Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
606/23.0T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
LEGADO DE COISA COMUM DO CASAL
Nº do Documento: RP20251028606/23.0T8OVR.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No caso de legado de coisa, pertencente ao património comum do casal, a disposição testamentária apenas confere ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor pecuniário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:  Processo n.º 606/23.0T8OVR.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunto: João Diogo Rodrigues

Adjunto: Rui Moreira


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

Nos presentes autos procede-se à cumulação de inventários por óbito de AA e BB, residentes que foram na área desta comarca, tendo aquela falecido no estado de casada com o segundo, sob o regime da comunhão geral de bens, sem testamento ou doação, deixando como herdeiros o cônjuge e um filho, CC.

No dia 01.01.2022 faleceu o inventariado BB, e deixou o mencionado filho, o cabeça-de-casal CC.

O inventariado deixou testamento nos termos do qual declarou “Que lega, por conta da quota disponível, e de acordo com a proporção de que é titular nos referidos bens, o usufruto dos prédios urbanos…bem como o recheio que compõem os mesmos a DD” e “Que lega ainda, por conta da quota disponível, o veículo automóvel…ou o veículo que for sua propriedade à data do óbito.”

Os bens estão relacionados nas verbas 2, 3, 6, 14, 16 e 17 da relação de bens e integram o património comum dos ex-cônjuges.


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Proferiu-se despacho determinativo da partilha:

“(…)

Em face do que se deixa dito, determino que a partilha do acervo hereditário dos inventariados se efectue pela forma seguinte:

a. Ao valor dos bens relacionados abate-se o valor do eventual passivo a ser deliberado na conferência de interessados a designar, assim se encontrando o valor a partilhar.

b. O total assim obtido pertence ao filho dos inventariados – cfr., artigo 2139.º do Código Civil, sem prejuízo do cumprimento dos legados deixados pelo inventariado (usufruto sobre os bens relacionados sob as verbas 2, 3, 6, 14,16 e 17 da relação de bens).” (sublinhado nosso)


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Na conferência de interessados todos os bens relacionados foram adjudicados ao interessado, cabeça-de-casal, consignando-se, por despacho, que, em face da nova relação de bens, as verbas referentes ao legado são as verbas 2, 5, 13, 15 e 16. Nada foi decidido sobre o cumprimento dos legados.

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O interessado apresentou a sua sugestão de partilha.

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O tribunal proferiu o seguinte despacho: “Determino que seja dado cumprimento ao artigo 1120.º, n.º2, do Código de Processo Civil, considerando-se o despacho determinativo da forma à partilha, bem como o decidido na conferência de interessados que antecede, de 04.09.2024.”

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A secção elaborou o mapa da partilha e sobre as operações da partilha fez consignar:

“O montante dos bens a partilhar com ascende a €269.045,34

Á exceção da verba nº 5, todos os bens serão adjudicados ao interessado CC, filho dos inventariados.

Cumprindo o testamento, o usufruto das verbas nº 2, 13, 15 e 16. Será adjudicado á legatária DD.”


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O Mapa da Partilha foi objecto de reclamação.

A legatária apresentou os seguintes argumentos:

“Conforme resulta dos presentes autos, o presente processo tem como finalidade a partilha dos bens do acervo hereditário por óbito de AA e BB.

Salvo o devido respeito por outra melhor opinião, primeiro haverá que elaborar o mapa de partilha relativamente à inventariada AA, uma vez que o óbito ocorreu a 11.01.2007, sem testamento, doação ou qualquer outra disposição da sua última vontade, tendo deixado a representá-la o cônjuge BB e o filho CC.

Do mapa de partilha da inventariada, e do resultado apurado, haverá sim que elaborar o mapa de partilha relativamente ao inventariado BB, falecido a 01.02.2022, o qual deixou a representá-lo o seu filho CC, tendo ainda deixado testamento a favor da legatária DD, e no qual lega por conta da quota disponível a verba 5, e bem ainda por conta da quota disponível, e de acordo com a proporção de que é titular o usufruto sobre as verbas 2, 13,15,16.

O que manifestamente não ocorre no mapa de partilha agora notificado.

