Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9059/21.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE MARTINS RIBEIRO
Descritores: EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR INUTILIDADE DA LIDE
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RP202404089059/21.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Em caso de extinção da instância decorrente de inutilidade superveniente da lide por ter sido decretada a insolvência da ré, a ação prosseguirá os seus termos para apreciação de reconvenção que tenha sido deduzida.
II – Tal decorre dos princípios gerais de oportunidade e necessidade dos atos, ou seja, por economia processual, evitando-se a interposição futura de uma ação pela massa insolvente quando deduziu reconvenção numa ação que corre termos.
III – O juízo de dependência constante do art.º 266.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, C.P.C., não pode ser interpretado a não ser casuisticamente; de todo o modo, por pedido “dependente” deduzido em reconvenção deverá entender-se o pedido que apenas se justifica conhecer se o deduzido em ação for procedente – excluindo-se por isso de tal conceito todas as demais situações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 9059/21.6T8PRT.P1

SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do C.P.C.):

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Acordam os Juízes na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relator: Jorge Martins Ribeiro;

1.º Adjunto: José Eusébio Almeida e

2.ª Adjunta: Ana Paula Amorim.

ACÓRDÃO

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de ação declarativa, com processo comum, para resolução de contrato de arrendamento (despejo), é autora (A.) “A..., Unipessoal, Lda.”, titular do N.I.F. ...43, com sede na Rua ..., ... Lisboa, e é ré (reconvinte) “B..., Lda.”, titular do N.I.F.  ...70, com sede na Avenida ..., ..., freguesia ..., ... e AA, ..., Guimarães.


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Procedemos agora a uma síntese do processado, e factual, destinada a facilitar a compreensão do objeto do presente recurso([1]):

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1) A petição inicial deu entrada em juízo aos 01/06/2021; a A. efetuou os seguintes pedidos:

a) ser declarada a resolução do contrato de arrendamento urbano celebrado entre a Autora e a Ré ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 14.º do NRAU, aprovado pela Lei 6/20006, de 27 de Fevereiro, na sua redação actual;

b) ser a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue à Autora, livre de pessoas e bens;

c) ser a Ré condenada ao pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora até ao cumprimento efectivo”.

1.1.) Para tal, e muito em suma, alegou que em abril de 2019 celebrou com a R. um contrato de arrendamento de um espaço destinado ao comércio (restauração), que por força da pandemia Covid 19 o estabelecimento encerrou em março de 2020 (tendo os equipamentos aí existentes sido retirados, dando a entender que não haveria reabertura ao público) e que as rendas deixaram de ser pagas em julho de 2020.

Contudo, dada a conversão da caução, prestada pela R., em pagamento, estão em dívida as rendas vencidas relativas aos meses de janeiro de 2021 e seguintes.

Não obstante a interpelação efetuada, a R. não pagou as rendas em dívida e não entregou o locado à A.


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2) Aos 13/07/2021 foi apresentada a contestação com reconvenção.

2.1) Usando do possível poder de síntese, a R. alegou que o gerente da A., Jacobo Casuso, “cedo começou a denotar uma grande confusão de conceitos e até de conflito de interesses, pois ora atuava como gerente da A., procurando salvaguardar os seus interesses enquanto senhoria, ora jogava como sócio da R., boicotando decisões e sugerindo soluções, que prejudicavam os interesses desta em benefício daquela”.

Alegou ainda que, por mais que uma vez, tentou pôr termo ao contrato, dada a pandemia, e que a A. não o aceitou, mormente em março de 2021, dizendo ainda que as rendas de janeiro a março de 2021 foram pagas.

Aduziu que, em março de 2021, deslocou-se ao imóvel e constatou que, por causa de obras num prédio vizinho, uma parede tinha buracos (ameaçando ruir), o que impossibilitava a utilização do locado, por violação das regras de segurança e de salubridade, tendo pedido a correção dos defeitos que impediam o gozo do locado, o que não aconteceu, daí que também não tenha pagado as rendas a partir de abril de 2021.

Assim, concluiu que não tinha de pagar a renda por não estar a ser permitido o gozo do locado, que o recebimento de renda seria até um abuso do direito, além de que sempre estaria em condições de lançar mão da exceção de não cumprimento.

