo imóvel.
Os autores fundam a impugnação desta decisão no incumprimento, pelo tribunal, de um dever de promover diligências necessárias à justa composição do litígio, bem como do dever de providenciar pela remoção do obstáculo constituído pela ausência de licença de utilização, invocando ainda o regime para a obtenção de documentos em poder de terceiro.
Aponta, assim, a ocorrência de uma nulidade, por omissão de um acto que deveria ter sido praticado e que redundou em prejuízo da decisão da causa, determinando a nulidade da própria sentença.
Constata-se, porém, ser dispersa, quase errática, a argumentação dos apelantes a este propósito, ora invocando a sujeição do tribunal a ditames de cooperação, ora qualificando implicitamente a licença de utilização do prédio como um pressuposto processual por cuja materialização o tribunal deveria providenciar, ora invocando o regime processual probatório, designadamente quanto ao tratamento das situações de necessidade de utilização de documentos em poder de terceiro.
É, porém, óbvia a ausência da sua razão.
Com efeito, como referiu o tribunal a quo, na questão em apreço, a existência de licença de utilização de um imóvel é condição essencial para o reconhecimento do direito à execução específica de um contrato-promessa, isto é, do direito a que, prescindindo da declaração contratual de uma das partes, o tribunal se substitua à parte faltosa e enuncie ele próprio a declaração em falta, isto é, como se da própria parte se tratasse e produzindo os mesmos efeitos.
Ora, para que uma tal solução possa ser decretada, a parte requerente tem de estar munida de todos os pressupostos (substantivos) do seu direito, o que, sendo reconhecido pelo tribunal, determina que se ultrapasse a ausência da declaração de vontade da parte contrária. É o que resulta do art. 830º, nº 1 do C.Civil.
No caso de o objecto a transmitir ser um imóvel destinado a habitação, impõe o art. 1º do D.L Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho1” Não podem ser realizados actos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.”
Significa isto que, para que se reconheça como digno de tutela um direito à execução específica de um contrato-promessa tendo por objecto um prédio urbano, esse prédio – que é o objecto mediato do contrato-promessa – tem de estar habilitado com uma licença de utilização, sob pena de não poder ser alvo de um acto translativo da respectiva propriedade, designadamente aquele que é pretendido do tribunal.
Numa vertente negativa, poderá afirmar-se que, desprovido de licença de utilização, não poderá um tal prédio urbano ser objecto de um acto translativo de propriedade, seja ele um acto de venda em que o vendedor declara uma tal vontade, seja ele um acto judiciário que, suprindo essa declaração, se lhe substitua.
É neste quadro legal que cumpre afirmar que não é ao abrigo de um princípio de cooperação, tal como o definido 7º, nº 1 do CPC, que poderá interpelar-se o tribunal para que, não apenas suprindo a declaração da parte faltosa, tal como previsto no art. 830º, nº 1 do C. Civil, intervenha na própria aquisição dos pressupostos necessários à aquisição do direito à execução específica, ou seja, muito a montante da superação de qualquer impedimento processual que possa estar a obstar ao exercício do próprio direito.
Com efeito, o princípio da cooperação, mesmo em termos amplos como aqueles que estão pressupostos no art. 7º do CPC, reconduz-se às obrigações intraprocessuais, em ordem à realização dos fins do processo, fazendo com que este seja uma ferramenta para a realização do direito em tempo útil, mas não às questões inerentes à consolidação da posição substantiva de qualquer das partes.
Assim, por exemplo, a dificuldade na obtenção de um documento ou informação que condicione o exercício de uma faculdade ou ónus processual, que o tribunal deve ajudar a superar, tal como previsto no nº 4 do art. 7º, não leva a que se transcenda a dinâmica do processo para se poder sediar na própria relação substantiva entre as partes. Em suma, por exemplo, o tribunal deve contribuir para a superação de uma dificuldade tendente à verificação de todos os pressupostos processuais (ex., em sede de legitimidade) ou à habilitação da parte com os meios instrutórios existentes (ex, fazendo produzir meios de prova que a parte não consegue alcançar); mas não haverá de actuar no sentido de dotar a parte dos pressupostos substantivos de um direito que a mesma se apresta a exercer.
Isso conduziria a uma intervenção em associação com a própria parte, inadmissível ao tribunal. Assim, por exemplo, num caso de incumprimento de um contrato em que seja pedida em juízo a sua resolução, mas em que a mora não tenha sido convertida em incumprimento definitivo, não poderá pretender-se que o tribunal, à luz de um dever de cooperação, providencie pela interpelação do devedor e pela conversão da mora em incumprimento definitivo, por isso ser essencial à realização do direito que o autor se apresente a exercer.

No caso sub judice, por exemplo e diferentemente do que os apelantes chegam a alegar, a obtenção de uma licença de utilização para o prédio que querem adquirir não consubstancia a aquisição de um meio de prova (documental) vocacionado para a demonstração da existência dessa licença. Se assim fosse, até poderia ter sentido a invocação a que recorrem, do art. 432º do CPC (documentos em poder de terceiro). Porém, o que está em causa não é a obtenção de um documento tendente a provar a prévia autorização de utilização do prédio: o que os apelantes pretendem é que o tribunal determine à Câmara Municipal que admita os apelantes a adoptarem a conduta necessária à produção do próprio acto administrativo que ainda não foi produzido: a emissão da licença de utilização.
