Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1035/18.2TELSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
QUESTÃO PREJUDICIAL
SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RP202311081035/18.2TELSB.P1
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A tensão, detetável transversalmente em todo o processo penal, entre celeridade e eficácia da justiça penal e o respeito pelas garantias do sujeito visado pelo procedimento, será contida e harmonizada através de instrumentos de concordância prática e de ponderação dos interesses em conflito em cada momento.
II – O papel aglutinador decorrente da suficiência do processo penal (resolvendo nele todas as questões que interessem à decisão da causa, mesmo as heterogéneas à sua esfera típica de ciência e intervenção) e a celeridade que a concentração proporciona pode, justificadamente, ser derrogado, permitindo a abertura à intervenção de outras jurisdições ou competências especializadas, em ordem a possibilitar uma melhor decisão.
III – No entanto, a questão da falsificação/genuinidade de um documento, sobre o qual se imputa a ação do agente através da sua falsificação material ou utilização ulterior, é questão própria, de natureza penal, integrante do objeto do processo e a decidir neste, sem caráter de prejudicialidade, não se cumprindo o critério material determinante da possibilidade de suspensão consistente no carácter não penal da questão a submeter a ente jurisdicional externo ao processo.
IV - Ainda que assim não fosse e se reconhecesse à questão dita prejudicial uma natureza híbrida ou concorrente e pudesse afirmar-se que, no caso vertente, aquela, pelos seus contornos específicos, assumia (pelo menos também) uma natureza não penal, então não estaria presente o segundo requisito previsto no art.º 7.º, n.º 2 do Código de Processo Penal para a suspensão - o da conveniência – porquanto o processo penal se afirma na vanguarda quanto à existência de instrumentos capacitantes para a decisão, podendo e devendo a questão ser resolvida em sede penal com a mesma proficiência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1035/18.2TELSB.P1


Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da
Relação do Porto


I.
Nos autos de processo comum n.º 1035/18.2TELSB, a correr termos no Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 8, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e em que é arguido AA, na sequência da apresentação, por este, da sua contestação e requerimento de prova, foi proferido o despacho Ref.ª 445890402, nos termos do qual se indeferiu a ali requerida suspensão do processo e, bem assim, a realização de diligência probatória junto de instituições bancárias.
Não se conformando com o decidido veio o arguido interpor o recurso ora em apreciação referindo, em conclusões (após convite ao aperfeiçoamento), o que a seguir se transcreve:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho judicial que, na sequência da apresentação da contestação do arguido, indeferiu a alegada existência de uma verdadeira questão prejudicial não penal em processo penas nestes autos.
2. Autos em que se investiga a eventual prática de um crime de falsificação de documento que terá sido usado como meio de comissão de um delito de burla na forma tentada, estando-se perante uma certidão de um testamento que instituía o arguido como herdeiro universal (com alguns legatários) e que serviu para a celebração da habilitação de herdeiros e, em consequência, para o levantamento de saldos bancários em várias instituições de crédito, sendo que o “Banco 1...” teve dúvidas sobre o documento apresentado e denunciou os alegados comportamentos que deram origem a este processo.
3. Naturalmente que, antes de mais, temos de assentar numa definição de “questão prejudicial” que, como se disse nas alegações, pode ser encarada aquela cujo conhecimento condiciona (como seu pressuposto substantivo e não como questão prévia de natureza processual ou como excepção) a decisão sobre a questão principal, por existir uma conexão material com esta questão principal.
4. Bem se sabe que o art. 3.º do CPP estabelece o princípio geral da auto-suficiência do processo penal, mas que, obviamente, comporta excepções.
5. Como é, em nosso juízo, o caso dos presentes autos.
6. E dizemo-lo porque, com base no labor da doutrina e da jurisprudência atrás citadas, para que exista uma questão prejudicial não penal em processo penal, como é o caso, mister se torna que, em primeiro lugar, a questão contenda com os elementos essenciais da verificação do crime.
7. Descendo ao caso dos autos, é por demais evidente, da simples leitura de cada um dos ilícitos-típicos, que elemento central de cada um deles (“documento”, no art. 256.º do CP) e (“por meio de erro ou engano que astuciosamente provocou”, na burla qualificada) é exactamente aquele que, em sede de requerimento probatório se apresentou como questão civil enxertada em processo penal, ou seja, só haverá qualquer um dos dois delitos se e na medida em que a certidão do testamento que deu causa à acção penal e, depois disso, à escritura pública notarial de habilitação de herdeiros e demais actos jurídicos que se lhe seguiram, for falsa.
8. Em segundo lugar, essencial se torna que a questão prejudicial não possa ser adequada ou suficientemente tratada no presente processo criminal.
9. Este é o aspecto mais controvertido na questão que nos ocupa, por acabar por contender com elementos de ius aequum.
10. Formalmente, não há dúvidas de que o tribunal está em condições de determinar a autenticidade ou não do documento.
11. No entanto, de um prisma material, é nossa convicção que a resposta a dar ao problema de saber se o documento que está na base de tudo – o testamento de BB – é verdadeiro ou não, deve ser remetido para um tribunal cível.
12. E isto porque se trata de um tribunal de competência especializada na matéria fulcral sob disputa e em que o magistrado judicial ao qual a questão prejudicial vier a ser distribuída está em melhores condições técnico-jurídicas para o dilucidar, exactamente fruto da especialização e das suas vantagens.
13. Acresce que existem outros processos de natureza civil em que o cerne da causa de pedir é exactamente o mesmo que aqui se aponta como questão prejudicial não penal, a saber:
14. Juízo Local Cível do Porto, J2, Proc. n.º 22094/19.5T8PRT, em que é A. o aqui arguido e R. o Banco 1..., S.A. (apresentação de coisas ou documentos) – veja-se, a título exemplificativo, a resposta ao pedido de informações datado de 4/1/2023);
15. Inquérito com o NUIPC 1758/19.9T9AVR, do DIAP de Aveiro, 3.ª Secção (pedido de informação de 6/2/2023, p. ex.);
16. Proc. Administrativo n.º 2958/20.4T9AVR, a correr termos junto da Procuradoria junto do Juízo Local Cível de Aveiro;
17. Proc. n.º 43/22.3Y4PRT, no âmbito da cooperação judicial internacional em matéria penal, PGR e DGAJ.
18. A sua existência é um indício seguro de que qualquer um desses processos de natureza civil, já em curso, estará em melhores condições de o resolver.
19. Por fim, a acusação do MP teve por base um inquérito que se limitou a perguntar – por carta rogatória – às justiças brasileiras se um dado documento junto estava ou não inscrito no respectivo livro de um dado cartório notarial quando, se bem vemos as coisas, essa não é a questão central que logo no inquérito o órgão acusador deveria ter procurado resolver.
20. Ora, em nossa opinião, o mais relevante e que permitirá atingir a maior proximidade à verdade histórica será averiguar da existência ou não do “documento-base ou matricial”, chamemos-lhe assim, por comodidade de linguagem, ou seja, do próprio testamento.
21. Tal implica todo um conjunto de diligências que, no caso concreto destes autos importará a expedição de uma ou mais cartas rogatórias tendo por destinatário as justiças brasileiras, o que porventura até já poderá estar em marcha ou se ter conhecido nos processos civis pendentes – o que se desconhece, desde logo porque o aqui defensor não é mandatário judicial em tais autos –, sendo que o tribunal civil nisso terá mais experiência, maior capacidade de actuação e até de rapidez, posto que é exactamente uma parte das matérias com que especializadamente trata, ao invés dos tribunais criminais.
22. Tudo, portanto, no sentido em que o presente processo crime deve ser sobrestado e remetida a questão prejudicial não penal para um tribunal cível, só após disso seguindo a presente instância os seus termos.
23. Como segunda causa de pedir e segundo pedido, vem o presente recurso interposto da parte do despacho que indeferiu que se oficiassem as demais instituições bancárias em que a certidão foi apresentada e em que os bancos disponibilizaram os respectivos saldos, de modo a saber como ocorreu essa transacção, que procedimentos foram adoptados e se este caso em concreto teve algo de diferente de outros em que a mesma questão se coloca.
24. Concluímos, pois, no pedido: Na medida em que as instituições bancárias Banco 2..., Banco 3... e Banco 4... aceitaram a escritura de habilitação de herdeiros e a certidão de testamento, requer-se a V. Exa. se digne oficiar estas instituições para virem aos autos descrever o processo de levantamento de verbas em contas de depósito tituladas por BB pelo mandatário judicial do arguido, para o efeito munido de procuração com poderes especiais, e para indicarem quem, em cada banco, tratou de cada um desses procedimentos, arrolando-os como testemunhas.
25. E isto porque, se, como aqui sucedeu, o arguido sempre actuou na convicção de que a certidão corresponde à verdade, nunca se pode falar, in casu, no preenchimento do conhecimento do tipo objectivo do crime de burla qualificada na forma tentada e dos dois delitos de falsificação que lhe são imputados. Donde, faltando o elemento intelectual do dolo, não haveria qualquer delito.
26. Ainda se pode argumentar também que o arguido agiu em erro sobre as circunstâncias de facto ou sobre a factualidade típica, porquanto, como se disse, sempre considerou e continua a considerar que a certidão do testamento é verdadeira.
27. Se o não for – o que de todo está demonstrado nos presentes autos –, então ao arguido aplicar-se-á o previsto no art. 16.º, n.º 1, 1.ª parte, do CP, o que exclui o dolo, ressalvando-se a punição por negligência, nos termos do n.º 3, o que não sucede quanto aos crimes que são imputados ao agente.
28. A decisão de não julgar relevante a diligência requerida configura uma clara violação do art. 205.º da CRP e do art. 97.º, em especial do seu n.º 5, este do CPP, porquanto a vaguidade da fundamentação é equivalente à sua inexistência, pelo que, em nossa perspectiva – por considerarmos o art. 379.º, aqui n.º 1, al. c), do CPP aplicável não só às decisões finais, mas também aos despachos com conteúdo decisório (numa hermenêutica que deve ser teleologicamente fundada e não apenas literal ou verdadeiramente positivista, como muitos defendem), como este, o que bem sabemos ser concepção que traz a jurisprudência dividida –, existe esta mesma nulidade, invocável em sede de recurso (n.º 2 do inciso) e que expressamente se invoca.
