Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9774/21.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCEITO DE VEÍCULO EM CIRCULAÇÃO
VEÍCULO DE HIGIENE URBANA
LIMITES DA CONDENAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RP202406039774/21.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Constitui um acidente de viação todo o acidente envolvendo veículos terrestres com capacidade de circulação autónoma, desde que não sejam utilizados em funções exclusivamente agrícolas ou industriais e, no momento do acidente, se encontrem a desempenhar a função de locomoção–transporte.
II - O conceito de veículo em circulação, a que alude o art.º 3.º, nº1 da Diretiva 72/166/CEE, de 24/04, foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em jurisprudência obrigatória para os Tribunais nacionais (cfr. art.ºs 2.º, 4.º, nº 3, 5.º, nº 1 e 19.º, nº 3, do TUE), no sentido de abranger “qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo”.
III - Um veículo pesado, destinado à realização da higiene urbana-recolha de resíduos sólidos urbanos-, sendo um veículo terrestre dotado de um motor de propulsão exigindo para a sua condução um título específico, integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no art.º 4.º, nº 1 do D.L. 291/2007, sujeito, assim, à obrigação de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel.
IV - Deve qualificar-se como acidente de viação o evento danoso que resultou da circunstância de um trabalhador que, na sua função de cantoneiro de limpeza de recolha de resíduos sólidos urbanos, fazendo-se transportar durante o desempenho das suas tarefas no estribo da traseira desse veículo o mesmo ou alguma sua peça integrante se partiu, o que fez com que caísse desamparado no chão.
V - Nestas circunstâncias os danos assim sofridos pelo trabalhador não foram causados pelo veículo em questão no cumprimento específico e estrito dessa sua funcionalidade industrial de recolha do lixo, antes são danos advindos no decurso de um ato de circulação automóvel, razão pela qual, o sinistro em causa resultou dos riscos próprios e inerentes à sua circulação.
VI - Os limites da condenação contidos no artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra, sendo esta a orientação assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos, componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.
VII - O dano biológico deve ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho.
VIII - Para efeitos de indemnização autónoma do dano biológico, na sua vertente patrimonial, só relevam as implicações de alcance económico, sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais, razão pela qual o dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro não pode ser também indemnizado autonomamente como dano biológico a se.
IXI - Quando apenas está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), está-se perante a vertente patrimonial do “dano biológico”, cuja indemnização também cobre a perda de potencialidades e de oportunidades profissionais, não havendo lugar à fixação dum montante indemnizatório por uma IPP que, em tal hipótese, nem sequer existe.
X - Da leitura dos artigos 37.º, nº 1 al c), 39.º, nº 1 e 2 do D. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto extrai-se com clareza que o agravamento previsto no nº 2 do artigo 39º (juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal) pressupõe necessariamente que a responsabilidade da seguradora não tenha sido objeto de controvérsia, e que o dano seja quantificável, no todo ou em parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9774/21.4T8PRT.P1-Apelação

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. Carlos Gil
2º Adjunto Des. Drª Eugénia Marinho da Cunha
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ..., Gondomar, intentou a presente ação declarativa com processo comum contra a A...–Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo ..., Lisboa, formulando o seguinte pedido:
“Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, consequentemente, ser a demandada condenada:
a) A pagar, a título de indemnização, a quantia líquida de € 144.952,77 (cento e quarenta e quatro mil novecentos e cinquenta e dois euros e setenta e sete cêntimos), por todos os danos sofridos em resultado do acidente supra descrito, tudo acrescido de atualização,
b) Acrescido de juros à taxa de 8% ao ano,
c) E ainda juros à taxa legal desde a citação (compatível com o mecanismo da correção monetária da obrigação de indemnizar (cfr. Acs. STJ de 23/04/98 e de 23/09/98 e da RL de 04/09/99);
d) A ministrar diretamente, no futuro, todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, fisioterapia e psiquiatria ou,
e) A suportar aqueles custos e encargos com todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, fisioterapia e psiquiatria ou,
f) Em alternativa, e por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença (cfr. arts. 564º nº 2 e 569º do CC e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º do CPC),
g) Sem prejuízo do valor da perda de retribuição que o demandante irá sofrer, quer no período de clausura hospitalar, quer no período de recuperação,
h) Sendo que, por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença (cfr. arts. 564º nº 2 e 569º do CC e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º do CPC).”
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Contestou a ré, aceitando o contrato de seguro de ramo automóvel relativamente ao veículo interveniente no acidente, mas impugnando a dinâmica do mesmo e respetivas consequências, afirmando que o acidente em causa foi (também) laboral, tendo corrido o respetivo processe na jurisdição competente e tendo já o autor sido indemnizado em sede de acidente de trabalho, tudo também como melhor consta do seu articulado de fls. 50 e ss., que igualmente se dá por integralmente reproduzido.
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Dispensando-se a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador com fixação do seu objeto e elaboração dos temas da prova.
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Teve lugar audiência de julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que julgou a ação improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu a Ré do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1 – O Recorrente deu entrada da presente ação, pedindo a condenação da Recorrida no pagamento da quantia global de € 144.952,77 (cento e quarenta e quatro mil novecentos e cinquenta e dois euros e setenta e sete cêntimos), em virtude de um sinistro ocorrido no dia 12 de janeiro de 2018, pelas 2 horas e 5 minutos, na Travessa ..., em ..., Gondomar, enquanto exercia as funções de recolha de resíduos sólidos e urbanos.
2 – Assim, quando se encontrava na traseira do veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-OG-.., o estribo traseiro partiu, provocando a sua queda, da qual resultou contusão hemorrágica corticosubcorticais frontobasais bilaterais.
3 – A Recorrida impugnou a dinâmica do acidente, alegando que o acidente que vitimou o Autor foi um acidente de trabalho, já tendo este sido indemnizado em sede laboral.
4 – Foi realizada a respetiva audiência de discussão e julgamento, com a consequente produção de prova, tendo sido proferida a sentença ora sob escrutínio, aceitando o Recorrente a matéria de facto dada como provada.
5 – Assim, o presente recurso versa apenas a matéria de direito de que se serviu o Tribunal a quo para proferir a sentença ora recorrida.
6 – Entende a douta sentença recorrida que não é de aplicar ao presente caso as regras relativas ao contrato de seguro do ramo automóvel, uma vez que entendeu que se tratava de um “acidente em laboração” e, como tal, não é da responsabilidade da Recorrida indemnizar o Recorrente.
7 – O Tribunal a quo sustenta aquela posição num acórdão proferido pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto de 25 de janeiro de 2021, entendendo que os trabalhadores que vão recolhendo o lixo à passagem do veículo, transportando-se na sua traseira, do lado exterior do veículo constitui uma “atividade perigosa” e, como tal, excluída da garantia conferida pelo contrato de seguro do ramo automóvel.
8 – A circulação de um veículo automóvel, por si só, é uma atividade perigosa, motivo pelo qual é necessário e obrigatório a subscrição de um seguro do ramo automóvel para a circulação de qualquer veículo na via pública.
9 – O acidente que vitimou o Recorrente foi causado pela quebra do estribo ou alguma parte integrante do mesmo, do veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-OG-.., encontrando-se transferida a responsabilidade infortunística da circulação rodoviária daquele veículo para a Recorrida, através da apólice n.º ....
10 – A Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro, define o que é um acidente causado por um veículo, assim como transpõe para o ordenamento interno a obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil automóvel para todos os veículos terrestres a motor, para cuja condução seja necessário um título específico–(artigo 4.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21/08).
11 – O veículo ..-OG-.. necessita de um seguro de responsabilidade civil automóvel.
