Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1319/20.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACORDO DE PAGAMENTO
LISTA DE CRÉDITOS DEFINITIVOS
CRÉDITOS CONSTITUÍDOS
EFEITOS DO RECONHECIMENTO DO CRÉDITO NO PEAP
Nº do Documento: RP202011241319/20.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Créditos constituídos são aqueles que resultam de obrigações já formadas, embora a sua concreta definição e possibilidade de exercício estejam dependentes de decisão jurisdicional. A necessidade dessa decisão jurisdicional sustenta a sua classificação como litigiosos, mas não como créditos constituendos.
II - As decisões tomadas sobre a inclusão, ou não, de créditos litigiosos na lista de créditos definitivos só têm efeitos dentro do PEAP (ou do PER), não constituindo caso julgado fora dele. Os seus efeitos restringem-se à identificação dos credores que hão-de compor o quórum deliberativo, nada definindo sobre a existência ou não do próprio crédito. A negação de uma tal força de caso julgado à decisão refere-se à questão da existência, ou não, do crédito e não, também, à repercussão do acordo de pagamento para esse crédito, caso venha a ser tido por efectivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 1319/20.0T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4

REL. N.º 587
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

B…, residente na Rua …, n.º …, Freguesia …, concelho do Porto, instaurou o presente Processo Especial de Acordo para Pagamento, ao abrigo do disposto no artigo 222º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Admitido liminarmente esse pedido, foi nomeado o administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 17º-C n.º 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. O administrador juntou lista provisória de créditos, que foi alvo de uma impugnação pela C….
Pretendia a C… que um crédito por si invocado (de 1.288.859,48€, a acrescer com juros), dependente da obtenção de uma sentença condenatória do requerente em acção judicial em curso no Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca de Aveiro, aqui fosse qualificado como crédito sob condição, o que – segundo alega - a habilitaria a participar nas negociações e nas votações tendentes á definição do resultado do processo, prevenindo a hipótese de os seus direitos serem coarctados.
Tal impugnação foi julgada improcedente, tendo o crédito invocado pela C… sido classificado como litigioso e rejeitado, face à sua não inclusão voluntária pelas partes, no processo de acordo.
Concluídas as negociações, foi o plano apresentado pelo devedor submetido a votação, tendo sido votado favoravelmente por credores representando 100% dos créditos constantes da lista definitiva de credores.
Foi, então, proferida sentença de homologação desse acordo, nos seguintes termos:
“No caso vertente, não se vislumbra a violação não negligenciável de quaisquer regras procedimentais e constituindo a votação a unânime manifestação dos credores, haverá que aprovar o plano apresentado, nos termos dos artigos 222º-F, nºs 5 e 6, 215º, 194º e 216º, n.º 1, al. a), do CIRE, decide-se homologar o plano.
(…)
Pelo exposto, homologo por sentença, nos termos do 222º-F, nºs 5 e 6 do CIRE, o acordo de pagamentos do Devedor B…, (…)
A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, sem prejuízo do decidido quanto ao Credor Impugnante – artigo 222º-F, n.º 8 do CIRE.”
É desta sentença que a C… vem interpor recurso, que termina formulando as seguintes conclusões:
1 - Em 10-07-2020, foi proferida decisão de homologação do PEAP junto aos autos, ao qual a recorrente não aceita estar vinculada, razão pela qual interpõe o presente recurso.
2 - O crédito da recorrente não foi reconhecido, nem na lista provisória do art. 222.º-D n.º 3 do CIRE, nem em sentença de 11-05-2020, a qual decidiu pela improcedência da impugnação à lista de credores deduzida pela recorrente, na medida em que o crédito por si reclamado não podia ser classificado como “condicional” (nem como nenhum dos elencados no art. 47.º., n.º 4 ou 50.º do CIRE), sendo, ao invés um crédito litigioso (discutido no processo 1818/11.4T2AVR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Cível - J1), que não cabe em nenhuma das normas referidas.
3 - Como o crédito da recorrente foi classificado como litigioso pelo Tribunal a quo, não foi reconhecido e, por isso, é inexistente para efeitos deste PEAP.
4 - Porém, como as decisões relativas às impugnações não fazem caso julgado material, o não reconhecimento do crédito apenas tem relevância para os termos do 222.º-F n.º 3 do CIRE.
