Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO DIAS DA SILVA | ||
Descritores: | FACTOS ESSENCIAIS PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO FIADOR RENÚNCIA AO BENEFÍCIO DE EXCUSSÃO PRÉVIA RESOLUÇÃO DO CONTRATO ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS | ||
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Nº do Documento: | RP2019052212356/17.1T8PRT-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/22/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | EMBARGOS DE EXECUTADO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 174, FLS 35-46) | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir em que o autor sustenta o pedido que formula contra o réu ou que integram a exceção oposta pelo réu ao exercício desse direito pelo autor e carecem de ser alegados, respetivamente, pelo autor na petição inicial e pelo réu na contestação. II - A perda do benefício do prazo estabelecida no art.º 781º CCiv não é automática, mas uma faculdade concedida ao credor que para a accionar terá de interpelar o devedor. III - O facto de o fiador ter renunciado ao benefício da excussão prévia nos ter-mos do artigo 640.º, alínea a), do CC não importa, sem mais, que se vincule à perda do beneficio do prazo do devedor em termos de afastar a norma supletiva do artigo 782.º. IV - A resolução ou modificação do negócio jurídico por alteração das circunstâncias, nos termos do artigo 437, n.º 1 do CC, impõe a demonstração (a cargo de quem se queira prevalecer desse instituto e além do mais) da lesão, que a alteração provocou prejuízos e estes, não cobertos pelo risco próprio do negócio, têm de ser de tal monta que permitam concluir que a exigência das obrigações assumidas pelo lesado afeta gravemente os princípios da boa fé. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação - 3ª Secção Processo n.º 12356/17.1T8PRT-A.P1 Comarca do Porto Porto - Juízo de Execução - J7 Relator: Paulo Dias da Silva 1.º Adjunto: Des. Mário Fernandes 2.º Adjunto: Des. Amaral Ferreira Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório Por apenso aos autos de execução, sob a forma de processo comum instaurados por B…, S.A., com sede na Rua …, n.º .., Porto veio a executada, C…, residente na …, n.º .., …, deduzir embargos de executado onde concluiu pedindo a absolvição da instância por ausência de título executivo ou assim não se entendendo, a absolvição do pedido por não ter perdido o benefício do prazo, ou então, a exoneração de pagamento de toda e qualquer quantia pretendida pelo exequente. Invocou, em síntese, a insuficiência do título executivo, a ausência de interpelação da embargante/fiadora para pagamento das prestações vencidas e a alteração superveniente das circunstâncias de vida da embargante. Alegou, ainda, que foi colocada na impossibilidade de se sub-rogar nos direitos que lhe competem porquanto nos autos de insolvência do executado, devedor principal, o exequente adquiriu, por adjudicação e por valor muito inferior ao valor real, o bem imóvel subjacente ao contrato de mútuo dado à execução. Invocou, por fim, a nulidade dos contratos de mútuo por terem sido celebrados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de Novembro, diploma que substituiu o Decreto-Lei n.º 328-B/86, de 30 de Setembro, sendo que nos termos do mesmo, o montante do empréstimo não poderá ser superior a 90% do valor da habitação a adquirir ou construir conforme avaliação feita pela instituição de crédito mutuante ou do valor da transacção. Assevera que o exequente terá mutuado as quantias de € 110.000,00 e de € 25.000,00, sendo que o valor tributário do referido bem imóvel, era, à data, de € 82.762,56. * Notificado para contestar, o exequente pugna pela improcedência dos embargos.* Foi elaborado despacho saneador que julgou improcedente a invocada insuficiência do título executivo e fixou o objecto do litígio e os temas da prova.* Veio ainda a embargante, posteriormente invocar a ilegitimidade do exequente, o que foi indeferido por despacho de fls. 92.* Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, que decorreu com observância do legal formalismo.* Após produção de prova, foi proferida sentença julgando improcedentes os embargos de executado e absolveu o exequente dos pedidos formulados.* Não se conformando com a decisão proferida, veio a recorrente C… interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:“I. Nunca o incumprimento contratual que motivou a presente execução foi levado, pela exequente, ao conhecimento da executada. II. Os documentos juntos pela exequente são meras cartas modelo, nunca tendo feito qualquer prova do seu envio para a executada. III. Como é sabido, a falta de pagamento de alguma das prestações vencidas não importa o vencimento automático das restantes: tratando-se de uma faculdade atribuída ao credor, que este pode exercer ou não, o referido vencimento antecipado só ocorrerá se essa for a opção do credor e se interpelar o devedor nesse sentido IV. E, tornada exigível a totalidade das prestações acordadas relativamente ao devedor, por meio do mecanismo previsto no artigo 781.º do Código Civil, a perda do benefício do prazo só será oponível ao fiador se este tiver sido informado da interpelação do devedor, o que manifestamente não aconteceu V. Entendimento que se funda na letra do artigo 782.