Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1585/21.3T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ABANDONO DO SINISTRADO
FORÇA PROBATÓRIA DE DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Nº do Documento: RP202401081585/21.3T8VFR.P1
Data do Acordão: 01/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A possibilidade de ilidir a presunção prevista no art. 623º do CPC – de verificação dos factos em que se tenha baseado a decisão condenatória penal transitada em julgado – é restrita a terceiros em relação ao processo penal onde tal decisão foi proferida, mas tal possibilidade nunca é concedida à pessoa que figurou no respetivo processo como arguido, sendo quanto a si inilidível;
II - O direito de regresso previsto na alínea d) do nº1 do art. 27º do DL 291/2007, de 21/8, pressupõe o caráter doloso do abandono do sinistrado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1585/21.3T8VFR.P1
(Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2)



Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Ana Paula Amorim
2º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade




Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



I Relatório

A... – Companhia de Seguros, S.A.” intentou ação declarativa comum contra AA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 120.000 euros acrescida de juros desde a citação até total e efetivo pagamento.
Alegou para tal que, na sequência de acidente de viação ocasionado pela ré com veículo por si seguro e do qual veio a resultar a morte de pessoa que identifica, veio a pagar aquele montante a título de indemnização aos herdeiros da vítima, e que, no âmbito de tal acidente, ocorreu abandono de sinistrado por parte da ré, o que lhe confere o direito de regresso previsto na alínea d) do nº1 do art. 27º do DL 291/2007, de 21/8 (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).
Entre outros documentos, juntou certidão da sentença transitada em julgado em 18/11/2019 e proferida no processo comum singular nº 252/17.7GAVLC, do Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra, que condenou a ré, nele arguida, como autora de um crime de omissão de auxílio do art. 200º nº1 do C. Penal (pena de 100 dias de multa à taxa diária de 10 euros) e absolveu a mesma de um crime de homicídio por negligência.
A ré deduziu contestação e nela defendeu a improcedência da ação, tendo para tal impugnando que o acidente tenha ocorrido por culpa sua e que tenha havido da sua parte abandono doloso do sinistrado. A final, pediu a condenação da autora como litigante de má-fé.
A autora, na sequência de despacho que ordenou a sua notificação para se pronunciar sobre o pedido da sua condenação como litigante de má-fé, veio pugnar pela improcedência deste.
Teve lugar audiência prévia, em sede da qual foi proferido despacho saneador e ulterior despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu pela improcedência da ação e consequente absolvição da ré do pedido.
De tal sentença veio a autora interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

Nos presentes autos de processo comum, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, e com a qual a Recorrente não se conforma;

No seu articulado inicial, a Recorrente fez acompanhar os seguintes documentos, os quais, por considerar essencial para o presente recurso se identificam: a) Participação de Acidente de Viação, como documentos número 3, a fls…; b) Relatório de Autópsia Médico-Legal, como documento número 4, a fls…; c) Certidão de Sentença proferida no âmbito do Processo Comum, Tribunal Singular, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra, sob o processo n.º252/17.7GAVLC, como documento número 5, a fls…;

Na Participação de Acidente de Viação, de fls…, retiram-se os seguintes elementos – cfr., documento de fls…;

Na participação, consta um registo fotográfico, composto por 5 fotografias do veículo seguro, conduzido pela Ré, onde é possível visualizar a ausência do retrovisor do lado direito, assim como as amolgadelas existentes no lado direito da viatura;

O AUTO DE NOTÍCIA, consta do ponto 25, da matéria de facto dada como provada;

Do Relatório de Autópsia Médico-Legal, e quanto ao infeliz Sinistrado, resultam os seguintes elementos, cfr., fls…;

A motivação não está de acordo com a matéria de facto julgada provada e não provada, correndo o Tribunal a quo em contradição;

O Tribunal a quo fez errado julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 607º, n.º5, do CPC;

O Tribunal a quo fez uma errada subsunção da matéria de facto provada nos pontos 38, 39, 40, 49 e 50 e dos pontos a), b), c), d), e), f), g), h), i) e j) da matéria de facto não provada;

10ª Em face dos documentos juntos, Participação de Acidente Viação, Auto de Notícia, Relatório Autópsia Médico-Legal e Sentença proferida no processo-crime, transitada em julgado, a resposta aos pontos supra 9 deveria ser outra;

11ª Na “Motivação de Direito e Subsunção”, pode-se ler o seguinte: Temos pois por pacífico que houve um acidente de viação, que neste foi interveniente o veículo automóvel seguro pela A. e conduzido pela R., que BB também foi interveniente no acidente, que em resultado do acidente BB apareceu caído no chão, que o espelho retrovisor do carro tripulado pela R. apareceu caído perto do sinistrado, que por força do contrato de seguro celebrado com a Ré, a Autora indemnizou os herdeiros do lesado. Todavia, pelo facto de ter ocorrido aquele embate, apesar de se concluir que R. e BB foram ambos intervenientes no mesmo acidente, não significa que a R. actuou com dolo nem se compreende nem se demostrou como o acidente se deu em concreto, pelo que não podemos concluir que foi a R. que deu causa ao acidente;

12ª Não é, de todo, verossímil que a Ré nunca se tenha apercebido que tenha embatido na vítima, nem, tão pouco que nem que lhe tenha embatido;
13ª A infeliz vítima, conforme decorre do Relatório de Autópsia Médico-Legal, tratava-se de um homem, com 60 anos de idade, com 1,67 m e com um peso de 68kg;

14ª A infeliz vítima, em consequência do atropelamento sofrido pelo veículo conduzido pela Ré, sofreu diversos e graves ferimentos, que tiveram como consequência a sua morte violenta, sic.

15ª Não cremos, nem este Venerando Tribunal poderá crer que a Ré, face a tão graves danos provocados no corpo do infeliz sinistrado, e que lhe causaram a morte, tenha sido totalmente alheia ao embate provocado pelo veículo por si conduzido na infeliz vítima;

16ª Os ferimentos provocados na infeliz vítima, além de serem compatíveis com os danos provocados no veículo seguro, não podiam, nunca, passar desapercebidos à Ré, tal foi a violência provocada no corpo do sinistrado;

17ª Um homem, com uma estatura de 167 cm e 68 kg, que sofreu diversas fraturas, desde logo nos membros inferiores e superiores;

18ª Numa recta com boa visibilidade e com cerca de 300 metros, apesar de ser noite;

19ª Resulta provado a fls.., que Perto do sinistrado estava um espelho retrovisor[…]no local além da vítima, existia um espelho retrovisor que indiciava tratar-se de um atropelamento seguido de Fuga[…], ao passar na localidade de ... verificamos a existência de um veículo, sem retrovisor direito e com amolgadelas na sua frente lateral direita.[…] Foram verificados pelos Agentes da Guarda Nacional Republicana vestígios no local, nomeadamente retrovisor direito e plásticos partido[…]procedeu-se a recolha das medidas necessárias para elaboração participação de acidente bem como recolha de vestígios no local, nomeadamente retrovisor e plásticos com etiquetas, suspeitando-se logo tratar-se de um veículo de marca Mercedes[…]Arrancaram e regressaram alguns minutos depois, dizendo que na Travessa ... encontrava-se um Mercedes de cor preta, sem retrovisor do lado direito e com amolgadela no guarda-lamas;
20ª Em face da matéria provada, quer pelo Tribunal a quo, quer a que consta da sentença transitada em julgado, cremos, salvo o devido respeito, que mal andou o Tribunal ao considerar como provado aqueles pontos;