5 - O Sr. AJP e o devedor sempre pugnaram e se manifestaram no sentido do não reconhecimento do crédito da C… (seja em sede de lista provisória, seja em sede de resposta à impugnação deduzida), crê-se que como parte de uma estratégia do devedor para, inicialmente excluir a recorrente de qualquer “voto na matéria” quanto ao PEAP a aprovar, e depois vir tentar que a mesma lhe fique vinculada, de tal forma que o seu (futuro) crédito comum, de valor muito avultado, fique praticamente “reduzido a zeros”.
6 - Do mesmo passo que não reconheceu o crédito, a sentença de 11-05-2020 referiu que “o acordo de pagamento, ainda que homologado, não terá qualquer efeito extintivo sobre a referida acção, ao abrigo do disposto no art. 222.º-E n.º 1 do CIRE”.
7 – Posteriormente, na d. sentença de homologação do PEAP sob recurso, diz-se que “a presente decisão vincula todos os credores, mesmo os que não hajam participado nas decisões, sem prejuízo do decidido quanto ao credor impugnante - art. 222.º-F n.º 8 do CIRE”.
8 – Dessas decisões interpretou a recorrente que o seu crédito (que, à data ainda não “existe”) não sofreria qualquer contingência com a homologação do PEAP, sendo que, finda a acção n.º 1818/11.4T2AVR teria o direito a reclamar do recorrido o pagamento da totalidade do valor em que este fosse condenado a ressarci-la, sem que fosse afectada pelo mesmo.
9 – Porém, sem prejuízo da interpretação, que entende ser a correcta, e aquilo porque pugna (por óbvias razões de justeza!), por cautela de patrocínio, a recorrente interpõe recurso da sentença de homologação do plano, ao abrigo do art. 631.º, n.º 2 do CPC, pois, apesar de não ser parte no PEAP é “pessoa – que pode ser - directa e efectivamente prejudicada pela decisão” de homologação, caso se considere que o mesmo lhe é aplicável e que lhe está vinculada.
10 - É que a redacção dos trechos das sentenças supra transcritos não é, com o devido respeito, muito clara no que concerne aos efeitos do plano sobre o crédito da recorrente e levanta-lhe algumas dúvidas, as quais são especialmente reforçadas pelo facto de o devedor ter tido a enormíssima preocupação de muitas vezes referir o crédito litigioso da C… ao longo do PEAP e até na acta de votação (a fim de claramente tentar vinculá-la ao mesmo).
11 - Assim, o “quadro” dos autos é o seguinte: o mesmo devedor que inicialmente sempre pugnou que o crédito da recorrente não existe e nunca o reconheceu, posteriormente, a partir da apresentação do acordo de pagamento para homologação, num completo “volte-face”, e porque assim lhe interessa, tem a preocupação de o mencionar muitas vezes no plano de pagamentos, por forma a, assim, tentar vinculá-la a um plano ao qual a C… foi totalmente alheia, e que reduz o seu (futuro) crédito a um montante irrisório (5% de capital a pagar em 12 prestações anuais).
12 - Ora, a recorrente não pode aceitar a sua eventual vinculação a um PEAP (e a um escandaloso plano de pagamentos), que nada mais é do que o uso de um expediente processual de forma anormal, duvidosa e abusiva, e que constitui clamorosa tentativa do devedor em eximir-se ao ressarcimento à C… do valor que seja condenado a pagar-lhe em caso de procedência da acção n.º 1818/11.4T2AVR, procurando esvaziar a lide (que se funda na omissão, por parte do devedor, dos seus deveres e responsabilidades enquanto AI) de qualquer efeito condenatório prático.
13 - A recorrente reage da única forma que lhe é possível, e no momento próprio, através do presente recurso da decisão de homologação do plano, até porque nem sequer poderia, posteriormente, propor uma acção de verificação ulterior de créditos (pois tal só é possível nos processos de insolvência, e não no PER nem no PEAP).
14 - A tentativa do recorrido em vincular a recorrente ao plano apresentado, não pode prevalecer, dado que:
a) o crédito da ora recorrente é “inexistente” à data deste PEAP (cf. pág. 6 da sentença de 11-05-2020) e, por isso, não pode aí ser reconhecido;
b) se o crédito da recorrente não existe à data do PEAP, então o mesmo não pode estar-lhe vinculado;
c) a admitir-se tal (ilógico) raciocínio, e seguindo essa ordem de ideias, também teriam de estar vinculados ao PEAP todos os futuros credores do devedor (mesmo aqueles em que não se conhecesse o montante do crédito, ou tampouco a sua identidade) - o que, obviamente, carece qualquer fundamento;
15 - Isto mesmo é o que se retira do art. 222.º-F n.º 8 do CIRE: “ A decisão de homologação vincula o devedor e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 222.º-C [decisão de nomeação do administrador provisório], e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.”