º do Código Civil: “a perda de benefício do prazo não se estende aos coobrigados do devedor; nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.” Posto isto, VI. Pelo requerimento junto com a referência CIITUS 30735469, foram trazidos aos autos dois documentos que constituem dois contratos que introduzem sérias alterações na relação contratual que serve de base às responsabilidades que a credora que exigir da fiadora VII. Nomeadamente, as seguintes inovações: a) a inclusão de um período de carência de capital por doze meses; b) a alteração da taxa de juro e, também, do spread para mais de 0.9%. c) novas regras sobre a mora e a capitalização, com a previsão de uma sobretaxa anual calculada pelo montante máximo legalmente permitido; d) a aplicação de novas comissões e, e) a atribuição à entidade bancária de, após esta inovação, poder alterar unilateralmente as disposições que bem entender. VIII. Nenhum daqueles documentos foi assinado pela fiadora, que do teor dos mesmos não teve conhecimento, donde se pode concluir pela violação dos deveres laterais de informação ínsitos nesta estrutura obrigacional complexa IX. Entende-se pelos documentos ali juntos, outrossim, que a quantia aqui exequenda resulta, não dos termos do contrato inicial validamente afiançado pela embargante, mas antes da configuração contratual decorrente de posterior aditamento! Ainda, X. A fiadora enviuvou, inesperadamente, no ano de 2008 XI. Deixando a ora embargante viúva, e sem rendimentos à excepção de uma pensão de sobrevivência de valor aproximado a um SMN XII. os devedores romperam a vida conjugal, divorciando-se XIII. Foi decretada a insolvência da devedora XIV. Ignorando-se a situação do devedor-marido Mais, XV. após 2008, verificou-se, em Portugal, uma total alteração do ambiente económico relatada ad nauseam em todos os órgãos de comunicação social XVI. Importando para a exequente a sua forte desvalorização em bolsa XVII. o património imobiliário sofreu uma ampla desvalorização - o que é particularmente relevante atento que falamos do remanescente de um crédito para habitação, XVIII. Circunstâncias que na 'teoria da imprevisão', atentas as anómalas e penalizadoras alterações supervenientes geradoras de intolerável desequilíbrio contratual, XIX. Devem motivar a aplicação do número 1, do artigo 437.º do Código Civil resolvendo o negócio e libertando a fiadora deste ónus que, verdade seja dita, nunca conseguirá cumprir, mesmo que exceda por larguíssimos anos a esperança média de vida.”. * Não foram apresentadas contra-alegações.* Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.* 2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a analisar no âmbito do presente recurso são as seguintes: - Da nulidade da decisão; - Do mérito da decisão. * 3. Conhecendo do mérito do recurso:3.1. Fundamentação de Facto A matéria de facto que fica julgada provada é a fixada em 1ª instância: 1. Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso, a escritura pública outorgada a 1 de Fevereiro de 2007 junto do Notário, D…, denominada “COMPRA E VENDA E MÚTUO COM HIPOTECA E FIANÇA”, nos termos da qual foi declarado pela embargada e pelos ali Mutuários, E… e F… que aquela entregou a estes, a título de empréstimo, a quantia de 110.000,00€ destinada à aquisição do imóvel aí identificado; E a escritura pública outorgada a 1 de Fevereiro de 2007 junto do Notário, D…, denominada “MÚTUO COM HIPOTECA E FIANÇA”, nos termos da qual foi declarado pela embargada e pelos ali Mutuários, E… e F… que aquela entregou a estes, a título de empréstimo, a quantia de € 25.000,00, a creditar na conta aí identificada, os termos dos documentos juntos aos autos de execução a fls. 3 a 19, cujo teor se dá aqui por reproduzido. 2. Para garantia do pagamento dos capitais mutuados, dos juros compensatórios e moratórios devidos no seu reembolso e das despesas judiciais e extrajudiciais, constituíram os mutuários a favor da Exequente, duas hipotecas sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AZ”, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º 3964/20020802. 3. Nos termos desses mesmos documentos, a aqui embargante, C… e G… declaram que solidariamente afiançavam todas as obrigações que os mutuários assumam a título dos empréstimos referidos, e que na qualidade de fiadores e de principais pagadores, se obrigam perante o Banco (ora exequente), ao cumprimento das mesmas, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia; E que desde já dão ainda o seu acordo a quaisquer modificações de taxa de juro, prazo de empréstimo, ou outras alterações que venham a ser convencionadas entre os primeiros outorgantes (mutuários) e aquele banco. (ora exequente). 4. A mutuária F… foi declarada insolvente no âmbito do processo nº 1490/15.2T8STS, que corre termos no Tribunal Judicial da comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso, J3. 5. No decurso de venda realizada no âmbito dos referidos autos de insolvência, foi adjudicada ao Exequente, pelo preço de € 71.400,00, a fracção autónoma supra descrita. 6. Os referidos e acima identificados mutuários, em 1) supra, declararam, para além do mais, o seguinte “(…) Aceitam a venda e que a dita fracção se destina exclusivamente a habitação própria e permanente.”. 7. O co-executado G… faleceu em 5.7.2008 no estado de casado com a embargante, C…. 8. No ano de 2013 a embargante foi notificada, pelo aqui exequente, de uma situação de incumprimento em que teriam incorrido os mutuários, nos termos constantes de fls. 39v, 40 e 41. 9. E, entre Outubro de 2013 e Março de 2014, a embargante entregou ao exequente, para pagamento do invocado em 8), de pelo menos a quantia de € 1.627,84. 10. Em 25.3.2014, os mutuários identificados em 1), F… e E…, apresentaram junto da exequente a proposta de alterações ao contrato de crédito imobiliário junta aos autos a fls. 116 e 118, nos termos delas constantes e cujo teor se dá aqui por reproduzido. 