21ª A matéria de facto constante do ponto 38 deveria ser 38 - Por ter embatido no infeliz sinistrado, a R. apercebe-se, que ao 49,500 quilometro da estrada nacional, de um forte barulho no seu carro;

22ª A resposta ao ponto 39 deve ser a seguinte: 39 – Desta feita afrouxou a viatura;

23ª A resposta ao ponto 40 da matéria de facto deveria ser: 40 – Conclui que o seu retrovisor havia caído no chão, por ter embatido no infeliz sinistrado;

24ª A única resposta possível ao ponto 49 seria esta: 49 - A R. apercebeu-se que tinha embatido na vítima;

25ª A única resposta possível ao ponto 50 seria esta: 50 – E que lhe tenha embatido;

26ª A matéria de facto não provada tem que ser alterada para provada quanto aos seguintes pontos: b) No local existe iluminação pública, c)Tendo o retrovisor direito partido com o embate e sido projectado a poucos metros do local onde a infeliz vítima ficou imobilizada, assim como provocado amolgadela do guarda-lamas da frente direito e porta do lado direito frente, d) O qual caminhava pela berma do lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela Ré, e)Acontece que, ao circular com o veículo seguro, a Ré embateu com o mesmo no infeliz BB, provocando a projecção deste e consequente queda no solo, concretamente na valeta, onde permaneceu, f) Contudo, e apesar do embate na infeliz vítima, a Ré não parou para verificar o que tinha sucedido, tendo prosseguido a sua marcha em direcção à sua residência sem cuidar de prestar qualquer tipo de assistência ao infeliz BB, g) O embate do veículo seguro na infeliz vítima, foi com a frente direita do mesmo, nomeadamente guarda-lamas frente direito e retrovisor direito, h) A Ré não só atropelou A Infeliz Vítima como, de forma deliberada, fugiu do local do acidente e abandonou o sinistrado que se encontrava caído no chão em consequência do embate, i) Tendo-o abandonado ferido, e à sua mercê, no local do sinistro, j) Após o embate, a ora Ré não parou e abandonou o local sem prestar auxílio ao sinistrado que se encontrava gravemente ferido.

27ª A Recorrente intentou a acção de reembolso com base no artigo 27º, n.1, al d), do Decreto-Lei n.º291/2007 de 21.08: d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado;

28ª Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo faz uma enorme confusão e mistura conceitos jurídicos;

29ª Não resulta provado como o sinistro efectivamente ocorreu, mas resulta provado onde circulava a Ré, onde caminhava o infeliz sinistrado, onde foi embatido o infeliz sinistrado, qual a parte do veículo seguro conduzido pela Ré que embateu no infeliz sinistrado, onde ficou caído o infeliz sinistrado após ter sido projectado, onde ficou o retrovisor direito após o embate no infeliz sinistrado, a existência de vestígios plásticos, a ausência do retrovisor direito no veículo seguro conduzido pela Rá, a existência de amolgadelas na frente direita sobre o guarda lamas e na porta e lateral direita do veículo seguro conduzido pela Ré, a configuração do local uma reta com 300 metros com boa visibilidade, o bom tempo que se fazia sentir naquela noite, os ferimentos identificados no relatório de autópsia médico-legal, a sentença do processo crime transitada em julgado que condenou a Arguida/Ré pela prática de um crime de omissão de auxílio da qual a mesma não recorreu, as declarações da Ré prestadas às Autoridades na Participação de Acidente de Viação e Auto de Notícia, ut., art.623º, do CPC;

30ª Resulta óbvio que a Ré conduzia um veículo automóvel, do qual tinha e detinha o domínio e direcção efectiva, assim como resulta claro que o infeliz sinistrado circulava naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar e que foi atropelado pelo veículo conduzido pela Ré;

31ª Em face de todos os factos tido como assentes o Tribunal a quo poderia concluir pela responsabilidade da Ré na eclosão do sinistro, mas nunca poderia, como o fez, excluir a responsabilidade pelo risco conforme consagrada no artigo 503º do Código Civil;
32ª Temos factos assentes que sustentam, sem qualquer dúvida, que excluindo a culpa da Ré, por não provada, o Tribunal a quo deveria, e tinha a obrigação, de julgar a acção com base no risco, o que não fez, e diga-se, muito mal, em clara violação da Lei, Doutrina e Jurisprudência;

33ª Seguindo de perto este recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.2022, sempre se dirá que in casu, e face à factualidade provada, a redução, a existir, o que não se admite, não deverá ser na ordem dos 25% mas muito inferior ou mesmo nula, o que se requer a este Venerando Tribunal;

34ª O Tribunal a quo faz errada interpretação, salvo o devido respeito, do artigo 27º, n.º1, al. d), ao interpretar tal alínea de acordo com a alínea c) do referido artigo;

35ª A alínea c) refere, expressamente, quando este tenha dado causa ao acidente, ao passo que, na alínea d) apenas refere contra o condutor, estando excluída a expressão tenha dado causa, ou causador, ou incumprido, ou responsável;

36ª O legislador, estamos em crer, quando aprovou aquelas expressões e quando omitiu aquelas mesmas expressões, e no caso da alínea d) se bastou com Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado, fê-lo de forma propositada, estudada e consciente;

37ª O Legislador não cometeu qualquer lacuna que necessitasse de preenchimento, ou interpretação, donde, interpretar de forma extensiva, como o Tribunal a quo fez entendemos, salvo o devido respeito, que praticou uma violação quer da própria alínea d) do artigo 27º, n.º1, do Decreto-Lei n.º291/2007 de 21.08 quer dos artigos 9º, 10º e 11º do Código Civil;

38ª Assente que não está provada a dinâmica do sinistro, deverá, em última análise ser decidido segundo o artigo 503º, n.º1, do Código Civil;

39ª No que ao dolo diz respeito, o referido conceito jurídico – distinto da responsabilidade pela eclosão do sinistro – veja-se, entre outros, os seguintes Acórdãos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 02.07.2015, Acórdão da Relação do Porto de 27/04/2017;

40ª Temos verificada a responsabilidade civil da Ré, em última análise, nos termos e para os efeitos dos disposto no artigo 503º, n.º1, do Código Civil, o que nos transporta para a questão propriamente dita do abandono;

41ª Sabendo a Ré que atropelou o infeliz sinistrado, ao prosseguir a sua marcha, sem cuidar de saber e de prestar auxílio àquele, tal conduta foi consciente e encerra, em si própria, um grau elevadíssimo de censura que não podia, nem devia, ter sido descurado pelo Tribunal a quo, o que impunha, desde logo, a procedência da acção, encontrado-se, assim, preenchido o conceito jurídico de dolo;