Alegou também que a A. deveria indemnizá-la pela faturação que deixou de poder efetuar, no restaurante em causa, no Porto, usando como comparativo o montante de um outro restaurante explorado pela R. em Guimarães, pedindo assim a indemnização de 79459,91 Euros.

Acrescentou que a A. deve ser condenada no montante que se vier a apurar em liquidação de sentença, não só por perda de faturação, como também por outras despesas, dando a título de exemplo que teve de “desmontar e retirar do interior do restaurante todos os equipamentos de restauração, por ser essa a única forma de os preservar”, com o custo de 3985,20 Euros – estado a pagar o armazenamento por tempo indeterminado.

Sem prejuízo do pedido a liquidar em execução de sentença, deduziu o líquido de 85132,61 Euros (decorrente da soma dos dois valores atrás referidos, bem como do de 1687,50 Euros “relativo à parte da caução de que a A./Reconvinda indevidamente se locupletou”).

2.2) Concluiu pela improcedência da ação, com a consequente absolvição dos pedidos, e formulou os seguintes pedidos em sede de reconvenção:

[B]1) Ser a A./Reconvinda condenada a indemnizar a R./Reconvinte no valor €79.459,91, relativo à faturação que esta deixou de auferir, entre Abril e Junho de 2021, acrescido de juros contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;

2) Ser a A./Reconvinda condenada a pagar à R./Reconvinte os valores que esta deixará de auferir, enquanto se mantiver a situação de impossibilidade de gozo do locado, cujo montante deverá ser apurado no decurso da ação ou em sede de liquidação de sentença, acrescido dos juros vincendos que se vierem a apurar e até efetivo e integral pagamento;

3) Ser a A./Reconvinda condenada a indemnizar a R./Reconvinte, no montante de €3.985,20, para ressarcimento dos prejuízos que esta sofreu em virtude de ter de desmontar, retirar, transportar e armazenar os equipamentos do restaurante, acrescido de juros contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

4) Ser a A./Reconvinda condenada a pagar à R./Reconvinte o valor relativo ao armazenamento dos equipamentos, que se continuará a vencer enquanto a situação do imóvel se mantiver, bem como os custos de transporte e montagem dos equipamentos no restaurante, quando tal for possível, e cujo montante também deverá ser apurado no decurso da ação ou em sede de liquidação de sentença, acrescido de juros vincendos que se vierem a apurar e até efetivo e integral pagamento;

5) Ser a A./Reconvinda obrigada a devolver à R./Reconvinte a quantia de €1.687,50, relativa à parte da caução de que aquela indevidamente se locupletou, acrescida de juros contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

Subsidiariamente, e para o caso de ser julgada total ou parcialmente procedente a acção e total ou parcialmente procedente os pedidos formulados em B), 1), 2), 3), 4) e 5);

C) Seja efectuada a compensação de um eventual crédito da A. sobre a R., com o crédito da R. sobre a A., na parte correspondente, por estarem devidamente preenchidos os requisitos legais”.


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3) Aos 30/09/2021 a A. replicou.

Questionou a admissibilidade da reconvenção, impugnou o teor da fundamentação dos pedidos em reconvenção, dizendo que o vizinho esteve disponível para efetuar as obras mas que não pôde fazê-lo por a R. manter o locado fechado, sendo que quando os danos ocorreram, já no ano anterior em 2020, portanto([2])) a R. tinha tirado de lá todos os equipamentos.

Concluiu pela inadmissibilidade da reconvenção à luz do disposto no art.º 266.º do Código de Processo Civil, C.P.C., pela improcedência dos pedidos em sede de reconvenção e pela imediata entrega do locado.


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4) Aos 20/12/2021 foi proferido o despacho saneador (tendo a reconvenção sido admitida, “[a]dmito a reconvenção apresentada pela R., artº 266º, nº 1, a), b) e c), e artº 583º, 1, do CPC.”), foi dispensada a audiência prévia, foram enunciados os objetos do litígio e os temas da prova, tendo igualmente sido fixados alguns factos provados.

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5) No dia 14/02/2022 foi proferido despacho a indeferir o incidente de despejo imediato formulado pela autora e ao que a ré se opôs.