11. E que chegaram, em parte a cumprir. 12. Aquando da celebração dos contratos referidos em 1), a ora embargante encontrava-se casada, sendo o marido polícia na PSP, e a embargante não trabalhava nem recebia qualquer rendimento, vivendo este agregado familiar exclusivamente dos rendimentos do executado G…, no montante global bruto, no ano de 2007, de € 20.762,15/ano 13. Actualmente a ora embargante é viúva, e aufere uma pensão de sobrevivência, que em Janeiro de 2017 ascendia a € 643,27. 14. Os mutuários romperam a vida conjugal, e divorciaram-se em data não apurada. 15. A Embargante sempre teve pleno conhecimento das responsabilidades emergentes dos contratos que celebrou, referidos em 1) bem como das consequências do seu incumprimento. 16. A Embargante sabe que é responsável solidariamente pelo pagamento da quantia em divida. 17. Quando da concessão de crédito, o imóvel acima identificado - fracção AZ - foi avaliado pelo Banco Exequente em €150.000,00. 3.2. Da nulidade da decisão Arguiu, desde logo, a recorrente a nulidade da sentença recorrida uma vez que, segundo alega, o tribunal a quo deixou de pronunciar-se sobre a modificação contratual ocorrida em 25 de Março de 2014 sem a sua anuência. Vejamos, então, se a sentença sob recurso é nula. Ora, as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença: - Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)). - Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)). - Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)). - Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)). - Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)). O Prof. Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 297, na análise dos vícios da sentença enumera cinco tipos: vícios de essência; vícios de formação; vícios de conteúdo; vícios de forma e vícios de limites. Refere o mesmo Professor, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308, que uma sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”. Por seu turno, o Prof. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pg. 686, no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do artº 668º do Código de Processo Civil (actual artº 615º), salienta que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pgs. 668 e 669, considera que apenas a “falta de assinatura do juiz” constitui fundamento de nulidade, pois trata-se de “um requisito de forma essencial. O acto nem sequer tem a aparência de sentença, tal como não tem a respectiva aparência o documento autêntico e o documento particular não assinados”. A respeito das demais situações previstas na norma, considera o mesmo autor tratar-se de “anulabilidade” da sentença e respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença”. Apreciemos, então, a arguida nulidade. Estabelece o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”. Este comando legal carece de ser conjugado com o estatuído nos artigos 5.º, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c) do Código de Processo Civil. Preceitua aquele artigo 5º que: “1- Ás partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções”. Já o artigo 552º, n.º 1, al. d) reza que “Na petição, com que propõe a ação deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”. Por último, o artigo 572º, al. c) estatui que “Na contestação deve o réu expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação”. Decorre da conjugação destes normativos que com o intuito de aumentar os poderes do tribunal sobre a matéria de facto e de flexibilizar a sua alegação pelas partes, a actual lei processual civil partiu de uma distinção entre factos essenciais, instrumentais e complementares ou concretizadores. Os “factos essenciais” são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da excepção e cuja falta determina a inviabilidade da acção ou da excepção. Já os “factos instrumentais, probatórios ou acessórios” são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos. Finalmente, são “factos complementares e factos concretizadores” aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da acção ou da excepção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção - cf. Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 70. No mesmo sentido, vide Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, págs. 24 e 25. Seguindo a lição de Teixeira de Sousa, in Ob. cit., pág. 70, “A cada um destes factos corresponde uma função distinta: - os factos essenciais realizam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou da exceção deduzida pelo réu; sem eles não se encontra individualizado esse direito ou exceção, pelo que a falta da sua alegação pelo autor determina a ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir; os factos complementares possibilitam, em conjugação com os factos essenciais de que são complemento, a procedência da ação ou da exceção: sem eles a ação ou exceção não pode ser julgada procedente; por fim os factos instrumentais destinam-se a ser utilizados numa função probatória dos factos essenciais ou complementares”. Quanto aos factos essenciais, ou seja, os factos que integram a causa de pedir do direito que o autor exerce nos autos, ou que integram a excepção que o réu pretenda opor ao exercício desse direito pelo autor, com vista a impedir, modificar ou extinguir esse direito, os mesmos carecem de ser alegados pelo autor e pelo réu, respectivamente, na petição inicial ou na contestação (cfr. artigos 552º, n.