42ª É dito na sentença em crise que Apenas um parágrafo para referir que não olvidamos a presunção inserta no Art. 623o do C.P.C. (anterior art. 674o A. do C.P.C.), com a interpretação decorrente do Ac. 1278/11.0T2AVR.C1, datado de 22/01/2013, para concluirmos que, no caso em apreciação, e subsumindo e parafraseando antecipadamente o Acórdão que se segue, a R. logrou afastar a presunção que a desfavorece pois que resulta que a R. não se apercebeu efectivamente que interveio num acidente ainda que pudesse e devesse ter-se apercebido;

43ª Entendemos, e decorre da prova produzida, e dos documentos juntos aos autos, como provada a factualidade alegada na petição inicial, nomeadamente aquela cujo o ónus provatório competia à Recorrente;

44ª A alusão do Tribunal a quo ao preceito estatuído no artigo 623º, do CPC, parte de dois pressupostos duplamente errados, salvo o devido respeito;

45ª O primeiro pressuposto assenta no facto do Tribunal a quo entender que a Ré não se apercebeu que interveio no acidente que atingiu a malograda vítima, o que, conforma amplamente alegado supra resulta, precisamente o contrário, por todas as razões quer de facto, quer de direito, exaustivamente enunciadas;
46ª O segundo pressuposto parte, precisamente, de uma errada interpretação, diríamos contra legem, efectuada pelo Tribunal a quo;

47ª No processo-crime, em que a Ré foi Arguida, e no qual resultou provada a prática de um crime de omissão de auxílio, foi decidido condená-la por factos que aquele Tribunal, após análise crítica das provas, considerou como provadas, sentença essa que não foi alvo de recurso pela Arguida/Ré, tendo, assim, transitado em julgado;

48ª Em face de tal sentença, e tendo em vista a segurança jurídica, e o alcance que o direito penal visa acautelar, o legislador, e bem, assegurou a estabilidade do direito com a referida norma do artigo 623º do CPC;

49ª A sentença não foi alvo de recurso ordinário e, como tal, transitou em julgado, o que leva a crer que a Arguida se conformou com os termos da mesma, estabilizando-se, assim, quanto a Ela todos os factos, argumentação que a Jurisprudência entende como assente, não se levantando, assim, quaisquer dúvidas quanto à definição dos factos em discussão naquele processo;

50ª Veja-se, a esse título, o que resulta dos seguintes Acórdãos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2010, Acórdão Tribunal Relação do Porto de 17.06.2021;

51ª O Tribunal a quo violou a norma constante do artigo 623º, do CPC ao interpretar, e aplicar, em total contradição e alcance que a mesma visa assegurar, pondo, assim, em causa segurança de todo o normativo jurídico;

52ª A sentença em crise violou as normas jurídicas supra citadas”.


Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), tendo em conta a lógica precedência das questões de facto relativamente às questões de direito, são as seguintes as questões a tratar:
a) – apurar das alterações à matéria de facto da decisão recorrida propugnadas pela recorrente;
b) – apurar da repercussão da reapreciação da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso, sendo nesta sede de apurar da responsabilidade na eclosão do acidente e do direito de regresso da autora.