12 - Aquele normativo no seu n.º 4 refere explicitamente que a obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil automóvel não é necessária quando os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.
13 – Quer isto dizer que os veículos não necessitam de seguro de responsabilidade civil quando desempenham, única e exclusivamente, funções agrícolas ou industriais e não circulam na via pública, o que não é o caso do veículo causador do acidente que vitimou o Recorrente.
14 – É indesmentível que o veículo se encontrava a desempenhar a função de recolha do lixo urbano, mas não é menos verdade que também era utilizado no transporte do Recorrente, seu colega de trabalho e ainda no transporte do condutor do veículo.
15 – O Recorrente, no momento em que cai do camião, já não se encontrava a recolher lixo, antes encontrava-se a subir para o estribo para ser transportado até ao próximo local de recolha de lixo.
16 – O acidente ocorre assim no contexto da utilização principal do veículo na sua função habitual de meio de transporte ou de circulação, qualificando-se o mesmo como acidente de circulação.
17 – O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo a afirmar repetidamente que a circulação compreende toda a utilização do veículo na sua função normal como meio de transporte.
18 – Referindo ainda que a função do meio de transporte do veículo “abrange o momento em que este está parado e mesmo com o motor desligado.”
19 – Esta função abrange situações e condutas instrumentais face ao momento em que o veículo se encontra efetivamente em movimento, e que configuram “etapas naturais e necessárias” da sua utilização como meio de transporte.
20 – Sendo que o próprio TJUE expressamente alarga o conceito de circulação aos casos de carga e descarga de bens a transportar ou que acabam de ser transportados no veículo.
21 – Este entendimento tem tido acolhimento no TJUE, como corolário do princípio da proteção das vítimas de acidentes de viação, quer isto dizer que um acidente de circulação está sempre coberto por seguro de responsabilidade civil em qualquer situação.
22 – No plano dos factos há que se concluir que a utilização principal do veículo OG é a do transporte, como ficou demonstrado atrás.
23 - Se o entendimento do Tribunal a quo tiver acolhimento nos tribunais superiores, então todos os acidentes “in itinere” ou naqueles acidentes em que são simultaneamente de trabalho e de viação, as vítimas teriam sempre forçosamente de recorrer apenas à apólice que cobre os acidentes de trabalho, contrariando assim a jurisprudência dos tribunais europeus.
24 – Por último, é também necessário referir que nas condições particulares da apólice é referido que para efeitos de cobertura de ocupantes da viatura entende-se por pessoas seguras: todos os ocupantes do veículo seguro–(vide condições particulares da apólice junta com a contestação da Recorrida).
25 – Em suma, o veículo OG circulava na via pública, transportava o condutor do veículo e dois ocupantes, um deles o Recorrente, no momento em que o Recorrente sobe para o veículo, o estribo ou parte integrante do mesmo partiu, provocando a queda ao solo do Recorrente.
26 – Daquele evento resultaram as lesões contantes da matéria dada como provada.
27 – O veículo iria transportar o Recorrente e o seu colega até ao próximo local de recolha de lixo, permitindo-nos concluir que o acidente dos autos foi um acidente em circulação.
28 – Assim, encontrando-se transferida a responsabilidade infortunística pela circulação da viatura supra identificada para a Recorrida, é esta responsável pelo ressarcimento dos prejuízos pessoais e patrimoniais que o Recorrente teve com o acidente aqui em crise e que se encontram patenteados na sentença recorrida.
29 – Deve a sentença recorrida ser revogada, devendo ser substituída por outra que considere o acidente dos autos como acidente de circulação e, como tal, incluído no âmbito da cobertura do seguro automóvel de responsabilidade civil contratado e, por isso, deverá a Recorrida ser condenada no pagamento ao Recorrente do montante peticionado nos autos, € 144.952,77 (cento e quarenta e quatro mil novecentos e cinquenta e dois euros e setenta e sete cêntimos), assim como a ministrar diretamente, no futuro, todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, fisioterapia e psiquiatria ou, a suportar aqueles custos e encargos com todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, fisioterapia e psiquiatria ou, em alternativa, e por estes danos não poderem ser determinados ou quantificados nesta data, requer-se seja a sua liquidação remetida para execução de sentença (cfr. arts. 564º nº 2 e 569º do CC e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º do CPC), sem prejuízo do valor da perda de retribuição que o demandante irá sofrer, quer no período de clausura hospitalar, quer no período de recuperação.
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Devidamente notificado contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se ao sinistro ocorrido no dia 12 de janeiro de 2018 deve, ou não, ser aplicado o regime jurídico do contrato de seguro do ramo automóvel;
b)- sendo a resposta positiva à questão enunciada decidir depois em conformidade os pedidos formulados na ação.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1- No dia 12 de janeiro de 2018, pelas 02:05 horas, na Travessa ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, ocorreu um acidente, conforme participação de acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública, Divisão Policial de Gondomar (doc. nº 1 da petição inicial, que se considera reproduzido);
2- Foram intervenientes neste acidente, o veículo automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana (mesmo doc.);
3- O autor, AA, naquela data e local, encontrava-se a desempenhar as funções de cantoneiro de limpeza, nomeadamente a recolha de resíduos sólidos urbanos, sob a ordem e direção da Sociedade B... SA, pessoa coletiva n.º ..., com sede no Lugar ..., ..., Vila Real;
4- Para o efeito, o autor fazia-se transportar, durante o desempenho das suas tarefas, no estribo da traseira do veículo supramencionado;
5- A referida viatura era propriedade da Sociedade C... SA e encontrava-se segura por contrato de seguro do ramo automóvel, na ré A..., Companhia de Seguros SA, através da apólice n.º ... (doc. junto aos autos);
6- Naquele momento e local, o veículo OG circulava na Travessa ..., em ..., Concelho de Gondomar e Distrito do Porto, a fim de realizar a recolha de resíduos sólidos urbanos;
7- No seu interior viajava o motorista BB, colega de trabalho do aqui autor;
8- No exterior, na traseira do veículo OG, apoiados nos estribos existentes para o efeito, faziam-se transportar o autor e outro colega de trabalho, CC, que procediam à recolha do lixo, subindo e descendo dos referidos estribos conforme se mostrasse necessário à atividade que desenvolviam;
9- Ainda naquele momento e local, com o veículo em reinício de marcha lenta, quando o trabalhador, aqui autor, subia para o camião, o estribo ou alguma peça integrante do mesmo, partiu, o que fez com que o autor caísse desamparado no chão, tendo permanecido desmaiado durante algum tempo;
10- Acorreram ao local a PSP e um veículo de emergência médica, que transportou o autor para os serviços de urgência do Centro Hospitalar ...;
11- Em virtude do acidente, o autor sofreu as mazelas e consequências mais bem descritas nos relatórios de perícia médico-legal juntos aos autos, que aqui se consideram reproduzidos e como parte integrante, de que se transcrevem os elementos mais pertinentes:
“Registos clínicos
24.01.2018: Acidente de trabalho a 12.01.2018-queda de camião do lixo com TCE, com perda de consciência e amnésia para o episódio. Esteve internado no Centro Hospitalar ... onde fez TC - contusões hemorrágicas corticosubcorticais frontobasais bilaterais. Alta a 19.01.2018.
Do foro ortopédico com dor no punho na tabaqueira anatómica. Radiografia sem evidência de lesão aguda. Fica com tala amovível. Revejo em duas semanas. Oriento consulta de NC.
30.01.2018: Neurocirurgia-TC com hipodensidades frontais bilaterais sequelares.
Refere anosmia e agusia cuja evolução natural deverá aguardar. Deve manter ITA e ser reobservado dentro de 4 semanas.