º 1, al. d) e 572º, al. c) do Código de Processo Civil). Em relação aos factos essenciais, continua, assim, a vigorar, em pleno, o princípio do dispositivo, pelo que às partes incumbe alegar esses factos, sob pena de o juiz não poder dar como provados os mesmos em sede de sentença e isto ainda que esses factos venham a ser demonstrados por prova documental ou de outra natureza qualquer carreada para os autos na sequência da instrução da causa. Precise-se, aliás, que em relação aos factos essenciais funciona plenamente o princípio da preclusão, pelo que não cuidando o autor em alegá-los em sede de petição inicial ou o réu, em sede de contestação, não pode vir alegá-los em posterior articulado – cfr. Abrantes Geraldes, in “Sentença Cível”, pág. 11. Ou seja, a ausência da alegação dos factos essenciais pelo autor determina a ineptidão da petição inicial e a ausência da alegação desses factos essenciais consubstanciadores de excepção que o réu pretenda opor ao direito do autor, impede que o tribunal dê como provados esses factos essenciais em sede de sentença, improcedendo a excepção por ausência da alegação (e consequente, prova) dos factos que a integram. Quanto aos factos instrumentais, os mesmos não carecem de ser alegados pelas partes e podem ser livremente discutidos e apreciados na audiência final (parte final do n.º 2 do art. 574º do CPC, onde se vê que que caso esses factos instrumentais tenham sido alegados pelo autor e não tenham sido contestados pelo réu, a admissão dos mesmos pode, inclusivamente, ser afastada por prova posterior). Atenta a função secundária que desempenham no processo, tendentes a justificar simplesmente a alegação ou a prova dos factos essenciais ou complementares, os factos instrumentais não têm de integrar os temas da prova, não devendo, em regra, ser objecto de um juízo probatório específico, isto é, não carecem de ser dados como provados ou não provados na sentença. Esses factos, independentemente de terem ou não sido alegados, desde que resultem da instrução da causa, designadamente da prova produzida em sede de audiência final, o juiz, em associação com as regras da experiência que se traduzem na aplicação de presunção judiciais, deve tomá-los em consideração quando se tratar de motivar a afirmação ou a negação dos factos verdadeiramente relevantes, isto é, devem ser considerados na motivação/fundamentação da prova ou não prova dos factos essenciais ou complementares (art. 607º, n.º 4 do Código de Processo Civil) – cfr. Abrantes Geraldes, “Sentença Cível”, págs. 12 e 13. Quanto aos factos complementares, os mesmos não carecem de ser alegados pelas partes em sede, respectivamente, de petição inicial ou contestação, devendo o juiz, considerá-los na sentença, desde que resultem da instrução da causa e as partes tenham tido a possibilidade de sobre eles se pronunciarem (art. 5º, n.º 2, al. b) do CPC), ou seja, o tribunal não pode, sem mais, considerá-los como provados ainda que a respectiva prova tenha resultado da instrução da causa, mas deve notificar as partes que irá/poderá considerá-los como provados na sentença para que estas, ao abrigo do princípio do contraditório, tenham possibilidade de se defender. Decorre do exposto que o comando legal enunciado no n.º 4 do art. 604º do CPC, carece de ser interpretado no sentido de que o juiz, na sentença, não tem de considerar provados e não provados todos os factos alegados pelas partes nos respetivos articulados, e por outro lado, que naquela sentença, tem de considerar factos ainda que não alegados pelas partes nos respectivos articulados, dando-os como provados (caso dos factos complementares ou concretizadores), quando a respectiva prova tenha resultado da instrução da causa ou tenham sido admitidos por acordo ou a respectiva prova resulta de documento ou de confissão reduzida a escrito, desde que tenha sido observado o contraditório. No entanto, quanto aos factos essenciais integrativos da causa de pedir invocada pelo Autor para sustentar o pedido que aduz, ou os factos essenciais integrativos da exceção aduzida pelo Réu na contestação, o tribunal não pode dar como provados esses factos essenciais ainda que os mesmos tenham resultado provados da instrução da causa ou tenham sido admitidos por acordo ou por documento ou por confissão reduzida a escrito, quando esses factos essenciais não tenham sido alegados pelo autor em sede de petição inicial para ancorar a causa de pedir aí aduzida ou pelo réu na contestação para ancorar a matéria da exceção que aí invocou, sob pena de violação do princípio do dispositivo (arts. 5º, n.º 1, 552º, n.º 1, al. d) e 572º, al. c), todos do CPC). Assentes nestas premissas, incumbe verificar se o tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia ao não dar como provada a factualidade que consubstanciava a alteração contratual ocorrida em 25 de Março de 2014, a que se refere o ponto VII das conclusões das alegações, sem anuência da recorrente e ao não se ter pronunciado sobre o referido fundamento de embargos. Adiantamos, desde já, que não. Com efeito, compulsada a petição inicial constata-se que a recorrente nada alegou relativamente ao referido fundamento de embargos, quedando-se inerte. Acontece que como é bom de ver, aqueles factos consubstanciam factos essenciais para a procedência ainda que parcial dos embargos. Tratando-se de matéria essencial à boa decisão da causa, como acima se deixou dito, nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 1 e 572.º, al. c) do Código de Processo Civil, essa matéria tinha que ser alegada pela recorrente em sede de petição, sob pena de preclusão (art.