Ora, como bem referiu o tribunal recorrido, o fim do presente processo não inclui uma tal actuação, reconduzindo-se tão só à verificação da presença dos pressupostos que poderiam habilitar a que, sem intervenção da promitente-vendedora, o tribunal proferisse declaração substitutiva, operando-se por consequência dela a transferência da propriedade sobre o imóvel em causa.
Assim, não estamos perante qualquer défice processual que o tribunal pudesse contribuir para colmatar. Não se trata nem da reunião de necessários pressupostos processuais, nem da intervenção em ordem à aquisição de quaisquer elementos probatórios do direito dos autores, pois eles próprios admitem que inexiste a necessária licença de utilização, não estando em falta tão só a sua demonstração.
Causa, assim, alguma perplexidade que, no recurso, se confundam as diferentes esferas consubstanciadas ora pela invocada titularidade do direito em exercício, ora pela mera demonstração, em sede processual, da reunião dos pressupostos desse direito.
Assim, ao caso são totalmente impertinentes as regras constantes dos arts. 411º, 417º, 429º, 436º do CPC.
Complementarmente, com idêntica frontalidade, se rejeita que, em favor do direito que os ora apelantes falham em demonstrar, possam invocar – de resto tão abstracta e gratuitamente como o fazem - o direito à habitação, tal como previsto no art. 65º da CRP, e como se uma tal tutela constitucional fosse pertinente na resolução do litígio ocorrido em sede de uma relação contratual entre as partes em presença.
Com efeito, a inviabilidade de transmissão da propriedade sobre um prédio urbano, por não estar dotado de licença de utilização, não viola o direito à habitação, tal como este se mostra constitucionalmente previsto, no art. 65º da CRP. Esse direito é um direito fundamental de natureza social, que não confere um direito subjectivo de ordem contratual como aquele que os AA. se apresentam a exercer nesta acção.
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Numa segunda parte do seu recurso, os apelantes referem que o tribunal deveria ter dado por provados factos inerentes à caracterização do verdadeiro objecto mediato do contrato-promessa que integra a causa de pedir, incorrendo em incumprimento do dever de decidir.
Constata-se, no entanto, que os apelantes de forma alguma vêm elencar factos que não devessem ter tidos como adquiridos, ou outros que o tribunal devesse ter dado por provados, como pressuposto da decisão a proferir, em ordem a que, se pudesse alterar aquilo que, na essência, constitui a premissa menor dessa decisão.
Assim, atento o regime do art. 640º do CPC, não seria admissível operar qualquer alteração nesse segmento da sentença. O que, note-se, sempre seria inconsequente.
Mais afirmam que a licença de utilização pode ser substituída pela exibição do alvará de licença de construção, caso se demonstre que aquela licença foi pedida, mas ainda não emitida.
Esta questão é, porém, inteiramente nova, jamais tendo sido discutido em primeira instância – designadamente por os AA. o não terem alegado oportunamente – que a materialidade existente – que referem ser dois lotes de terreno e uma moradia em construção, sem licença de habitabilidade, para cuja obtenção será necessário realizar operações não concretizadas – poderia ser alvo de transmissão, por via da execução específica do contrato-promessa alegado.
Com efeito, recorde-se, a pretensão dos autores era a da execução específica de um contrato promessa, por via da qual se lhes transmitiria a propriedade sobre o prédio urbano sito na Urbanização ..., ..., edificado na parcela de terreno para construção composta pelos lote ...... e ......, com alvará de loteamento n.º ... da União de freguesias ..., ..., ... e ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob as fichas ... e ... de ..., com os artigos matriciais ... e ..., respectivamente, com 2 pisos, com área de construção de 225m2 de acordo com o projecto apresentado pela Ré.
Ora um tal prédio, assim descrito e enquanto prédio edificado, não detém uma licença de utilização e, como antes se referiu e em plena concordância com o tribunal recorrido, não pode ser alvo de transmissão nessas condições, não podendo igualmente ser objecto de uma sentença de execução específica de um contrato-promessa que possa referir-se-lhe.
Por outro lado, como a jurisprudência, designadamente a deste TRP, repetidamente explica, não poderá apreciar-se uma questão diferente da que constituía o objecto do processo, designadamente a que se referisse à definição de um efeito diferente para o contrato-promessa invocado, designadamente um que tivesse por objecto a transmissão de propriedade de dois lotes de terreno e quaisquer benfeitorias neles executadas.
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Resta, em suma, concluir pelo não provimento do presente recurso, na confirmação integral da douta decisão recorrida.
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Sumário:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso, na confirmação integral da douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
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Porto, 10 de Outubro de 2023
Rui Moreira
João Proença
Artur Dionísio Oliveira