16 - Assim, se o crédito da recorrente não estava constituído à data da decisão prevista no art. 222.º-C n.º 4 do CIRE (que não estava), então a decisão de homologação - e o teor do PEAP - não a vinculam nem ao crédito que esta venha a ter direito a receber do devedor, em consequência da sua condenação no âmbito do processo 1818/11.4T2AVR (crédito este que a C… terá direito a receber no valor total da condenação, não estando sujeito/vinculado ao “perdão de passivo” deste PEAP, em que o devedor tentou incluí-la).
17 - Outro entendimento que não este contende com - e viola em toda a sua extensão - o disposto no art. 222.º-F n.º 8 do CIRE.
18 - Por crassa violação do art. 222.º-F n.º 8 do CIRE não pode aqui aplicar-se, como pretende o recorrido, o disposto no art. 252.º, n.º 3 do CIRE (por aplicação analógica, nos termos do art. 222.º-A n.º 3 do CIRE), pois que tal só é possível quando não seja incompatível com este processo.
19 - Ora, se uma disposição específica quanto ao PEAP (o art. 222.º-F, n.º 8 do CIRE) postula que a sua homologação só vincula os créditos que estejam constituídos ao tempo da decisão de nomeação do AJP - que não é o caso do crédito da recorrente - então não pode aplicar-se analogicamente a esse seu [da recorrente] crédito o disposto no art. 252.º, n.º 3 do CIRE, pois que tal entra em contradição com o que dispõe a norma especial.
20 - Também não pode aplicar-se ao caso dos autos o disposto no art. 180.º e 181.º do CIRE, pois aqui não há qualquer recurso de sentença de verificação e graduação de créditos ou protesto por acção pendente - pelo que o crédito não pode ser considerado condicionalmente verificado (como não o foi) e, da mesma forma, o crédito da recorrente não é um crédito sob condição suspensiva (mas sim controvertido, ou litigioso).
21 - Nos processos de PER e PEAP o credor cujo crédito ainda não existe à data da decisão referida no art. 224.º-C n.º 4 do CIRE não tem a possibilidade de, posteriormente, deduzir acção de verificação ulterior de créditos (ao invés do que acontece na insolvência - art. 146.º do CIRE) pelo que, também por isso ainda menos se pode aceitar que um crédito que ainda não está constituído à data deste PEAP (como é o da recorrente) esteja por ele afectado/vinculado.
22 - Toda a conduta do recorrido, nos termos já supra referidos, é reprovável, abusiva do direito e do expediente processual do PEAP e, suspeita-se, tem como único objectivo prejudicar a recorrente, esvaziando de utilidade prática a lide 1818/11.4T2AVR e reduzir a um montante irrisório o eventual crédito que este seja condenado a pagar-lhe (quase como se tentasse exonerar-se do passivo restante, como é possível na insolvência - ainda que, mesmo nesse caso, tal pudesse não ser líquido, cfr. art. 245.º, n.º 2 b) do CIRE).
23 - O PEAP dos presentes autos iniciou-se em princípios do ano de 2020, posteriormente ao facto de a seguradora D…, para onde o recorrido tem a sua responsabilidade transferida, ter recusado assumir a responsabilidade pelo sinistro dos autos n.º 1818/11.4T2AVR, o que mais leva a crer que o que o recorrido pretende é eximir-se às consequências práticas de uma eventual condenação em sede dessa acção declarativa.
24 - Por outro lado, excepção feita aos créditos reclamados pela AT e da credora comum E…, Lda., todos os demais credores reconhecidos do devedor são pessoas especialmente relacionadas com este (art. 40.º do CIRE), o que causa estranheza, e levanta dúvidas quanto à forma com que possa ter sido conduzido o processo (pois a possibilidade de o mesmo ser controlado pelo recorrido é, atenta a natureza dos laços envolvidos, muito maior do que num processo onde não existam relações “especiais” entre devedor e credores).