º. 573º do Código de Processo Civil). Ora, conforme se vê da petição apresentada pela recorrente, esta não cuidou em alegar esses factos essenciais integrativos daquele fundamento de embargos. Resulta do que se vem dizendo, que o tribunal a quo não incorreu em qualquer omissão de pronúncia ao desconsiderar aqueles factos, como se impunha que desconsiderasse, porque os mesmos são factos essenciais integrativa de fundamento de embargos que a recorrente podia opor à recorrida, mas que a primeira não cuidou em alegar, como nos termos do n.º 1 dos artigos 5.º e 552.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, lhe era imposto que fizesse. Daí que não padeça a decisão em apreço de qualquer nulidade, designadamente a apontada no termos da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Não ocorre, assim, este fundamento de nulidade da sentença. 3.3 Do mérito da decisão - Da perda do benefício do prazo Invoca, ainda, a recorrente a ausência da sua prévia interpelação aquando do incumprimento pelos devedores principais. Vejamos se lhe assiste razão. A perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor encontra-se regulada, supletivamente, nos artigos 779.º a 781.º do Código Civil. Assim, o artigo 780.º, n.º 1, 1.ª parte, prescreve a perda do benefício daquele prazo quando o devedor se torne insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada, o que, nas palavras de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 47, determina “o vencimento imediato da obrigação, por caducidade do prazo estabelecido”. No entanto, nos casos de insolvência do devedor, Almeida Costa, in Direito das Obrigações, Almedina, 11.ª Edição, 2008, p. 1016, estabelece a diferença entre: por um lado, a hipótese de declaração judicial de insolvência, em que, por via do preceituado no art.º 91.º, n.º 1 e 3, do CIRE, ocorre “uma automática antecipação do vencimento”; por outro lado, a hipótese de insolvência não judicialmente declarada, em que se verificará “uma simples antecipação da exigibilidade, cujo exercício fica ao arbítrio do credor e, consequentemente, vencendo-se a prestação no respectivo prazo, se ele deixa de reclamá-la”. Outra hipótese de perda de benefício do prazo contemplada na 2.ª parte do n.º 1 do referido artigo 780.º é a respeitante à diminuição ou não prestação das garantias prometidas, por causa imputável ao devedor, em que também, nas palavras de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 49, “a dívida a termo torna-se imediatamente exigível, perdendo o devedor o benefício do prazo”. Nestes casos, porém, o n.º 2 do mesmo artigo atribui, ao credor, em alternativa ao cumprimento imediato da obrigação, o direito de exigir do devedor a substituição ou reforço das garantias. Por fim, no domínio das dívidas liquidáveis em prestações, o artigo 781.º estabelece que: “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.”. Na linha do entendimento doutrinário e jurisprudencial hoje largamente maioritário, tal vencimento imediato das prestações fraccionadas vincendas não opera automaticamente, exigindo-se antes a prévia interpelação do devedor para pagar a dívida remanescente, condição indispensável à sua constituição em mora quanto a esta - cfr, entre outros, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, pp. 53 e 54, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 11.ª Edição, 2008, p. 1018. E, a este propósito, convém, desde já, ter presente o ditame jurisprudencial uniformizador do AUJ do STJ n.º 7/2009, de 25/03/2009, publicado no Diário de República, 1.ª série, de 05/05/2009, nos termos do qual: «No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporadas.» Posto isto, vejamos agora qual a consequência legal da perda do benefício de prazo por parte do devedor principal - no caso, os mutuários - em relação aos respectivos fiadores. Como é sabido, nos termos do artigo 634.º do Código Civil, a obrigação do fiador tem o conteúdo da obrigação afiançada e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor principal. Todavia, nos casos de perda do benefício de prazo estabelecido a favor do devedor contemplados nos indicados artigos 780.º e 781.º, o artigo 782.º estatui que: “A perda do benefício não se estende aos coobrigados do devedor nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.” Significa isto, no que aqui releva, que a perda do benefício do prazo por parte do devedor principal não importa, sem mais, idêntica perda para os respectivos fiadores, sejam eles subsidiários ou solidários, que se mantêm, por isso, apenas vinculados ao pagamento das prestações vencidas e não pagas no decurso do prazo que fora estabelecido - cf. Antunes Varela, ob. cit., p. 56 e Almeida Costa, ob. cit., p. 1015. Porém, como também tem sido unanimemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência, o referido regime legal de perda do benefício do prazo reveste natureza supletiva, podendo ser afastado por convenção das partes a coberto do princípio da liberdade contratual proclamado no artigo 405.º do Código Civil. Nessa latitude, podem as partes estipular cláusulas atípicas de perda do benefício do prazo, estabelecer o vencimento imediato e automático das prestações fraccionadas vincendas em derrogação do disposto no artigo 781.º do Código Civil, como também podem os coobrigados, nomeadamente os fiadores, vincular-se, desde logo, à perda do benefício do prazo por parte do devedor principal, em detrimento da norma supletiva do artigo 782.