07.02.2018: TC com fratura distal palmar do escafóide, sem desvio (pequeno fragmento). Troca tala amovível por tala gessada. Regressa em 3 semanas.
27.02.2018: Neurocirurgia-Queixas de tonturas posicionais ocasionais. Sem sinais deficitários focais, FO normal. VC cp. Tem imobilização da mão direita por lesão do foro ortopédico. Sob o ponto de vista neurocirúrgico pode, quando o colega ortopedista achar oportuno, iniciar readaptação com ITP de 30%.
05.03.2018: Doente mantém queixas de perda de equilíbrio, tonturas e perturbação ocular com a luz. Por vezes ainda com dores no punho. Imobilização com gesso ainda inferior a 2 meses. Mantém imobilização 2 semanas. Peço TC.
19.03.2018: Fratura do escafoide direito. Retira tala. Peço TC para avaliar fratura.
26.03.2018: TC confirma fratura linear sem desvio, mas ainda sem sinais de consolidação. Imobilizo com tala gessada mais 2 semanas. Ponderar osteossíntese com parafuso percutâneo.
27.03.2018: Neurocirurgia-Mantém queixas de tonturas posicionais e anosmia.
Sem défices motores. FO normal. Vc sp. Imobilizado por lesões do foro ortopédico.
Sob o ponto de vista neurocirúrgico pode considerar-se em ITP de 20% ser reobservado um mês após o retorno ao trabalho.
09.04.2018: retira gesso. Radiografia com fratura aparentemente consolidada e sem desvio. Inicia MFR
23.04.2018: Tem 4 meses de evolução. Radiografia com fratura consolidada e sem desvio. Já iniciou MFR.
07.05.2018: Está a fazer MFR. mantém dor local e alguma rigidez. 21.05.2018: Inicia trabalho com ITP de 20%.
23.05.2018: Não tolerou retoma laboral. Mantém dor intensa com esforços.
Radiografia com aparente consolidação. Pseudartrose? Discuto caso. Solicitada novo TC.
28.05.2018: TC com consolidação da fratura. Conselhos para retoma ITP de 20%.
07.06.2018: Fez novo TC que confirma consolidação. Não tolerou trabalho até hoje pelo que confirmo ITA. Alta.
TC cerebral, datado de 29.01.2018
Hipodensidades córtico-subcorticais bilaterais frontais, possivelmente em relação com sequelas contusionais cerebrais.
Foco lesional subcortical parietal esquerdo, hipodenso, de natureza sequelar, de igual modo.
Não se observam outras alterações de densidade valorizáveis do parênquima encefálico, infra ou supratentorialmente e que indiciem processos patológicos, designadamente de carácter neoformativo ou vascular (isquemia/hemorragia).
Forma e dimensões das vias de circulação do líquido cefalorraquidiano adequadas ao grupo etário em que o paciente se insere.
Charneira nervosa occipitovertebral sem anomalias, nomeadamente sem sinais de conflito de espaço.
Estudo em janela de osso sem alterações a merecer particular referência. TC do punho direito, datada de 07.02.2018
Alterações compatíveis com fratura na extremidade anterior e palmar do escafóide cárpico junto à articulação com o trapézio–a valorizar clinicamente. TC do punho direito, datada de 24.05.2018
Não há sinais de doença degenerativa nas articulações radioulnar distal ou radiocárpica.
Consolidação da fratura do escafoide, sem relevantes alterações morfológicas sequelares.
Sem alterações degenerativas na articulação entre o escafoide e o trapézio.
As interlinhas articulares e o alinhamento entre os ossos cárpicos está preservado. Não há sinais de osteonecrose.
Sem particularidades nas partes moles e remanescente apreciação (ligamentos e recessos articulares não são passiveis de adequada avaliação, nesta técnica de imagem, tal como tendões).
Registos clínicos da Unidade de Saúde Familiar ..., datados de
20.02.2019:
O Sr. AA recorreu à minha consulta na USF ..., no dia 23 de janeiro de 2018 relatando que tinha estado internado por traumatismo craniano encefálico (TCE) por acidente de trabalho. Esteve internado no CH... de 12 a 19 de janeiro de 2018 e tinha sido emitido um certificado de incapacidade temporária pelo CH..., de 12 a 23 de janeiro de 2018.
Recorre novamente à consulta no dia 29-05-2018 afirmando que não consegue trabalhar devido a sequelas do acidente de trabalho, nomeadamente:
- Sequelas de fratura do punho direito (# escafóide) que mantinha apesar das sessões de fisioterapia.
- Tonturas, vertigens, Instabilidade postural após o acidente.
- Ansiedade reativa, medo de regressar ao trabalho. Ansiedade, irritabilidade, hipervigilância.
Foi medicado com ansiolítico/antidepressivo e foi emitida CIT de 29/05/2018 a 26/07/2018 tendo sido acompanhado na USF durante este período (3 consultas).
Dia 6 de Novembro de 2018 recorre à USF por inalação de fumo do carro/gasóleo queimado referindo um quadro de mau estar, náuseas. Esta situação de exposição acidental ocorreu por o doente ter perdido o olfato (anosmia) após o acidente. Fez tratamento sintomático e melhorou.
Dia 23 de Novembro de 2018 recorre novamente à USF e apresentou um quadro de Síndrome Vertiginoso Periférico. Atendendo aos seus antecedentes enviei ao SU (serviço de urgência), onde efetuou TAC, tendo confirmado o diagnóstico de Síndrome Vertiginoso Periférico.
Por este motivo esteve com CIT desde o dia 23 de novembro de 2018 até 9 de fevereiro de 2019.

Conclusões
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 07/06/2018.
− Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), que se terá situado entre 12/01/2018 e 31/05/2018, sendo assim fixável num período de 140 dias.
− Défice Funcional Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses actos, ainda que com limitações), que se terá situado entre 01/06/2018 e 07/06/2018, sendo assim fixável num período 7 dias.
− Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), que se terá situado entre 12/01/2018 e 31/05/2018, sendo assim fixável num período total de 140 dias.
− Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Parcial, correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas atividades, ainda que com limitações), que se terá situado entre 01/06/2018 e 07/06/2018, sendo assim fixável num período total de 7 dias.
− Quantum Doloris fixável no grau 4/7.
− Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 19 pontos.
− As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual do examinado mas considera-se que implicam a aplicação de esforços acrescidos.
− Dano Estético Permanente-não valorado por inexistência de sequelas nesta área.
− Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer-não valorado por inexistência de verbalização de queixas subjetivas.
− Repercussão permanente na Atividade Sexual-não valorado por inexistência de verbalização de queixas subjetivas.”;
12- Toda a situação envolvente e em consequência, para além das dores e incómodos, deixava o autor melindrado, vexado e humilhado por não ser autossuficiente e depender de terceiros para alguns dos atos da vida corrente;
13- Deixou de praticar Kickboxing, o que fazia com regularidade;
14- Em consequência do acidente acima relatado, correu processo por acidente de trabalho na respetiva jurisdição, sob o nº 1873/18.6T8VLG, Juízo do Trabalho de Valongo, desta Comarca do Porto, aí tendo sido proferida sentença de condenação (doc. junto com a petição inicial);
15- À data do acidente, o autor tinha 24 anos de idade, tendo nascido em ../../1994;
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir prende-se com:
a)- saber se ao sinistro ocorrido no dia 12 de janeiro de 2018 deve, ou não, ser aplicado o regime jurídico do contrato de seguro do ramo automóvel.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento que ao caso não eram de aplicar as regras relativas ao contrato de seguro do ramo automóvel, em razão do sinistro ter de ser considerado um “acidente em laboração”, a tratar como acidente de trabalho.