5.1) Da fundamentação desse despacho consta, entre o mais, o seguinte([3]):

Porém, ponto essencial para tal incidente, é que o valor da renda seja certa, líquida e exigível.

Isto é, para se lançar mão de tal expediente, torna-se necessário que não esteja em discussão no processo principal (chamemos-lhe assim) quer o valor real da renda, quer a oportunidade do seu pagamento, quer ainda o local de pagamento, ou outra excepção e que legitime o não pagamento da renda.

Ora, os autores intentaram a acção contra as rés com fundamento (no que agora interessa), na falta de pagamento das rendas vencidas e vincendas.

Como já acima foi expresso a R. invoca razões para o não pagamento das rendas, entre as quais a impossibilidade de utilização do arrendado.

Trata-se, pois, de matéria de facto controvertida e a apurar em sede de «acção principal», que não neste incidente de despejo imediato, pois que só com o decorrer do processo e produção das provas oferecidas (e/ou a oferecer) pelas partes poderá este tribunal decidir quanto à validade dos argumentos de cada uma das partes.

Ou seja, o incidente expedito de despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da acção, tem como pressuposto que não esteja em discussão o concreto valor mensal das rendas, ou qualquer outra razão/excepção que legitime o seu não pagamento (v.g. excepção de não cumprimento).

A matéria inerente à excepção de não cumprimento e pagamento das rendas é matéria controvertida, atente-se que a mesma se encontra inserida nos temas de prova constante do despacho saneador, vide pontos 15) a 18).

Assim, do acima expresso decorre que as razões do não pagamento das rendas se encontram controvertidas, pelo que não podem os autores lançar mão deste incidente com fundamento no não pagamento das rendas”.


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6) Aos 18/05/2022 a A. comunicou a estes autos o teor da sentença a decretar a insolvência da R. proferida no processo n.º 2489/22.8T8GMR, aos 11/05/2022.

6.1) No dia 24/05/2022 foi proferido o seguinte despacho:

Considerando o teor da informação de declaração de insolvência da R. afigura-se ao Tribunal estar-se perante uma situação de inutilidade/impossibilidade superveniente da lide.

No entanto, para evitar decisões, notifique-se as partes para, querendo, se pronunciar, artº 3º, nº 3, e 547º do CPC.

A R. é notificada na pessoa do Administrador de Insolvência”.

6.2) Por articulado de datado de 05/06/2022, a A. concordou com a verificação de uma situação de inutilidade superveniente da lide.

Transcrevemos os três primeiros pontos do aí alegado([4]):

1. A A. entende que, com a declaração de insolvência, verifica-se a inutilidade superveniente da lide.

2. Com efeito, é este o entendimento pacífico das instâncias superiores. Esta matéria está definida pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2014, segundo o qual:

«Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.».

3. A circunstância do pedido reconvencional é absolutamente irrelevante para efeitos de contrariar a referida jurisprudência”.

6.3) Por articulado datado de 31/05/2022, o administrador da massa insolvente discordou nos seguintes termos: a verificar-se a existência de um crédito da Ré, tal situação pode traduzir-se num aumento do ativo da insolvente (aqui Ré) ou, eventualmente, na redução de um crédito da Autora, ou seja, 3. Razão pela qual o signatário entende, salvo melhor opinião, não haver uma situação de inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, tendo inclusive requerido Apoio Judiciário para o acompanhamento/intervenção nos presentes autos”.


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7) Aos 06/06/2022 foi proferida a decisão recorrida, cujo teor se dá por integramente reproduzido, constando do despacho, a final, o seguinte:

Nos termos expostos e ao abrigo do disposto no art. 277 al. e) do Código de Processo Civil e demais disposições legais acima citadas, declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.


***

Custas da acção e da reconvenção por autora e ré, em partes iguais (art. 536 nº 1 e 2 al. e) do Código de Processo Civil).

Valor da acção, para este efeito o constante da despacho saneador.


***

Notifique, sendo a R. na pessoa do Sr. Administrador da Insolvência.

***

Sem efeito a audiência de discussão e julgamento agendada.

Porto, d.s.”.


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8) O processamento do pedido de apoio judiciário formulado pelo administrador da massa insolvente da ré foi moroso.