º. Convém sublinhar, todavia, que o facto de o fiador ter renunciado ao benefício da excussão prévia nos termos do artigo 640.º, alínea a), do Código Civil, não importa, sem mais, que se vincule à perda do beneficio do prazo do devedor em termos de afastar a norma supletiva do artigo 782.º. Com efeito, a renúncia do fiador ao benefício da excussão prévia implica simplesmente a derrogação da regra da subsidiariedade da fiança e, nessa medida, a assunção da qualidade de devedor principal, isto é, de fiador solidário, o que não envolve qualquer vinculação deste à perda do benefício do prazo por parte do devedor principal e que não é extensível ao fiador nos termos da norma supletiva do artigo 782.º. No caso vertente, os títulos executivos configuram dois contratos de mútuo com fiança – os quais se mostram formalizados oficial público, e assim documentos autênticos - qualificados de documentos autênticos perante o regime decorrente dos artigos 369.º a 371.º do Código Civil. Por sua vez, a aqui embargante assumiu o papel de fiador, nesse contrato exequendo, tendo renunciado expressamente ao benefício do prazo estipulado no art.º. 782º do Código Civil. Ademais, ficou provado que a recorrida interpelou a aqui recorrente para o pagamento da dívida, logo na fase inicial. Daqui resulta, de forma linear, que não há qualquer inexigibilidade da obrigação exequenda no que tange à ora recorrente, na pele de fiadora nos contratos exequendos. Deste modo, verifica-se que improcede, igualmente, o referido fundamento de recurso. - Da modificação contratual sem a anuência da recorrente Invoca, ainda, a recorrente a ocorrência de modificação contratual sem a sua anuência. Tal fundamento, todavia, pelas razões atrás já referidas não pode ser atendível. Com efeito, esta não alegou a concretização factual imprescindível para o efeito, face ao que não vemos como se pode acolher o que invoca. - Da alteração superveniente das circunstâncias Invoca, ainda, a recorrente como fundamento do recurso a ocorrência de uma alteração superveniente das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar o que, segundo defende, a deverá desonerar da obrigação contraída. Decorre do regime normativo do art.º. 437.º do Código Civil, que: “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior”. Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 41: “A resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o tribunal, atendendo à boa fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação: Alude a lei, no entanto, aos seguintes requisitos: a) Que haja alteração anormal das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar. É preciso que essas circunstâncias se tenham modificado. Esta providência não se confunde com a teoria do erro acerca das circunstâncias existentes à data do contrato, muito embora haja uma estreita afinidade entre elas (uma, relativa à base negocial objectiva -, a outra, assente na base negocial subjectiva). E, além disso, é necessário que a alteração seja anormal. Uma das circunstâncias relevantes pode ser a modificação do valor da moeda. A lei não exige, ao contrário do Código italiano, que a alteração seja imprevisível, mas o requisito da anormalidade conduzirá praticamente quase aos mesmos resultados…”. A possibilidade de modificação ou alteração dos contratos com apelo ao art.º. 437º, nº 1, do Código Civil, confronta dialecticamente dois princípios; o da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial, e o princípio da boa-fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte. Ao que se atende, como ponto de partida é à base do negócio, ao circunstancialismo em que as partes assentaram a decisão de contratar, o que pressupõe um consenso negocial recíproco sem o qual não teriam celebrado certo negócio jurídico, ou não o teriam celebrado nos termos em que o fizeram. Na execução do contrato podem surgir factores que afectem, de maneira anómala, imprevista, aquela base negocial e que tornem intolerável a manutenção do contrato tal como foi inicialmente querido e gizado pelos contraentes, por ser patente o desequilíbrio das prestações, sendo agora excessivamente onerada uma parte e mantendo a outra a situação inicial, como se nada tivesse ocorrido. Os requisitos de aplicação do art.º. 437º, nº 1, do Código Civil, na lição do Professor Menezes Leitão - “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 124 e segs., são: “1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; 2) O carácter anormal dessa alteração; 3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; 4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; 5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato. Relativamente ao primeiro pressuposto, dele resulta que apenas são relevantes as alterações das circunstâncias efectivamente existentes à data da celebração do contrato, e que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes (a denominada “base do negócio objectiva”). Não relevam assim, para efeitos desta norma, os casos de falsa representação das partes quanto às circunstâncias presentes ou futuras, que apenas colocam um problema de erro, nem circunstâncias que, apesar de efectivamente existentes, não se apresentem como causais em relação à celebração do contrato. Relativamente ao segundo pressuposto, exige-se, por outro lado, que essa alteração tenha carácter anormal, ou seja, que fosse de todo imprevisível para as partes a sua verificação. Situações excepcionais como uma revolução ou o deflagrar de um estado de guerra podem facilmente ser qualificados como alteração das circunstâncias. Alterações legislativas completamente