29. É essencial perceber porque é que apenas uma instituição bancária – Banco 1..., S.A. –, ao contrário de todas as demais, se recusou a aceitar a documentação que lhe foi apresentada para desbloquear as contas bancárias nele detidas pelo de cujus, uma vez que só assim se entenderão os mecanismos de controlo interno dos bancos, o que melhor habilitará o tribunal a saber em que pontos específicos se detectou algum tipo de desconformidade entre o pedido do representante legal do cliente e o seu indeferimento.
30. Munidos desta informação, o tribunal criminal até se encontrará em melhores condições decisórias, pois que passará a ter a informação da alegada falta de compliance e, assim, as “pistas” concretas que, a final, poderão confirmar ou infirmar o conteúdo da acusação.
31. Quanto à não aceitação da existência de uma verdadeira questão prejudicial não penal em processo criminal (art. 7.º do CPP), numa hipótese em que, s.m.o., é claro que a mesma existe, está a julgadora a coarctar, de modo desproporcionado, o direito de defesa do arguido em processo penal, por não consentir na efectivação dos meios de prova que deveria, por forma a atingir a verdade e a boa decisão da causa (a que alude o art. 340.º, n.º 1, do CPP), vulnerando, em inconstitucionalidade material, o art. 32.º, n.º 1, conjugado como art. 18.º, n.º 2, ambos da CRP, o que expressamente se invoca nesta sede para apreciação de V. Exas., tendo em conta o princípio de fiscalização difusa da constitucionalidade das normas e das interpretações dela empreendidas que a mesma Lei Fundamental consagra no art. 204.º
Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o proficiente suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, sendo-lhe dado total provimento, para além de se conhecer da nulidade invocada, que deve ser expurgada e, por fim, sendo caso disso, das inconstitucionalidades materiais invocadas.
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Admitido o recurso, por tempestivo e legal, com subida imediata e atribuição de efeito suspensivo, veio o Ministério Público apresentar articulado de resposta, alegando, além do mais, que:
(…) Porém, já no que se refere à alegada impossibilidade de a questão dita prejudicial ser adequada ou suficientemente tratada no presente processo criminal, afigura-se-nos não assistir razão ao Recorrente.
Em requerimento probatório, em sede de Contestação, requereu o Arguido a suspensão dos presentes autos para que se resolvesse, com anterioridade, a questão não penal da autenticidade/falsidade da certidão da escritura pública de testamento aberto por óbito de BB e da autenticidade e veracidade das informações constantes da resposta do mesmo Cartório de PARAMOTI, Ceará.
- Quanto à suficiência do processo penal – art.º 7.º do C.P.P.
Como refere Tiago Caiado Milheiro (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2019, Almedina, tomo I, art.º 7.º, § 4.º e 5.º, p.135) “O art.º 7.º não coloca qualquer condicionante a esta plenitude de jurisdição. Pelo contrário afirma um dever de resolução de todas as questões que interessam ao processo penal, numa abrangência esgotante (…)”. “Mesmo existindo alguns riscos, os prejuízos que adviriam da não consagração da suficiência do processo penal seriam bem superiores. E aqui entroncamos nas razões fundantes do princípio da suficiência do processo penal. Desde logo a boa administração da justiça penal. O exercício do ius punniendi é um monopólio estadual não podendo abdicar-se de um processo penal com capacidade de “valer por si só” pois é estruturante num Estado de direito democrático. (…)”.
E, como resulta do n.º 2, do aludido preceito, a suspensão do processo, para que seja decidida questão no tribunal competente, só deverá ocorrer quando a questão “não possa ser convenientemente resolvida no processo penal”.
Ora, no caso concreto, deverá ser tido em conta que o próprio arguido refere na sua motivação (ponto iii), que no inquérito foi já solicitada informação às justiças brasileiras “se um dado documento estava ou não inscrito no respetivo livro de um dado cartório”;
Da resposta a tal solicitação, que se encontra a fls. 439 dos autos, prestada em 12.11.2020, pelo CARTÓRIO DO 1.º OFÍCIO DE PARAMOTI, consta cumprir informar que com base no documento recebido, a data (10.05.1984), em que esta Escritura Pública foi lavrada não corresponde ao livro existente, e tão pouco ao ano; o primeiro Livro (n.º 1) arquivado se inicia no ano de 2000, confrontando-se assim com a data mencionada. Verifica-se também que o Tabelião à época responsável pela Serventia, não é o que contem acerca do documento recebido, sendo o mencionado (CC – Oficial Interino) sendo a assumir a partir do ano de 2017; e, Enquanto ao Reconhecimento de Firma do Escrevente Autorizado – DD, o mesmo jamais compareceu ou abriu firma no cartório mencionado (EE CF).
Por outro lado, resulta dos documentos referidos pelo Banco 1..., a fls. 3 (certidão com base na qual foi instaurado o presente processo) que “dadas as suspeitas de práticas de atividades criminosas o Banco abstém-se de prestar quais quer das informações solicitadas” (pontos 8 e 9 do documento;
Refere o banco ter obtido informações do Cartório de Paramoti, no Brasil, o qual terá declarado que a certidão do ..., a fls. 292 do cartório de Paramoti (que é o que consta da certidão do testamento) corresponde a uma escritura de compra e venda, lavrada em 30 de maio de 2003, bem como os documentos nos quais se refere, ainda, que até ao ano de 2001, o cartório somente tinha competência para atos de registo civil .
Na sequência da promoção então exarada nos autos pelo Ministério Público , atenta a Acusação deduzida, delimitando e definindo o objecto do processo, afigura-se-nos que, de acordo com o princípio da suficiência do processo penal, consagrado no art.º 7.º do C.P.P., igualmente referido pelo requerente, caberá no âmbito dos presentes autos a produção de prova sobre tal factualidade.
A questão da falsidade do testamento, mostra-se, nesta fase processual, como podendo
ser devidamente apreciada no julgamento penal, designadamente com base na perícia a realizar, atentos os indícios recolhidos:
- Nenhum documento foi encontrado, comprovativo da realização de testamento pelo falecido BB, no Cartório em que alegadamente foi lavrado.
- O livro n.º 1, onde alegadamente foi lavrado o testamento pelo falecido BB em 10.05.1984, só se inicia no ano de 2000;
- O Tabelião à época responsável pelo referido cartório é diferente daquele que é referido na certidão do testamento apresentada;
- A certidão do ..., a fls. 292 do Cartório de Paramoti (que é o que consta da certidão do testamento) corresponde a uma escritura de compra e venda, lavrada em 30 de maio de 2003.
Ora, face a tais elementos, afigura-se-nos que nenhuma outra diligência se mostra pertinente solicitar às autoridades brasileiras no sentido de localizar um testamento que não foi localizado no local onde o arguido (e a certidão em causa nos autos) diz ter sido lavrado.
Entende o Recorrente que a resposta a dar ao problema de “saber se o documento que está na base de tudo – o testamento de BB – é verdadeiro ou não”, deve ser remetido para um tribunal cível, alegadamente “em melhores condições técnico-jurídicas para o dilucidar, exactamente fruto da especialização e das suas vantagens”, considerando ainda a prejudicialidade de tal questão.
Importa, salvo melhor entendimento, reiterar que os documentos em que se manifestam indiciariamente os crimes de falsificação, objecto dos presentes autos, se reportam à certidão de testamento e à certidão da habilitação de herdeiros, o primeiro corporizado na certidão da escritura pública de um testamento aberto por óbito de BB, do Cartório FF, datada de 06/08/2018, não existindo nos autos outro documento que ateste a existência do aludido testamento.
Acresce que relativamente à referida certidão de testamento, foi já determinada pelo tribunal a solicitação ao Cartório da Póvoa de Varzim, para que informe os autos se, aquando da realização da escritura de fls. 11 e ss., foi apresentada cópia certificada do documento de fls. 14 e ss. Uma vez que ali terá sido exibido o “original” da certidão.
Relativamente a outros processos de natureza civil em que, de acordo com o Recorrente, o cerne da causa de pedir é exactamente o mesmo que aqui se aponta como questão prejudicial não penal, salvo melhor entendimento, cumpre referir que, à excepção do proc. n.º 22094/19.5T8PRT, em que, de acordo com o Recorrente, é A. o aqui arguido e R. o Banco 1..., S.A. (apresentação de coisas ou documentos) o Inquérito com o NUIPC 1758/19.9T9AVR, do DIAP de Aveiro, 3.ª Secção é de natureza criminal, com objecto delimitado em relação ao objecto dos presentes autos, e, necessariamente, em diferente fase processual, tendo sido oportunamente fornecidos e obtidos elementos considerados necessários àquela delimitação, e ao apuramento da verdade, oficiosamente e a requerimento do Arguido. (cfr. ref.125792800 de 06/02/2023, com envio de elementos relevantes, provenientes daquele processo, não integrados fisicamente nos autos).
O proc. administrativo n.º 2958/20.4T9AVR, pela sua natureza, não se mostra susceptível de dar resposta à questão suscitada.
Por outro lado, a Recorrente não desconhece que, em face do aludido requerimento probatório, foi ainda determinado no douto despacho ora recorrido “Quanto à perícia requerida: Antes do mais, oficie ao Cartório da Póvoa de Varzim, melhor identificado a fls. 10, solicitando que informe os autos se, aquando da realização da escritura de fls. 11 e ss., foi apresentada cópia certificada do documento de fls. 14 e ss.”, diligência da qual se haverá de inferir que o tribunal recorrido irá pronunciar-se sobre a perícia, a realizar no âmbito dos presentes autos.
Acresce que, quanto à aludida perícia à certidão da escritura pública de testamento, foi já obtida informação proveniente do inquérito n.º 1758/19.9TAVR , informação negativa.