Deste entendimento dissente o apelante alegando que o acidente dos autos deve ser tratado como acidente de circulação e, como tal, incluído no âmbito da cobertura do seguro automóvel de responsabilidade civil contratado com a Ré.
Quid iuris?
A questão que importa dilucidar consiste, como dito supra, em saber se o acidente descrito nos autos se integra no âmbito da “circulação de veículos” [e que desencadeia a responsabilidade prevista nos art.ºs 3.º, § 1º da Diretiva (Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009[1] e 4º, nº 1, do RSORCA (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado[2]], ou, pelo contrário, se constitui um “acidente de laboração”, não abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e, decorrentemente, apurar  se a decisão recorrida padece de erro de direito ao ter considerado que o acidente descrito nos autos se mostra excluído do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel porquanto o veículo causador do acidente foi utilizado em funções meramente industriais, preenchendo-se o art. 4.º, n.º 4, do RSORCA; devendo antes ser considerado um acidente de circulação, no âmbito da designada “circulação de veículos”, nos termos dos citados normativos.
O D. Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto, à semelhança do que já ocorria no âmbito do D.L. 522/85 de 31/12 (cfr. art.º 1.º), estipula a obrigatoriedade de celebração de um seguro que cubra os riscos decorrentes da circulação de veículos automóveis de forma a conferir, como decorre do seu preâmbulo, um elevado e completo “sistema de proteção dos lesados por acidentes de viação”, baseado em dois elementos essenciais: o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o FGA, para os casos em que esta obrigação não seja cumprida, ou seja desconhecida a pessoa do responsável civil.
Como assim, por forma a garantir a proteção dos lesados por acidentes de viação, o art.º 4.º do referido diploma legal impôs, como acima se referiu, a obrigação para todas as pessoas que possam ser civilmente responsáveis pela reparação de danos corporais, ou materiais, causados a terceiros por um veículo terrestre a motor, para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, de contratação de um seguro que cubra os riscos da circulação desse veículo, sem o qual o referido veículo não poderá circular.
No entanto, porque a exigência de seguro obrigatório se aplica apenas aos veículos em circulação, o nº 4 deste preceito exclui do âmbito deste seguro obrigatório, as “situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais”, caso em que não se podem considerar como estando em circulação, mas antes em laboração.
Ora, a interpretação destes normativos–que resultaram da transposição da 5.ª Diretiva sobre o Seguro Automóvel, Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, que altera as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis–deverá obedecer, quer à legislação comunitária transposta, quer à interpretação que o TJUE tem efetuado quanto a esta legislação comunitária.
Como se refere no Ac. do STJ de 16/03/2023[3]Esta harmonização de interpretações, através do TJUE, acaba por ser uma necessidade, porquanto cada Estado membro procedeu à transposição destas diretivas, com diferentes traduções, o que por vezes pode levar a diferentes soluções jurídicas, apesar de resultarem da aplicação da mesma legislação europeia. Mas visando estas Diretivas a consagração dos princípios da livre circulação de pessoas e igualdade de tratamento de todos os cidadãos no espaço da União Europeia, é imperioso que a sua interpretação seja tendencialmente uniforme entre os Estados membros, pelo que as decisões do TJUE são a forma primacial de garantir a referida harmonização e, como tal, assegurar o cumprimento dos princípios que as referidas Diretivas visam”.
Assim sendo e para o que ora importa, são relevantes os seguintes acórdãos do TJUE:
“- Ac. Vnuk, de 04-09-2014, proc. n.º C-162/13[4], que estabeleceu que o art. 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-04-1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de detido esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “circulação de veículos” nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo (...);
 - Ac. Rodrigues de Andrade, de 28-11-2017, proc. n.º C-514/16[5], que estabeleceu que o art.º 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-04-1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangida pelo conceito de “circulação de veículos”, referida nesta disposição, uma situação em que um trator agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para acionar a bomba de um pulverizador de herbicida”.[6]
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Feita esta resenha normativa, está fora de questão que o veículo pesado de matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana-recolha de resíduos sólidos urbanos-, sendo um veículo terrestre dotado de um motor de propulsão exigindo para a sua condução um título específico, integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no art.º 4.º, nº 1 do D.L. 291/2007, sujeito, assim, à obrigação de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel, seguro esse que, aliás, se encontrava formalizado (cfr. ponto 5- dos factos provados).
Como assim, o que importa agora saber é se os danos cujo ressarcimento ora é peticionado se encontram cobertos por esse seguro obrigatório, ou seja, se o acidente resultou dos riscos próprios decorrentes da circulação do referido veículo e não da sua utilização apenas na função industrial que o mesmo desempenha, excluídos estes pelo nº 4 do art.º 4.º do D.L. 291/2007.
Portanto, o que aqui releva, tal como o que foi determinante na citada jurisprudência do TJUE e STJ, é apurar qual a principal utilização do veículo causador do acidente no momento do acidente, ou como meio de transporte (caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de “circulação de veículos”, na aceção do art.º 3.º, n.º 1, da Primeira Diretiva), ou como máquina de trabalho industrial (caso em que a utilização em causa não é suscetível de estar abrangida por este conceito).
Respigando o quadro factual que nos autos se mostra assente[7] dele resulta que:
“- No dia 12 de janeiro de 2018, pelas 02:05 horas, na Travessa ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, ocorreu um acidente;
- Foram intervenientes neste acidente, o veículo automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., destinado à realização da higiene urbana;
- O autor, AA, naquela data e local, encontrava-se a desempenar as funções de cantoneiro de limpeza, nomeadamente a recolha de resíduos sólidos urbanos, sob a ordem e direção da Sociedade B... SA, pessoa coletiva n.º ..., com sede no Lugar ..., ..., Vila Real;
- Para o efeito, o autor fazia-se transportar, durante o desempenho das suas tarefas, no estribo da traseira do veículo supramencionado;
- Naquele momento e local, o veículo OG circulava na Travessa ..., em ..., Concelho de Gondomar e Distrito do Porto, a fim de realizar a recolha de resíduos sólidos urbanos;
- No seu interior viajava o motorista BB, colega de trabalho do aqui autor;
- No exterior, na traseira do veículo OG, apoiados nos estribos existentes para o efeito, faziam-se transportar o autor e outro colega de trabalho, CC, que procediam à recolha do lixo, subindo e descendo dos referidos estribos conforme se mostrasse necessário à atividade que desenvolviam;
- Ainda naquele momento e local, com o veículo em reinício de marcha lenta, quando o trabalhador, aqui autor, subia para o camião, o estribo ou alguma peça integrante do mesmo, partiu, o que fez com que o autor caísse desamparado no chão, tendo permanecido desmaiado durante algum tempo” (cfr. factos provados nºs 1-a 4- e 6- a 9-).
Perante esta factualidade, dúvidas não existem de que, quando o sinistro ocorreu, o veículo em causa estava a desempenhar a sua função principal a que estava destinado, isto é, à realização da higiene urbana-recolha de resíduos sólidos urbanos.
Mas também é verdade que, no momento do acidente, o veículo destinado à realização da referida função, servia também como meio de transporte ao apelante.[8]
Aliás, importa acentuar que o veículo em causa só cumpre a referida função primária com o auxílio da componente humana e que o apelante estava a desempenhar no preciso momento em que o eclodiu o sinistro, sendo que, para a sua concretização rápida e eficiente está-lhe inerente a mobilidade (transporte) que o veículo lhe proporciona, com apoio nos estribos existentes para o efeito, subindo e descendo do mesmo com necessidade de recolha de resíduos que possa existir nas Ruas por onde circula.