inesperadas também devem ser qualificadas como tal. Já outras hipóteses como a simples alteração do preço dos produtos comercializados não preencherão o requisito da anormalidade. Quanto ao terceiro pressuposto, exige-se que a alteração das circunstâncias provoque a lesão de uma das partes no contrato, o que justifica o surgimento de um desequilíbrio entre as prestações contratuais. Efectivamente, a alteração das circunstâncias só será relevante se dela resultar uma modificação no equilíbrio contratual estabelecido pelas partes. Se a alteração não provocar danos significativos para uma das partes, não se justifica aplicar este instituto, devendo ser o contrato cumprido nos termos gerais. Quanto ao quarto pressuposto, exige-se que o desequilíbrio contratual gerado pela alteração das circunstâncias seja de tal ordem, que torne contrária à boa-fé que a parte beneficiada venha exigir o cumprimento do contrato. Neste sentido, pode-se considerar que a alteração das circunstâncias se apresenta como uma modalidade específica de abuso do direito (art. 334°), neste caso de um direito de crédito, já que, por força da boa fé, se torna ilegítimo ao credor a exigência da prestação numa situação em que os limites relativos ao equilíbrio das prestações no contrato se encontram ultrapassados. Consequentemente a alteração das circunstâncias não pode ser aplicada a contratos já executados, uma vez que após a troca das prestações, já passa a ser um risco do receptor da prestação as alterações de valor que ela venha a sofrer. Finalmente, quanto ao quinto pressuposto, exige-se que a lesão causada pela alteração das circunstâncias não se apresente como coberta pelos riscos próprios do contrato.” Romano Martinez, in “Da Cessação do Contrato”, pág. 155, considera que os cinco requisitos do art.º. 437º, nº 1, do Código Civil “são de verificação cumulativa pelo que faltando algum ou alguns deles, não se pode recorrer a este instituto”. Note-se que a lei não libera o devedor senão no quadro da figura do abuso do direito e do instituto da boa-fé quando a prestação se tornou excessivamente onerosa. O remédio mais drástico do art.º. 437º, nº 1, do Código Civil é muito exigente no que respeita à verificação dos requisitos de aplicabilidade. Com efeito, a teoria do limite do sacrifício não foi acolhida no Código Civil. O art.º. 790º, nº 1 do Código Civil, exonera o devedor, estatuindo que a obrigação se extingue “quando a prestação se tornou impossível”, por causa que lhe não seja imputável. Contudo, em caso de excessividade da prestação, Antunes Varela ensina que se deve ter em conta, na abordagem de tal problemática, “o disposto nos artigos 437º, 566º, 762º, 812º e, principalmente, no artigo 334º”. “Por um lado, sabe-se que a alteração anormal de certas circunstâncias vigentes à data da negociação pode dar lugar à resolução do contrato, ou à sua modificação segundo critérios de equidade (art. 437°), e que igual regime é aplicável ao erro sobre as circunstâncias que constituem a base negocial (art. 252°, 2)”. Num contrato de mútuo, como sucede no caso vertente, importa considerar o risco próprio do contrato, tão previsivelmente maior quanto maior for o período de duração estipulado. Todos os contratos comportam uma margem de risco económico, sobretudo os contratos de financiamento que envolvem garantias reais ou pessoais; nestas, a condição do garante está mais exposta a flutuações, sobretudo, em tempo de crise. José de Oliveira Ascensão, no Estudo “Onerosidade Excessiva por Alteração das Circunstâncias”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados - 2005 - Ano 65, Vol. III - afirma a certo trecho: “A alteração anormal é assim, não apenas a alteração extraordinária e imprevisível, mas ainda a alteração que desequilibra uma relação com particular intensidade. É este afinal o conteúdo útil do art. 437/1, ao prever que a exigência das obrigações afecte gravemente os princípios da boa fé. A “exigência” e a “boa fé” vêm a despropósito como vimos, mas a “gravidade” não. Só uma alteração significativa, grave portanto, leva a reconsiderar os termos do contrato. A alteração anormal é, não só a alteração extraordinária e imprevisível, como também uma alteração que afecta gravemente, manifestamente, a equação negocialmente estabelecida.”. No recente Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº47 Julho/Setembro 2014, da autoria do Professor Doutor Henrique Antunes “A alteração das Circunstâncias no Direito Europeu dos Contratos”, na pág. 13, sobre a anormalidade ou excepcionalidade da alteração, pode ler-se: “A alteração das circunstâncias relevante tem de ser anormal. Na doutrina, distingue-se a anormalidade da imprevisibilidade, acolhendo à resolução ou modificação do contrato alterações que, embora previsíveis, sejam excepcionais, anómalas. […]. Mas pode não se justificar em outros casos, nos quais a boa fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente de determinada circunstância […]. É imprevisível a verificação de um evento, ou do seu alcance, quando, embora pudesse ser representado, em abstracto, pelas partes, a prevenção dos seus efeitos não lhes é imputável, em razão das circunstâncias contemporâneas da vinculação negocial, explicando, assim, que o bom pai de família acordasse, nos mesmos termos, o contrato.” A circunstância pessoal de um contraente, no tempo histórico da celebração do contrato, releva para enquadrar objectivamente os motivos em que foi fundada a decisão de contratar, mas a alteração meramente pessoal superveniente, [ainda que por motivos externos