Quanto à expedição de carta rogatória dirigida às justiças brasileiras, com as questões elencadas relativas ao CARTÓRIO FF, na cidade de Paramoti, Estado de Ceará, Brasil afigura-se-nos que tais questões ficarão prejudicadas no caso de ser deferida a perícia ao
documento em causa (certidão do testamento de BB apresentada na escritura de habilitação de herdeiros realizada no Cartório Notarial GG , Póvoa de Varzim , conforme fls. 14 e 15 e 380 e 381 dos autos), perícia que o tribunal
equaciona, conforme decorre das diligências em curso.
Do mesmo modo se mostrará prejudicada a requerida perícia ao documento que integra a resposta do Cartório de Paramoti ao pedido de cooperação internacional, sem prejuízo do que resultar das informações que o Tribunal já determinou fossem realizadas/solicitadas, no douto despacho recorrido, relativamente ao Cartório FF.
DA OUTRA DILIGÊNCIA PROBATÓRIA INDEFERIDA E AGORA IMPUGNADA
Quanto à prestação de informação sobre procedimentos internos e à inquirição, na qualidade de testemunhas, dos funcionários das instituições bancárias que aceitaram a escritura de habilitação de herdeiros, Banco 2..., Banco 3... e Banco 4..., não estando em causa tais levantamentos, atento o objecto do processo, delimitado pela Acusação à factualidade relativa à indiciada falsificação do documento apresentado no Banco 1... e à tentativa de burla qualificada, não se antevê a pertinência de tal solicitação para o apuramento da verdade e boa
decisão da causa.
Vem o arguido arguir a violação do art.º 205.º da CRP e do art.º 97.º, nº 5 do C.P.P. em face do indeferimento do seu requerimento para que se oficie às instituições bancárias, solicitando que venham descrever os procedimentos internos em cada uma delas adotado no que se refere ao levantamento de verbas, e a inerente nulidade do despacho judicial nos termos do art.º 379.º do C.P.P.
Recuperando, nas suas palavras, o que fez constar da sua Contestação, invoca novamente o Recorrente a violação do art. 205.º da CRP e do art. 97.º, em especial do seu n.º 5, este do CPP, porquanto a vaguidade da fundamentação é equivalente à sua inexistência, pelo que, na sua perspectiva existe a mesma nulidade.
Salvo o devido respeito pelos argumentos expendidos, afigura-se-nos que o indeferimento, ainda que sucintamente fundamentado, revela que o tribunal considerou tal meio de prova não relevante para o apuramento dos factos.
Sem prejuízo do direito do arguido requerer /apresentar os meios de prova consentâneos com a sua estratégia de defesa, não se mostra, s.m.e. violado esse seu direito considerando ainda que o Recorrente afirma que , “ na posse destas informações – e foi nessa perspectiva que as mesmas se requereram –, o tribunal terá mais dados para eventualmente deferir, como esperamos, a prova pericial que se impõe e cujos quesitos, no estrito cumprimento do art. 154.º do CPP logo se indicaram, e saber se há mais quesitos que se devam acrescentar ou alguns a retirar, evitando que se tenha de recorrer mesmo, num juízo de prognose póstuma, a uma segunda perícia, essa sim, que enredaria o processo.”
Os documentos juntos pelo Arguido encontram-se adquiridos nos autos, sem prejuízo de outras diligências que a produção de prova venha a suscitar.
Não incorre o douto despacho a quo em nulidade por ausência de fundamentação, violação do art. 7.º, do CPP ou do princípio da investigação judicial ou em qualquer nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c), não se evidenciando inconstitucionalidade por ofensa do direito de defesa do arguido garantido pelo art. 32.º, n.º 1, conjugado como art. 18.º, n.º 2, ambos da CRP.
Se assim for entendido, deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Porém V. Ex. as farão a mais elevada JUSTIÇA!
*
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do não provimento do recurso (Ref.ª 17226699).
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido/recorrente exercido contraditório, mantendo a argumentação recursiva (Ref.ª 46603767).
Proferido despacho no sentido do aperfeiçoamento do articulado de recurso com a formulação de conclusões, notadas em falta, veio o recorrente apresentar requerimento corrigido (Ref.ª 46763795) e do qual foi conferido contraditório ao Ministério Público.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursiva, constitui objeto do presente recurso apreciar:
a) Da suspensão do processo por existência de questão prejudicial não penal;
b) Da nulidade do despacho recorrido na parte referente ao pedido de informações junto de instituições bancárias.
*
III.
Apreciando.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se, na parte relevante, o teor do requerimento de prova apresentado pelo ora recorrente, na qualidade de arguido e sobre o qual incidiu o despacho recorrido:
(…)
III) DO REQUERIMENTO PROBATÓRIO
- Comece por se dizer que, não obstante a consagração legal do princípio da suficiência do processo penal (art. 7.º, n.º 1, do CPP), este é um processo que tem por base uma questão não penal em processo criminal, qual seja a de determinar se a certidão da escritura pública de testamento aberto por óbito de BB é ou não verdadeira em si mesma e, por outro lado, se a informação que ela contém corresponde ou não à verdade, i. é, se no dia 10/5/1984, o de cujus outorgou testamento em que instituiu como único herdeiro o aqui arguido, a que acrescem as fundadas dúvidas que se nos oferece o ofício de resposta do mesmo Cartório de Paramoti, Ceará, quanto à sua autenticidade e veracidade das informações dele constantes.
Pelo exposto, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do mesmo art. 7.º do CPP, é nosso entendimento que a questão de fundo sob julgamento exigiria que se resolvesse, com anterioridade, esta questão de índole não penal, o que deveria determinar a suspensão deste processo-crime.
- Na medida em que as instituições bancárias Banco 2..., Banco 3... e Banco 4... aceitaram a escritura de habilitação de herdeiros e a certidão de testamento, requer-se a V. Exa. se digne oficiar estas instituições para virem aos autos descrever o processo de levantamento de verbas em contas de depósito tituladas por BB pelo mandatário judicial do arguido, para o efeito munido de procuração com poderes especiais, e para indicarem quem, em cada banco, tratou de cada um desses procedimentos, arrolando-os como testemunhas.
- Seja expedida carta rogatória dirigida às justiças brasileiras, com as seguintes questões:
1. Quem é o tabelião titular do CARTÓRIO FF, na cidade de Paramoti, Estado de Ceará, Brasil e quem é o escrevente autorizado?
2. Quem é, onde reside e se diligencie no sentido de que seja testemunha no presente julgamento o Sr. DD.
3. No dia em que foi lavrado o testamento de BB, 10/5/1984, quem era o tabelião responsável pelo 1.º Cartório de Paramoti (Ceará) e quem eram outros eventuais colaboradores que também estivessem autorizados a assinar um ato notarial de testamento?
4. No ofício de resposta ao pedido de cooperação, com a ref.ª ofício 032/2020, datado de 12/11/2020, o Cartório do 1.º Ofício de Paramoti refere que a data em que CC, oficial interino, assumiu funções foi em 2017. É essa efetivamente a data em que esse facto sucedeu?
5. Quem são e se ainda é possível notificar as testemunhas do ato em que o testamento de BB foi lavrado, no dia 10/5/1984, a saber: HH, II, JJ, KK e LL, com os demais sinais de identificação constantes da certidão de escritura pública de testamento, de modo a que as mesmas possam depor na qualidade de testemunhas na presente audiência de discussão e julgamento?
6. Existiu um hotel com o nome “A...”, sito à Rua ..., ..., São Paulo, n.º ...? O que lhe aconteceu? Continua a laborar ou o que se encontra instalado hoje nesse mesmo local?
PROVA DOCUMENTAL:
A ora junta (6 – seis – documentos) e a demais constante dos autos.
PROVA TESTEMUNHAL:
1) MM, domiciliada na Rua ..., ... ... – ...;
2) NN, com domicílio profissional à Rua ..., ..., ..., São Paulo, Brasil e
3) OO, com domicílio profissional ao Hotel ..., Av. ... Ílhavo.
PROVA PERICIAL:
1) Como se disse atrás, incompreensivelmente, não foi ainda determinada a realização de prova pericial que, no caso, nos parece em absoluto imprescindível para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Assim, é nosso entendimento que é essencial não apenas analisar a certidão da escritura pública de testamento lavrado em 10/5/1984, emitida no dia 6/8/2018, no sentido de aferir da sua autenticidade, mas também que um perito independente, designado por um tribunal brasileiro ou pelo MP Federal, se desloque ao CARTÓRIO FF, no Estado do Ceará, no sentido de verificar se os dados constantes da dita certidão estão ou não de acordo com os livros, folhas ou fichas aí existentes.
Quanto à perícia, que terá necessariamente de ser rogada às justiças brasileiras, por não
se dispor dos meios e dos conhecimentos necessários em Portugal, o que só se consegue no Estado de cujo ordenamento jurídico tal se encontra dependente, propomos, nos termos do art. 154.º, n.º 1, do CPP, os seguintes quesitos:
Por referência à certidão do Cartório FF, localizado na cidade de Paramoti, Estado de Ceará, Brasil, datada de 6/8/2018 e relativa a uma escritura pública de testamento realizada em 10/5/1984:
A. O Cartório FF existe e onde se localiza?
B. O papel utilizado é semelhante ao que se encontra em uso nesse Cartório?
C. Quem era o tabelião titular do mesmo em 6/8/2018?
D. Havia outros funcionários autorizados a emitir tal certidão em 6/8/2018? Se sim, quem
eram?
E. Os selos de autenticidade e carimbos constantes da certidão são verdadeiros, ou seja,
correspondem àqueles que estavam em uso no Cartório no dia 6/8/2018?
F. O funcionário que assinou a certidão trabalhava, em 6/8/2018, no dito Cartório? Se sim, quais as suas funções e que atos notariais estava autorizado a praticar?