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9) Aos 03/09/2023 a massa insolvente (da R.) interpôs recurso, confinado à parte em que foi verificada a inutilidade superveniente da lide também quanto ao pedido reconvencional, formulando as seguintes conclusões([5]):

1. A Apelante não se conforma com a Douta Sentença proferida pelo Tribunal «Ad quo».

2. A Recorrente entende, com todo o respeito, que o Meritíssimo Juiz não se pronunciou, como deveria sobre toda a matéria de facto que lhe foi apresentada, nomeadamente quanto ao pedido reconvencional, assim como, não foi feita uma correta subsunção dos factos ao Direito.

3. Aquando da apresentação da sua contestação, a Ré deduziu também pedido reconvencional.

4. A douta sentença invoca que o pedido de reconvencional apresentado pela Ré não é autónomo e que está dependente do pedido formulado pela autora e que, havendo extinção da instância quanto ao pedido principal, ou seja, o formulado pela Autora, não poderá ser apreciado o pedido reconvencional.

5. Praticamente toda a sentença assenta na análise da posição da Autora enquanto provável credora da Ré, nas consequências do decretamento da insolvência nas ações declarativas em curso, na oportunidade desta em exigir os seus eventuais créditos e em que sede.

6. A sentença não fundamenta a sua posição quanto à apreciação ou não apreciação do pedido reconvencional deduzido pela Recorrente, sendo que deveria ter apreciado o pedido reconvencional e só após tal apreciação, concluir pela autonomia ou dependência do pedido reconvencional relativamente ao pedido principal da Recorrida.

7. Ainda que a Recorrida fosse reclamar o seu alegado crédito em sede de insolvência, não foi apreciado o crédito invocado pela Recorrente.

8. Deveria a douta sentença ter-se pronunciado pela procedência ou improcedência do pedido da Recorrente, tendo violado o disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1ª parte do CPC.

9. Era preciso ter-se apreciado o pedido de reconvenção apresentado nestes autos que se fundamentava também na condenação da ora Recorrida a pagar à Recorrente determinadas quantias pecuniárias a título de indemnização.

10. O pedido reconvencional da Recorrente não é, nem poderia ser reconhecido no processo de insolvência, mas apenas e tão só nos presentes autos, dos quais ora se recorre.

11. A Recorrente pretendia que a Recorrida fosse condenada a pagar o valor € 79.459,91, relativo à faturação que aquela deixou de auferir, entre Abril e Junho de 2021, acrescido de juros contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; os valores que aquela deixara de auferir, dada a situação de impossibilidade de gozo do locado, montante que seria apurado no decurso da ação ou em sede de liquidação de sentença, acrescido dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento; o montante de € 3.985,20, para ressarcimento dos prejuízos que aquela sofreu em virtude de ter de desmontar, retirar, transportar e armazenar os equipamentos do restaurante, acrescido de juros contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; bem como, o valor relativo ao armazenamento dos equipamentos, que continuaria a vencer-se dada a situação do imóvel, bem como os custos de transporte e montagem dos equipamentos no restaurante; e ainda, a quantia de €1.687,50, relativa à parte da caução de que esta indevidamente se locupletou, acrescida de juros contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

12. O pedido reconvencional está conexionado com o pedido principal, desde logo por assentarem fundamentalmente no mesmo contrato de arrendamento e seu deficiente cumprimento pela Recorrida.

13. O pedido reconvencional só é considerado dependente do pedido formulado pelo autor, quando só deva ser conhecido na hipótese deste ser julgado procedente.

14. A Recorrente pugna pela sua absolvição no que respeita aos pedidos formulados pela Autora, pugnando ainda pela procedência da sua reconvenção.

15. A conexão da reconvenção com a ação é visível, mas é irrelevante para determinar que aquela é dependente da procedência desta.

16. Mesmo que a ação fosse inadmissível ou improcedente, o pedido reconvencional deve sempre ser apreciado e só não o é assim, quando este seja dependente da procedência da ação.

17. Não existe dependência entre o pedido reconvencional e o pedido formulado pela Recorrida, não estando aquele dependente deste.

18. O pedido reconvencional tem como fundamento o mesmo contrato celebrado, mas em indemnização por incumprimento por parte da Recorrida e consequentemente por prejuízos e lucros cessantes dali derivados.