Acresce que, o mapa de partilha padece ainda de erro manifesto, uma vez que o cálculo do usufruto tem que ser reportado à idade da usufrutuária à data do decesso do inventariado BB, ou seja 01.01.2022, e não à idade do inventariado como resulta do mapa de partilha, cfr entre outros Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 932/05.0TBOAZ.P1, in www.dgsi.pt

“IV- Assim a avaliação do legado de usufruto em inventário por morte deve reportar-se à idade do usufrutuário na data da abertura da herança, ou seja; à data do decesso da inventariada”. (n/negrito)

Dos bens a partilhar, constata-se ainda a omissão do valor (5.000,00€) na verba 2,a) dos bens móveis (e não imóveis), pese embora o mesmo esteja refletido no valor global da verba 2.

Todas as questões suscitadas têm naturais consequências nos cálculos e operações de partilha que importam, pois, retificar em conformidade.”

O interessado, cabeça-de-casal, reclamou nos seguintes termos:

1. Do teor do mapa de partilha elaborado resulta claro que o valor atribuído ao usufruto (verbas 2, 13, 15 e 16) corresponde à totalidade do valor desse usufruto.

2. Ora, é também claro e resulta do testamento junto aos autos, que o testador legou na proporção de que é titular, nos referidos bens, o usufruto desses bens (e recheio).

3. Também não existem dúvidas de que todos os bens supra referidos e sobre os quais incidiu o legado, não eram pertença exclusiva do testador, nem nunca o vieram a ser.

4. Esses bens eram, sim, bens comuns do casal aqui inventariados, correspondendo ao testador a proporção a ¾ (75%) desses bens.

5. O mesmo se diga relativamente ao legado do automóvel ..-..-XN.

6. Assim, o valor atribuído ao usufruto deverá ter em conta essa regra, ou seja, deverá ser considerado como valor do usufruto ¾ (75%) do valor total atribuído ao usufruto e não à totalidade desse valor, tal como foi considerado no mapa de partilha.

7. O mesmo critério haverá de ser utilizado quanto ao valor do automóvel legado (verba 5) uma vez que o mesmo também não era, nem nunca veio a ser propriedade exclusiva do testador mas sim bem comum, devendo tal verba ser atribuída ao cc, cabendo à legatária a parte correspondente à quota pertencente as testador-(375,00 €).

8. Assim, somados esses valores, determinados de acordo com a proporção referida, mostrar-se-á encontrado o valor correcto do legado, para que possa ser cumprido, pelo sujeito passivo dessa obrigação.

Ou seja:

Verba 2: 75% de 640,00 € 480,00 €

Verba 13: 75% de 2.443,48 € 1.832,61 €

Verba 15: 75% de 12.388,26 € 9.291,21 €

Verba 16: 75% de 4.303,63 € 3.227,73 €

Total 14.831,55 €

9. A este valor soma-se ainda a quantia de 375,00 e relativo ao valor da quota parte (3/4) pertencente ao testador, do bem comum (automóvel ..-..-XN) identificado na verba 5.

10. Assim teremos:

a) quota parte do usufruto (75%) 14.831,55 €

b) quota parte da verba 5 375,00 €

Total a receber 15.206,55 €”


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A Sra. Escrivã de Direito, em 23-04-2025, abriu conclusão com a seguinte informação:

reclamação apresentada pela legatária DD ao mapa de partilha, refª 17303962 de 10.02.2025, melhor analisando o mapa de partilha, sou do parecer que assiste razão aos fundamentos ali expostos.

Quanto à resposta á reclamação apresentada pelo cabeça de casal - refª 17311060 de 10.02.2025 no seu ponto 7, suscitam-me dúvidas, quanto á partilha daquela verba, tendo em conta o testamento lavrado e que se encontra junto aos autos com a pi.

No mais, o C/C efetuou os càlculos com base no mapa de partilha que antecede, o qual padece de erro no calculo do usufruto e na ausência da demonstração da partilha por morte da inventariada AA.

Assim faço os autos conclusos a Vª Exª para os fins tidos por conveniente.”


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Proferiu-se o seguinte Despacho:

“Requerimentos de 07 e 10.02.2025:

Considerando a informação vertida na conclusão que antecede, de 22.04.2025, verifico que a mesma encontra respaldo nas reclamações do único interessado e legatária de 07 e 10.02.2025 (com excepção da verba descrita com o n.º 5 – veículo automóvel) – cfr., requerimentos de 10 e 07.02.2025, respectivamente, pelo que determino que se proceda às correcções a que se alude nos referidos requerimentos, com excepção da verba descrita com o n.º 5 – veículo automóvel.