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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da primeira questão enunciada.
A recorrente impugnou o julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido relativamente aos nºs 38, 39, 40, 49 e 50 dos factos provados e relativamente às alíneas b), c), d), e), f), g), h), i) e j) dos factos não provados (conforme conclusões 22ª a 26ª).
Com base nos documentos por si juntos com a petição inicial que indica – Participação de Acidente de Viação, Auto de Notícia, Relatório de Autópsia Médico-Legal e Sentença proferida no processo-crime, todos eles não impugnados pela ré –, defende a alteração de cada um daqueles pontos de factualidade nos termos seguintes:
- relativamente ao nº38 dos factos provados – cujo conteúdo é “Por motivo que não consegue descrever, nem explicar, a R. apercebe-se, sem saber concretizar em que quilometro da estrada nacional, de um forte barulho no seu carro” –, defende que no mesmo deve passar a constar o seguinte: “Por ter embatido no infeliz sinistrado, a R. apercebe-se, ao 49,500 quilometro da estrada nacional, de um forte barulho no seu carro”;
- relativamente ao nº39 dos factos provados – cujo conteúdo é “Desta feita, afrouxou a viatura e verificou ao seu redor se tinha embatido ou não em alguém ou em algum objeto” –, defende que no mesmo deve passar a constar o seguinte: “Desta feita afrouxou a viatura”;
- relativamente ao nº40 dos factos provados – cujo conteúdo é “Concluiu que o seu retrovisor havia caído no chão, mas não percebeu porquê” –, defende que no mesmo deve passar a constar o seguinte: “Conclui que o seu retrovisor havia caído no chão, por ter embatido no infeliz sinistrado”;
- relativamente ao nº49 dos factos provados – cujo conteúdo é “A R. nunca se apercebeu que tenha embatido na vítima” –, defende que no mesmo deve passar a constar o seguinte: “A R. apercebeu-se que tinha embatido na vítima”;
- relativamente ao nº50 dos factos provados – cujo conteúdo é “Nem que lhe tenha embatido” –, defende que no mesmo deve passar a constar o seguinte: “E que lhe tenha embatido”;
- relativamente às alíneas b), c), d), e), f), g), h), i) e j) dos factos não provados – cujo conteúdo é “b) No local existe iluminação pública, c)Tendo o retrovisor direito partido com o embate e sido projetado a poucos metros do local onde a infeliz vítima ficou imobilizada, assim como provocado amolgadela do guarda-lamas da frente direito e porta do lado direito frente, d) O qual caminhava pela berma do lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela Ré, e)Acontece que, ao circular com o veículo seguro, a Ré embateu com o mesmo no infeliz BB, provocando a projeção deste e consequente queda no solo, concretamente na valeta, onde permaneceu, f) Contudo, e apesar do embate na infeliz vítima, a Ré não parou para verificar o que tinha sucedido, tendo prosseguido a sua marcha em direção à sua residência sem cuidar de prestar qualquer tipo de assistência ao infeliz BB, g) O embate do veículo seguro na infeliz vítima, foi com a frente direita do mesmo, nomeadamente guarda-lamas frente direito e retrovisor direito, h) A Ré não só atropelou a infeliz vítima como, de forma deliberada, fugiu do local do acidente e abandonou o sinistrado que se encontrava caído no chão em consequência do embate, i) Tendo-o abandonado ferido, e à sua mercê, no local do sinistro, j) Após o embate, a ora Ré não parou e abandonou o local sem prestar auxílio ao sinistrado que se encontrava gravemente ferido” – defende que a factualidade delas constante deve ser dada como provada.
Cumpre referir que, nos termos do art. 607º nº5 do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (essa livre apreciação só não abrange as situações referidas na segunda parte de tal preceito), não se podendo esquecer que o tribunal, nos termos do art. 413º do CPC, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas”. Ou seja, a prova deve ser apreciada globalmente, sendo corolário em sede de recurso de tal comando o disposto no art. 662º nº1 e 2, alíneas a) e b), do CPC, quando dali com evidência se conclui que a Relação “tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (como refere António Santos Abrantes Geraldes, obra citada no parágrafo anterior, pág. 287).
Tendo presente os pressupostos que se vieram de referir, analisemos as pretendidas alterações.
Neste conspecto, ganha relevo decisivo a factualidade dada como provada na sentença penal transitada em julgado e proferida no processo comum singular nº 252/17.7GAVLC, do Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra, que, por causa do acidente de viação dos autos, condenou a aqui ré, ali arguida, como autora de um crime de omissão de auxílio do art. 200º nº1 do C. Penal, e cuja certidão foi junta pela autora com a petição inicial.
Dispõe-se no art. 623º do CPC que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração” (sublinhados nossos).
Decorre de tal preceito que a possibilidade de ilidir a presunção ali prevista – de verificação dos factos em que se tenha baseado a decisão condenatória penal transitada em julgado – é restrita a terceiros em relação ao processo penal onde tal decisão foi proferida, mas, e em contrário do entendimento sufragado na decisão recorrida, tal possibilidade nunca é concedida à pessoa que figurou no respetivo processo como arguido, sendo quanto a si inilidível, pois, como neste sentido referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, 4ª edição, Almedina, pág. 763, em anotação ao art. 623º), “enquanto o arguido condenado teve oportunidade de exercer o direito de defesa, os terceiros foram alheios ao contraditório no processo penal” [no mesmo sentido, entre variados outros, vide, por exemplo, o Acórdão do STJ de 13/1/2010 (proferido no proc. nº1164/07 e por referência ao art. 674-A do CPC de 1961, cuja redação era exatamente a mesma do art. 623º do atual CPC; este aresto é até referenciado pelos autores que se vieram de referir na anotação que fazem ao art. 623º), o Acórdão desta mesma Relação do Porto de 11/9/2023 (proferido no proc. nº1836/18.9T8PRT.P1), o Acórdão da Relação de Coimbra de 16/12/2015 (proferido no proc. nº3039/12.0TBVIS.C1), os Acórdãos da Relação de Lisboa de 18/1/2018 e de 22/10/2019 (proferidos, respetivamente, no proc. nº24857/13.6T2SNT.L1-6 e no proc. nº5970/17.7T8ALM.L1-7), os Acórdãos da Relação de Guimarães de 17/5/2018 e de 4/11/2021 (proferidos, respetivamente, no proc. nº1644/15.1T8CHV.G2 e nº5193/19.0T8BRG-A.G1) e o Acórdão da Relação de Évora de 9/2/2023 (proferido no proc. nº803/19.2T8EVR.E1); todos estes arestos estão disponíveis em www.dgsi.pt].
Deste modo, e como se diz no Acórdão da Relação de Guimarães de 17/5/2018 referenciado supra, quanto ao arguido, os factos assentes na sentença penal condenatória transitada em julgado consideram-se definitivamente provados, fazendo prova plena contra o mesmo, não podendo ser por ele discutidos em posterior ação cível em que se discutam relações jurídicas dependentes da ou relacionadas com a prática da infração penal.
Tal é o que ocorre na presente ação, em que ocupa a posição de ré a arguida no processo acima identificado e que nele foi condenada como autora de crime de omissão de auxílio por causa do acidente dos autos, cumprindo referir, seguindo o Acórdão da Relação de Lisboa de 18/1/2018 referenciado acima e proferido para caso idêntico, que tal posição de ré não é alterada pelo facto de a autora não ter tido intervenção no processo-crime: efetivamente, a única consequência que daí resulta é a faculdade que a esta é conferida de, na sua qualidade de terceiro, querendo, poder produzir prova para ilidir a presunção da existência dos factos fixados no processo penal, sendo certo que, nos presentes autos, a autora não pretendeu ilidir a presunção, tendo, pelo contrário, aceite os referidos factos, invocando-os no essencial e formulando o seu pedido com base nos mesmos.
Nesta conformidade, os factos provados naquele processo crime, no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição ali efetuada e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam à forma do crime – nos quais se integram todos os factos provados ali referidos referentes ao circunstancialismo de tempo, lugar e modo do acidente e conduta da ali arguida e aqui ré –, devem ser considerados provados nesta ação cível.
Na sentença de tal processo (conforme certidão da mesma com nota de trânsito em julgado junta pela autora com a petição inicial), foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 13 de Agosto de 2017, em hora não concretamente apurada mas pouco antes das 5h00, na Estrada Nacional nº 224 (EN224), no Quilómetro ..., em ..., a arguida AA circulava conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros marca “MERCEDES-BENZ”, modelo ..., matrícula ..-NX-.., no sentido ... – Arouca.
2. Na mesma circunstância de tempo e lugar, BB circulava apeado, em direção oposta à da arguida, ou seja, do lado direito da fixa de rodagem em relação ao sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida (.../Arouca).
3. Naquele local, a fixa de rodagem é constituída por duas vias de trânsito, uma para cada sentido, sendo que as visas de trânsito são separadas por linha longitudinal descontínua.
4. Trata-se de uma reta, com cerca de 300 metros de comprimento com um ligeiro declive.
5. A faixa de rodagem, com largura de 6,10 metros, é ladeada do lado direito da fixa de rodagem em relação ao sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida (.../Arouca) de berma pavimentada, seguida de valeta e habitações/vegetação.
6. A berma do lado direito da faixa de rodagem em relação ao sentido de marca do veículo conduzido pela arguida (.../Arouca) tem 1,40 metros de largura.
7. A referida berma é separada da faixa de rodagem por linha longitudinal contínua perfeitamente visível a quem circule naquela via.
8. No sentido em que conduzia a arguida, a velocidade máxima permitida era de 50Km/H, imposta por sinal de proibição de exceder tal velocidade colocado a cerca de 250 metros do já mencionado Quilómetro ....
9. Àquela hora não existia luz natural.
10. Existia iluminação pública, mas, pelo menos à data da averiguação do sinistro, o candeeiro nas imediações não funcionava ou estava fundido.
11. O piso estava seco e limpo, permitindo boa aderência.
12. Por motivo não concretamente apurado, ocorreu um embate entre a parte dianteira do veículo, incluindo o retrovisor e o guarda-lamas por cima da roda, e o corpo de BB, projetando este para a valeta do lado por onde circulava apeado.
13. O referido embate determinou que o retrovisor direito do veículo partisse, tendo caído a distância não concretamente apurada, mas a poucos metros, do local para onde foi projetado o corpo de BB.
14. No local não foi registado qualquer rasto de travagem efetuado pelo veículo que a arguida conduzia.
15. A arguida circulava a velocidade não apurada.
16. Não obstante a arguida ter necessariamente sentido que embatera numa pessoa, não prestou auxílio a BB, tendo continuado a sua condução até à residência de uma sua amiga, sita na Travessa ..., em ..., localizada a alguns metros, não concretamente apurados, do local do embate.
17. A arguida tão-pouco chamou o INEM, a polícia, os bombeiros ou qualquer outra pessoa para prestar auxílio a BB.
18. Como consequência direta e necessária do referido embate, BB sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas, toráco-abdominais, da bacia e dos membros superior direito e inferior direito, que determinaram a sua morte, ocorrida no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, às 8h15 do dia 13 de agosto de 2017.
19. Devido ao facto da arguida não ter prestado auxílio ao ofendido ou chamado as autoridades pare o auxiliarem, BB foi encontrado caído na referida valeta por CC e DD, que circulavam em veículo automóvel naquela estrada, pouco depois das 5h00, que, no local, identificaram de imediato um vulto humano caído na valeta.
20. Ao atuar de forma descrita em 16, 17 e 19, agiu a arguida de forma livre, consciente e deliberada, com o intuito concretizado de não auxiliar nem promover o auxílio a BB, depois de ter ocorrido um embate entre a viatura que conduzia e BB que pôs em concreto perigo a vida deste, o que a arguida não podia ignorar atendendo à forma como se deu o embate, nos moldes descritos em 12 e 13 dos factos provados.
21. A arguida agiu de forma livre e consciente bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida pela lei como crime.