25 - Os créditos privilegiados das duas filhas do devedor – F… e G… - dizem, em grande parte, respeito, a prestações de alimentos vincendas, estranhando-se que hajam sido reconhecidos valores de pensão de alimentos que não estão efectivamente constituídos à data do PEAP, por ainda não se terem vencido (contrariando o disposto no art. 222.º-F n.º 8 e 222.º-C n.º 4 do CIRE), possivelmente, como forma de fazer aumentar o número de votos atribuídos àquelas credoras, para efeitos de aprovação do PEAP).
26 - E mesmo o avultado valor de créditos reconhecidos relativo à desmobilização das denominadas “poupanças de família”, no valor de 550.000 € levanta dúvidas à recorrente, pois são quantias elevadíssimas depositadas no estrangeiro e em nome de 3 pessoas e não 2.
27 – Com efeito, do que se retira dos parcos documentos juntos ao requerimento inicial do PEAP, trata-se de poupanças em nome do devedor e das filhas, pelo que cada uma das filhas credoras apenas teria direito a reclamar 1/3 do valor em conta e não metade cada uma delas, como parecem ter reclamado.
28 - Por outro lado, também o crédito reclamado e reconhecido pela H…, Unipessoal, Lda., de que o recorrido é o (único) sócio/gerente (especialmente relacionada com o devedor), levanta alguma estranheza pois não é, de todo, consentâneo com os padrões da experiência normal e usos do comércio que uma sociedade unipessoal tenha um crédito para com o seu único sócio/gerente relativo a devolução de sinal de contrai promessa em falta.
29 - Mesmo o crédito da credora E…, Lda., no valor de 348.598,28 € aparece descrito, na lista de créditos, em moldes que não podem deixar de levantar dúvidas, dada a sua falta de clareza: quais os contornos do negócio de mútuo, quais os contornos da prestação de serviços? Há facturas que a titulem?
30 - Ademais, causa imensa estranheza que os credores reconhecidos e que participaram nas negociações aceitem tamanho perdão de passivo (95% para os credores comuns e 99% para os subordinados, sendo todos com integral perdão de juros), pelo que tanta benevolência não pode deixar de causar pasmo na recorrente.
31 - Tamanha bondade não é usual nem normal para os padrões do comércio actual e leva a recorrente a questionar-se por que razão vieram estes credores reclamar os seus créditos aos autos se, depois, viriam a perdoá-los quase na totalidade.
32 - A resposta que se encontra é a de que esta é uma forma de atribuir direitos de voto a estes credores a fim de conseguir a aprovação do plano de pagamentos (à revelia da recorrente).
33 – Com efeito, na prática, e em condições normais, não faz qualquer sentido que um credor venha aos autos reclamar um crédito que é para perdoar a 99% ou a 95%.
34 - De tudo o que se expôs, e dos meandros que envolvem este PEAP e a sua aprovação, suspeita a recorrente que o objectivo central do mesmo era tentar prejudicá-la no recebimento do seu crédito futuro perante o recorrido, o que não pode aceitar-se e constitui, desde logo, uso anormal do processo, nos termos do art. 612.º do CPC, o que é de conhecimento oficioso, pelo que o Tribunal a quo - apesar dos seus poderes de cognição limitados - sempre deveria tomar conhecimento do mesmo, o que, com o devido respeito, não fez, e por isso aqui se pede que seja sindicado pelo Tribunal da Relação.
35 - Permitir-se que o crédito da C… seja vinculado pelo PEAP (e reduzido ao ínfimo montante de 5% referido no plano) - traduz-se:
a) num prejuízo monumental para a recorrente ao qual esta não terá qualquer outra forma de se opor (pois que além de não ter tido direito de participar nas negociações, nem sequer tem hipótese de deduzir acção de verificação ulterior de créditos);
b) num clamoroso uso anormal do processo e abuso de direito por parte do recorrido que, atentas as escandalosamente benevolentes propostas de pagamento dos créditos aceites pelos credores, assim como os meandros que presidiram ao reconhecimento dos créditos e à obtenção de votos para aprovação do mesmo, a ser aceite pelo d. Tribunal, constitui evidente e enorme injustiça.
Pelas razões expostas, a recorrente pugna pela não vinculação do crédito que venha a ter sobre o recorrido no âmbito da acção n.º 1818/11.4T2AVR ao PEAP dos presentes autos, fazendo-se, assim, Justiça!
