Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO N. MENEZES | ||
Descritores: | CONTRAORDENAÇÃO JURISDIÇÃO COMUM LIGAÇÃO AO SISTEMA DE SERVIÇO PÚBLICO DE ÁGUA E SANEAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RP202404241354/23.6T9PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL / CONTRAORDENAÇÃO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A jurisdição comum é materialmente incompetente para conhecer das impugnações deduzidas contra decisões de autoridades administrativas que apliquem coimas por infrações às normas (jus-administrativas) em matéria de urbanismo, sendo competentes, para o efeito, os Tribunais Administrativos e Fiscais (artigo 4.º, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) II - Não se integram nesse âmbito, porém, as contraordenações às normas do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto, sendo competentes para conhecer das impugnações de decisões que apliquem coimas pela sua respetiva prática a jurisdição comum. (Sumário da responsabilidade do Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º: 1354/23.6T9PVZ.P1 Origem: Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim Recorrente: AA Referência do documento: 17980618 I 1. O aqui recorrente impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que julgou «parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido [...] e, em consequência, decid[iu] manter a condenação do arguido pela prática da contraordenação ao artigo 41º, nº1, do Regulamento nº594/2018, de 4 de setembro, e aos artigos 69º, nº1, e 72º, nº2, al. b), do DL nº194/2009, de 20 de agosto, porém, condenando-o na coima mínima no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros)».2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida: «I - Relatório [...] veio apresentar recurso da decisão da Câmara Municipal ... que, pela prática da contraordenação ao 41º, nº1, do Regulamento nº594/2018, de 4 de setembro, e aos artigos 69º, nº1, e 72º, nº2, al. b), do DL nº194/2009, de 20 de agosto, lhe aplicou uma coima no valor de € 2.000,00 (dois mil euros). * * * * * II - Fundamentação1. Factos provados 1. No dia 14.12.2022, pelas 11h00, no edifício sito na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim, correspondente à residência do arguido AA, apesar de possuir acesso ao serviço público de água e saneamento, não se encontrava ligado ao respetivo sistema. 2. Ao proceder do modo descrito, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que com a sua conduta poderia incorrer em ilícito contraordenacional, circunstância com a qual se conformou. 2. Factos não provados Inexistem com relevância para a boa decisão da causa. 3. Motivação No caso dos autos, a prova dos factos supra elencados decorre da circunstância de não terem sido postos em causa, designadamente por via de prova testemunhal e/ou documental, tendo o recorrente expressamente aceitado a prolação de decisão por mero despacho e, como tal, a natureza jurídica das questões a decidir. III - O Direito No caso dos autos, face à factualidade apurada, cometeu o arguido uma contra-ordenação ao disposto nos artigos 69º, nº1, e 72º, nº2, al. b), do DL nº194/2009, de 20 de agosto. Com efeito, prescrevem os normativos em análise que “todos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de conceção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respetivos sistemas públicos.” Por sua vez, nos termos do artigo 4º, nº3, do mesmo diploma: “é obrigatória para os utilizadores a ligação aos sistemas municipais respetivos”. Ora, no caso, sendo certo que a lei prevê exceções à regra, designadamente a possibilidade de aceitação pela entidade gestora, em casos excecionais, de soluções simplificadas, desde que garantidas as condições adequadas de saúde pública e proteção ambiental; bem como a não aplicabilidade da regra a edifícios que disponham de sistemas próprios de abastecimento ou saneamento devidamente licenciados nos termos da legislação aplicável, nomeadamente unidades industriais (cf. artigo 69º, nº2 e 3); a verdade é que no caso, face à aceitação fáctica da existência de uma rede de esgotos, inexiste qualquer situação excecional que justifique a postura defendida pelo arguido que, assim, e a nosso, ver não tem cabimento legal nem o desonera de responsabilidade contraordenacional. Ademais, falece também a invocação de errada aplicação da lei vigente, porquanto o arguido, apesar de alegar, não faz qualquer prova de excessiva onerosidade da ligação em falta, não bastando para o efeito uma mera descrição abstrata das características da sua propriedade. Nestes termos, em suma, e salientando-se que os aspetos fáticos relativos ao posicionamento subjetivo do arguido relativamente à sua ação devem ser aferidos pelo tribunal em função dos factos objetivos, inexistem dúvidas de que o arguido perspetivou a prática da contraordenação e, ainda assim, conformou-se com