Dada tal factualidade provada – que, como se viu, porque insuscetível de poder ser ilidida pela ré e ter por isso força probatória plena contra si, deve ser dada como provada nesta ação cível – e revertendo agora à matéria de facto impugnada pela recorrente, são de retirar as inerências probatórias que se passam a referir.
A matéria dos pontos 38, 39, 40, 49 e 50 dos factos provados deve passar a figurar como não provada, por contrariada pelos factos dados como provados sob os nºs 16 e 20 da sentença penal.
Efetivamente, constando destes que a ré (ali arguida) necessariamente sentiu que embateu numa pessoa e que não obstante tal continuou a sua marcha, parece-nos óbvio de concluir pela não prova daquela factualidade [a qual, como dela decorre, pressupõe o desconhecimento de qualquer embate numa pessoa e a paragem do veículo (só assim seria possível aperceber-se que o retrovisor estava caído no chão)].
A matéria da alínea b) dos factos não provados deve passar para os factos provados por força do dado como provado sob o nº10 da sentença penal, embora com a precisão deste constante.
Assim, deve passar a figurar como provado: “No local existia iluminação pública, mas, pelo menos à data da averiguação do sinistro, o candeeiro nas imediações não funcionava ou estava fundido”.
A matéria da alínea c) dos factos não provados deve passar na sua totalidade para os factos provados por força do dado como provado sob os nºs 12 e 13 da sentença penal e pelas fotos nºs 2, 3, 4 e 5 do veículo automóvel conduzido pela ré que constam do relatório fotográfico anexo à “Participação de Acidente de Viação” elaborada pela GNR, junta com a petição inicial e não impugnada.
A matéria da alínea d) dos factos não provados deve passar para os factos provados por força do dado como provado sob o nº2 da sentença penal, embora com a restrição de que a vítima caminhava pelo lado direito ali referido mas não propriamente pela berma, pois tal detalhe não resulta apurado.
Assim, deve passar a figurar como provado: “A qual caminhava pelo lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela Ré”.
A matéria da alínea e) dos factos não provados deve passar na sua totalidade para os factos provados por força do dado como provado sob os nºs 12, 16, 19 e 20 da sentença penal.
A matéria da alínea f) dos factos não provados deve passar para os factos provados por força do dado como provado sob os nºs 16 e 17 da sentença penal, embora com a restrição de que a ré tenha prosseguido em direção à sua residência, como ali referido, pois tal detalhe não condiz com a residência referida no nº16 da sentença penal.
Assim, deve passar a figurar como provado: “Contudo, e apesar do embate na vítima, a Ré não parou para verificar o que tinha sucedido, tendo prosseguido a sua marcha sem cuidar de prestar qualquer tipo de assistência ao BB”.
A matéria da alínea g) dos factos não provados deve passar na sua totalidade para os factos provados por força do dado como provado sob o nº 12 da sentença penal.
A matéria das alíneas h), i) e j) dos factos não provados deve também passar para os factos provados por força do dado como provado sob os nºs 16, 17, 19 e 20 da sentença penal, sendo desnecessária a expressão “que se encontrava gravemente ferido” constante da última alínea, pois, além de esta integrar matéria conclusiva, já consta sob o nº27 dos factos provados da sentença recorrida (por referência à factualidade dada como provada na sentença penal) a concretização das lesões ocasionadas à vítima.
Porque, comparadas entre si, da redação daquelas alíneas resulta matéria algo repetida e que já em parte consta de pontos anteriores [nas alíneas e) e f), as quais, em termos que se viu antes, passarão também para a factualidade provada], formula-se quanto a tal factualidade a seguinte redação: “A Ré atropelou a vítima e, após o embate, de forma deliberada, não parou e fugiu do local do acidente, abandonando-a à sua mercê”.

Considerando as alterações à matéria de facto que se vieram de decidir, é a seguinte a matéria de facto a ter em conta [conformando-se toda ela com uma nova numeração, expurgando-se as remissões para documentos efetuada na sentença recorrida (como acontece nos pontos 2, 5, 21, 23, 24, 25, 26, 29, 34 e 35 dos factos provados), evitando-se factos repetidos e aditando-se aos factos provados todo o elenco factual dado como provado na sentença penal, o que se faz ao abrigo do disposto nos arts. 663º nº2 e 607º nº4, 2ª parte, do CPC]:

Factos provados
1 – A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a atividade seguradora.
2 – No exercício da sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com a sociedade B... SA, titulado pela apólice n.º ...21, a Autora aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel de marca Mercedes, modelo ... com a matrícula ..NX.., dentro dos limites legais e contratuais.
3 – Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do acidente em que o referido veículo esteve envolvido em 13 de Agosto de 2017.
4 – No dia 13 de Agosto de 2017, pelas 05h00m, na Estrada Nacional N.º 224, ao km …, na localidade de ..., concelho ..., distrito de Aveiro, ocorreu um acidente de viação.
5 – No âmbito do qual foi interveniente o veículo automóvel seguro pela Autora e conduzido pela Ré, veículo automóvel de marca Mercedes, modelo ... com a matrícula ..NX...
6 – Era de noite, estava bom tempo e piso encontrava-se seco.
7 – No local, a faixa de rodagem é constituída por duas vias de trânsito, uma para cada sentido, sendo as mesmas separadas por linha longitudinal descontínua.
8 – O pavimento é em asfalto betuminoso, e encontrava-se em bom estado de conservação.
9 – O local é uma reta, com boa visibilidade e com cerca de 300 metros; nele existia iluminação pública, mas, pelo menos à data da averiguação do sinistro, o candeeiro nas imediações não funcionava ou estava fundido.
10 – A faixa de rodagem tem a largura de 6,10 metros.
11 – Tendo em conta o sentido de marcha .../Arouca, é ladeada do lado direito por berma pavimentada com 1,40 metros de largura, seguida de valeta e habitações/vegetação, a qual é separada da faixa de rodagem por linha longitudinal contínua.
12 – No local, a velocidade está limitada a 50kms/h, conforme sinalização existente.
13 – Conduzia a Ré o veículo seguro no local e hora supra identificados supra, a uma velocidade que não se conseguiu precisar.
14 – Na mesma hora e local em que circulava a Ré com o veículo seguro, caminhava o peão BB pelo lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela Ré.
15 – Ao assim circular, a Ré embateu com a frente direita do veículo, nomeadamente guarda-lamas e retrovisor direito, no BB, provocando a projeção deste e consequente queda no solo, concretamente na valeta, onde permaneceu.
16 – Com o embate, o retrovisor direito partiu e foi projetado a poucos metros do local onde a vítima ficou imobilizada; tal embate provocou ainda amolgadela do guarda-lamas da frente direito e porta do lado direito frente.
17 – Contudo, e apesar do embate na vítima, a Ré não parou para verificar o que tinha sucedido, tendo prosseguido a sua marcha sem cuidar de prestar qualquer tipo de assistência ao BB.
18 – A Ré atropelou a vítima e, após o embate, de forma deliberada, não parou e fugiu do local do acidente, abandonando-a à sua mercê.
19 – O alerta para a vítima caída na berma foi dado por volta das 05:30/05:35, ainda noite, por um grupo de amigos que àquela hora circulavam no local, no sentido de .../Arouca, nomeadamente pela Sra. CC e seus amigos EE e DD, que ao avistarem um vulto humano caído na valeta de imediato contactaram os bombeiros.
20 – Por volta das 05h35, os bombeiros alertaram a Guarda Nacional Republicana, que de imediato se deslocou ao local.
21 – Chegados ao local, onde estava também uma viatura da C..., cujo condutor estaria a prestar auxílio ao sinistrado, o qual estava na berma, onde foi encontrado com os pés no sentido de ... e a cabeça no sentido de Arouca, ainda consciente.
22 – Perto do sinistrado estava um espelho retrovisor.
23 – Chegados os Bombeiros, estes prestaram de imediato os primeiros socorros à vítima, tendo procedido aspiração do sangue da boca da mesma, tendo-lhe metido uma máscara de oxigénio, à sua imobilização a nível cervical, tendo sido colocado num plano rígido, e transportado na maca para o interior da ambulância, socorros esses prestados sempre em contacto com os médicos do INEM.
24 – Chegados os médicos do INEM, pelas 07h10, a vítima passou a ser assistida por estes, tendo sido transportada para o Hospital Santos Silva, em Vila Nova de Gaia.
25 – Onde veio a falecer, em consequência do sinistro, às 08h15 do mesmo dia.
26 – Conforme consta da Participação de Acidente de Viação, elaborada pela Guarda Nacional Republicana, com o número ...23/2017, nomeadamente da descrição do acidente, resulta o seguinte:
O acidente não foi presenciado pelo participante:
Pelas 05h35, foi a patrulha alertada pelos Bombeiros de Vale de Cambra para um indivíduo caído, na berma, com indícios de ter sido atropelado, no local além da vítima, existia um espelho retrovisor que indiciava tratar-se de um atropelamento seguido de Fuga.
No local encontravam-se as testemunhas que deram o Alerta.
Depois de efectuadas todos os procedimentos no sentido de socorrer a vítima pelos Bombeiros de Vale de Cambra e INEM, e a vítima ter sido transportada ao Hospital Santos Silva em Vila Nova de Gaia.
Quando nos deslocávamos para a residência da vítima, no sentido de informar a Família e proceder a sua identificação, uma vez que o mesmo não se fazia acompanhar de qualquer documento, ao passar na localidade de ... verificámos a existência de um veículo, sem retrovisor direito e com amolgadelas na sua frente lateral direita.
Tocámos a campainha da residência, onde o veículo estava parado/estacionado, e ao perguntar se era a proprietária do veículo, a mesma disse que não, mas a proprietária estava a residir temporariamente na sua residência enquanto os pais tinham ido de férias.
Foi nesse sentido chamada, identificada e tomadas as suas declarações tendo esta declarado “Circulava no sentido Arouca, entretanto atravessou um peão. Passei 2 vezes não vi o que realmente se passou”
27 – Foram verificados pelos Agentes da Guarda Nacional Republicana vestígios no local, nomeadamente retrovisor direito e plásticos partidos.
28 – Foi levantado Auto de Notícia, e participado o mesmo a juízo, identificado pelo NUIPC 252/17.7GAVLC, no qual consta como suspeita a aqui Ré, por prática de crime atropelamento com fuga/omissão de auxílio.
29 – Da descrição dos factos e informações complementares resulta o seguinte:
No dia 13 de Agosto de 2017, quando me encontrava de patrulha as ocorrências, no período 00-08, patrulha constituída pelo participante e pelo Guarda ...75 FF, foi solicitada a nossa comparência, na Estrada Nacional 244 entre Campo ... e a ..., porque na berma encontrava-se um indivíduo caído na valeta.
Chegados ao local, encontravam-se a Bombeiros Voluntários de Vale de Cambra, acabados de chegar, bem como testemunha, pessoa identificada no rosto do auto e que deu o alerta, acompanhada por EE, seu companheiro e DD, e ainda uma Viatura da C..., cujo motorista não foi possível identificar virtude 1ª prioridade ser auxiliar bombeiros a prestar primeiros socorros a vítima.
A vítima, apresentava Politraumatismos mas ainda consciente conseguiu dizer o seu nome e onde morava.
Como apresentava uma fractura na perna direita, os bombeiros meteram uma tala na perna em referência, procederam a aspiração de sangue na boca, e de seguida meteram-lhe máscara de oxigénio.
Efetuadas todas as imobilizações necessárias a nível de cervical o mesmo foi colocado em plano rígido e posteriormente colocado na maca, e transportado para o interior da ambulância.
Sempre em contacto com os médicos do INEM, a equipa chegou ao local pelas 07h10, passando a partir daquele momento ser assistido pelos mesmos.
Nesse sentido, depois destes chegarem, procedeu-se a recolha das medidas necessárias para elaboração participação de acidente bem como recolha de vestígios no local, nomeadamente retrovisor e plásticos com etiquetas, suspeitando-se logo tratar-se de um veículo de marca Mercedes.
Só nesta altura é que a denunciante dos factos se quis ausentar do local, pelo que se aperceberam das nossas suspeitas. Arrancaram e regressaram alguns minutos depois, dizendo que na Travessa ... encontrava-se um Mercedes de cor preta, sem retrovisor do lado direito e com amolgadela no guarda-lamas.
De imediato nos deslocamos a referida rua, e verificamos o veículo.
Foi fotografada conforme relatório em anexo.
Efectuaram-se comunicações via rádio com o comando para mais informações sobre o veículo, até que se tocou no nº 79 da referida Rua, aparecendo a proprietária da casa.
Disse que a viatura não era dela mas que a Condutora da mesma estava a passar uns dias na sua residência, enquanto os pais tinham ido de férias e que esta tinha chegado a casa cerca das 05h00.
Foi acordar a senhora, e quando esta chegou junto da patrulha, ainda bastante “desnorteada”, e com discurso “desconexo” confirmou que chegou a casa cerca das 05h00 da manhã. Que ao passar no local onde teria ocorrido o sinistro, bateu em alguma coisa, que ainda deu a volta e voltou a passar duas vezes mas como não viu nada nem ninguém fora casa e deitou-se.
Eram 07h30 e ainda apresentava um odor a álcool, no entanto não foi efectuado qualquer teste.
Foi identificada completamente para efeitos de Participação acidente e informada que iria ser elaborado auto de Notícia para Tribunal por OMISSÃO DE AUXÍLIO, pois tinha atropelado um peão além de não ter prestado o auxílio necessário não providenciou ou alertou alguém para o fazer.
Entretanto procedeu-se a informação da Família do sinistro e recolhida a identificação da vítima, ainda que verbalmente pois não sabia dos documentos do mesmo.
Em 13 de Agosto cerca das 11h00, teve o participante conhecimento através de familiares que a vítima BB não tinha sobrevivido aos ferimentos que havia sofrido.
Mais informo que não se procedeu ao levantamento de qualquer auto de contra ordenação até ao momento, pondo a consideração de Vª Ex.ª tal procedimento”.
30 – Participado a Juízo, concluído o inquérito, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra a arguida, a aqui Ré, pela prática de um crime de homicídio negligente e um crime de omissão de auxílio.
31 – Efetuado o respetivo julgamento, foi proferida sentença, a qual transitou em julgado no dia 18 Novembro de 2019, e da qual resulta o seguinte:
“[…]…a vítima veia a falecer em consequência do embate descrito nos factos provados. Mas não faleceu de imediato, uma vez que quando foi encontrado ainda se mostrava consciente…[…]em consequência do embate descrito nos factos provados, o corpo da vítima foi projetado para a valeta do lado por onde circulava apeado e sofreu lesões que viriam a causar a sua morte, não muito tempo depois. A arguida apercebeu-se dessa circunstância. Não curou, todavia, a arguida de promover o socorro da vítima, nomeadamente alertando as autoridades competentes da existência da situação em causa.