No que tange à aludida verba n.º 5, do compulso dos autos, verifico que o inventariado legou “por conta [d]a quota disponível, à referida DD, o veículo automóvel de marca Toyota com a matrícula ..-..-XN, ou o veículo que for sua propriedade à data do óbito.” – cfr., cópia do testamento de 20.07.2015, anexo à petição inicial.

Assim, não assiste, neste ponto, razão ao interessado reclamante – cfr., ponto 7. do requerimento de 10.02.2025, na medida em que o aludido legado (ao contrário dos demais legados descritos no aludido testamento de 20.07.2015) reporta-se ao “veículo automóvel de marca Toyota com a matrícula ..-..-XN, ou o veículo que for sua propriedade à data do óbito”, sem aludir à proporção de que era titular o inventariado no referido bem. Ou seja, o segundo legado, deixado pelo inventariado e vertido no testamento de 20.07.2015, anexo à petição inicial – cfr., cópia do testamento de 20.07.2015, anexo à petição inicial, é o “veículo automóvel de marca Toyota com a matrícula ..-..-XN, ou o veículo que for sua propriedade à data do óbito”.

Termos em que, em face do exposto, indefiro a reclamação vertida no ponto 7. do requerimento de 10.02.2025 formulada pelo único interessado reclamante.

Proceda às correcções determinadas e, após, notifique-se as partes processuais.”


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Em cumprimento deste Despacho, elaborou-se novo Mapa da Partilha:

BENS A PARTILHAR

DINHEIRO

Verba nº 1 €14.754,05

IMÓVEIS

Verba nº 6 € 16.04

Verba nº 7 € 93,18

Verba nº 8 € 10,56

Verba nº 9 € 59,89

Verba nº 10 € 12,83

Verba nº 11 € 6,28

Verba nº 12 € 63,37

Verba nº 13 € 24.434,78

Verba n 14 € 55.175,40

Verba nº 15 €123.882,63

Verba nº 16 € 43.036,33

MÓVEIS:

Verba nº 2 (recheio das verbas 13,15 e 16)

A) € 5 .000,00

B) € 200,00

C) € 200,00

D) € 300,00

E) € 100,00

F) € 500,00

G) € 100,00

€ 6.400,00

Verba nº 3 € 100,00

Verba nº 4 € 500,00

Verba nº 5 € 500,00

Total dos bens a partilhar € 269.045,34

Passivo aprovado no valor de € 288,33

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CÁLCULO DO USUFRUTO

(Á data da abertura da sucessão a legatária DD tinha 62 anos, assim, nos termos do disposto no artº13 do CIMT (tabela anexa) a percentagem é de 35%.

Imóveis:

Verba nº 13-Propriedade plena €24.434,78

Herança do inventariado BB €18.326,08

Nua propriedade € 18.020,65

Usufruto € 6.414,13

Verba nº 15-Propriedade plena €123.882,63

Herança do inventariado BB €92.911,97

Nua propriedade € 91.363,44

Usufruto € 32.519,19

Verba nº 16-Propriedade plena € 43.036,33

Herança do inventariado BB € 32.277,24

Nua propriedade € 31.739,29

Usufruto € 11 297,04

Móveis:

Verba nº 2- Propriedade plena € 6.400,00

Herança do inventariado BB € 4,800,00

Nua propriedade € 4.720,00

Usufruto € 1.680,00

Total € 51.910,36


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DEMONSTRAÇÃO

A inventariada AA, residente que foi em Ovar, faleceu no dia 11.01.2007, no estado de casada com BB, sob o regime de comunhão geral de bens sem deixar testamento, doação ou quaisquer outra disposição de sua ultima vontade, tendo deixado a representá-la o cônjuge sobrevivo e o único filho CC.

No dia 01.01.2022 faleceu o inventariado BB, residente que foi em Ovar, no estado de viúvo da inventariada.

O Inventariado deixou testamento (junto aos autos) a favor da Legatária DD.


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OPERAÇÕES DE PARTILHA

O montante dos bens a partilhar ascende a €269.045,34 que se divide em duas partes iguais, cada uma no montante de €134.522,67

Uma constitui a meação do cônjuge sobrevivo e, como tal, lhe pertence

A outra parte constitui a meação da inventariada que se subdivide em duas partes

Cada uma no montante de € 67.261,33

Adjudicando-se uma delas ao cônjuge sobrevivo

E a outra ao filho CC.