tal circunstância, pelo que agiu com dolo eventual (artigo 14º, nº3, do CP). IV – Da sanção aplicada e da sua adequação: Dispõe o artigo 18º do RGCO que a determinação da medida da coima se faz "em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da infração”. Conforme refere Lopes Rocha (in Contraordenações, E.S.P. pág. 30) “a gravidade da contraordenação revela o grau de ilicitude e este afere-se pelo modo de execução da infração, pela gravidade das suas consequências, pela natureza dos valores violados, pelas circunstâncias que antecederam, envolveram e se seguiram ao cometimento da infração”. No entanto, estabelece-se um critério e simultaneamente um fator suscetível de fazer elevar o limite máximo da coima: o benefício económico retirado da prática da infração. Conforme refere António Beça Pereira a este propósito (in op. cit., pág. 68) “ao ter-se em consideração o benefício económico retirado da prática da contraordenação, pretende anular-se esse proveito, ilicitamente obtido pelo agente”. Também neste âmbito é de referir o consagrado no Ac. da RL de 25/5/94 (in CJ, III, pág. 153) segundo o qual “na graduação das coimas deve atender-se: a) à gravidade da contraordenação; b) à culpa; c) à situação económica do agente, e d) ao benefício económico que retirou”. No caso, temos que, conforme já supra mencionado, o arguido foi sancionado pela prática de uma contraordenação cuja moldura abstrata vai de € 1.500,00 a € 3.740,00. No caso, analisando a factualidade dada como provada, é nosso entender que a conduta do arguido se revela de diminuta gravidade, atenta a modalidade do dolo com que agiu e uma vez que não se demonstrou a existência de outros antecedentes em matéria contraordenacional, nem se verificaram outras consequências designadamente em matéria ambiental. Quanto à culpa do agente, diga-se que é diminuta, atentas as circunstâncias que rodearam a prática da infração e à já mencionada modalidade do dolo. No tocante ao benefício económico, não se apurou que o arguido haja obtido qualquer benefício em resultado da prática da infração. Já a situação económica do arguido não foi possível apurar a mesma, sem prejuízo de nada indicar no sentido de ser pessoa de altos rendimentos, e sendo certo que o limite mínimo da coima já é elevado para qualquer cidadão médio. Deste modo, é nosso entendimento que o limite mínimo da coima é já suficiente para acautelar os bens jurídicos que foram postos em causa, pelo que se decide fixar a coima a em € 1.500,00. V - Decisão Pelo exposto, o Tribunal julga parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido [...] e, em consequência, decide manter a condenação do arguido pela prática da contraordenação ao artigo 41º, nº1, do Regulamento nº594/2018, de 4 de setembro, e aos artigos 69º, nº1, e 72º, nº2, al. b), do DL nº194/2009, de 20 de agosto, porém, condenando-o na coima mínima no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). [...]». 3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado): «1. É incompetente, ratione materiae, a jurisdição comum (o Tribunal a quo) para conhecer da impugnação apresentada, nos presentes autos, contra a decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, e competente para o efeito a jurisdição administrativa e fiscal. 2. A violação das regras de competência material, como é o caso, configura nulidade insanável, prevista no art.º 119º, al. e) do Código do Processo Penal, que implica, pelo menos, a invalidade de todos os atos praticados pelo Tribunal no processo, após a receção deste juízo, destinados a assegurar a realização da audiência de discussão e julgamento e subsequente decisão da impugnação apresentada. Nestes termos e nos que doutamente forem supridos, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, por sofrer de nulidade insanável (incompetência material do Tribunal a quo) [...]». 4. Em resposta, concluiu o Ministério Público junto da 1.ª instância: A contraordenação aplicada ao arguido fundou-se na violação do Decreto-Lei nº194/2009, de 20 de agosto, e não no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei 555/99 de 16 de dezembro, subsequente alterado, pelo que se afigura que é a jurisdição comum e neste caso, do juízo local criminal da Póvoa de Varzim a competência para conhecer o recurso jurisdicional, devendo improceder a nulidade invocada. Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos. 5. O Ministério Público junto deste Tribunal, aderindo, no essencial, às alegações do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugna, também, pela improcedência do presente recurso. 6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir. II 7. O presente recurso não merece provimento.8. 1. A jurisdição comum é competente para conhecer dos recursos de decisões administrativas que aplicam coimas por violação do regime jurídico estabelecido no Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto. 9. Como bem salienta o recorrente, o artigo 4.