Factos provados:
- os acima já transcritos e referidos sob os nºs 1 a 21 da sentença penal, que aqui não se referem de novo para evitar a sua pura repetição -
[…]
Por todo o exposto julgo parcialmente procedente por provada acusação pública e, em consequência, […]
II. Condeno AA pela prática de um crime de omissão de auxílio do artigo 200º, n.º 1 do Código Pena, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros).
32 – No seguimento do sinistro, e porque a apólice se encontrava válida à data do mesmo, a Autora assumiu todas as despesas inerentes ao sinistro provocado pelo veículo seguro e respetivo abandono do sinistrado, causal do seu decesso.
33 – Tal acarretou para a Autora o dispêndio do montante de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros).
34 – Montante esse que se consubstanciou no pagamento da indemnização aos herdeiros da vítima, e cujo pagamento comportou os seguintes valores a título de:
- Direito à vida – indemnização no valor de € 40.000,00;
- Dano moral da vítima – indemnização no valor de € 4.000,00;
- Dano moral herdeiros (11) – indemnização no valor de € 75.000,00;
- Despesas diversas – indemnização no valor de € 1.000,00;
35 – Com a finalidade de ser reembolsada, a Autora enviou na data de 13 de março de 2020 carta para a Ré imputando-lhe a exclusiva responsabilidade da produção do sinistro por abandono do sinistrado e interpelando-a para reembolsar as despesas que a Autora teve de suportar.
36 – Da aludida quantia a Ré nada pagou à Autora.
37 – Como consequência dos seus ferimentos, veio a vítima a sucumbir, no próprio dia, dos mesmos.
38 – Na sentença penal anteriormente referida, foi dado como não provado que: “5. A arguida circulava a velocidade suficiente e adequada a causa perigo para a vida e para a integridade física de quem circulasse apeado na berma que ocupou, pelo menos parcialmente; 6. O embate e suas consequências advieram da falta de cuidado e de atenção e bem assim da desrespeitosa condução da arguida às disposições normativo-estradai, que lhe impunham a necessidade de conservar da berma onde circulava o ofendido uma distância que permitisse evitar acidentes, a necessidade de não transpor a linha longitudinal que separa a faixa de rodagem e a necessidade de prestar total atenção aos obstáculos que surgiam durante o percurso e de os contornar; 7. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida podia e devia ter-se apercebido da presença do ofendido naquela berma 8. A arguida teria evitado o embate e as lesões que provocaram a morte de BB.
39 – Resulta do ponto 23 dos factos provados da sentença proferida no processo crime referido que a vítima apresentava leucoma central em ambas as íris.
40 – Mais resulta daquela sentença, a fls. 5 da mesma:
A pessoa que encontraram mostrava-se capaz de falar pelo que lhe perguntaram o que tinha acontecido, tendo este [a vítima] respondido que tinha caído”.
41 – A testemunha CC disse em tribunal que conseguiu interagir com o sinistrado, tendo este dito que caiu.
*
Factos não provados
a) – que a ré circulava a velocidade superior a 50kms/h;
b) – por motivo que não consegue descrever, nem explicar, a ré apercebe-se, sem saber concretizar em que quilómetro da estrada nacional, de um forte barulho no seu carro;
c) – desta feita, afrouxou a viatura e verificou ao seu redor se tinha embatido ou não em alguém ou em algum objeto;
d) – concluiu que o seu retrovisor havia caído no chão, mas não percebeu porquê.
**
Considerando a factualidade que anteriormente se elencou, passemos ao tratamento das questões enunciadas sob a alínea b), já que, face à previsão da alínea d) do nº1 do art. 27º do DL 291/2007 de 21/8 (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), para que o direito de regresso da seguradora por abandono do sinistrado se verifique é indispensável (e acompanhamos aqui o raciocínio expendido no Acórdão da Relação de Lisboa de 21/1/2021, proferido no proc. nº4729/19.1T8FNC.L1-6 e disponível em www.dgsi.pt) que o condutor tenha dado causa ao acidente – em qualquer uma das modalidades de responsabilidade civil por factos ilícitos ou objetiva – ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado, e ainda que o condutor tenha atuado censuravelmente na prática do ato (abandono do sinistrado) em que a seguradora alicerça diretamente o respetivo direito (neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 2/7/2015, de Uniformização de Jurisprudência, proferido no processo nº620/212.0T2AND.C1.S1 e publicado no DR, Iª Série, de 18/9/2015, onde já tal raciocínio se faz).
Comecemos então por apurar da responsabilidade na eclosão do acidente.
Desde já se precisa que o facto de a arguida, no âmbito do processo crime referido sob os nºs 30 e 31 da matéria de facto provada (processo comum singular nº 252/17.7GAVLC, do Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra), ter sido absolvida do crime de homicídio por negligência de que também estava acusada (como se vê da certidão da respetiva sentença, junta com a petição inicial, e já por nós referido logo no relatório desta peça) e constar de tal sentença (como fundamento para a absolvição pelo mesmo) os factos não provados referidos sob o nº38 da factualidade provada nestes autos, não limita qualquer apreciação que aqui se faça sobre a responsabilidade na eclosão do acidente, pois, como se prevê no art. 624º nº1 do CPC, “A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe são imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário” (o sublinhado é nosso).
Assim, caso se considere que nesta ação cível há prova para concluir pela responsabilidade da ré na eclosão do acidente em qualquer das modalidades acima referidas, aqueles factos dados como não provados na sentença penal que se referiram tal não inibem.
Neste conspecto, analisemos então a factualidade referida supra.
Como resulta apurado, a ré conduzia o veículo automóvel pela hora e local referidos sob o nº4 dos factos provados, sendo que tal local se situa numa reta com cerca de 300 metros, a faixa de rodagem tem a largura de 6,10 metros e é constituída por duas vias de trânsito, o pavimento em asfalto encontrava-se em bom estado de conservação e a velocidade está ali limitada a 50 km/h, conforme sinalização ali existente (nºs 7, 8, 9, 10 e 12 dosa factos provados).
Seguia a velocidade não concretamente apurada e era de noite, estava bom tempo e o piso da estrada encontrava-se seco (nºs 13 e 6 dos factos provados).
Na mesma hora e local, caminhava o peão BB pelo lado direito, atento o sentido de circulação tomado pela ré (nº14 dos factos provados).
Quando circulava nos termos referidos, a ré embateu com a frente direita do veículo, nomeadamente guarda-lamas e retrovisor direito, no BB, provocando a projeção deste e consequente queda no solo (nº15 dos factos provados).
Como consequência direta e necessária do referido embate, BB sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas, toráco-abdominais, da bacia e dos membros superior direito e inferior direito, que determinaram a sua morte, ocorrida no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, às 8h15 do dia 13 de agosto de 2017 (nº31 dos factos provados, por referência aos factos provados na sentença penal).
Uma vez que o peão caminhava pelo lado direito da estrada atento o sentido de circulação da ré, que tal circulação se processava numa reta com uma largura de estrada de 6,10 metros e que estava bom tempo (não estaria pois a chover e/ou a fazer nevoeiro), conclui-se desde logo que, considerando uma condução da ré com a normal e exigível atenção para com a estrada e com as luzes do seu veículo ligadas (pois era de noite), tal peão, porque caminhava pelo mesmo lado da estrada por onde seguia (o direito, como se exige no art. 13º nº1 do Código da Estrada), não poderia deixar de estar no seu natural campo de visão.
Por outro lado, além daquela obrigação de circular com atenção à estrada, e uma vez que era de noite, era ainda exigível à ré uma particular atenção ao espaço à sua frente alcançado com as luzes do veículo que conduzia – de 100 metros com as luzes de máximos e de 30 metros com as luzes de médios (art. 60º nº1 do Código da Estrada) –, e que regulasse a sua velocidade, como se prevê no art. 24º nº1 do Código da Estrada, de modo a que “atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, (…), às condições meteorológicas ou ambientais, (…) e a quaisquer outras circunstâncias relevantes” pudesse “em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
Ora, estando o peão numa reta, do mesmo lado da estrada em que seguia o veículo conduzido pela ré e, como referido, necessariamente no campo de visão desta, e não se tendo apurado qualquer conduta de tal peão que pudesse ter contribuído para que o embate nele ocorresse (por, exemplo, travessia súbita da via aquando da passagem do veículo ou qualquer movimento inusitado ou repentino que tivesse feito ou tivesse sido forçado a fazer), tal embate só pode ter-se ficado a dever à violação por parte da ré daquelas obrigações – nomeadamente de atenção à via e seus utilizadores e à sua conduta de não ter conseguido parar no espaço livre e visível à sua frente, o qual era, pelo menos, o de que as suas luzes, só por si, alcançavam –, pois se assim não fosse aquela ter-se-ia atempadamente desviado daquele peão e nele não teria embatido.
Note-se ainda que, como resulta provado sob os nºs 6 e 31 dos factos provados (neste último por referência ao facto provado sob o nº14 da sentença penal), no local, não obstante o piso da estrada se encontrar seco, não foi sequer registado qualquer rasto de travagem do veículo conduzido pela ré.
Como tal, face aos dados que se referiram e interpretaram, é de concluir pela exclusiva responsabilidade da ré na eclosão do acidente.