A herança do inventariado BB é constituída pela sua meação

No montante de €134.522,67

E pelo quinhão, no montante de € 67.261,33 €201.784,00

O total é dividido por 3 e obtêm-se o valor de € 67.261,33

Que corresponde ao valor da quota disponível para cumprimento do testamento a favor da legatária DD que se verifica ser de €52.410,36 o remanescente no montante de €149.373,64 corresponde á legitima paterna do interessado CC que como tal se lhe adjudicará.

RESUMO

Ao interessado:

CC

Pertence

Legitima materna € 67.261,33

Legitima paterna €149.373,64 Total: € 216.634,97

Á legatária

DD

Quota disponível (De legado conforme testamento) € 52.410,36

Confere € 269.045,34


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PAGAMENTOS

Ao interessado CC, casado, sob o regime de comunhão de adquiridos com EE

Para seu pagamento

Haverá

DINHEIRO

Verba nº 1 € 14.754,05

IMÓVEIS

Verba nº 6 € 16.04

Verba nº 7 € 93,18

Verba nº 8 € 10,56

Verba nº 9 € 59,89

Verba nº 10 € 12,83

Verba nº 11 € 6,28

Verba nº 12 € 63,37

Verba nº 13:

Nua propriedade € 18.020,65

Verba n 14: € 55.175,40

Verba nº 15:

Nua propriedade € 91.363,44

Verba nº 16:

Nua propriedade € 31.739,29

MÓVEIS

Verba nº 2 (recheio das verbas 13,15 e 16)

Nua propriedade € 4.720,00

Verba nº 3 € 100,00

Verba nº 4 € 500,00

Total € 216.634,98

Pertence-lhe € 216.634,98

Paga de passivo à legatária DD € - 288,33

Confere e fica paga € 216.346.05

Á Legatária DD

para seu pagamento

Haverá:

Verba nº 13:

Usufruto € 6.414.13

Verba nº 15:

Usufruto € 32.519,19

Verba nº 16:

Usufruto € 11.297,04

MÓVEIS

Verba nº 2 (recheio das verbas 13,15 e 16)

Usufruto € 1.680,00

Verba nº 5: € 500,00

Total € 52 410,36

Recebe de passivo do interessado CC € + 288,33

Confere e fica paga € 52. 698,69

(…)


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Notificados, não apresentaram reclamação.

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Proferiu-se sentença nos seguintes termos:

“Nos presentes autos de Processo de Inventário a que se procede por óbito de AA e BB, homologo, por sentença, o mapa da partilha que antecede, adjudicando, em consequência, ao interessado CC e legatária DD o respectivo quinhão pela forma descriminada no mapa de 08 de maio de 2025.

Custas na proporção dos quinhões.

Valor global da acção: €269.045,34 (duzentos e sessenta e nove mil e quarenta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos).

Notifique.

Registe.”


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Inconformado com a sentença, o cabeça-de-casal interpôs recurso, finalizando com as seguintes

Conclusões

(…)


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A legatária, DD, respondeu concluindo nos seguintes termos:

(…)


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I—Delimitação do Objecto do Recurso

As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se a sentença é nula e se respeitou as normas aplicáveis ao legado de coisa pertencente ao património comum do casal.


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III—FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os actos acima descritos)

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IV-DIREITO

No presente recurso, em primeira linha, foram apontadas nulidades à sentença homologatória da partilha.

Na perspectiva do Recorrente não foram especificados os fundamentos do preenchimento do legado com a adjudicação (em oposição com o decidido na conferência de interessados), e é ambígua porque adjudicou à legatária o valor total das verbas em causa e não na proporção do direito do testador.

Em suma, considera o Recorrente que a sentença não se encontra devidamente fundamentada, é ambígua e ultrapassou o pedido, desrespeitando o disposto no art. 615.º, n.º 1al. b), c) e e) do C.P.Civil.

No que respeita à sentença, o art. 1122.º, n.º 1 do C.P.Civil determina que depois de decididas todas as questões, o juiz profere sentença homologatória da partilha constante do mapa.

A sucessão de actos processuais específicos do processo de inventário culmina na sentença que se limita a homologar o mapa da partilha.

Por conseguinte, a homologação, por sentença, do mapa da partilha, traduz a aprovação do juiz no sentido de que aquele acto está em conformidade com o que anteriormente foi decidido e determinado no processo de inventário.