Portanto, sendo embora certo que o veículo em causa estava, no momento do acidente,  a desempenhar a sua função principal a que estava destinado-recolha dos resíduos sólidos urbano-essa sua função alternava também com a de transporte dos trabalhadores (cantoneiros) que o auxiliavam nessa tarefa e nos moldes acima referidos, ou seja, existe uma alternância de funcionalidade do veículo em questão, como máquina de recolha do lixo e como transporte dos trabalhadores, ou seja, a laboração do veículo envolve sempre o transporte a partir do momento em que o cantoneiro se apoia no estribo.
Significa, portanto, que a questão que importa dilucidar assenta na circunstância de se apurar se o acidente em causa ocorreu devido aos riscos próprios da circulação do veículo, ou antes teve lugar devido aos riscos próprios da laboração industrial do mesmo.
Ora, como dito, os factos provados mostram que o veículo estava em reinício de marcha lenta, tendo sido nesse momento e quando o autor subia para o camião que o estribo ou alguma peça integrante do mesmo se partiu, o que fez com que caísse desamparado no chão, ou seja, quando eclode o acidente o veículo estava já na sua função de transporte do autor apelante e, portanto, perante a produção do perigo ou risco próprio inerente (enquanto unidade circulante autónoma) à condução (ou utilização) de um veículo de circulação terrestre.
Como refere Vaz Serra[9], “deve reputar-se acidente de viação toda a ocorrência lesiva de pessoas ou bens provocada por veículo sempre que este manifeste os seus riscos especiais”.
Um camião de recolha do lixo como já acima se deu nota é um veículo de circulação terrestre e, como tal, não deve ser excluído o risco próprio que potencia como unidade circulante, não sendo de afastar o regime jurídico constante do art. 503.º, nº 1, do Código Civil.
Daqui resulta que a deslocação do apelante em cima dos estribos existentes no veículo, nos moldes suprarreferidos, transforma o veículo em causa como veículo de circulação, utilizado como meio de transporte, sendo essa deslocação, como já acima se deu nota, um complemento essencial e necessário à sua laboração.
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Diante do exposto os danos sofridos pelo apelante não foram causados pelo veículo em questão no cumprimento específico e estrito dessa funcionalidade industrial de recolha do lixo, ou seja, não são de imputar diretamente à laboração deste, à atividade que lhe é própria, antes são danos advindos no decurso de um ato de circulação automóvel, razão pela qual, o sinistro em causa resultou dos riscos próprios e inerentes à circulação do automóvel pesado, com a matrícula ..-OG-.., pelo que é de qualificar o sinistro ocorrido como acidente de viação e, por isso, sujeito às regras do seguro obrigatório.
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Como assim, não pode manter-se a decisão recorrida quando envereda pela qualificação do sinistro em causa como “acidente em laboração”.
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Aqui chegados e por força do preceituado no artigo 665.º, n.º 1, do CPCivil, que estabelece a regra da substituição do tribunal recorrido, importa agora prosseguir com a apreciação das demais postas na ação/apelação e, concretamente a indemnização pelos danos sofridos pelo apelante em decorrência do sinistro.
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Vem provado nos autos que o veículo OG, à data dos factos era propriedade da sociedade C... S.A, pessoa coletiva n.º ..., com sede atual na Avenida ..., ..., Maia, que transferiu a responsabilidade dos danos causados pelo mesmo para a aqui Autora A..., Companhia de Seguros S.A através da apólice ....
Como assim, a Ré é responsável pelos danos causados pelo referido veículo, no período em que vigorou a referida apólice, por estar preenchida a factie species do artigo 503.º, nº 1 do CCivil.
Com efeito, o nº 1 do citado normativo responsabiliza, objetivamente, o proprietário do veículo pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, seja o veículo conduzido por ele seja o veículo conduzido por comissário, desde que a utilização seja feita:
a) sob a sua direção efetiva e  
b) no seu próprio interesse.
Estes dois requisitos são cumulativos.
A expressão legal tiver a direção efetiva do veículodestina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objetiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontrem investidas, tomar providências para que o veículo funcione sem causar danos”.[10]
Portanto, tem a direção efetiva do veículo aquele que pode dispor dele, no momento, conforme bem entender, conduzindo-o ou facultando a sua condução a terceiro sem se demitir de controlar a sua circulação, sem se alhear do uso dado pelo terceiro a quem o faculta.
Por regra, tem a direção efetiva do veículo o proprietário deste. A propriedade faz presumir a direção efetiva e o interesse na utilização do veículo pelo seu proprietário. Sendo tais requisitos de verificação cumulativa é, pois, sobre o proprietário do veículo que incide o ónus de demonstrar o contrário.[11]
É de admitir a existência de uma verdadeira presunção legal de direção efetiva e interessada do veículo a favor do seu proprietário”, já que “o conceito de direção efetiva e interessada cabe perfeita e legalmente dentro do conceito do direito de propriedade”.[12]
 Por outro lado, o veículo circula no interesse de quem tira vantagens da sua circulação.
Acresce que a responsabilidade pelo risco reveste natureza excecional uma vez que, nos termos do artigo 483º, nº 2, CC só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos expressamente especificados na lei.
Constitui entendimento corrente na doutrina e na jurisprudência que a responsabilidade pelo risco exige verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à exceção da ilicitude e da culpa, ou seja, para que se afirme a responsabilidade pelo risco basta a ocorrência de um facto naturalístico (lícito ou ilícito) e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano[13] que, in casu, estão presentes pois que, as lesões sofridas pelo apelante são decorrentes da queda que sofreu em consequência do estribo se ter partido, sendo que, nos termos do artigo 504.º do CCivil, “A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas.”
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Analisemos então os danos sofridos pelo Autor apelante e os montantes indemnizatórios peticionados.
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1- A questão da indemnização do dano biológico
Como se evidencia da petição inicial o apelante pede a este título o montante de € 36.748,35 (trinta e seis mil setecentos e quarenta e oito euros e trinta e cinco cêntimos).
Analisando.
No segmento indemnizatório aqui em apreciação movemo-nos no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm apelidado de dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social.
A jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do artigo 564.º, nº 2 do Cód. Civil.
Tem-se afirmado que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua atividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial.
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das atividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial, sem qualquer reflexo negativo na atividade profissional do lesado e no seu efetivo ganho, se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado.
Porém, outros entendem, como por exemplo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009, que também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Escreveu-se o seguinte neste aresto:
“Nesta perspetiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer atividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspetivas de carreira, desencantos (…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta–ou indiretamente–no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psicossomático do que, propriamente, um dano patrimonial”.
Sustentam outros ainda que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro “tertium genus” de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma.
Entendimento este a que não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial/dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes se deve confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.
Como quer que seja, independentemente da sua integração jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano não patrimonial-ou eventualmente como tertium genus, como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado-, o certo é que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui inequivocamente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da denominada teoria da diferença.
Ora, a posição maioritária, que também sufragamos, vem considerando que este dano deve ser calculado como se de um dano patrimonial futuro se tratasse: há uma perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, nisso constituindo o prejuízo a indemnizar, irrelevando para este efeito o facto de as lesões sofridas pelo demandante não terem implicado, de forma imediata, a perda de rendimento.
Neste conspecto, a casuística que sufraga tal posição vem recorrentemente enfatizando que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento do trabalho, releva para efeitos indemnizatórios– como dano biológico/patrimonial-porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente da sua atividade laboral, designadamente num jovem, condicionando as suas hipóteses de emprego, diminuindo as alternativas possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.
Evidentemente que casos há em que as lesões físicas não causam nenhum acréscimo, para o lesado, de esforço na atividade profissional que ele exerce. Uma ligeira desvalorização no plano físico, mesmo que relacionada com a mobilidade, não tem para um lesado que desenvolve uma atividade profissional sedentária e marcada pelo esforço intelectual, qualquer repercussão nesta.