19. Qualquer dos pedidos podem existir, no processo, um sem o outro, pois, o que ambos têm de comum é o mesmo facto jurídico de que partem para fundamentar as suas pretensões, a existência de um contrato de arrendamento e acordos entre ambos, cujo incumprimento cada uma das partes imputa à outra.

20. Sem prescindir, a douta sentença assenta a sua decisão numa norma jurídica que nada serve ao caso (186.º, n.º 6 do CPC), o que não se percebe.

21. Concluindo, não está verificada a exceção prevista no nº6 do artigo 266º do Código de Processo Civil, isto é, não se verifica a dependência do pedido reconvencional em relação ao pedido formulado pela Recorrida, pelo que os autos devem prosseguir para apreciação do pedido reconvencional formulado pela Recorrente.

Termos em que:

Revogando a douta sentença, determinando o prosseguimento dos autos quanto o pedido reconvencional formulado pela Ré, V. Exas. farão, como sempre, a inteira e costumada, JUSTIÇA!”.


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10) Aos 31/01/2024 a autora apresentou as suas contra-alegações, formulando as seguintes conclusões([6]):

 “I. Não há nulidade por falta de pronúncia, pois o Tribunal conheceu e decidiu sobre o pedido reconvencional que foi formulado pela recorrente.

II. Não é exacto que o pedido reconvencional apenas pode ser apreciado nos autos e não no processo de insolvência, podendo a massa insolvente, através do Administrador de Insolvência, demandar e reivindicar créditos de que se arrogue, em processo próprio para o efeito.

III. O pedido reconvencional formulado nos autos depende do pedido principal pois, foi a própria recorrente, quem pediu a compensação dos créditos formulados contra si, pelos créditos que venham a ser reconhecidos no pedido reconvencional.

IV. Os fundamentos do recurso são contraditórios com a contestação que a recorrente apresentou, revelando a apelação apresentada como um expediente dilatório, devendo por isso a recorrente ser condenada como litigante de má fé.

Termos em que e nos melhores de Direito que V. Exa., doutamente suprirá, requer a admissão aos autos da presente resposta, julgando o recurso interposto improcedente”.


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11) O requerimento de interposição de recurso foi recebido, por despacho datado de 30/10/2023, nos seguintes termos:

Admite-se o recurso interposto o qual é de apelação a subir de imediato nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Porto, d.s.”.

O tribunal a quo não se pronunciou sobre a invocada nulidade, não obstante o disposto no art.º 641.º, n.º 1, do C.P.C.


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O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).

Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.


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É de ter em conta que, não obstante a recorrente dizer que recorre de facto e de Direito, na verdade não recorre da matéria de facto – sem prejuízo de ela constar da decisão recorrida, ainda que não de forma ortodoxa, porquanto não foi enumerada e separada da fundamentação de Direito.

De todo o modo, e como é patente, de modo algum estariam observados os requisitos previstos no art.º 640.º, n.º 1, do C.P.C.

Ambas as partes estão de acordo quanto à verificação da inutilidade superveniente da lide no tocante aos pedidos em ação; o pomo da discórdia, daí o recurso, é se tal solução é de aplicar também aos pedidos deduzidos em reconvenção.

Posto isto, as questões (e não razões ou argumentos) a apreciar são:

1) Se a decisão recorrida enferma de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), do C.P.C. – por, alegadamente, o tribunal a quo ter omitido pronúncia quanto ao pedido reconvencional.

2) Se no caso deveria ter sido julgada extinta a instância também quanto aos pedidos deduzidos em reconvenção.

II – FUNDAMENTAÇÃO

De facto:

Tendo em conta o disposto no art.º 663.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (C.P.C.), os factos a considerar para a decisão do recurso são os constantes da sinopse, processual e factual, efetuada – que, nesta vertente adjetiva, têm força probatória plena.

O Direito aplicável aos factos:

A matéria do recurso é apenas de Direito.

Seremos tão sucintos quanto possível, sem considerandos desnecessários que as ferramentas de edição de texto no programa word tanto potenciam…

Quanto à questão n.º 1):

A nulidade prevista no art.º 615.º,n.º 1, al. d), do C.P.C. está diretamente relacionada com o art.º 608.º, n.º 2, do mesmo Código, segundo o qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

É crucial a distinção entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Como explica Alberto dos Reis([7]), “[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

As nulidades da sentença previstas no art.º 615.º, n.º 1, são vícios formais da própria sentença. A prevista al. d), 1.ª parte, do C.P.C. (omissão de pronúncia) só ocorre quando uma questão que devia ser nela conhecida não foi objeto de qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outra), assim não sendo quando o tribunal, ainda que sem ampla elaboração, a decida.