Não se exige, atendendo à sua natureza meramente homologatória, a fundamentação de facto e de direito que a sentença proferida no âmbito de um litígio deve obedecer-v. art. 607.º do C.P.Civil.

Neste sentido o Acórdão do STJ,[1] de 11/11/2021, esclareceu:“Não – advirta-se – que a sentença homologatória não seja uma decisão, porquanto também ela efectua um julgamento. Mas este julgamento é de natureza diferente do que realizam as demais sentenças. Na sentença homologatória da partilha, o juiz limita-se a fazer um controlo de legalidade, a verificar se o mapa da partilha aparenta conformidade com a lei (capacidade e legitimidade das partes, respeito pela forma à partilha e operações subsequentes e respeito pelas normas legais imperativas), de uma forma perfunctória e sem necessidade de uma exaustiva indagação. Daí que o juízo de conformidade se assuma implícito e, segundo uma antiga prática judicial, a sentença homologatória da partilha surgisse com uma forma tabelar. Não havendo notícia de que tenha ocorrido qualquer reclamação do mapa de partilha não se afigura que houvesse necessidade de qualquer fundamentação mais específica da sentença.”

O que parece estar em causa, com o recurso da sentença, é justamente a desconformidade do mapa da partilha com o que foi decidido na conferência de interessados e com as normas jurídicas aplicáveis ao legado e ao regime do património comum dos cônjuges.

Mas antes de iniciarmos a análise do regime substantivo, afigura-se-nos importante também saber se os actos acima descritos observaram as normas adjectivas do inventário.

Segundo o artigo 1110.º (Saneamento do processo e marcação da conferência de interessados):

1 -Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que:

a)Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar;

b)Ordena a notificação dos interessados e do Ministério Público que tenha intervenção principal para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha.

2 - Findo o prazo estabelecido no número anterior, o juiz:

a)Profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados;

O despacho determinativo da partilha é proferido depois de terem sido resolvidas todas as questões que possam influir na partilha.

Este despacho, segundo Lopes Cardoso,[2]tem natureza preclusiva que o equipara a uma sentença, razão pela qual é susceptível de recurso autónomo.

E acrescenta, com interesse, que “…determina com rigor a distribuição dos bens da herança pelos interessados…”[3]

Nos presente autos, como resulta do relatório, não foi proferido, em bom rigor, o necessário e fundamental despacho determinativo da partilha.

Apenas se atribuiu ao único interessado o total obtido, após a soma do valor dos bens com a dedução do passivo, ao filho dos inventariados, “sem prejuízo do cumprimento dos legados deixados pelo inventariado (usufruto sobre os bens relacionados sob as verbas 2, 3, 6, 14,16 e 17 da relação de bens).”

A divisão das heranças deixadas pelos inventariados e a determinação das respetivas legítimas/quotas disponíveis em conformidade com as normas sucessórias, não foram objecto do despacho da partilha. Sobre a forma de cumprimento dos legados o despacho também é omisso.

A equiparação do despacho determinativo da partilha a uma sentença, admitindo, pela sua importância, recurso autónomo, permite-nos concluir que estamos perante o vício grave de inexistência, o qual, no ensinamento de Betti[4] se reconduz a “não conter a sentença uma verdadeira decisão ou conter uma decisão incapaz de produzir qualquer efeito jurídico.”

Como já salientámos, não se determinou, com base nas normas substantivas aplicáveis, de que forma seria feita a partilha dos acervos hereditários dos cônjuges, atendendo ao regime de bens, às legítimas e quotas disponíveis e não foi elucidado como seria cumprido o legado do usufruto e do veículo automóvel uma vez que se trata de bens comuns do casal e que todos foram adjudicados, sem excepção, ao filho dos inventariados e cabeça-de-casal.

Na sequência do despacho determinativo da partilha, os interessados são notificados para apresentarem proposta de mapa da partilha e se existirem divergências o juiz profere despacho destinado a solucioná-las e determina a elaboração do mapa da partilha pela secretaria em conformidade com o decidido (cfr. art. 1120.º, n.º 1 e 2 do CPC).

Na formação do mapa, a secretaria deve determinar, em primeiro lugar, a importância total do ativo, somando os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efetuadas e deduzindo as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos, após o que se determina o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, e por fim faz o preenchimento de cada quota com referência às verbas ou lotes dos bens relacionados (n.º 3).