Por isso, em certas situações justifica-se que, apesar da comprovada desvalorização do lesado no plano físico em consequência do acidente, o dano correspondente seja ressarcido apenas no plano não patrimonial, por este não se repercutir, direta ou indiretamente, na sua situação profissional, tanto em termos de remuneração como de carreira.
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Assentando-se, como supra já se referiu, na qualificação do aludido dano como dano patrimonial futuro, debrucemo-nos agora sobre as particularidades do caso concreto no concernente à determinação do respetivo quantum indemnizatório.
Como deflui do regime vertido nos artigos 564.º e 566.º, nº 3 do CCivil, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação desse quantum deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, devendo, assim, ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
No entanto, a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência, num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nos seguintes parâmetros-força:
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equi­dade;
4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia;
5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida dos homens já se aproxima dos 78 anos, e tem tendência para aumentar).[14]
Acolhendo tais diretrizes e regressando ao caso dos autos, importa, desde logo, respigar o seguinte quadro factual:
“- À data do acidente, o autor tinha 24 anos de idade, tendo nascido em ../../1994;
- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 19 pontos;
- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual do examinado, mas considera-se que implicam a aplicação de esforços acrescidos.
Antes, porém, de avançarmos na determinação do montante indemnizatório referente ao dano em causa cumpre salientar que o dano biológico não reporta unicamente à perda de rendimentos profissionais futuros.
Na verdade, o dano aqui em apreciação também abarca a diminuição da capacidade do lesado para o exercício das tarefas da sua vida pessoal (familiares e sociais) como é aqui o caso.
Com efeito, tal como decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2019[15], ”o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado–embora não determinem perda de rendimento laboral-envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as atividades da vida pessoal e corrente.” (negrito nosso).
No mesmo sentido Acs. STJ de 03/11/2016[16], em cujo sumário se pode ler “O dano biológico perspetivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial” (negrito nosso),  17/12/2019[17], e  de 14/12/2017.[18]
Portanto, o que daqui resulta claro no que se refere a este de dano (biológico) é o acolhimento por parte da jurisprudência de a um reconhecido dano corporal corresponder, de acordo com a sua gravidade, um crédito indemnizatório, independentemente de este ter tradução direta ou não na perda de rendimentos laborais, porquanto sempre implicará e na medida da sua gravidade uma diminuição das competências sociais e em família e mesmo funcionais de cada indivíduo, com reflexos maiores ou menores dependendo de cada caso, não só na sua inserção social e familiar como na sua capacidade produtiva e de como, nestes vários contextos, terá o lesado de superar ou suportar as suas limitações com maior esforço e/ou penosidade.
Importa, por outro lado,  enfatizar que a propósito do fator rendimento, alguma jurisprudência[19] vem considerando que nos casos, como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
Em busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade.[20]    
Com efeito, a integridade psicofísica é igual para todos (artigos 25.º, nº 1, da CRPortuguesa e 70.º, nº1, do Código Civil) de modo que, no cálculo da indemnização, não deve ser relevada a situação económica do lesado, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, nº 1 e nº 2 da Constituição.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as atividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce uma profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas.
A Portaria 377/2008 de 26 de maio faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efetuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos então como mais correto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2021 (não há valores para os anos posteriores) foi de € 1.294,10.
Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 24 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 19 pontos em 100.
Como assim, tendo por referência um rendimento anual de € 18.117,40 (€ 1.294,10 x 14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.[21]                  
De acordo com os enunciados fatores, considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 19 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a € 3.442,30  [(€ 1.294,10 x 14) x 19%], o que permitiria alcançar, ao fim de 54 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 24 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 78 anos de idade), o montante de € 185.884,52, apurando-se um valor de € 139.413,10 após se operar o apontado desconto de ¼.
Isto dito importa ainda, para se atingir a solução que, neste caso, se haja de considerar como a mais equitativa, apelar à jurisprudência que se vem pronunciando sobre situações com alguma similitude.[22]
Como assim, sopesando o quadro factual apurado, relevando especialmente que as sequelas sofridas pelo apelante embora compatíveis com o exercício da atividade habitual, implicam esforços suplementares, afigura-se-nos justo e equilibrado para ressarcir este dano o montante de €100.00,000 (cem mil euros).
Sob este conspecto importa enfatizar que os limites da condenação contidos no artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra, sendo esta a orientação assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos, componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.
Com efeito, como se escreve no Acórdão do STJ de 25/03/2010[23]: “Encontra-se, há muito, firmado na jurisprudência o entendimento segundo o qual os limites da condenação contidos no artigo 661.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra.
Esta orientação tem sido assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos (v.g. danos patrimoniais e danos não patrimoniais, danos emergentes e lucros cessantes, danos presentes e danos futuros), componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.
Compreende-se que assim seja nos casos em que, com base na descrição de uma situação de facto, se afirma a titularidade de um direito que se pretende ver tutelado mediante a declaração da sua existência e a concretização em valor único da sua dimensão global, porque, então, se trata de pedido unitário, decomposto ou desdobrado em parcelas que integram um só efeito jurídico, com a mesma e única causa de pedir.
Com efeito, na definição legal (artigo 498.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a ação, traduzindo uma pretensão decorrente de uma causa, a causa de pedir, consubstanciada em factos concretos [artigos 467.º, alínea d), e 498.º, n.º 4, 1.ª parte, do Código de Processo Civil], sendo, pois, os dois elementos (pedido e causa de pedir) indissociáveis, como elementos identificadores da ação e delimitadores do seu objeto, do que resulta que o pedido se individualiza como a providência concretamente solicitada ao tribunal em função de uma causa de pedir”.
No caso concreto, o pedido de indemnização formulado pelo apelante diz respeito a um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos.
Ora, não será pelo facto de os pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais terem sido deduzidos parcelarmente, que não se atenderá ao entendimento vertido no excerto do Acórdão do STJ de 25.03.2010 acabado de transcrever.
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2- A questão do dano patrimonial futuro.
Como se evidencia da petição inicial o apelante peticiona o pagamento da quantia de € 70.851,41 (setenta mil oitocentos e cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos) a título de incapacidade permanente para o trabalho.
Acontece que, tendo o apelante ficado afetado “apenas” com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, sendo as lesões sofridas e as sequelas que apresenta compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, não há lugar à atribuição de indemnização a título de danos patrimoniais futuros, mas apenas à atribuição de indemnização a título de dano biológico.
E a este propósito seja-nos permitido transcrever o que se disse a este respeito no Ac. do STJ de 30/11/2021 proferido no processo 1544/16.8T8ALM.L1.S1[24] :
“(…) E o primeiro tema a dilucidar tem a ver com a circunstância da A. pretender ao longo de todo o processo–quer na PI, quer na apelação, quer agora na revista–que lhe seja concedido um montante indemnizatório a título de perda futura de capacidade de ganho e um outro montante indemnizatório a título de dano biológico, quando o Acórdão recorrido apenas lhe concedeu um montante indemnizatório a título de indemnização por dano biológico.
Hoje–antes mesmo do preambulo da Portaria 377/2008, de 26-05, vir falar em “dano biológico–fala-se em “dano biológico” para aludir à lesão causada ao corpo e à saúde do lesado, à lesão causada à integridade física e psíquica que a todos assiste; e reconhece-se que o dano causado por tal lesão merece ser reparado independentemente de repercussões sobre a sua capacidade de ganho.
Acrescentando-se, em abono de tal tese, que o homem, na sua integridade psicossomática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional–relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.