G. As testemunhas que assistiram ao ato de outorga da escritura existem ou existiram? É possível saber do seu paradeiro?
H. No dia 10/5/1984, quem era o tabelião do Cartório?
I. Os emolumentos constantes da certidão e que importam num total de 809,93 reais (R$)
são os que, nos termos da lei brasileira, deviam ser os cobrados pela emissão da dita certidão?
2) A resposta do Cartório de Paramoti ao pedido de cooperação internacional oferece-nos muitas dúvidas quanto à sua genuinidade, pelo que, nos termos dos artigos 151.º, ss., do CPP, mais especificamente do art. 154.º, n.º 1, do mesmo diploma, entendemos que é essencial para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa que esse mesmo documento seja sujeita a perícia também rogada às justiças brasileiras, com os seguintes quesitos:
A. O tipo de letra utilizado na resposta ao MP Federal é o mesmo que o constante em anteriores documentos juntos ao processo e do mesmo Cartório?
B. É habitual os Cartórios mudarem de tipo de letra com frequência e neste concreto espaço de tempo?
C. É habitual que um ofício como este não tenha assinatura digital ou chave de validação?
D. É normal, no mesmo documento, que dele não conste o reconhecimento de firma do signatário e respetivo selo?
E. A referência que dele consta quanto ao seu número 32/2020 é correta?
F. O livro indicado no ofício atinente àquele do qual consta a certidão de escritura de testamento errado é o verdadeiro?
G. É habitual, em tal ofício, o carimbo encontrar-se totalmente desfocado?
H. É habitual, num procedimento deste tipo, que o ofício do MP Federal seja de 22/9/2020 e a resposta do Cartório seja de 12/11/2020? É um tempo razoável de resposta, para os padrões brasileiros?
I. É usual, em tais ofícios, o número do procedimento junto ao MP Federal do Brasil no cabeçalho ser cortados das folhas do ofício?
Em consequência dos meios de prova requeridos, não sendo minimamente de esperar que as cartas rogatórias estejam cumpridas até à data agendada para a audiência de discussão e julgamento, requer-se a V. Exa. se digne desmarcá-la e proceder somente ao agendamento após o dito cumprimento.
IV) DA PRESENÇA DO ARGUIDO NA AUDIÊNCIA DE DISCUSÃO E JULGAMENTO
1. O arguido completa 82 (oitenta e dois) anos de idade no dia 16/5/2022, foi já acometido de duas tromboses e, em consequência, tem dificuldades em locomover-se, não sendo aconselhável, devido à circulação do sangue, que faça viagens de avião longas, como sempre seria de São Paulo ao Porto.
2. O arguido é seguido, de entre outros clínicos, pelo Dr. PP, que trabalha na “B... – Clínica Vascular e Endovascular”, localizada em São Paulo e que, por declaração de 21/3/2022, escreve: “Deve evitar voo (avião) por períodos maiores de 3 horas” – cf. declaração médica que se junta como doc. n.º 7.
3. Donde, atenta a provecta idade e as doenças de que o arguido padece, requer-se a V. Exa. que o arguido preste declarações na audiência de discussão e julgamento por meios telemáticos (videoconferência), tanto mais que apenas se encontra com TIR e não há notícia de que possa estar em causa algum dos perigos a que alude o art. 204.º do CPP.
JUNTA: 7 (sete) documentos.
(…)
III.2
Na parte relevante, transcreve-se o despacho recorrido:
(…)
***
Cumpre, neste momento, o Tribunal pronunciar-se sobre as questões suscitadas em sede de contestação pelo arguido (fls. 569 e ss.):
Refere o arguido que, em 1º lugar, se deveria decidir a questão “não penal” subjacente autenticidade / falsidade da certidão da escritura pública de testamento aberto por óbito de BB e da autenticidade e veracidade das informações constantes da resposta do mesmo Cartório de Paramoti, Ceará), o que deveria determinar a suspensão do processo.
Ora, salvo sempre melhor entendimento, atento o objeto dos autos – que se encontra fixado e definido pela acusação deduzida – e tendo presente o princípio consagrado na nossa lei processual penal da suficiência do processo penal (cfr. art. 7º do CPP), será nestes autos que se deverá produzir prova sobre tal matéria, sendo que o arguido se mostra acusado, precisamente, de dois crimes de falsificação. Pelo que, será neste processo, onde aliás se mostra alegada tal matéria, que deverá ser produzida prova que leve à conclusão de que o arguido usou de documento falso ou, pelo contrário, de que nunca usou tal documento ou que o mesmo não era falso ou, sendo falso, o arguido desconhecia tal falsidade. Pelo que a falsidade ou autenticidade do documento em causa deverá ser aqui discutida e apreciada.
Vem igualmente o arguido requerer que se oficie às instituições bancárias, solicitando que venham descrever os procedimentos internos em cada uma delas adotado no que se refere ao levantamento de verbas.
Ora, não vislumbramos em que medida tal solicitação possa contribuir para a descoberta da verdade material ou para a boa decisão da causa, nem sequer em prol da defesa do arguido se compreende o ora solicitado, atento, e mais uma vez se diga, o objeto fixado na acusação.
Quanto à perícia requerida:
Antes do mais, oficie ao Cartório da Póvoa de Varzim, melhor identificado a fls. 10, solicitando que informe os autos se, aquando da realização da escritura de fls. 11 e ss., foi apresentada cópia certificada do documento de fls. 14 e ss.
Mais averigue a Secção, designadamente através dos meios online disponíveis, se ainda existe o Cartório FF, do Primeiro Tabelionato de Notas, situado na Rua ..., centro, cidade e comarca de Paramoti, Estado do Ceará, Brasil.
Em caso afirmativo, deverá ser diligenciado o seu contacto telefónico e email, bem como o nome do responsável de tal Cartório.
Quanto à presença do arguido em sede de audiência de discussão e julgamento:
Sem prejuízo de o arguido poder requerer o julgamento na ausência, considerando a idade do mesmo (83 anos de idade) e o facto de residir no Brasil, e manifestando o arguido vontade em estar presente, entendo que o mesmo, a título excecional e tendo presentes as concretas especificidades, poderá ser ouvido por webex, devendo para o efeito fornecer, oportunamente, um email e um contacto telefónico, devendo estar ainda munido do seu passaporte ou cartão de cidadão aquando da sua audição.
Notifique.
(…)

III.3
Da suspensão do processo
Dispõe o art.º 7.º do C.P.P., sob a epígrafe Suficiência do processo penal:
1 – O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
2 – Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.
3 – A suspensão pode ser requerida, após a acusação ou o requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, ou ser ordenada oficiosamente pelo tribunal. A suspensão não pode, porém, prejudicar a realização de diligências urgentes de prova.
4 – O tribunal marca o prazo da suspensão, que pode ser prorrogado até um ano se a demora na decisão não for imputável ao assistente ou ao arguido. O Ministério Público pode sempre intervir no processo não penal para promover o seu rápido andamento e informar o tribunal penal. Esgotado o prazo sem que a questão prejudicial tenha sido resolvida, ou se a ação não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão é decidida no processo penal.
*
Consagra o preceito transcrito o princípio da suficiência do processo penal. De forma abreviada e desvendando a principal ideia-força incorporada em tal princípio, indo para além do truísmo, poderá dizer-se que o processo penal é, em princípio, o lugar e momento adequados ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária à decisão a tomar [vd. Figueiredo Dias, Processo Penal I, pág. 163. Cfr., também, Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 76 e 77].
Compreende-se que assim seja ou, de outra forma, e como identifica o Prof. Figueiredo Dias [op. cit. pág. 164 e ss.] “(…) se não se contivesse dentro dos mais apertados limites a possibilidade de o processo penal ser sustido ou interrompido pelo surgimento de uma questão penal ou não penal suscetível de cognição judicial autónoma, pôr-se-iam em risco as exigências, compreensíveis e relevantíssimas, de concentração processual ou de continuidade do processo penal, permitindo-se, assim, que, deste modo, se levantassem indiretamente obstáculos ao exercício da ação penal. Assim, o princípio deve ser defendido na medida do possível, não obstante ser certo que o relevo, a complexidade ou a especialidade de que se revestem certas questões prejudiciais podem postular insistentemente que, nestes caos, o processo penal se suspenda e a questão seja devolvida ao tribunal normalmente competente, a fim de aí ser decidida”.
Da literalidade do preceito transcrito resulta, então, que (i) o princípio geral nesta matéria é o da suficiência do processo penal, (ii) constituindo a suspensão do processo para decisão de questão prejudicial uma exceção (n.º 2) e uma exceção apertada, exigente nos seus pressupostos, como desde logo resulta do poder/dever de fixação de prazo para paragem do processo, tendo em vista a decisão da questão prejudicial (n.º 4, 1.ª parte) e, mais do que isso, (iii) o retorno ao principio geral da suficiência se o prazo fixado não for cumprido (n.º 4, 2.ª parte) [cfr. decisão do Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.06.2015, proc. n.º 48/11.0IDPRT-A.L1-3, in www.jurisprudencia.pt].
Em resumo, “O n.º 1 [do art.º 7.º] estabelece os pilares estruturais em que assenta o nosso processo penal no que se reporta à resolução de questões que interessem à decisão da causa. Firmou-se um princípio geral no sentido de que o processo penal tem que ser autossuficiente. Ou seja, o mesmo deverá por si só, no âmbito do seu ritualismo próprio e das valorações que lhe são inerentes, ultrapassar e dirimir todas as questões que são condições necessárias para que o processo siga o seu curso natural e que surjam no decurso das diversas fases processuais. O processo penal deve ser promovido independentemente de qualquer outro. Quer processos penais, quer processos não penais (v.g. do foro administrativo, fiscal, comercial, laboral). Só assim é possível salvaguardar uma tramitação processual contínua.” [Tiago Caiado Milheiro, em anotação ao art.º 7.º, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 133 e 134].