Determina-se ainda no n.º 4 do citado preceito legal que, no preenchimento dos quinhões, observam-se as seguintes regras:

a) Os bens licitados são adjudicados ao respetivo licitante e os bens doados ou legados são adjudicados ao respetivo donatário ou legatário;

b) A quota dos não conferentes ou não licitantes é integrada de acordo com o disposto no artigo 1117.º

A secretaria elaborou o mapa da partilha respeitando o despacho que atribuiu tão-só ao interessado o valor obtido consignando apenas que “Á exceção da verba nº 5, todos os bens serão adjudicados ao interessado CC, filho dos inventariados.

Cumprindo o testamento, o usufruto das verbas nº 2, 13, 15 e 16. Será adjudicado á legatária DD.”

O mapa da partilha reflectiu o vício desse despacho, de inexistência da forma como deviam ser partilhados os bens dos inventariados, motivando as reclamações do interessado e da legatária.

Foi a legatária quem, através da reclamação, chamou a atenção para a necessidade de serem elaboradas duas partilhas, a primeira respeitante à inventariada e a segunda ao inventariado.

Por seu turno, o cabeça-de-casal colocou, em sede de reclamação, várias questões:

1-O valor do usufruto não podia corresponder à totalidade mas sim à proporção que o testador legou (75%).

2-Os bens legados eram bens comuns do casal aqui inventariados.

3-A verba 5 também nunca foi propriedade exclusiva do testador mas sim bem comum, devendo lhe ser atribuída ao cc, cabendo à legatária a parte correspondente à quota pertencente as testador.

Concluiu que, somados esses valores, determinados de acordo com a proporção referida, mostrar-se-á encontrado o valor correcto do legado, para que possa ser cumprido, pelo sujeito passivo dessa obrigação. (sublinhados nossos)

Perante o teor das reclamações devia ter sido sanado o vício de omissão do despacho determinativo da forma das partilhas das heranças dos inventariados com a resolução das inerentes questões de natureza substantiva.

Ao invés, o tribunal limitou-se a determinar a correcção do mapa da partilha em conformidade com os referidos requerimentos, com excepção da verba descrita com o n.º 5 -veículo automóvel-que entendeu ter sido legado por inteiro e não na proporção do direito do testador.

Consequentemente, foi elaborado novo mapa da partilha, mais uma vez sem ter na sua base o despacho sobre a forma como as heranças deviam ser partilhadas e principalmente omitindo a resolução da questão do cumprimento do legado (em espécie ou em valor) tendo em consideração, como o cabeça-de-casal observou, que os bens não pertenciam em exclusivo ao inventariado e que foram todos adjudicados, na conferência de interessados, ao Recorrente.

Todavia, a secção calculou o valor do usufruto, conseguiu descrever as operações de partilha das duas heranças, e os pagamentos, excluindo a verba 5 do quinhão do interessado.

A sentença homologatória deste mapa da partilha está, consequentemente, inquinada pelas omissões que se verificaram nos trâmites do inventário e que influíram no mapa da partilha e naturalmente nessa decisão final.

E dúvidas também não restam, como anteriormente se referiu, sobre a inexistência de decisão relativamente à questão dos legados do usufruto e do veículo perante o que foi decidido na conferência de interessados e ao regime de bens do casal.

Esta omissão motivou as dúvidas que o Recorrente expôs no recurso, apontando ainda o vício de ambiguidade da sentença.

Neste particular, o Recorrente declarou que “na elaboração do mapa de partilha, foi feito o cálculo do valor do usufruto a atribuir à legatária no montante de 52.410,36 € (69.213,80 € x 75%) sendo desse modo respeitado o decidido na Conferência de interessado.

Já o mesmo não poderá dizer-se no que respeita ao modo de pagamento pois que ali se refere que a legatária haverá o usufruto das verbas 2,13,15 e 16 da quota ideal pertencente ao testador.

O certo é que o que parecia claro e de acordo com a Lei passou a ser ambíguo e obscuro, seja pela sua oposição ao anteriormente decidido seja pela falta de clareza (usufruto versus seu valor).

Assim, se o cumprimento do legado for feito com o pagamento do valor encontrado, que até e por sinal é o correcto, por corresponder aos 75%, mostra-se cumprida a Lei.”

Ou seja, o Recorrente ficou sem saber de que forma será cumprido o legado, advogando que deve ser feito através do pagamento do respectivo valor à legatária por serem bens comuns do casal de inventariados.

Abrantes Geraldes[5] perfilha a tese de admissibilidade de recurso fundado em nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, sem necessidade de prévia reclamação pelo interessado, “sempre que o juiz, ao proferir a sentença, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei…”

A falta de esclarecimento de índole decisória sobre o cumprimento dos legados considerando o regime de bens do casamento dos inventariados e a circunstância de terem sido adjudicados todos os bens ao cabeça-de-casal na conferência de interessados, integra a nulidade de omissão de pronúncia-v. art. 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.Civil-que cumpre agora sanar, analisando o regime substantivo.

No plano substantivo, falecida uma pessoa são chamados os sucessores, como determina o artigo 2024.º do C.Civil, à titularidade das relações jurídicas patrimoniais e consequente devolução dos bens que lhe pertenciam.

Nesta conformidade, o acervo hereditário é constituído pelos bens patrimoniais pertencentes ao de cujus na data do respectivo óbito e pelos indicados no art. 2069º do Código Civil.

Para efeito de relacionamento dos bens, função que compete ao cabeça-de-casal, importa atender tão-só aos que existiam na esfera jurídica do inventariado à data do óbito.

No que respeita à espécie de sucessores, a lei distingue entre herdeiros e legatários, sendo os primeiros aqueles que sucedem na totalidade ou numa quota do património do falecido e os segundos os que sucedem em bens ou valores determinados-cfr. art. 2030.º, n.º 1 e 2 do C.Civil.

O usufrutuário, ainda que o seu direito incida sobre a totalidade do património, é havido, segundo o n.º 4, como legatário.

A qualificação de herdeiro ou legatário, face ao disposto no n.º 5 do citado preceito legal, tem carácter imperativo, não podendo o testador alterá-la por sua vontade.

Cumpre apurar “uma massa activa que abrange os bens próprios do de cuius e o direito à sua meação nos bens comuns e uma massa passiva…”.[6]

No regime de comunhão geral de bens, os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão-cfr. art. 1730.º ex vi art. 1734.º do CC.

Por conseguinte, importa considerar as quotas referentes à legítima dos herdeiros legitimários.

Entende-se por legítima, segundo o art. 2156.º do CC, a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, ou seja, o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima.

A ordem por que são chamados os herdeiros é a que consta do art. 2133.º, n.º 1 designadamente o cônjuge e descendentes (al.a)).

A legítima do cônjuge e dos filhos, é de 2/3 da herança-art. 2159.º, n.º 1 do CC.

Para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas à colação e às dívidas da herança-v. art. 2162.º, n.º 1 do CC.

A partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes quantos forem os herdeiros; a quota do cônjuge, porém, não pode ser inferior a uma quarta parte da herança-v. art. 2139.º, n.º 1 do CC

Nas palavras de Capelo de Sousa[7] “para se encontrar o valor da herança na sucessão legitimária para aqueles efeitos, temos de começar pela avaliação dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte. A este conjunto de valores devemos deduzir, desde logo, as dívidas da herança (…). Após o que devemos aditar ao resultado obtido o valor dos bens doados bem como o valor das despesas sujeitas a colação. O produto final constituirá, então, o valor global da herança para efeitos de cálculo da legítima.”

No caso concreto de inventários cumulados de cônjuges, as operações de partilha devem obedecer a estas regras, ou seja, à soma de todos os bens comuns, e, após a separação das meações, determinar a legítima referente a cada inventário, imputar nela as doações e dividir por quatro o valor sobrante, não ofendendo, assim, a quarta parte que compete à inventariada no inventário do seu ex-cônjuge.” (sublinhado nosso)

A secretaria procedeu à separação das meações e obteve a quota de cada interessado fazendo corresponder a cada uma o respectivo valor.

Assim sendo, apenas cumpre resolver a questão principal que o Recorrente suscitou no recurso relativa ao cumprimento dos legados.

No que respeita aos legados, o inventariado, por testamento, legou o usufruto de determinados bens imóveis e bens móveis, do património comum do casal, a DD.

O inventariado legou o usufruto de tais bens comuns do casal, na proporção do seu direito, ou seja, na quota ideal de 75%, à excepção do veículo automóvel (verba 5), que legou na totalidade.

Nos termos do art.º 2252.º, n.º 1 do CC “Se o testador legar uma coisa que não lhe pertença por inteiro, o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertencer…”.

Mas esta regra, alerta o n.º 2 do art. 2252.º, não prejudica o estabelecido no art. 1685.º quanto à deixa de coisa certa e determinada do património comum dos cônjuges.

Ora, segundo o n.º 2 do art. 1685.º, do CC “A disposição que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro”.

P. de Lima e A. de Varela[8] compararam o regime pretérito com o actual e concluíram que esta norma é mais rígida por afastar completamente a possibilidade de conversão da disposição em substância bem como da sua convalidação por efeito da partilha subsequente à morte do disponente e impondo a conversão sistemática da disposição em legado pecuniário.

Apenas poderá ser cumprido em espécie, se, em conformidade com o n.º 3 da citada norma, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte (al.a)) ou se foi previamente autorizada pelo outro cônjuge no testamento ou por forma autêntica (al. b)), ou em benefício do outro (n.º 3, als. a) a c)).

Desde há décadas que a jurisprudência, reiteradamente, tem decidido que no caso de legado de coisa certa, pertencente ao património comum do casal, a disposição testamentária apenas confere ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor em dinheiro.[9]

No caso concreto o inventariado legou o usufruto de bens comuns do casal, ou seja, bens que não lhe pertenciam em exclusivo.

Aplicando as normas jurídicas acima mencionadas à operação da partilha dos inventários cumulados, os legados, para além de serem imputados integralmente na quota disponível do testador, são obrigatoriamente convertidos em valor pecuniário, na proporção de 75% e de 100% no que concerne ao veículo automóvel, de acordo com a vontade expressa no testamento.

Por outras palavras, a legatária não pode exigir que lhe seja adjudicado o veículo automóvel nem o usufruto dos demais bens legados mas tão-só o respectivo valor pecuniário.

Por último, ainda nos falta decidir sobre a questão da desconformidade do mapa da partilha e consequentemente da sentença que o homologou com o que foi decidido na conferência de interessados.

Nesta matéria, o Acórdão do STJ, de 04/02/2010[10], esclareceu que “O legatário é “interessado” no inventário, ainda que, como se vê, claramente, do artigo 1341.º, não seja “interessado directo na partilha”;

Os bens legados, ainda que com o seu regime próprio, devem constar do acervo dos bens relacionados.”

E concluiu-se, no sumário, que “3.E os bens legados, com o seu regime próprio, devem constar do acervo dos bens relacionados.4.Neles podendo licitar qualquer interessado, se o legatário se não opuser.5. Abre-se, assim, caminho a que, derrogando-se a vontade de legar do testador, caiba o bem legado a pessoa diferente do legatário.

Na conferência de interessados a legatária não se opôs que fosse adjudicado ao interessado o veículo automóvel, objecto do legado.

De qualquer modo, não era atendível a oposição da legatária porque só tinha e tem direito ao respectivo valor pecuniário, por ser um bem comum do casal.

Por conseguinte, a regra do n.º 4, al. a) do art. 1120.º do C.P.Civil que determina o preenchimento dos quinhões, no mapa da partilha, mediante a adjudicação dos bens legados ao respectivo legatário não é aplicável em razão do regime substantivo que se impõe observar.

Pelas razões aduzidas, assiste razão ao Recorrente por não haver dúvida de que ocorreu omissão de pronúncia e manifesta irregularidade na homologação de um mapa que não atendeu ao que ficou decidido na conferência de interessados nem ao regime de bens do casal.


*

V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, anulam o mapa da partilha e subsequente sentença homologatória, e determinam a elaboração de um novo mapa da partilha em conformidade com as normas acima explicitadas.

Custas pela Recorrida.

Notifique.


Porto, 28/10/2025
Anabela Miranda
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
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[1] Rel. Catarina Serra, disponível em www.dgsi.pt
[2] Partilhas Judiciais, vol. II, pág. 625
[3] Ob. cit. pág. 644.
[4] Citado por A. Varela, M. Bezerra e S. e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 686 e nota 3.
[5] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, pág. 25.
[6] Sousa, de Capelo Rabindranath, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, Coimbra Editora, 1990, págs. 155 e 156.
[7] Ob. cit., pág. 160.
[8] Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição revista, pág. 312.
[9] V., entre outros, Acs. TRP de 13/06/2023, 17/04/2023, TRC de 13/12/2023, TRG de 05/05/2005 disponíveis em www.dgsi.pt
[10] Rel. João Bernardo, disponível em www.dgsi.pt.