Porém, também se refere e avisa, que há que evitar “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado), importando não esquecer “que há zonas de tangência e até de intersecção entre vetores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade”.
Tradicionalmente, a análise dualista–patrimonial/não patrimonial–sempre abarcou todo o campo da discussão que os danos corporais comportavam, situando-se toda a discussão em volta da parametrização ressarcitória de tal tipo de danos e da autonomização de um ou outro parâmetro de avaliação, sempre inserido num dos termos da referida dualidade; e, agora, ainda que se erija em categoria autónoma de dano o que (dano biológico), antes, não passava dum parâmetro de avaliação doutro dano, importa que avaliação global não dê lugar a duplicações.
Daí que, após um momento inicial–em que alguns chegaram a admitir que o “dano biológico” seria um “tertium genus”, com um lugar próprio que não caberia no clássico dualismo patrimonial/não patrimonial–se tenha passado a entender que o mesmo (autónomo ou não) cabe em tal dualismo, sem prejuízo de poder ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial, sendo que, quando está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico (…)”.
Portanto, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo, fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou atuais repercussões patrimoniais de qualquer natureza, mas a sua avaliação tem que ser acompanhada duma correta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições.
E é justamente por isto, estando “apenas” provado que “As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual do examinado mas considera-se que implicam a aplicação de esforços acrescidos” e que o apelante está afetado de “Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 19 pontos” e não estando provada qualquer concreta perda da capacidade de ganho, que aquilo que o apelante pretende ver indemnizado a título de perda futura de capacidade de ganho (agora, com a quantia de € 70.851,41) só possa ser indemnizado, como foi, como dano biológico.[25]
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3- A questão dos danos não patrimoniais
Importa, antes de avançarmos na análise deste dano, salientar que para efeitos de indemnização autónoma do dano biológico, na sua vertente patrimonial (como foi o caso), só relevam as implicações de alcance económico, sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais, sob pena de duplicação de indemnizações.
A indemnização emergente de acidente de viação não visa um enriquecimento ilegítimo à custa do lesante mas, antes, a reparação do dano causado.
A referência doutrinal e jurisprudencial ao dano biológico não tem visado esse desiderato.
O que nela se tem discutido, como supra se referiu, é a questão de saber se esse dano deve ser indemnizado a título de dano não patrimonial ou a título de dano patrimonial, quando se verifica que a incapacidade permanente parcial não implica uma perda de ganho do rendimento auferido.
No entanto, ninguém defende que o dano biológico seja indemnizado autonomamente, para além da indemnização da perda de ganho, porque isso seria uma duplicação indemnizatória, violadora da lei e dos princípios de equidade que presidem à fixação do montante indemnizatório em causa.
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Isto dito, os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, conforme o artigo 496.º, nº 1, do C. Civil, consequência do princípio da tutela geral da personalidade previsto no artigo 70.º do mesmo diploma legal.
A gravidade mede-se por um padrão objetivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas; por outro lado, aprecia-se em função da tutela do direito. Neste caso o dano é de tal modo grave que justifica a concessão da indemnização pecuniária aos lesados.
Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objetivamente um bem imaterial, cujo valor é insuscetível de ser avaliado pecuniariamente. Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distrações-porventura de ordem espiritual-que, de algum modo, atenuem a sua dor”.[26]
E, o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.º, nº 3 e 494.º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente adotados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda.[27]
Por outro lado, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efetivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “factie specie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto, sendo que, nesta ponderação de valores, tem defendido que os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objetivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objetivamente um enriquecimento injustificado.[28]/[29]
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física do Autor, que viu o acidente causar-lhe danos corporais que deixaram sequelas.
Assim releva no prisma–danos não patrimoniais–a seguinte factualidade:
“ (…) queda de camião do lixo com TCE, com perda de consciência e amnésia para o episódio. Esteve internado no Centro Hospitalar ... onde fez TC-contusões hemorrágicas corticosubcorticais frontobasais bilaterais. Alta a 19.01.2018.
- Do foro ortopédico com dor no punho na tabaqueira anatómica;
- fratura distal palmar do escafoide;
- Neurocirurgia-TC com hipodensidades frontais bilaterais sequelares;
- Quantum Doloris fixável no grau 4/7;
- fratura distal palmar do escafoide;
- Hipodensidades córtico-subcorticais bilaterais frontais, possivelmente em relação com sequelas contusionais cerebrais;
- Neurocirurgia-Mantém queixas de tonturas posicionais e anosmia;
- Foco lesional subcortical parietal esquerdo, hipodenso, de natureza sequelar, de igual modo;
- Apresentou um quadro de Síndrome Vertiginoso Periférico;
-Neurocirurgia-Mantém queixas de tonturas posicionais e anosmia;
- Tonturas, vertigens, Instabilidade postural após o acidente.
- Ansiedade reativa, medo de regressar ao trabalho. Ansiedade, irritabilidade, hipervigilância.
- Foi medicado com ansiolítico/antidepressivo e foi emitida CIT de 29/05/2018 a 26/07/2018 tendo sido acompanhado na USF durante este período (3 consultas);
- Toda a situação envolvente e em consequência do acidente, para além das dores e incómodos, deixava o autor melindrado, vexado e humilhado por não ser auto-suficiente e depender de terceiros para alguns dos atos da vida corrente;
- Deixou de praticar Kickboxing, o que fazia com regularidade”.
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Como assim, sopesando o quadro factual supra exposto entendemos que, para a compensação por esta categoria de danos se revela justa e equilibrada a quantia de € 20.00,00 (vinte mil euros) (cfr. artigo 563.º, nº 3 do CCivil) que não afronta as regras da prudência e equidade.
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4- A questão dos juros
Alega o apelante que A Ré, até ao momento, não apresentou a denominada “proposta razoável”, pelo que, na sua ausência deverá ao valor final serem atribuídos juros à taxa de 8%.
Preceitua o artigo 37.º, nº 1 al. c) do D. Lei DL n.º 291/2007, de 21 de agosto sob a epígrafe “Diligência e prontidão da empresa de seguros na regularização dos sinistros que envolvam danos corporais” que:
1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro e que envolva danos corporais, a empresa de seguros deve, relativamente à regularização dos danos corporais:
 (…)
c) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 45 dias, a contar da data do pedido de indemnização, caso tenha entretanto sido emitido o relatório de alta clínica e o dano seja totalmente quantificável, informando daquele facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento eletrónico.
Por sua vez o artigo 39.º do mesmo diploma legal sob a epígrafe “Proposta razoável para regularização dos sinistros que envolvam danos corporais” estatui que:
1- A posição prevista na alínea c) do n.º 1 ou na alínea b) do n.º 2 do artigo 37.º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.
2 - Em caso de incumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no número anterior, quando revistam a forma dele constante, é aplicável o previsto nos n.os 2 e 3 do artigo anterior.[30]
Da leitura dos citados preceitos extrai-se com clareza que o agravamento previsto no nº 2 do artigo 39º (juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal) pressupõe necessariamente que a responsabilidade da seguradora não tenha sido objeto de controvérsia, e que o dano seja quantificável, no todo ou em parte.
Ora, no caso sub judice, e como se evidencia da contestação a Ré não aceitou a responsabilidade do sinistro e, como tal não é aplicável o citado preceito sendo, pois, devidos juros à taxa legal sem qualquer penalização.
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Os restantes montantes indemnizatórios peticionados pelo apelante[31] não têm qualquer respaldo no quadro factual que nos autos se mostra assente que nem sequer foi objeto de impugnação, sendo que, só esse há que tomar em consideração.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condenam a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação até efetivo e integral pagamento.