Em busca do fundamento para a imposição de tal princípio, dir-se-á que o legislador constitucional reconhece (cfr. art.º 32.º, n.º 2, da C.R.P.) que o retardamento, em processo penal, não só é, em si mesmo, fator de descredibilização do sistema e degradativo da imagem da Justiça mas, também, traz em si o potencial necessário para, nas palavras dos Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção da inocência conquanto a sua persistência no tempo protela a suspeição por vezes associada à condição de arguido e as limitações à liberdade pessoal decorrentes do respetivo estatuto coativo, mesmo no caso de mera sujeição a termo de identidade e residência.
Sendo o exercício célere e efetivo da ação penal um interesse relevante do Estado, surgindo este como representante da comunidade em defesa e no interesse desta e no intuito de repor a paz social abalada pela prática de um crime (mesmo que os interesses violados através da sua comissão possam ter um referencial individual), a concretização daquele interesse, necessariamente, irá coexistir com a concessão e respeito pelas garantias de defesa do arguido. A tensão detetável transversalmente em todo o processo penal, entre a celeridade e eficácia da justiça penal e o respeito pelas garantias do sujeito visado pelo procedimento, será contida e harmonizada através de instrumentos de concordância prática e de ponderação dos interesses em conflito em cada momento. No caso que nos ocupa, o papel aglutinador decorrente da afirmada suficiência do processo penal (resolvendo nele todas as questões que interessem à decisão da causa, mesmo as heterogéneas à sua esfera típica de ciência e intervenção) e a celeridade que a concentração proporciona pode, justificadamente, ser derrogado, permitindo abertura à intervenção de outras jurisdições ou competências especializadas, em ordem a possibilitar uma melhor decisão ou a evitar contradição de julgados, ainda que com eventual prejuízo da sobredita celeridade embora, retenha-se, a necessidade de prevenir decisões contraditórias não figure como razão determinante para a devolução, ao tribunal materialmente competente, do julgamento da questão tida por prejudicial.
Assim e como o art.º 7.º do C.P.P. espelha, não se admite, prima facie, uma ampla possibilidade de suspensão do processo criminal para com ela permitir a decisão de questões conexas com este, mas autónomas, sob pena de a necessária eficácia ficar definitivamente comprometida, ante uma miríade de questões assim caraterizáveis, a decidir em foro próprio, com correspondentes compassos sucessivos de espera no julgamento do feito criminal, ao arrepio, diretamente, do princípio da concentração e da continuidade (art.º 328.º do C.P.P.) e, indiretamente, dos princípios da oralidade e da imediação (v.g. art.ºs 96.º, n.º 1, 129.º, 298.º, 302.º, n.ºs 2 a 5, 328.º-A, 341.º, 343.º, 345.º, n.ºs 1 a 3, 346.º, 347.º, 348.º, 355.º, 360.º e 361.º, n.º 1 do C.P.P.) ao permitir que elementos relevantes do pedaço de vida sujeito a julgamento possam ser apreciados e decididos, de forma compartimentada, por ente diverso daquele que irá prolatar a decisão final em processo criminal (aqui em claro desvio ao princípio da imediação em sentido subjetivo ou formal).
Mais do que a afirmação do regime regra da suficiência, o processo penal exerce, inclusivamente, capacidade de atração de outras matérias que, substancialmente, são próprias de outras valências, em refração da manutenção da competência própria ou concorrente de outros poderes decisórios, o que sucede, designadamente, com o princípio da adesão, com expressão no art.º 71.º do C.P.P., reservando ao processo penal o conhecimento da pretensão indemnizatória para efetivação da responsabilidade civil extracontratual, própria dos juízos de competência cível, ainda que com a válvula de escape prevenida nos art.ºs 72.º e 82.º, n.º 3 do C.P.P.
De todo o exposto, ensaiando algumas conclusões, resulta que:
(i) O processo penal comum é, em regra, autossuficiente para a resolução de todas as questões que interessem à decisão da causa, incluindo as de natureza não penal conexas que pode e, em princípio, deve conhecer e decidir incidenter tantum (art.º 7.º, n.º 1 do C.P.P.), ao contrário, por exemplo, do que sucede no processo penal tributário (cfr. art.º 47.º do R.G.I.T.).
(ii) Excecionalmente e perante a existência de uma causa prejudicial de natureza não penal, essencial para aquilatar do preenchimento dos elementos típicos do crime por participar no silogismo subjacente, o legislador optou por um regime de discricionariedade vinculada, com assento no n.º 2 do art.º 7.º do C.P.P., admitindo que o tribunal criminal possa suspender o respetivo processo para que essa questão autónoma seja apreciada no e pelo tribunal e jurisdição que seriam materialmente competentes, se aquela não puder ser convenientemente resolvida no processo penal. Ainda assim, se a questão considerada prejudicial não tiver sido resolvida no prazo assinalado para o efeito, ou se a ação não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão será repristinada e decidida no processo penal (nº 4).
Embora o legislador, no n.º 2 do art.º 7.º, tenha usado a expressão «pode o tribunal suspender», o que à partida apontaria para um critério largo de discricionariedade do decisor, aquela é, na realidade, vinculada à afirmação, no caso, da necessidade e conveniência na devolução: - “A “necessidade” reporta-se aos elementos do tipo legal de crime (“Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário …”) e pressupõe a indispensabilidade de conhecimento da questão dita prejudicial em termos tais que a questão penal não poderá sequer ser decidida sem a prévia decisão da questão prejudicial; - A “conveniência” deverá resultar de razões de natureza subjetiva ou processual, como seja a decisão por um tribunal de competência específica ou a utilização de uma determinada tramitação ou forma processual dificilmente compatível com a prevista para o processo” penal [vd. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.05.2012, proc. n.º 387/08.7TATMR.C1, Rel. Jorge Jacob, acedido em www.dgsi.pt].
Ainda segundo o mesmo aresto, para além da necessidade e conveniência assinaladas, “(…) a devolução de questão prejudicial para tribunal não penal exige ainda a sua autonomia, e a sua anterioridade relativamente à questão prejudicada, isto é, a questão prejudicial deve poder ser tratada como questão juridicamente autónoma, suscetível de constituir objeto de um processo específico e deve ser pré-existente relativamente ao evento hipoteticamente consubstanciador da responsabilidade criminal (pré-existente do ponto de vista fáctico; a natureza prévia do ponto de vista jurídico, aquilo a que a doutrina chama a antecedência lógico-jurídica, está abrangida na necessidade do conhecimento da questão prévia). Tratando-se de facto contemporâneo ou posterior desse evento, mas com relevo para a possibilidade de responsabilização criminal ou de prossecução processual, deverá ser decidido no processo penal”. [cfr., no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.02.2017, proc. n.º 317/07.3JACBR-C.C1, Rel. Olga Maurício, in www.dgsi.pt].
Perante uma questão considerada prejudicial – na asserção de que a sua resolução constitui um pressuposto jurídico ou condicionante do conhecimento e decisão da questão principal – o nosso sistema - por contraposição ao da devolução obrigatória ou ao do conhecimento obrigatório – preconiza, como vimos, uma terceira via, que o art.º 7.º, n.º 2, do C.P.P. evidencia, denominada de prejudicialidade relativamente devolutiva [vd. Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, 2.ª edição, Oiro do dia/Porto, pág. 70], suficiência discricionária (Castanheira Neves) ou de devolução facultativa (Figueiredo Dias) que coloca nas mãos do julgador penal, em função do relevo, da complexidade ou a especialidade de que se reveste a questão prejudicial, a decisão de suspender o processo, com devolução ao tribunal normalmente competente para a resolução da questão parcelar, desde que reunidas as caraterísticas que apontamos supra e às quais acrescentaremos que a resolução da dita questão prejudicial deverá ser necessária para aferir ulteriormente da existência dos elementos constitutivos da infração e de causas de exclusão da ilicitude e da culpa (Quando, para se conhecer da existência de um crime (…)), arredando, pois, segundo alguma doutrina, todas as circunstâncias que não colidam com aquela existência, como sejam as circunstâncias comuns ou modificativas, agravantes ou atenuantes, gerais ou especiais, em relação às quais vigorará, em absoluto, o princípio da suficiência do processo penal.
Retendo estes elementos e avaliando o caso concreto.
Afirma o recorrente, como fator determinante de dissensão face ao decidido, que “(…) é nossa convicção que a resposta a dar ao problema de saber se o documento que está na base de tudo – o testamento de BB – é verdadeiro ou não, deve ser remetido para um tribunal cível. E isto porque se trata de um tribunal de competência especializada na matéria fulcral sob disputa e em que o magistrado judicial ao qual a questão prejudicial vier a ser distribuída está em melhores condições técnico-jurídicas para o dilucidar, exactamente fruto da especialização e das suas vantagens.”.
Nos termos da acusação que delimita o objeto do processo o recorrente vem acusado, além do mais:
“(…) de modo não apurado, o arguido AA, tomou conhecimento do falecimento de BB e da ausência herdeiros e formulou o propósito de se apropriar de todos os bens que integravam a sua herança, nomeadamente dos saldos bancários titulados pelo de cujus no Banco 1.... Para o efeito, por si ou por interposta pessoa, fabricou um documento que aparentava ser um testamento outorgado por BB, a 10/05/1984, no Cartório FF, Estado de Ceará, Brasil, perante o Tabelião FF, instituindo seu universal herdeiro AA e legatários QQ, RR, SS e TT. Servindo-se do documento assim criado, por intermédio do mandatário que para o efeito constituiu, outorgou escritura de habilitação de herdeiros, no dia 22 de Agosto de 2018, no Cartório Notarial GG, perante a notária do mesmo, GG. Nesse ato, o arguido, por intermédio do seu mandatário, declarou que «no dia vinte e três de Abril de dois mil e dezoito, na freguesia ... e ..., concelho de Aveiro, faleceu BB, natural da freguesia ..., concelho de Estarreja, que era residente habitualmente na Rua ..., ..., na ...; O autor da Herança era solteiro e maior; e não deixou descendentes, nem ascendentes; O mesmo deixou testamento público, outorgado em dez de Maio de mil novecentos e oitenta e quatro, no Cartório FF, do Primeiro Tabelionato de Notas, situado na Rua ..., centro, cidade e comarca de Paramoti, Estado do Ceará, Brasil, no qual instituiu herdeiro de todos os seus bens, existentes no Brasil, Portugal, Espanha ou qualquer outro país, o referido AA; No testamento, o apelido ... foi redigido como ...; Que o autor da herança deixou assim como único e universal herdeiro, o identificado AA; No mesmo testamento, o testador impôs as seguintes obrigações: a) De dar a sua prima QQ, a quantia de cinquenta mil dólares; QQ é já falecida, tendo deixado como únicos herdeiros, por direito de representação (uma vez que faleceu antes do testador), dois filhos: RR […]; e UU […]; b) De entregar cinquenta mil dólares a sua prima, já referida RR; c) De entregar a seu afilhado SS […] a quantia de cem mil dólares; d) E a TT […] a quantia de cinquenta mil dólares.» .