à negociação mas não imprevísiveis], não é subsumível à previsão do art. 437º, nº1, do Código Civil, por este postular a verificação conjunta de outros requisitos que afectem a generalidade de negócios jurídicos do mesmo tipo; o que se pode afirmar é que a obrigação pecuniária do fiador ficou mais onerosa, onerosidade que não surgiu de forma imprevisível, anómala a todas as luzes. Como refere o Professor Menezes Cordeiro, in “Da alteração das Circunstâncias – A concretização do art. 437º do Código Civil à luz da Jurisprudência posterior a 1974”, “Separata dos Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha”, Lisboa, 1987, págs. 71 a 75: “Perante uma modificação ambiental de vulto, todas as situações singulares são, em princípio, tocadas por igual. Uma decisão isolada que provoque determinada adaptação pode, perante outras, ter consequências distorcidas (…) a solução pontual solicita que todos os problemas análogos, uma vez colocados judicialmente, terão saída similar: a revisão de um contrato deixa esperar revisões de todos os pactos semelhantes e assim por diante. Entra-se num domínio de grandes proporções, onde a regulação terá de ser genérica: de novo se solicita a intervenção do legislador. O art. 437º existe e deve ser usado nos casos-limite em que não tenha aplicação qualquer outro instituto.” Por sua vez, a fiança tem na sua própria definição como obrigação de garantia o ser por excelência um negócio de risco, (Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, p. 118), podendo afirmar-se que é um dos tipos contratuais que recebem o seu sentido específico e fim, do elemento risco. E se bem que todos os negócios envolvam um risco, aquele de que falamos quando nos referimos à fiança é em si mesmo um risco normal precisamente por o fiador ser chamado a suportar o esforço da satisfação do credor sem que possa exigir qualquer correspectivo, ficando depois a seu inteiro cargo a diligência de tentar obter do devedor aquilo que haja prestado. Aliás, é deste reconhecimento de o perigo ser elemento constitutivo conatural à fiança é que se explica que no seu regime jurídico esteja presente, entre outros elementos, a possibilidade ao fiador de saber ex ante o nível de risco assumido; “a impossibilidade da aplicação da doutrina alteração das circunstâncias a favor do beneficiário da assunção do risco e a forte restrição da aplicação da doutrina da alteração das circunstâncias a favor do assuntor do risco” - cf. Januário Gomes, Estudos de Direito das Garantias, vol. I, p. 24. Assim, entendendo que nada obsta a que o artigos 437.º a 439.º sejam aplicáveis à fiança, uma vez que verdadeiramente não se infere de nenhum dispositivo regulador desta que o mecanismo geral do artigo 437.º não lhe possa ser aplicado e “não é aceitável que o fim da garantia imponha ao fiador um grau de risco gravemente atentatório do princípio da boa fé” - vd. Januário Gomes Assunção Fidejussória de dívida, p. 821, é forçoso concluir, em face do antes dito, que esta aplicação exige uma prudência acrescida. Exigindo-se na aplicação do artigo 437.º do Código Civil que a alteração registada não esteja coberta pelos riscos do próprio contrato, e sendo por definição a fiança um contrato de risco, por referência à sua finalidade que é o de resguardar o credor do risco de não poder obter do próprio devedor a satisfação do seu crédito, tal reduz em muito as circunstâncias de ocorrência posterior à prestação da fiança que sejam portadoras de imprevisibilidade capaz de as fazer merecer a qualificação de causa obstativa da execução da garantia. No caso vertente, o tribunal a quo deu como provado: a. A mutuária F… foi declarada insolvente no âmbito do processo nº 1490/15.2T8STS, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso, J3. b. O co-executado G… faleceu em 5.7.2008 no estado de casado com a embargante, C…. c. Aquando da celebração dos contratos referidos em 1), a ora embargante encontrava-se casada, sendo o marido policia na PSP, e a embargante não trabalhava nem recebia qualquer rendimento, vivendo este agregado familiar exclusivamente dos rendimentos do executado G…, no montante global bruto, no ano de 2007 de € 20.762,15/ano d. Actualmente a ora embargante é viúva, e aufere de uma pensão de sobrevivência, que em Janeiro de 2017 ascendia a € 643,27. e. Os mutuários romperam a vida conjugal, e divorciaram-se em data não apurada, tudo conforme consta do ponto III- Fundamentação de Facto da douta sentença. Tendo presente a referida factualidade que serve a decisão e conforme já referimos, a circunstância pessoal de um contraente, no tempo histórico da celebração do contrato, releva para enquadrar objectivamente os motivos em que foi fundada a decisão de contratar, mas a alteração meramente pessoal superveniente, não é subsumível à previsão do art. 437º, nº1, do Código Civil, por este postular a verificação conjunta de outros requisitos que afectem a generalidade de negócios jurídicos do mesmo tipo, o que não sucede no caso vertente. Pelo exposto soçobra igualmente o referido fundamento de recurso. Assim, face a tudo quanto precede, conclui-se que o recurso de apelação interposto improcede, devendo confirmar-se a decisão recorrida embora por fundamentos não integralmente coincidentes. * Sumariando em jeito de síntese conclusiva:……………………………………… ……………………………………… ……………………………………… 4. Decisão Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, mantendo a decisão recorrida. * Custas a cargo da apelante.* Notifique.Porto, 22 de Maio de 2019. Paulo Dias da Silva Mário Fernandes Amaral Ferreira |