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reserva para os «tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo (…)», norma que, enquanto lex specialis, se impõe ao critério geral de competência fixado no artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro. 10. No entanto, tal como decidido pelo Tribunal de Conflitos (cita-se o acórdão deste Tribunal n.º 37/18, de 21/03/2019, disponível na base de dados de jurisprudência mantida na World Wide Web pelo «Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça», no endereço www.dgsi.pt): «O diploma onde estas normas se inserem (DL 194/2009) constitui mais uma emanação da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que se assume como a lei-quadro definidora da política de ambiente, cujos princípios são integrados por um elenco de técnicas básicas de protecção, pelo estabelecimento de uma planificação directamente dirigida à defesa do meio e do ambiente (necessariamente em coordenação com outras espécies de planificação, como a urbanística (Só nesta relação de complementaridade se pode compreender a referência feita no acórdão acima citado (cfr. relatório [alude-se ao acórdão do Tribunal de Conflitos tirado no processo n.º 31/16]) de que a infracção se insere no “amplo âmbito do direito do urbanismo”, salientando-se, por outro lado, que aí se teve em consideração a anterior redacção da norma da alínea l) do n.º 1, do artigo 4º do ETAF.) e a económica) e por um conjunto de medidas informais de actuação. O objectivo último é a criação de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento social e cultural das comunidades, em sintonia com a fundamentalidade material e formal do direito ao ambiente e à qualidade de vida consagrado no artigo 66° da Constituição. O preâmbulo do DL 194/2009 reafirma esse objectivo, na área específica a que se dirige: “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.” A imposição da ligação dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais aos respectivos sistemas públicos surge assim, ao mesmo tempo, como medida inibidora de poluição de componentes ambientais naturais (água e solo) e como fonte de melhor saúde pública, segurança e bem-estar das populações. Sendo uma norma de cariz eminentemente ambiental está excluída do âmbito de actuação da alínea l) do n..º 4 do ETAF, na medida em que esta atribui à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. Ora, como o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos jurídicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo direito do ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (Luís Filipe Colaço Antunes, “Direito Urbanístico – Um outro paradigma – a planificação modesto-situacional”, Livraria Almedina, 2002, páginas 68 e seguintes.) (figurando portanto como um desenvolvimento ou prolongamento do desenvolvimento do ordenamento do território), facilmente se constata que a norma que esteve na origem da aplicação da coima não tem qualquer ponto de contacto com esta matéria.» 11. Em conclusão, pois: não se integram «no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo», para efeitos do estatuído no artigo 4.º, n.º 4, alínea l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, as contraordenações às normas do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto; e sendo assim as coisas, é manifesto não ter razão o recorrente, não podendo o presente recurso deixar, consequentemente, de improceder. 12. 2. Face à decisão que irá ser proferida, terá o recorrente que suportar custas adequadas à atividade que desencadeou. 13. Dispõe o artigo 92.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que «[s]e o contrário não resultar desta lei, as custas em processo de contraordenação regular-se-ão pelos preceitos reguladores das custas em processo criminal». 14. Por seu turno, o artigo 93.º, n.º 3, do aludido Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, estabelece «[d]ão lugar ao pagamento de taxa de justiça todas as decisões judiciais desfavoráveis ao arguido», sendo que, conforme decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 513.º do Código de Processo Penal, o arguido suporta o pagamento de taxa de justiça «quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso». 15. Sendo este o caso, terá, assim, o recorrente, de suportar as custas devidas nesta instância. 16. Considerando, nos termos previstos no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, a tramitação processual ocorrida, afigura-se adequado fixar em 3 Unidades de Conta a taxa de justiça devida. III 17. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente recurso.18. Custas pelo recorrente (artigos 93.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidades de Conta. Porto, 24 de abril de 2024. (acórdão assinado eletronicamente). Pedro M. MenezesCastela Rio Luís Coimbra |