O requerente apresentou resposta ao recurso, defendendo mesmo a sua inadmissibilidade, por a recorrente não ter requerido ao tribunal, em tempo oportuno, a não homologação do acordo. Sem prejuízo, alegou a falta de fundamento e oportunidade da apelante para se pronunciar sobre os créditos considerados no processo, porquanto estes se tornaram definitivos em face da sua consideração na lista provisória e da ausência de qualquer impugnação quanto a essa inclusão.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Foi recebido nesta Relação, onde cabe decidi-lo.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
No caso, a identificação de tais questões torna-se uma tarefa complexa, pois não obstante as vastas considerações feitas pela apelante, o que se constata é que a mesma, a final, não pretende contestar a decisão que decidiu negativamente a impugnação da lista de credores que tinha deduzido, nem sequer a solução de homologação do acordo de credores decretada pelo tribunal, no termo do processo, pelo menos no que respeita às soluções genericamente adoptadas. O que pretende é, em suma, que se afirme a “… não vinculação do crédito que venha a ter sobre o recorrido no âmbito da acção n.º 1818/11.4T2AVR ao PEAP dos presentes autos…”
Considerando que a sentença compreende, com efeito, a afirmação nos termos da qual expressou que “A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, sem prejuízo do decidido quanto ao Credor Impugnante – artigo 222º-F, n.º 8 do CIRE.”, entende-se não dever deixar de ser apreciado o presente recurso.
Esta conclusão implica a rejeição da tese do apelado, nos termos da qual não se deveria poder admitir o presente recurso, dado que a apelante, em tempo oportuno, nem sequer solicitou ao tribunal recorrido a não homologação do acordo de pagamento, ao abrigo do disposto no art, 216º, nº 1, al. a) do CIRE, designadamente sob a alegação que, com este, ficaria previsivelmente numa situação menos favorável do que sem ele. Segundo tal construção, não tendo sido colocada a questão em primeira instância, a mesma constituiria uma questão nova, i. é, suscitada ex novo nesta instância de recurso, pelo que não poderia ser conhecida.
Acontece que, no caso dos autos, a partir do momento em que a ora apelante foi excluída de qualquer intervenção nas negociações do acordo de pagamento, por não ter sido considerada titular de um crédito que a tal a habilitasse, nem sequer se pode ter a certeza de que teve conhecimento do teor do acordo negociado, antes da sua votação pelos credores admitidos à lista definitiva de créditos. E é evidente que não foi admitida à votação na deliberação que operou a aprovação do acordo.
Por outro lado, tendo a aprovação do acordo de pagamento merecido a unanimidade dos credores constantes da lista definitiva, nem sequer ocorreu a sua publicitação no portal Citius, a fim de facultar a qualquer interessado a hipótese de solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 215º e 216º, tal como dispõe o art. 222º-F, todos do CIRE.
Por conseguinte, prejudicada está a exigência de que pudesse requerer atempadamente ao tribunal a não homologação do acordo de pagamento, à luz do regime do art. 216º do CIRE, como condição da sua ulterior legitimação para a impugnação, em sede de recurso, da sentença homologatória de um tal acordo, pois que se não lhe asseguraram as condições para que o pudesse fazer.
Note-se, a este propósito, que no processo nº 3187/17.0T8VFX-2, decidido no Ac. do TRL, de 7/6/2018, citado pelo apelado, o interessado a quem se exigia que tivesse requerido a não homologação do acordo em 1ª instância, a fim de que a questão não surgisse como nova em sede de recurso, era um credor reconhecido como tal, ao contrário do que acontece nos presentes autos, onde a ora apelante jamais teve oportunidade de suscitar ao juiz, nos termos daquele art. 216º, a inconveniência de um acordo de pagamento a cuja negociação foi sempre alheia. Veja-se, a este propósito, a nota 5. aposta ao art. 216º, em Carvalho Fernandes e João Labareda, C.I.R.E Anotado, 2º ed., pg. 831)
Não se verifica, pois, o impedimento oposto à apreciação do presente recurso.
Acresce que, tal como consta do excerto da sentença que supra se decidiu, o tribunal não deixou de se referir à situação do credor impugnante, afirmando quer que a decisão recorrida vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, o que se traduz na citação do regime constante do artº 222º-F, n.º 8 do CIRE, quer que isso ocorre “sem prejuízo do decidido quanto ao Credor Impugnante”.