Como consta da decisão recorrida, na última página, “[a]nalisado o pedido reconvencional é manifesto que o mesmo não é autónomo mas antes está na dependência do pedido formulado pela A., conforme se prevê no artº 186º, nº 6 do CPC. Logo, havendo lugar a extinção da instância do pedido principal da A., fica prejudicada a apreciação do pedido reconvencional, por impossibilidade superveniente da lide([8]).

Pelo exposto, não se verifica a invocada nulidade, pois é patente que o tribunal se pronunciou sobre a questão, ainda que perfunctoriamente.

Efetivamente constata-se algum desequilíbrio de fundamentação se compararmos a tecida quanto à extinção da instância, no atinente aos pedidos deduzidos em ação (por inutilidade superveniente da lide, por a requerida ter sido declarada insolvente), e a lacónica quanto aos pedidos deduzidos em reconvenção.

Passemos à última questão, a n.º 2):

Ressalvando o devido respeito por diferente entendimento, não se está, neste caso, perante uma inutilidade superveniente no tocante à apreciação dos pedidos deduzidos em reconvenção que, para efeito do art.º 266.º, n.º 6, do C.P.C., não são dependentes da procedência dos deduzidos em ação.

Uma primeira nota, é que não é exato o que a recorrida parece dar a entender nas suas contra-alegações, como que [tendo em conta a admissibilidade da reconvenção nos termos do art.º 266.º, n.º 2, al. c), do C.P.C.] extrapolando as consequências de uma eventual dependência reconvencional por compensação em caso de absolvição do pedido (decorrente de um julgamento de mérito) para um caso de absolvição da instância ou de extinção da instância – como sucedeu quanto à ré, por decorrência de ter sido julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277.º, al. e), do C.P.C.

Uma segunda nota, prende-se com o teor do despacho do tribunal a quo proferido aos 14/025/2022, antes referido em 5.1) da sinopse processual.

Por facilidade de exposição, transcrevemo-lo aqui parcialmente:

Como já acima foi expresso a R. invoca razões para o não pagamento das rendas, entre as quais a impossibilidade de utilização do arrendado.

Trata-se, pois, de matéria de facto controvertida e a apurar em sede de [«acção principal»]. A matéria inerente à excepção de não cumprimento e pagamento das rendas é matéria controvertida, atente-se que a mesma se encontra inserida nos temas de prova constante do despacho saneador, vide pontos 15) a 18). Assim, do acima expresso decorre que as razões do não pagamento das rendas se encontram controvertidas, pelo que não podem os autores lançar mão deste incidente com fundamento no não pagamento das rendas([9]).

Ou seja, no seguimento deste despacho, cremos, seria expectável decisão diferente (da recorrida) quanto à utilidade de os autos prosseguirem os seus termos para apreciação dos pedidos reconvencionais; lançando mão da síntese efetuada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 233/14.2TTCSC.L1-4, aos 03/12/2014, por se verificar in casuuma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção([10]).

A este propósito referimos um importante argumento mencionado desde logo pelo administrador da massa insolvente da ré (em sede de contraditório ao despacho para as partes se pronunciarem sobre a perspetiva de o tribunal julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide), aos 31/05/2023([11]): “a verificar-se a existência de um crédito da Ré, tal situação pode traduzir-se num aumento do ativo da insolvente (aqui Ré) ou, eventualmente, na redução de um crédito da [Autora]. Razão pela qual o signatário [entende] não haver uma situação de [inutilidade] superveniente da [lide]([12]).

No mesmo sentido, mas agora como que a contrario, achamos não ter validade o argumento da A. apresentado nas suas contra-alegações (conclusão II), de que “[n]ão é exacto que o pedido reconvencional apenas pode ser apreciado nos autos e não no processo de insolvência, podendo a massa insolvente, através do Administrador de Insolvência, demandar e reivindicar créditos de que se arrogue, em processo próprio para o efeito” – ou seja, a ser assim estaríamos a dar acolhimento a processados inúteis (interposição futura de uma ação quando já existe uma), em violação do princípio geral da oportunidade e necessidade dos atos, da chamada economia processual.