Passemos agora a averiguar se ocorre abandono do sinistrado em termos idóneos a fundamentar o direito de regresso da autora.
É jurisprudencialmente pacífico que o direito de regresso previsto na alínea d) do nº1 do art. 27º do DL 291/2007, de 21/8, pressupõe o caráter doloso do abandono do sinistrado [neste sentido, além do Acórdão do STJ de 2/7/2015, de Uniformização de Jurisprudência, proferido no processo nº620/212.0T2AND.C1.S1, já acima referido, vide, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 21/1/2021, também já supra referido, o Acórdão desta mesma Relação do Porto de 27/4/2017 (proferido no proc. nº10127/15.9T8VNG.P1) e o Acórdão da Relação de Évora de 14/1/2021 (proferido no proc. nº998/19.5T8ORM.E1), estes também disponíveis em www.dgsi.pt].
Isto é, não basta a falta de prestação de assistência por mera negligência, antes se exigindo que ocorra dolo do condutor quanto à sua conduta de abandono.
No caso, face à factualidade provada sob os nºs 17, 18 e 31 (neste último por referência aos factos provados sob o nº16 da sentença penal), é manifesto que ocorreu abandono doloso do sinistrado por parte da ré. Tanto assim que a mesma, por causa dessa sua conduta, veio a ser condenada pelo crime de omissão de auxílio previsto no art. 200º do C. Penal, o qual, como aliás se vê do respetivo tipo legal, só pode ser punido a título de dolo.
Como tal, é de concluir que ocorre abandono de sinistrado fundamentador do direito de regresso da autora.

Aqui chegados, resta aplicar a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão do STJ de 2/7/2015 já supra aludido – ao qual aderimos pelas razões dele constantes, remetendo para o respetivo texto –, jurisprudência essa que se tem como válida em face da identidade de previsão consagrada na alínea d) do nº1 do art. 27º do DL 291/2007, atualmente em vigor, e na parte final da alínea c) do art. 19º do revogado DL 522/85, de 31/12, norma objeto de interpretação naquele acórdão, por via da qual se decidiu que o direito de regresso em causa “não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.
Deste modo, uma vez que a indemnização paga pela autora aos lesados com o acidente (no caso, aos herdeiros da falecida vítima) ascendeu a 120.000 euros (factos provados sob os nºs 32, 33 e 34), tem direito a haver esta quantia da ré por via daquele seu direito de regresso.
A tal quantia, e como peticionado pela autora, acrescem juros à taxa legal desde a citação até total pagamento (arts. 805º nº1 e 806º nºs 1 e 2 do C. Civil).

Em conformidade com quanto se veio de referir anteriormente, há que, julgando procedente o recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando a ação procedente, condenar a ré a pagar à autora a quantia de 120.000 euros acrescida de juros à taxa legal desde a citação até total pagamento.

As custas da ação e do recurso ficam a cargo da ré, que naquela e neste decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão

Por tudo o exposto, acordando-se em julgar procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida e condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de 120.000 euros acrescida de juros à taxa legal desde a citação até total pagamento.

Custas da ação e do recurso pela ré.

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Porto, 8/1/2024,
Mendes Coelho
Ana Paula Amorim
Fátima Andrade