Cabe, então, verificar o que se dispôs em tal acordo, que possa ter sido decidido quanto à C…, ora apelante. Dos termos de tal acordo, consta o seguinte:
“(…)
4) Relativamente aos créditos Comuns, sejam os mesmos litigiosos, condicionais e incondicionais, é proposto:
a) Perdão de 100% dos juros compensatórios, juros de mora, cláusulas penais ou compulsórias;
b) Perdão de 95% do restante valor em dívida;
c) Carência de pagamento de 6 meses, iniciado no mês seguinte à data do despacho de homologação do acordo de pagamento;
d) Pagamento de 5% do restante valor em dívida, em 12 prestações anuais, iguais e sucessivas, vencendose a primeira no mês seguinte à conclusão do período de carência;
e) Aplicação do primeiro parágrafo da cláusula salvo regresso de melhor fortuna;
f) No caso da verificação da condição, quanto aos créditos sob condição, ou a através de decisão procedente a favor do Autor em Acção de Condenação com o trânsito em julgado, no caso dos créditos litigiosos, o pagamento do valor em divida será feito no prazo remanescente, isto é:
i. No prazo que vai entre a verificação da condição ou do trânsito em julgado na Acção de condenação e os 12 anos contados desde o termo da carência de 6 meses, que teve início com transito em julgado do despacho homologatório do PEAP;
ii. Pagamento em prestações anuais, iguais e sucessivas que couberem no prazo fixado no ponto anterior;
iii. Prosseguimento de todos os processos em que o Requerente é Reu, nomeadamente: 1100/14.5T8VNG-L, 1100/14.5T8VNG-S, 1100/14.5T8VNG-U, 3784/19.9T8GMR e 1818/11.4T2AVR;
g) Os perdões aqui previstos no passivo do Devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos Credores contra os terceiros responsáveis da obrigação, nomeadamente a responsabilidade da seguradora D… para quem o devedor transferiu a responsabilidade civil, no âmbito do seguro subscrito através da apólice n.º ……..
Para efeitos do plano de pagamentos prestacional constante na tabela n.º 3, além dos créditos reconhecidos pelo Administrador Judicial Provisório na Lista Provisória de Créditos, foram ainda considerados os créditos litigiosos:
(…) iii. Os créditos reclamados no PEAP e não reconhecidos pelo Administrador Judicial Provisório, tendo sido objeito de impugnação, em concreto pela C…, no valor de 1.288.859,48 € (crédito comum);
(…)
Por cautelas de prevenção, nos termos dos artigos 180.º e 181.º do CIRE, para efeitos do plano de pagamentos prestacional constante na tabela n.º 3 foram assumidos os seguintes pressupostos:
i. Homologação do Acordo de Pagamento até 14/07/2020;
ii. Trânsito em julgado do Acordo de Pagamento até 06/08/2020;
iii. A verificação da totalidade dos créditos litigiosos e ou condicionais (Instituto da Segurança Social, I.P., C… e demais acções judiciais contra o Requerente), no mesmo prazo que a homologação do presente Acordo de Pagamento.
As considerações e pressupostos utilizados para elaboração do plano de pagamentos prestacional não pressupõe o reconhecimento de qualquer crédito por parte do Requerente, no que tange aos créditos do Instituto da Segurança Social, I.P., C… e demais Autores nas ações judiciais que correm contra o Requerente, até transito em julgado de decisão a proferir nos respetivos processos, tudo conforme n.º 3 do artigo 252º ex vi artigo n.º 3 do artigo 222º-A, ambos do CIRE.
(…)
4.6. EFEITOS SOBRE ACÇÕES PENDENTES
(…)
Contrariamente ao regime regra do PEAP, as ações judicias declarativas que correm contra o Requerente, em que não tenha sido proferida decisão transitada em julgado, devem prosseguir os seus termos até final.”
Deste excerto resulta, então, quanto à apelante, o seguinte:
- A acção judicial movida contra o requerente prossegue os seus termos;
- No caso de procedência da acção a favor da apelante:
1. O valor da condenação será sujeito a um perdão de 100% quanto a juros;
2. O restante valor será perdoado em 95%;
3. Os 5% restantes serão pagos após um período de carência de 6 meses e, caso essa condenação ocorra depois desse período, em prestações anuais, iguais e sucessivas, até ao termo do prazo de 12 anos contados desde o termo da carência de 6 meses, com início na data de trânsito em julgado do despacho homologatório do PEAP.
4. Caso a seguradora D… venha a ser responsável pela satisfação da indemnização em que venha a ser condenado o requerente, o conteúdo do acordo não afectará o crédito da apelante sobre a D….