A final, é-lhe imputada a prática, em concurso efetivo – e para além de um crime de burla qualificada na forma tentada - de dois crimes de falsificação de documento agravados, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 2, als. a) d) e e) e 3 do C.P..
Ora, retendo a prevalência do princípio estruturante da suficiência do processo penal e a excecionalidade da possibilidade de desaforamento de questões prejudiciais e considerando os requisitos expressos no n.º 2 do art.º 7.º do C.P.P., entendemos não estar verificado o requisito material da presença de uma questão não penal de que dependa o conhecimento da existência do crime.
Quanto a nós, e salvo o devido respeito, a questão da falsidade do documento (ou a sua autenticidade) é, substancialmente, penal (sendo elemento objetivo do tipo, quando imputada ao arguido, na respetiva ação, a autoria material da contrafação) ou, dito de outra forma, não será, pelo menos, exclusivamente civil.
Na ação proposta ou a propor no foro civil pelo recorrente – e onde a questão dita prejudicial teria que assumir autonomia e constituir o verdadeiro objeto da mesma – este fundará a sua causa de pedir na efetiva qualidade de herdeiro (v.g. petição de herança, condenação na entrega dos montantes depositados, entrega de documentos), surgindo o testamento, ad substantiam, como evidência da sua existência enquanto ato de última disposição de vontade e meio de prova da qualidade de herdeiro testamentário, ainda que a autenticidade desse documento possa ser discutida, nos próprios autos ou a título incidental (falsidade) ou, ainda, que se possa arguir, caso exista, a sua nulidade ou anulabilidade, essencialmente por parte dos RR. contra quem o recorrente possa vir a dirigir um pedido assente naquela qualidade de herdeiro.
Nesta medida, a questão da autenticidade do testamento não surgiria, imediata e autonomamente, como objeto da ação, mas, mediatamente, como pressuposto e prova de determinado direito ou qualidade de que o recorrente se arrogue.
Ainda que o recorrente propusesse ação de simples apreciação positiva quanto ao reconhecimento da genuinidade do documento, esse pedido teria que ser dirigido contra alguém (no caso apenas se informa a pendência de ação cível contra o Banco 1...) o que colocaria escolhos quanto ao valor de caso julgado da respetiva decisão nos presentes autos, dada a ausência de participação do Ministério Público na ação.
Assim, o carácter autónomo e exclusivamente extrapenal da questão não está, quanto a nós, demonstrado.
Pelo contrário, no foro criminal, a falsidade do documento em causa não se apresenta como prejudicial e de natureza exclusivamente civil, impeditiva ou prévia à aferição da existência do crime de falsificação, mas é, ela própria, elemento típico a apurar e, geneticamente, também questão penal, naturalmente englobada na suficiência do processo penal.
São normalmente referidas na doutrina como questões não penais, eventualmente a decidir a título prejudicial, as de natureza civil que envolvam a indefinição da propriedade nos crimes contra este bem jurídico (art.º 203.º e 205.º do C.P., ainda que a indefinição, a manter-se, produza naturais efeitos quanto aos elementos subjetivos do tipo e convocando o funcionamento do princípio in dubio pro reo), o estado das pessoas, designadamente quanto à filiação e ao casamento no caso dos crimes de infanticídio e bigamia (art.ºs 136.º e 247.º do C.P. se bem que, em manifestação da suficiência do processo penal, o tribunal tenha atribuído ao arguido a qualidade de pai, não constante do registo civil da vítima, em crime de abuso sexual – vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2007, proc. n.º 1136/2007, Rel. Armindo Monteiro); o apuramento de questões envolvendo a jurisdição administrativa (o enquadramento na categoria de funcionário nos crimes de mão própria, art.ºs 372.º a 385.º do C.P., ou questões de licenciamento e urbanismo), ou de direito do trabalho (existência de relação de trabalho e violação de normas de segurança no caso dos crimes de maus tratos ou violação de regras de segurança – art.ºs 152.º-A e 152.º-B do C.P.); o reconhecimento judicial da insolvência no caso de insolvência dolosa (art.º 227.º do C.P.) ou, como vimos supra, a questão da legalidade do tributo e das liquidações nos crimes fiscais (art.ºs 88.º, 103.º e 105.º do R.G.I.T.).
Pelo contrário, são caraterizadas como questões penais que podem surgir a título prejudicial no direito civil (precisamente a hipótese inversa à aqui discutida) a existência de incapacidade sucessória por indignidade e a deserdação (art.ºs 2034.º e 2166.º, n.º 1, als. a) e b) do C.C.) que pressupõem a prática de ilícitos criminais (e condenação, naturalmente no foro próprio) contra o autor da sucessão, cônjuge, ascendente ou descendente, adotante ou adotado ou a falsificação de documento com que se pretenda fundar a ação, caso em que se aceita a suspensão da instância cível para a aferição da prática do correspondente crime de falsificação.
Adensando o poder de atração da questão da falsificação de documento para a esfera gravitacional do processo penal refere-se, ainda, que mesmo quando a questão da autenticidade de determinado documento não constitua o núcleo central da discussão nem se refira a nenhum elemento típico da imputação, o Tribunal (criminal) pode, mesmo oficiosamente, declarar no dispositivo da sentença, ainda que absolutória, que determinado documento junto aos autos é falso, produzindo-se, se necessário, prova nesse sentido e, em caso de dúvida, dever-se-á extrair certidão para envio ao Ministério Público para efeitos de investigação, tudo conforme dispõe o art.º 170.º do C.P.P.. Neste preceito a determinação da falsidade ou a suspeita sobre a mesma assume, naturalmente, um interesse extra processual, para abertura de investigação subsequente quanto aos autores ou utilizadores do documento forjado, já que – como no caso sucede – se o procedimento versar sobre o crime de falsificação, então a existência de documento falsificado é, em si mesmo, integrante do objeto do processo. A possibilidade de, em determinado procedimento criminal, com reflexos extra processuais e sem arrimo nos factos em discussão, poder declarar-se, em dispositivo, a falsidade de determinado documento apresentado como meio de prova é, quanto a nós, denotativa da premência do bem jurídico protegido pela incriminação e do interesse comunitário na promoção do procedimento quando é conhecido o caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal e a ultima ratio da sua intervenção
Inserido no Capítulo II, do Título IV, da Parte Especial do Cód. Penal, o crime de falsificação de documento configura-se, de acordo com a formulação legislativa, como um crime contra valores e interesses da vida em sociedade.
De acordo com uma primeira formulação, dir-se-á que, no crime de falsificação de documento, a lei penal pretende proteger o valor probatório dos documentos de forma a, reflexamente, se protegerem igualmente os interesses cuja existência só é possível certificar através desses meios de prova.
Assim, ao proteger o valor probatório dos documentos acautela-se o normal desenrolar da vida em sociedade, garantindo a confiança mútua nas relações sociais e segurança no tráfico jurídico, pelo que, quer quanto aos documentos públicos, quer quanto aos particulares, incumbe ao Estado assegurar a sua genuinidade como forma de garantia da própria estabilidade das relações sociais.
Como refere Marques Borges [Dos crimes de falsificação de documentos, moedas, pesos e medidas in Notas ao Código Penal (artigos 228º a 253º), ed. Rei dos Livros, 1984, pág. 28.] "o documento é uma «voz morta» que prolonga a vontade e o pensamento do homem para além da sua vida. É essa confiança na prova documental que tem de ser tutelada pelo Estado para que os documentos possam merecer fé pública". Se o interesse primordial na tutela jurídico-penal em análise pode ser reconduzido à necessidade de preservação da fé pública dos documentos, como fator imprescindível à manutenção da paz e tranquilidade sociais, também não se afastam do âmbito de proteção das normas contidas nos art.ºs 255.º a 271.º do C.P. os interesses individuais, tenham ou não natureza patrimonial, eventualmente lesados com a atuação subsumível às aludidas normas incriminadoras.
O carácter do interesse em causa, erigido à categoria de bem jurídico-penal subjacente à incriminação, a sua natureza pública e o proveito comunitário e Estadual na persecução criminal dos infratores não se compatibilizariam com a pretendida compartimentação da discussão preconizada pelo recorrente, atribuindo aos juízos de competência especializada cível a decisão sobre a questão da existência/genuinidade do testamento, dando flanco à discussão em sede não penal de factualidade integrante de elemento típico, em procedimento de natureza civil sujeito às regras do ónus da prova, ao dispositivo e substanciação das partes na definição do litígio e sua conformação e onde, aliás (ao contrário do que sucede em processo penal e, assim, oferecendo menos garantias) o recorrente, no papel de Autor ou de Réu, poderia ser convocado a prestar depoimento ou declarações de parte e nelas a responder com verdade sobre factos com evidente ressonância criminal.
Destarte e considerando todo o exposto, entendemos que a questão da falsificação/genuinidade do documento, sobre a qual se imputa a ação do agente através da sua falsificação material ou utilização ulterior, é questão própria, de natureza penal, integrante do objeto do processo e a decidir neste, sem caráter de prejudicialidade, vigorando, in casu o princípio da suficiência do processo penal, não se cumprindo o critério material determinante da possibilidade de suspensão consistente no carácter não penal da questão a submeter a ente jurisdicional externo ao processo.
Ainda que assim não fosse e se reconhecesse à questão dita prejudicial uma natureza híbrida ou concorrente e pudesse afirmar-se que, no caso vertente, aquela, pelos seus contornos específicos, assumia (pelo menos também) uma natureza não penal, então e quanto a nós, não estaria presente o segundo requisito previsto no art.º 7.º, n.º 2 do C.P.P.: - o da conveniência.
Efetivamente, para além de dever tratar-se de questão não penal (o que não se concede, pelo menos em exclusivo) a suspensão depende, cumulativamente, do facto de tal questão, pela sua complexidade, alto grau de especialização ou procedimento decisório, não poder ser decidida, com a mesma proficiência, em processo penal.
Ora e quanto à questão da genuinidade dos documentos, o processo penal afirma-se na vanguarda quanto à existência de instrumentos capacitantes para a decisão, acrescentando-se as palavras do Prof. Figueiredo Dias ao referir que "a prova penal é mais exigente - mas por isso também mais segura - do que a requerida nos processos não penais" [Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 107, pág. 126].
Para além de o resultado do procedimento, em sede cível, poder ficar ao critério da atuação das partes, atendendo à regra do ónus da prova que ali vigora e ao papel dos sujeitos na conformação do litígio, ou da desadequação das regras de prestação de depoimento – no confronto com as garantias do processo penal, que poderão ir contra ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare, - não raras vezes, quando colocada a questão da falsidade de um documento, ou a impugnação da letra e da assinatura, o julgador cível recorre aos serviços periciais do Laboratório de Polícia Científica, unidade da Polícia Judiciária com carácter independente e que está vocacionada para a investigação criminal (que na especialidade forense de documentos realiza exames periciais para determinação da autenticidade ou falsidade de documentos) e para a qual deve alocar os seus recursos. Ou seja, não se antevê, mesmo que laborássemos, apenas, em critérios de mera conveniência, que a ação cível, o processo civil e o respetivo julgador fossem mais especializados ou céleres na dilucidação da questão, quando se recorre aos mesmos meios periciais cuja existência, em primeira linha, decorre de necessidades investigatórias do foro criminal.
Ademais e tendo o recorrente, à sua disposição, meios equivalentes de investigação e prova e gozando de um estatuto processual mais garantístico, não se lobrigam razões e muito menos de excecionalidade da questão para arredar o princípio geral da suficiência do processo penal ou que este – e os seus meios de prova – não acautelem um processo equitativo e justo.
Nesta parte, e no confronto de eventuais vantagens que o recorrente atribui ao processo civil e à jurisdição cível, convocamos as palavras de José António Barreiros [Processo Penal I, Almedina, pág. 170 e 171] que se mantém atuais, não obstante a evolução entretanto ocorrida no processo penal e no processo civil mas que se mantém distintos naquilo que referimos e essencialmente quanto ao papel conformador das partes na definição do processo, na sua verdade e nos efeitos preclusivos da inação: - “(…) ambos os ramos de Direito têm dissemelhanças visíveis, as quais assentam na peculiaridade que o Direito Processual Penal encontra, devido não só à importância e gravidade da questão penal, como à sua natural complexidade.
Aliás, como sublinha Castanheira Neves, “a diversidade normativa e estrutural que distingue os processos criminal e civil é um corolário jurídico das distintas intencionalidades que um e outro realizam”.
Visando a prossecução do interesse público, através do exercício do ius puniendi, o processo penal é mais complexo, pois encara uma questão de gravidade, que é a própria salvaguarda da questão comunitária.
A importância da questão penal arranca, evidentemente, não só da relevância dos efeitos jurídicos concretos emergentes da decisão final – naquilo que pode afetar o direito à liberdade individual – mas inclusivamente da circunstância de ele levar por suposto a efetivação explícita das cominações tipificadas para o desrespeito pelos valores tidos por essenciais à convivência social.
Dessa importância, que deriva, aliás, da circunstância de no processo penal se visar a prossecução de um interesse público, derivam regras próprias quanto a este tipo de processo, tanto ao nível probatório em geral, como quanto ao nível da própria fase de julgamento (…).
Em matéria probatória, subjaz aqui a inexistência de auto-responsabilização probatória das partes uma ideia pela qual, devido à particular relevância da delimitação da questão fáctica, ela não poderá ser deixada ao cuidado e diligência das partes, donde, não só são conferidos poderes reforçados ao juiz, para reconstituição dos factos e indagação da verdade material (ultra alegata et probata), como inclusivamente se não desarma o arguido pela cominação de sanções probatórias quanto à sua conduta processual (…).
Isto, sem esquecer que o objetivo da prossecução da verdade material, implica a minimização daqueles fatores extrínsecos que possam implicar o surgimento de uma mera aparência factual derivada da conduta inerte das partes. (…)
Predominância a todos os meios que facultem o apuramento da verdade material, com implantação consequente da regra da liberdade de produção probatória, eis, por seu turno, outra caraterística que distingue o processo penal do seu homólogo civil, no qual os meios de prova admitidos estão legalmente tipificados, taxando-se também o respetivo valor dos recursos probatórios (…)
Assim, considera-se acertada a decisão recorrida, na parte em que, ao abrigo do princípio da suficiência do processo penal, não deferiu a pretendida suspensão do processo.
A esta mesma conclusão contrapõe o recorrente a afirmação de que, assim se decidindo, “Quanto à não aceitação da existência de uma verdadeira questão prejudicial não penal em processo criminal (art. 7.º do CPP), numa hipótese em que, s.m.o., é claro que a mesma existe, está a julgadora a coarctar, de modo desproporcionado, o direito de defesa do arguido em processo penal, por não consentir na efectivação dos meios de prova que deveria, por forma a atingir a verdade e a boa decisão da causa (a que alude o art. 340.º, n.º 1, do CPP), vulnerando, em inconstitucionalidade material, o art. 32.º, n.º 1, conjugado como art. 18.º, n.º 2, ambos da CRP (…)”.
Discordamos.
No caso, não pugna o recorrente pela inconstitucionalidade de norma aplicada ou desaplicada ou da dimensão interpretativa contrária a preceito constitucional. O que se discute é o mérito da decisão (a decisão de não suspensão) sendo certo que compete ao juiz definir, no caso, se estão ou não reunidos os pressupostos a que alude o art.º 7.º, n.º 2 do C.P.P., sem que daqui derive qualquer restrição das garantias de defesa do arguido que se mantém incólumes no processo penal, saindo até reforçadas, considerando o seu pendor mais garantístico.
O objeto da apreciação da constitucionalidade afere-se perante determinada norma e não ante o resultado de uma decisão judicial. O juízo pressuposto incide apenas sobre a norma aplicada ou não-aplicada no processo. Ora, no caso, não cumpre tal finalidade e procedimento – arguição de inconstitucionalidade – a discordância manifestada com o resultado líquido de uma decisão por esta, alegadamente, violar princípios constitucionais, sem questionar e pedir a desaplicação da norma (ou aplicação com uma determinada interpretação) que supostamente viola a Constituição. Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2023 [proc. n.º 8013/19.2T9LSB.L1.S1, em www.dgsi.pt] A decisão judicial em si, enquanto tal, não é suscetível de arguição de inconstitucionalidade, reportando-se a declaração de inconstitucionalidade a normas – e suas interpretações – e não a decisões judiciais.
Efetivamente e aqui, embora se invoque determinada interpretação do art.º 7.º do C.P.P. que, ao olhar do recorrente, seria inconstitucional, a sua crítica não reveste adequada dimensão normativa, detendo-se no caso concreto e na hipótese por si sufragada de que “deveria deferir-se” o pretendido, constituindo, nesta medida, mais um “juízo-sobre-o-caso” do que um “juízo-sobre-uma-norma” (na feliz expressão do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 69/2020, proc. n.º 1086/2019, Rel. Teles Pereira, in www.tribunalconstitucional.pt) não constituindo, pois, objeto idóneo para a pretendida fiscalização da constitucionalidade.
Em qualquer dos casos a simples aplicação do art.º 7.º do C.P.P. e nos moldes justificados na decisão recorrida e aqui escrutinados e confirmados, em caso algum põe em crise as garantias de defesa do arguido e os preceitos constitucionais alinhados, não oferecendo o processo penal ao arguido garantias diversas ou menos extensas (pelo contrário) das que poderia obter, enquanto parte, no âmbito da jusrisdição civil.
*
III.4
Da nulidade do despacho recorrido
Neste segmento do objeto do recurso afirma o recorrente que:
“(…) vem o presente recurso interposto da parte do despacho que indeferiu que se oficiassem as demais instituições bancárias em que a certidão foi apresentada e em que os bancos disponibilizaram os respectivos saldos, de modo a saber como ocorreu essa transacção, que procedimentos foram adoptados e se este caso em concreto teve algo de diferente de outros em que a mesma questão se coloca.
Concluímos, pois, no pedido: Na medida em que as instituições bancárias Banco 2..., Banco 3... e Banco 4... aceitaram a escritura de habilitação de herdeiros e a certidão de testamento, requer-se a V. Exa. se digne oficiar estas instituições para virem aos autos descrever o processo de levantamento de verbas em contas de depósito tituladas por BB pelo mandatário judicial do arguido, para o efeito munido de procuração com poderes especiais, e para indicarem quem, em cada banco, tratou de cada um desses procedimentos, arrolando-os como testemunhas.
(…) A decisão de não julgar relevante a diligência requerida configura uma clara violação do art. 205.º da CRP e do art. 97.º, em especial do seu n.º 5, este do CPP, porquanto a vaguidade da fundamentação é equivalente à sua inexistência, pelo que, em nossa perspectiva – por considerarmos o art. 379.º, aqui n.º 1, al. c), do CPP aplicável não só às decisões finais, mas também aos despachos com conteúdo decisório (numa hermenêutica que deve ser teleologicamente fundada e não apenas literal ou verdadeiramente positivista, como muitos defendem), como este, o que bem sabemos ser concepção que traz a jurisprudência dividida –, existe esta mesma nulidade, invocável em sede de recurso (n.º 2 do inciso) e que expressamente se invoca. É essencial perceber porque é que apenas uma instituição bancária – Banco 1..., S.A. –, ao contrário de todas as demais, se recusou a aceitar a documentação que lhe foi apresentada para desbloquear as contas bancárias nele detidas pelo de cujus, uma vez que só assim se entenderão os mecanismos de controlo interno dos bancos, o que melhor habilitará o tribunal a saber em que pontos específicos se detectou algum tipo de desconformidade entre o pedido do representante legal do cliente e o seu indeferimento (…)”
Apreciando.
E consabido que a fundamentação – e o correspondente dever de fundamentar – são pressupostos dos atos decisórios, quer se trate de sentenças, quer se cuide de despachos que não sejam de mero expediente, entendendo-se estes últimos os que, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destinam a regular o andamento do processo, dando cumprimento aos seus trâmites e sem envolver uma apreciação concreta que se projete nos direitos e interesses dos sujeitos processuais.
A imposição do dever de fundamentação encontra acolhimento no art.º 205.º, n.º 1 da C.R.P., sendo que o artigo 97.º, n.º 5, do C.P.P. prescreve que “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
A concretização do dever de fundamentação, por seu turno, cumpre dois objetivos. Um de ordem endoprocessual, impondo ao juiz um compasso de verificação e controlo crítico da lógica e legalidade da sua própria decisão, permitindo ulteriormente às partes – face à decisão assim proferida - exercitar o direito ao recurso e facilitando, ao Tribunal ad quem, a construção de um juízo concordante ou divergente no seu juízo de sindicância.
O outro, já de ordem extraprocessual, possibilita o controlo externo e geral sobre a fundamentação lógica e jurídica da decisão visando, nas palavras de Michele Taruffo, garantir a transparência do processo e da decisão [vd. Note sulla garantizia constituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV (1979), pág. 29 e ss.].
Também o art.º 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, ao proclamar que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo pressupõe, quanto à equitatividade, um efetivo direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição da discriminação e a obrigação de diferenciação que o princípio da igualdade, decorrente dos art.ºs 13.º da C.R.P. e 14.º da C.E.D.H. também impõem.
A jurisprudência do T.E.D.H. valoriza o direito à motivação, como decorrência do direito a um processo justo e equitativo que o art.º 6.º da C.E.D.H. afirma, transportando para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a função estadual punitiva.
Revertendo ao caso em apreço e perante o requerimento a que acima se aludiu a Mm. ª Juíza, no despacho recorrido e na parte impugnada, afirmou:
Vem igualmente o arguido requerer que se oficie às instituições bancárias, solicitando que venham descrever os procedimentos internos em cada uma delas adotado no que se refere ao levantamento de verbas.
Ora, não vislumbramos em que medida tal solicitação possa contribuir para a descoberta da verdade material ou para a boa decisão da causa, nem sequer em prol da defesa do arguido se compreende o ora solicitado, atento, e mais uma vez se diga, o objeto fixado na acusação.”
A final e ante o exposto, a Sra. Juíza não determina a realização da diligência pretendida.
Sendo pacífico não estarmos perante um despacho de mero expediente, a concretização da densidade do proclamado dever de fundamentação apurar-se-á casuisticamente, já que a lei não estabelece, para este tipo de despacho, os requisitos específicos integradores de tal dever constitucional e legal e, no caso, não estamos perante sentença ou equivalente que permita a invocação da nulidade consignada no art.º 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P.
Assim sendo, o ato (na hipótese de, efetivamente, carecer de fundamentação) é, por força do princípio da legalidade, consignado no art.º 118.º do C.P.P., apenas irregular (art.ºs 118.º, n.ºs 1 e 2 e 123.º do C.P.P.) e, sendo assim, a invocada inconformidade com o disposto no art.º 97.º n.º 1 al. b) e 5 do C.P.P. não constitui motivo idóneo para a interposição de recurso (ao contrário do estatuído no art.º 379.º, n.º 2 para o caso da sentença, no art.ºs 308.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) para a decisão instrutória ou 283.º, n.º 3, al. b) para o despacho de acusação ou 194.º, n.º 4, todos do C.P.P., para o despacho que aplica medidas de coação). Efetivamente, a eventual falta ou insuficiência de fundamentação de um despacho judicial, constituindo uma irregularidade, deveria ter sido suscitada perante o tribunal que a praticou, sob pena de se considerar sanada nos termos do já citado art.º 123.º do C.P.P. [cfr., neste sentido, entre outros, Tiago Caiado Milheiro, op. cit., pág. 1053, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª Ed., pág. 269, acórdãos desta Relação de 04.07.2012, proc. n.º 1751/10.7TXPRT-H.P1, Rel. Joaquim Gomes e de 23.11.2022, proc. n.º 104/22.9PAVCD-A.P1, Rel. Eduarda Lobo, da Relação de Coimbra de 25.09.2013, proc. n.º 1080/10.6TXCBR-H.C1, Rel. Luís Coimbra, e de Lisboa de 02.02.2022, proc. n.º 3105/21.0T9AMD.L1-3, Rel. Alfredo Costa].
Ora, no caso, a comissão da potencial irregularidade não foi arguida perante o tribunal a quo, só o tendo sido, sob a forma de pretensa nulidade, perante este Tribunal. Não se tratando, como vimos, de nulidade, então o ato que se afirma ser irregular encontra-se sanado por inação do recorrente, prejudicando o seu conhecimento.
Arguindo o recorrente, concomitantemente, a sobredita inconstitucionalidade, por violação do art.º 205.º da C.R.P., também aqui o conhecimento estaria prejudicado ainda que fossem válidas, neste particular, as considerações acima expendidas a propósito do ponto anterior quanto à violação da Lei Fundamental.
Porém o recorrente coloca, ainda, a sua pretensão recursiva sob o enfoque de uma luz diferente. Afirma que o despacho recorrido carece de fundamentação e é, como tal, inexistente e, ante tal estado incorpóreo, então verdadeiramente não se pronuncia sobre a questão. A ausência de pronúncia é cominada (para o caso da sentença, mais uma vez) com nulidade, nos termos do invocado art.º 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.P.
Salvo o devido respeito e independentemente do ângulo de observação, o resultado prático é idêntico. O despacho existe e pronuncia-se sobre a questão, indeferindo a pretensão, dando-lhe destino. Não terá porventura atribuído a predestinação pretendida, mas pronuncia-se, não é omisso e muito menos inexistente. Mesmo que não se pronunciasse sobre esta parcela da multiplicidade do requerido pelo recorrente, tal não tornaria todo o despacho proferido nulo a coberto do preceito convocado que se reporta à sentença. Apenas inexistiria pronúncia sobre aquele ponto concreto e bastaria reiterar a pretensão para motivar a decisão, sem preclusão do direito do requerente.
Sendo a fundamentação um exercício argumentativo, importa que a motivação seja necessariamente objetiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões suscitadas, de modo a que o destinatário possa perceber a convicção fática e jurídica do decisor, exteriorizada de forma compreensível. No caso (e para que não se considerassem precludidos os seus direitos constitucionais de contraditório e defesa), ainda que sumariamente fundamentada, foi percetível, ao destinatário, o conteúdo da decisão recorrida (assim existente e tangível), indeferindo a pretensão por considerar a diligência irrelevante, atento o objeto do processo. Estando em causa a conduta constante da acusação, a atuação de outras instituições perante a apresentação do mesmo documento e a existência de diferentes procedimentos ou mecanismos de compliance seriam, no caso e para a julgadora, irrelevantes para o resultado da ação. Se o arguido está de boa fé, então não se exclui que na situação versada nos autos também esteja. Se se demonstrar o contrário e na procedência da acusação, então poderá haver matéria para novo procedimento perante atuação idêntica noutras instituições financeiras.
Porém o que alvitramos - quanto à interpretação do despacho e a forma pela qual, ante o seu texto, são compreensíveis o sentido e os fundamentos da decisão, obedecendo a critérios mínimos de fundamentação - acaba por ser, no presente momento, espúrio. É que aqui já se trata do mérito da própria decisão e não da invocada ausência de fundamentação ou inexistência fundante de omissão de pronúncia e por isso o dito mérito, quanto a nós, já não constitui objeto do recurso.
Embora o recorrente afirme a “importância” ou o “interesse” no deferimento do requerido para a descoberta da verdade, essa pretensão, desatendida e o efeito reativo que lhe opõe, já entra no âmbito do acerto da decisão, do mérito, ou, a poder reputar-se de essencial para a descoberta da verdade, sob o prisma da nulidade dependente de arguição prevista no art.º 120.º, n.º 1, al. d) do C.P.P. e não arguida.
O expressar de eventual inconformismo com o sentido da decisão – o indeferimento de uma diligência requerida – e se fosse essa a intenção do recorrente (o que pelas conclusões não se alcança, já que centra o enfoque da questão na ausência de fundamentação/omissão de pronúncia e não no sentido da decisão) então tal recurso interlocutório, se existisse, só subiria, como é regime-regra, a final (tendo o recorrente requerido a subida imediata e o efeito suspensivo para a questão dita prejudicial, não vinculando este Tribunal o efeito atribuído na primeira instância).
Aqui chegados e em resumo improcede, in totum, a pretensão recursória do recorrente:
- Porque não existe questão prejudicial que se revele de natureza exclusivamente não penal, autónoma, essencial para a afirmação da existência do crime e haja conveniência da devolução do seu conhecimento e decisão para o foro cível;
- Porque inexiste omissão de pronúncia e a pretensa ausência de fundamentação do despacho que indeferiu a diligência probatória constituiria, a verificar-se, mera irregularidade, sanada por não ter sido arguida tempestivamente perante o Tribunal a quo;
- Porque não se verifica qualquer das inconstitucionalidades invocadas, nos termos e fundamentos supra analisados.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, manter o despacho recorrido.
*
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
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Porto, 8 de novembro de 2023
José Quaresma
Castela Rio
Maria Luísa Arantes