*
Custas por apelante e apelada na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido àquele (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 3/6/2024
Manuel Domingos Fernandes
Carlos Gil
Eugénia Cunha
_______________
[1] Dispõe o cit. art.º 3.º da Diretiva, com a epígrafe "Obrigação de segurar veículos":
"Cada Estado-Membro, sem prejuízo do artigo 5.º, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. [...]".
[2] Artigo 4º esse que dispõe:
1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.
[3] Processo nº 5130/20.0T8VIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt..
[4] Texto integral disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62013CJ0162
[5] Texto integral disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62016CJ0514.
[6] Jurisprudência a que o apelante faz referência nas suas alegações recursivas.
[7] E que, diga-se, não foi objeto de impugnação.
[8] Vem provado nos pontos 8- e 9- da resenha dos factos provados o seguinte:
8-No exterior, na traseira do veículo OG, apoiados nos estribos existentes para o efeito, faziam-se transportar o autor e outro colega de trabalho, CC, que procediam à recolha do lixo, subindo e descendo dos referidos estribos conforme se mostrasse necessário à atividade que desenvolviam;
9- Ainda naquele momento e local, com o veículo em reinício de marcha lenta, quando o trabalhador, aqui autor, subia para o camião, o estribo ou alguma peça integrante do mesmo, partiu, o que fez com que o autor caísse desamparado no chão, tendo permanecido desmaiado durante algum tempo
[9] In RLJ., nº 104, pág. 46.
[10] 13 - Pires de Lima e Antunes Varela-Código Civil Anotado, Vol. I 4ª ed., 1987, Coimbra Ed. pág. 513
[11] Cfr. neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, de 06/12/2000, de 20/02/2001 de 21-01-2014 in, respetivamente, CJ/S, Ano IX-III-141/143, Ano IX-I-127/131 e www.dgsi.pt.
[12] Cfr. S.T.J. de 27-10-88, Bol. 469 e de 6-11-2001, Col. Ac. S.T.J., IX, 141.
[13] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, vol. I, 10º edição, pg. 636; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 11ª edição, 612; acórdão do STJ, de 2006.10.10, Silva Salazar, www.dgsi.pt.jstj, proc. 06 A 2764, da Relação do Porto, de 2008.09.30, Pinto dos Santos, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0825401.
[14] Cfr. Ac. do STJ de 05 de julho de 2007, no processo nº 07A1734, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Nuno Cameira, consultável em www.dgsi.pt..
[15] Processo nº 1456/15.2T8FNC.L1.S1 in www.dgsi.pt..
[16] Processo 1971/12.0TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt..
[17] Processo 2224/17.2T8BRG.G1.S1, in www.dgsi.pt..
[18] Processo nº 589/13.4TBFLG.P1.S1 in www.dgsi.pt..
[19] Entre outros, Ac. do STJ de e acórdão do STJ de 26.01.2012 (processo nº 220/2001.L1.S1), onde expressamente se enfatiza que o desenvolvimento da noção do dano biológico em Itália partia, entre outros, do pressuposto da “irrelevância do rendimento do lesado como finalidade da liquidação do ressarcimento, Ac. de Coimbra de 04/06/2013, da Relação de Lisboa de 22/11/2016 (processo nº 1550/13.4TBOER.L1-7), de 25/02/2021 852/17.5T8AGH.L1 e 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2 e da Relação do Porto, de 19/03/2018 processo nº 1500/14.0T2AVR.P1.
[20] Cfr. Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afetação funcional não resulte perda da capacidade de ganho– o princípio da igualdade, Revista Julgar, nº 33, p. 126.
[21] Tem sido esta a solução preconizada, designadamente, pelo Conselheiro SOUSA DINIS em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes.
[22] Ac. do STJ de 10 de dezembro de 2019, proferido no processo nº 32/14.1TBMTR.G1.S1 (lesada de 21 anos, afetação permanente da integridade físico-psíquica de dezanove pontos, compatível com o exercício da profissão habitual mas a exigir esforços suplementares, com um rendimento mensal de € 900,00, sendo arbitrada indemnização do dano biológico no montante de € 90.0000,00, na vertente patrimonial); Ac. do STJ de 16/01/2024- Processo nº 3527/18.4T8PNF.P2.S1 fixar uma indemnização de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros) para ressarcir dano patrimonial futuro sofrido por um jovem de 27 anos, que, por virtude das sequelas de que ficou a padecer como consequência das lesões que lhe resultaram de uma colisão estradal, ficou impossibilitado de exercer a sua profissão habitual (carpinteiro de cofragem), na qual auferia retribuição anual global de €20.636,70, ainda que continuando a poder trabalhar, com menor remuneração, noutro ramo de atividade (motorista), com uma incapacidade funcional de 15 pontos.
[23] Proc. 1052/05.2TTMTS.S1, consultável em www.dgsi.pt..
[24] Consultável em www.dgsi.pt..
[25] E é também por isto, por tudo o que o apelante invoca e argumenta acabar por relevar, em termos indemnizatórios, apenas para o “dano biológico” que, pedindo o Autor/apelanteA., a tal título, o montante de € 36.748,35 (trinta e seis mil setecentos e quarenta e oito euros e trinta e cinco cêntimos) se fixou um montante indemnizatório superior, de € 100,000 (cem mil euros) sabido que, como já no texto do acórdão se referiu, que o limite da condenação, imposto pelo art. 609.º, nº 1 do C. Civil, se reporta ao valor global do pedido formulado e não ao valor de pedidos parcelares. Isto não significa que esteja à partida afastada a possibilidade de haver indemnização pelo dano biológico e pelo chamado dano patrimonial futuro, porém, tal simultaneidade indemnizatória só poderá ocorrer se também ficar provado que o lesado ficou com uma incapacidade permanente parcial ou total para o trabalho (uma perda da remuneração laboral), o que, como é evidente, não é o caso (em que “apenas” está provado que as lesões sofridas e as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual).
[26] Cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375.
[27] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485.
[28] Ac. STJ 28.11.2013, Proc. 177/11.0TBPCR.S1, Ac. STJ 07.05.2014, Proc. 436/11.1TBRGR.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[29] Como se refere no Ac. do STJ de 11/05/2022-Processo nº 3028/17.8T8LRA.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt “Devem ser observados os padrões de indemnização seguidos pela prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa-uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8º do Cód. Civil.
Não se pode atender só à prática seguida pela jurisprudência de equivaler indemnizações para factos semelhantes e estagnarem os montantes indemnizatórios, porque os termos de comparação se referem a situações passadas, devendo ser tida em conta a evolução, fazendo o acompanhamento do aumento do custo de vida (inflação) e o aumento dos rendimentos médios das pessoas”.
E as indemnizações a atribuir por danos não patrimoniais não podem ser meramente simbólicas, devendo antes mostrar-se adequadas ao fim a que se destinam, ou seja, atenuar a dor sofrida pelo lesado e também reprovar, no plano civilístico, a conduta do agente”.
[30] Os nºs 2 e 3 do artigo 38.º tem a seguinte redação:
Proposta razoável
(…)
2 - Em caso de incumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no número anterior, quando revistam a forma dele constante, são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para além do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo.
3 - Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.
[31] Estão aqui englobadas as quantias: de € 25.650,00 (vinte e cinco mil seiscentos e cinquenta euros), correspondente à repercussão do sinistro na sua vida laboral; de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de repercussão na sua vida desportiva; de € 210,00 (duzentos e dez euros) referente aos 7 dias de internamento a que foi sujeito, em virtude do sinistro em apreço e de € 792,81 (setecentos e noventa e dois euros e oitenta e um cêntimos a título de diferenças salariais, pelos períodos de Incapacidades Temporárias. Para além disso a quantia de € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) a título de Quantum Doloris, já está englobada nos danos não patrimoniais.