É, pois, inequívoco que a ora apelante, apesar de ter feito por isso (impugnando a lista provisória de créditos, de onde o seu fora excluído, mas sem sucesso) não foi admitida a participar nas negociações nem na votação do acordo de pagamento que acabou por ser homologado, sem prejuízo do que os termos da satisfação do seu crédito, caso venha a reconhecer-se a sua existência em acção judicial em curso para o efeito, foram expressamente previstos naquele acordo: sem se lhe ter facultado qualquer tipo de pronúncia, estabeleceu-se que, no caso de vir a obter a condenação do requerente a indemnizá-la, só haverá de receber 5% desse valor, em prestações anuais e sucessivas, em número dependente do momento dessa condenação.
Tal parece ser, de resto, a solução resultante do nº 8 do art. 222º-F do CIRE, a cujo texto a própria sentença recorreu para a expressar. Consta dessa norma: “A decisão de homologação vincula o devedor e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 222.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.”
Defende a apelante que o seu crédito não é subsumível a esta regra já que, estando dependente de definição judicial, não deve qualificar-se como constituído à data da nomeação do administrador judicial provisório (decisão prevista no n.º 4 do artigo 222.º-C).
Não tem, no entanto, razão. Créditos constituídos são aqueles que resultam de obrigações já formadas, embora a sua concreta definição e possibilidade de exercício estejam dependentes de decisão jurisdicional. A necessidade dessa decisão jurisdicional sustenta a sua classificação como litigiosos, mas não como créditos constituendos. Créditos constituendos serão os que hão-de provir de obrigações novas ou futuras, por referência à data em questão, que é a da decisão de nomeação do administrador provisório (cfr. Ac. do STJ de 18/9/2018, proc. nº 190/13.2TBVNC.G1.S1).
Assim, por exemplo, um crédito resultante de responsabilidade civil por facto ilícito fica constituído no momento em que surge a obrigação de indemnizar; e esta surge como efeito imediato do próprio evento danoso. A necessidade da sua efectivação em acção condenatória contra o responsável não transforma esse crédito em constituendo, apenas levando à sua classificação como litigioso.
Pelo exposto, o crédito invocado pela apelante, que não foi considerado neste PEAP, é um crédito constituído ao tempo da decisão de nomeação do administrador provisório, o que o torna subsumível à solução definida no art. 222º-F, nº 8, do CIRE.
Defende a apelante que essa solução não é adequada (conc. nº 14), pois que se lhe impõe um resultado de cuja discussão foi excluída, o que se remediaria ao não se classificar o seu crédito como constituído. Porém, por um lado, isso é conceptualmente errado, como se explicou. Por outro lado, essa é uma opção do legislador, cuja bondade não cabe aos tribunais discutir. De resto, essa opção foi claramente assumida em resposta a sucessiva jurisprudência que assinalava a falta de fundamento para se aplicar o regime do PER que não a empresas, o que foi superado pela consagração de um regime idêntico especificamente dirigido aos particulares.
Não nos parece, por isso, razoável ou sequer possível seguir o entendimento constante do Ac. do TRL de 12/7/2019 (proc. nº 9264/18.2T8SNT-A.L1-7, em dgsi.pt) nos termos do qual “Os créditos litigiosos que não foram atendidos no plano de recuperação, não estão limitados pelo citado art. 17º-F, nº 10 do CIRE, o qual apenas se aplica aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão de nomeação do administrador, razão pela qual tais créditos não podem ser reclamados no âmbito de processo especial de revitalização.”
Com efeito, a solução ali decretada assentou na tese defendida pela doutrina e, generalizadamente, pela jurisprudência, nos termos da qual o art. 17º-E do CIRE, cujo conteúdo é em tudo idêntico ao do art. 222º-E, não pode interpretar-se como prevendo a extinção de acções onde se discutam créditos (litigiosos) não compreendidos no plano de recuperação que tenha sido aprovado no âmbito do respectivo PER. A partir daí, o referido Ac. do TRL afirma que um crédito litigioso não se encontra constituído e que, por isso, não pode ter-se por condicionado pelo teor de um plano de recuperação que tenha sido aprovado naquele PER em que o respectivo titular não tenha sido admitido a intervir.