Independentemente da previsão da al. c) do n.º 2 do art.º 266.º do C.P.C., no caso estarmos inequivocamente (também) perante a hipótese prevista na a. a), nos termos da qual a reconvenção é admissível “[q]uando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa”.

A este propósito, e sobre os requisitos substantivos da reconvenção, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora observam que se trata de uma ligação através do facto jurídico, “o pedido reconvencional brota do facto jurídico (real, concreto) que serve de fundamento, seja à acção, seja à defesa”([13]) – como no nosso caso é o do contrato de arrendamento para fins não habitacionais, na medida em que as partes, reciprocamente, se imputam incumprimentos do (mesmo) contrato.

Por fim, vejamos então o teor do art.º 266.º, n.º 6, do C.P.C., “[a] improcedência da ação e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor”.

Ou seja, importa então ver o que se deve entender por um pedido dependente (que será o contraposto de um independente ou autónomo).

Fazemos nossa a “definição” constante do sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 1749/07.2TBEVR.E1, aos 12/04/2018: “[o] pedido reconvencional é dependente do pedido formulado pelo autor quando só deva ser conhecido na hipótese de este último ser julgado procedente([14]) – que, como resulta da sua fundamentação, foi proferido num processo idêntico, incluindo na motivação da decisão recorrida quanto à dependência; como nele se refere, o tribunal a quo “limitou-se a afirmar que a instância reconvencional, porque dependente, não tem autonomia, o que é tautológico”.

À semelhança do que antes deixámos exposto, também em tal aresto se afirma que “[c]ada uma das partes imputou à outra o incumprimento do [contrato] e, com esse fundamento, formulou pretensões autónomas. Consequentemente, nos termos do n.º 6 do artigo 266.º do CPC, a inutilidade superveniente da acção, resultante da declaração de insolvência da recorrente, não obsta à apreciação da reconvenção. Solução diversa não faria, aliás, qualquer sentido, pois apenas geraria, sem justificação, a necessidade de a ré propor uma nova acção, contra a autora, com conteúdo idêntico ao da reconvenção deduzida nestes autos([15]).

Posto isto, o recurso será julgado procedente.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela massa insolvente da ré e, consequentemente, revogamos a decisão recorrida na parte em que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide também quanto ao pedido reconvencional, devendo os autos prosseguirem os seus ulteriores termos em conformidade.

Custas pela recorrida, que ficou vencida, art.º 527.º, n.º 2, do C.P.C.




Porto, 08/04/2024.
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Este acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos:
Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.º Adjunto: José Eusébio Almeida e
2.ª Adjunta: Ana Paula Amorim.

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[1] Mais detalhada do que, em rigor, seria indispensável…
[2] Contudo, as faturas de transporte dos equipamentos de restauração, documentos n.º 61 e n.º 62.º juntos com a contestação, referem que a carga foi efetuada no Porto, na morada do locado, no dia 12/04/2021, tendo como destino um armazém em ..., Guimarães.
[3] Aspas no original.
[4] Aspas e itálico no original.
[5] Aspas e itálico no original.
[6] Negrito, itálico e aspas no original.
[7] Cf. Alberto dos REIS, Código de Processo Civil Anotado, V Vol., Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 143.
[8] Provavelmente a referência a tal norma, neste contexto, e não ao art.º 266.º, n.º 6, do C.P.C., será um lapso de escrita.
[9] Interpolação nossa.
[10] Interpolação e itálico nosso. O acórdão está acessível em:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/2618781679a74f3280257dab002e017c?OpenDocument [22/03/2024].
[11] Constante de 6.3) da sinopse processual.
[12] Itálico e interpolação nossa.
[13] Cf. Antunes VARELA, J. Miguel BEZERRA e Sampaio e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 327 (itálico no original).
[14] Itálico nosso. O acórdão está acessível em:
http://www.gde.mj.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/bd0d239da78e3a5c802582780031766b?OpenDocument [22/03/2024].
[15] Interpolação e itálico nosso.