Não é esse, porém, o alcance da proposta da referida doutrina (entre outros, Artur Dionísio Oliveira, Os efeitos processuais do PER e os créditos litigiosos, III Congresso do Direito da Insolvência, pg. 239 e ss.) ou da jurisprudência (cfr., entre outros, Ac. do STJ citado supra), que apenas se referem à concreta questão processual da necessária continuação das acções tendentes à averiguação do crédito litigioso e não também às alterações que podem advir à substância deste por efeito do plano de recuperação anteriormente aprovado, caso se venha a julgar positivamente aquela pretensão do credor.
De resto, é também a esse propósito que é vulgar dizer-se que as decisões tomadas sobre a inclusão, ou não, de créditos litigiosos na lista de créditos definitivos só têm efeitos dentro do PEAP (ou do PER), não constituindo caso julgado fora dele. Assim, os seus efeitos restringem-se à identificação dos credores que hão-de compor o quórum deliberativo, nada definindo sobre a existência ou não do próprio crédito. A negação de uma tal força de caso julgado à decisão refere-se, pois, à questão da existência, ou não, do crédito e não, também, à repercussão do acordo de pagamento para esse crédito, caso venha a ser tido por efectivo. O que se refere apenas atentas as dúvidas expressas pela apelante, a este propósito.
Verifica-se, pelo exposto, ser inevitável a subsunção da situação jurídica da apelante à regra do nº 8 do art. 222º-F do CIRE, tal como afirmado genericamente na sentença recorrida.
Aliás, cumpre reconhecer que a decisão contrária, isto é, a da não vinculação do crédito que venha a ter sobre o recorrido, nas presentes circunstâncias, se traduziria numa simples obliteração da regra constante daquele nº 8 do art. 222º-F do CIRE.
Por isso, tal pretensão não pode proceder, o que conduz incontornavelmente à improcedência do recurso.
Note-se, por fim, que essa era a única e exclusiva pretensão deduzida pela apelante no presente recurso, cuja procedência, em rigor, se traduziria na pura revogação de apenas um segmento da sentença, designadamente aquele em que ali se repetiu o próprio texto da norma referida, aditado por uma expressão que é, em qualquer caso, inócua: “sem prejuízo do decidido quanto ao credor impugnante”. Esta expressão nada acrescenta à anterior citação do texto da norma do nº 8 do art. 222º-F, pois que daí advém exactamente o mesmo significado que já resulta da citação da norma: o da subsunção da situação jurídica da ora apelante à solução legal ali definida. Revogar a sentença nesse passo corresponderia pura e simplesmente à derrogação da citada regra legal, o que não pode admitir-se.
E, como se referiu, nenhuma outra pretensão recursiva deduziu a apelante.
Não veio recorrer da decisão que julgou improcedente a sua impugnação da lista de credores, e a sua inerente exclusão da lista dos credores intervenientes no acordo. Por isso, nenhuma razão se encontra para, por essa via, se alterar tal decisão e seus efeitos.
Igualmente não suscitou qualquer outra questão que pudesse relevar à luz dos arts. 215º e 216º do CIRE, ou de qualquer outro instituto jurídico, se fosse caso disso, em termos que pudessem levar a sindicar a substância do acordo, em função das soluções concretas que o mesmo compreende.
É certo que a ora apelante coloca como simples hipótese a irrealidade de alguns dos créditos dados por verificados e constrói uma tese nos termos da qual acaba a qualificar a lide como um uso anormal de processo, nos termos do art. 612º do CPC.
Porém, o que também se verifica é que esses mesmos créditos, em tempo oportuno, nos termos do art. 222º-D, nº 3 do CIRE não foram alvo de qualquer impugnação, tendo sido admitidos pelo administrador provisório. E, por isso, habilitaram os respectivos titulares a votarem em relação ao acordo de pagamento apresentado.
Por conseguinte, de forma alguma se pode agora concluir pela sua irrealidade, para se admitir a tese da apelante, segundo a qual tudo isso se destinou a construir um resultado que virá a reduzir o seu próprio crédito a uma insignificância, caso este lhe venha a ser reconhecido na acção que se mantém em curso a esse propósito. Ou se pode sustentar a actuação do requerente e credores que aprovaram unanimemente o acordo de pagamento como passível de constituir um abuso de direito.
Resta, em suma, concluir pela falta de fundamento para a revogação da decisão recorrida que, assim, não deixará de ser confirmada.
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Sumariando (art. 663º, nº 7 do CPC):
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3 – DECISÃO

Pelo exposto, os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a presente apelação improcedente, com o que confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.
Notifique.

Porto, 24/11/2020
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro