Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0435944
Nº Convencional: JTRP00037429
Relator: VIRIATO BERNARDO
Descritores: ARRENDAMENTO
VÍCIOS DA COISA
RENDA
PAGAMENTO
Nº do Documento: RP200411250435944
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Enquanto o locador mantiver ou não impedir o gozo da coisa objecto da locação na disponibilidade do locatário, ou seja, enquanto este a poder usufruir, não lhe assistirá o direito a excepcionar o não cumprimento da obrigação de pagamento da correspondente renda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – B..........., C.......... e D.........., intentaram a presente acção de despejo sob a forma de processo sumário contra, E.........., alegando no essencial, serem proprietários de um prédio urbano que deram de arrendamento ao R., o qual não paga as respectivas rendas desde Maio de 2002 não tendo ainda pago integralmente as rendas vencidas entre 1/12/2001 a 1/3/2002.
Concluem pedindo a resolução do contrato de arrendamento e a condenação do Réu a despejar e entregar-lhes o arrendado assim como a pagar-lhes a quantia de 5.067,84 EUR mais 26,96 EUR a título de rendas vencidas em dívida e das rendas vincendas até ao despejo.

O Réu contestou, invocando a falta de condições de habitabilidade do arrendado e que vem reclamando obras tais como: o tecto ameaça ruir, tanto no quarto, como na sala de jantar; que o prédio foi objecto de obras há cerca de dois anos, com excepção, do apartamento onde o R. vive, e em cujas instalações não são feitas quaisquer obras há mais de quinze anos, não obstante os avisos ao procurador e representante do senhorio acerca do seu estado; que o apartamento, tem cerca de tinta anos, apresenta sinais de degradação devido às infiltrações das águas da chuva, o que provocou há cerca de um ano, um curto circuito no aparelho de televisão, inutilizando-o; que não pode utilizar as luzes do tecto, porque toda a instalação eléctrica está em curto-circuito; Enfim não tem condições de habitabilidade, necessitando urgentemente de obras, tais como a reparação do telhado e do mais necessário para impedir que nele se infiltrem águas das chuvas com inerentes acabamentos; locado o qual necessita da realização urgente de obras a cargo dos AA./senhorios, pelo que lhe assistirá o direito de não pagamento das rendas enquanto estes não realizarem as obras que lhe assegurem o gozo do apartamento.
Conclui pela improcedência da acção.
Na resposta a A. conclui como na p.i., impugnando a alegada necessidade urgente de obras no arrendado e pela inaplicabilidade da excepção de não cumprimento do contrato invocada pelo R. relativamente ao não pagamento das rendas em dívida.
Seguindo os autos seus termos, o Sr. Juiz, logo no saneador, proferiu sentença na qual decidiu julgar a acção procedente, e decidiu:
A) declarar resolvido o contrato de arrendamento referido no artigo 7° da petição inicial, tendo por objecto a fracção autónoma referida no art. 1° da petição inicial;
B) Condenar o R., E.......... a despejar o imóvel referido no artigo 1° da petição inicial e a entrega-lo aos AA., B..........; C.......... e D.........., acompanhado dos bens móveis referidos no art. 8° da petição inicial;
C) Condenar o R., E.......... a pagar aos AA., B.........; C.......... e D.........., a quantia de € 5.094,80 a título de rendas vencidas á data da entrada em juízo da presente acção acrescida da quantia correspondente ao montante das rendas vencidas e vincendas desde essa data à razão de € 316,74 por mês até à entrega efectiva da fracção arrendada, assim como dos juros de mora vencidos a vincendos calculados à taxa legal sobre a referida quantia até à data do respectivo pagamento.

Inconformado com a sentença dela veio apelar o Réu apresentando alegações e respectivas conclusões, como segue:
1ª - As condições de habitabilidade a que os AA. como senhorios estão legal e contratualmente vinculados, hão-de assegurar padrões de higiene e conforto, tal como define o art. 65.°, n°1, da Constituição;
2ª - No presente caso, e pela matéria alegada pelo R. essas condições não existem, nem mínimas que sejam;
3ª - E se puder considerar-se que o arrendado não satisfaz totalmente, posto que nele chove abundantemente, está fortemente degradado, com bocados das paredes e tectos caídos, em iminente ruína, estando em risco a saúde e integridade física do arrendatário, pessoa só e doente, e sendo tal situação imputável ao senhorio por negligentemente não ter procedido às periódicas obras de conservação obrigatórias, não podem por parte do mesmo ser exigidas as rendas como se o arrendado se apresentasse em condições normais;
4ª - Assim se entendendo, salvo o devido respeito, que os autos deveriam prosseguir, com elaboração de base instrutória, os demais termos.
5ª - Consideram-se violadas as disposições dos art. s 1.031.º, alínea b), 428.°, n° 1, 762.°, n° 2, e o princípio nele consignado, do C. Civil, 660.°, n° 2, C. P. Civil.
Termina assim, pedindo que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinar-se o prosseguimento dos autos, com selecção da matéria de facto considerada assente e fixação da base instrutória, seguindo-se os ulteriores termos.

Os Autores pugnam pela confirmação da sentença recorrida.
Corridos os vistos cumpre decidir:

II – Factos apurados:
1. Os Autores são donos da fracção autónoma designada pela letra "I" correspondente a uma habitação no 3° andar frente, com entrada pelo n°. ... da Rua ..........., do prédio urbano constituído no regime da propriedade horizontal situado na Rua ............ nºs. .. a ..-. a Rua ............ nºs. .., .., .. a .., da freguesia ............, concelho do ............, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 9.819-F.
2. Por escritura pública celebrada em 4 de Abril de 1986, F......... doou a referida fracção autónoma aos Autores a G.......... a marido, H.........., por partes iguais a com reserva de usufruto vitalício a favor da doadora.
3. Os donatários aceitaram a referida doação nos termos exarados.
4. F.......... faleceu no dia 27 de Maio de 1994.
5. Por escritura pública celebrada em 12 de Julho de 2002, G.......... a marido, H........... doaram a respectiva parte indivisa na referida fracção autónoma aos Autores, por partes iguais, que a aceitaram.
6. Os factos mencionados nos anteriores artigos foram oportunamente comunicados ao Réu.
7. Por contrato de arrendamento celebrado em 1 de Abril de 1987 - documento junto a fls. 22 a 23 cujo teor se dá por reproduzido – F..........., deu de arrendamento ao Réu a fracção autónoma identificada no anterior artigo lº.
8. A referida habitação foi arrendada juntamente com o seguinte mobiliário:
- quarto de casal, em mogno, constituído por cama de casal com colchão de molas a duas almofadas, cómoda com espelho de parede, mesinha de cabeceira a cadeira estofada a napa;
- mobília de sala de jantar, em mogno, constituída por uma mesa de jantar, 4 cadeiras a um aparador;
- um fogão eléctrico de 3 bocas, de marca "Leão";
- um móvel de casa de banho, de parede com espelho parede com lâmpada; - um aplique de tecto na hall de entrada.
9. Os efeitos do contrato referido nos artigos anteriores iniciaram-se no dia 1 de Abril de 1987, data em que o ora Réu passou a deter o gozo pleno a temporário da fracção autónoma em causa, respectivo mobiliário e equipamento.
10. O Réu fixou residência no locado, utilizando-o para sua habitação.
11. O contrato em apreço foi celebrado pelo prazo de um ano, renovando-se por iguais a sucessivos períodos de um ano enquanto não seja denunciado por qualquer das partes.
12. A renda mensal foi fixada no citado contrato em € 137,17 (27.500$00), devendo ser paga no 1° dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, inicialmente, por depósito no "Banco X.........." e, desde Junho de 2001, ao representante dos Senhorios, na Rua ..........., n° ..., loja .., no .......... .
13. Face às actualizações anuais legalmente permitidas, a contrapartida pela cedência temporária do gozo do locado cifra-se, desde 1 de Dezembro de 2001, em € 316,74 mensais.
14. O Réu não pagou as rendas vencidas em 2002.04.01, 2002.05.01, 2002.06.01, 2002.07.01, 2002.08.01, 2002.09.01, 2002.10.01, 2002.11.01, 2002.12.01, 2003.01.01, 2003.02.01, 2003.03.01, 2003.04.01, 2003.05.01, 2003.06.01 a 2003.07.01, relativas aos meses de Maio de 2002 a Agosto de 2003, inclusive.
15. Por conta de cada uma das rendas vencidas em 2001.12.01, 2002.01.01 e 2002.02.01 a 2002.03.01, o Réu apenas entregou a quantia de € 310,00.

III – Mérito do recurso:
Como é sabido as conclusões das alegações delimitam o âmbito do recurso – cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 ambos do Código do Processo Civil.
Tendo em conta tais conclusões a única questão a decidir é a de saber se se deve, desde já, dar como resolvido o contrato de arrendamento aqui em causa.
O Sr. Juiz a quo discorreu assim:

“Mostrando-se validamente celebrado e actualmente válido o contrato de arrendamento em apreço nos presentes autos em que são senhorios/locadores os AA e arrendatário/locatário o R., e não tendo este impugnado a falta de pagamento de rendas alegada na p.i., a questão que cumpre apreciar e decidir na presente acção diz respeito á relevância da invocada excepção de não cumprimento do contrato invocada pelo R. como fundamento para o não pagamento das rendas por falta de realização de obras no arrendado por parte dos AA. que assegurem as devidas condições de habitabilidade no locado.
E continua:
Alega o R. na presente contestação que o locado apresenta sinais de degradação devido á infiltração de aguas pluviais o que impede a utilização das luzes do tecto pelo facto de a instalação eléctrica se encontrar em curto-circuito, sendo que o tecto ameaça ruir a qualquer momento, o que se deve ao facto de os senhorios não efectuarem as devidas obras no arrendado há mais de 15 anos.
Tais obras que alega o R. carecem de ser efectuadas no locado, mostram-se susceptíveis de ser integradas na definição de obras de conservação ordinária, nos termos previstos pelo art. 12° do R.A.U., na medida em que as mesma se revelariam necessárias à manutenção das condições de habitabilidade do arrendado existentes á data da celebração do contrato em apreço - art. 11° al. c) do RAU, - incumbindo como tal a sua realização ao senhorio/AA..
Constata-se todavia que apesar da falta de condições de habitabilidade do arrendado que alega, o R. continua aí a residir permanentemente.
Dispõe o art. 428° n°1 do Código Civil
"Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo".
Conforme resulta do teor deste normativo a exceptio non adimpleti contractus aí estatuída exige a reciprocidade entre as prestações dos contraentes - neste sentido vide A. Varela e P. de Lima in Código Civil. Anot. Vol. l pg. 405.
O contrato de locação é um contrato bilateral ou sinalagmático, envolvendo, alem do mais, da parte do locador, a obrigação de entregar a coisa ao locatário e de lhe assegurar o gozo dela para os fins a que se destina e, por parte do locatário, a de pagar a renda - arts. 1022; 1031 e 1038° do Código Civil
Ora considerado o vínculo obrigacional a que ficam adstritos locador e locatário num contrato de arrendamento, resulta para o locador a obrigação permanente de assegurar o gozo do locado ao arrendatário e para este uma obrigação de prestação reiterada de pagamento mensal - no presente caso em apreço - da renda devida.

Aqui chegados e com o respeito que nos merecem as diferentes posições doutrinais e jurisprudenciais que a questão sub judice tem conhecido, é nosso entendimento que enquanto o locador mantiver ou não impedir o gozo da coisa objecto da locação na disponibilidade do locatário, ou seja, enquanto este a poder usufruir, não lhe assistirá o direito a excepcionar o não cumprimento da obrigação de pagamento da correspondente renda.
Só assim não sucederá quando o senhorio por acção ou omissão, nomeadamente quando não realize obras a seu cargo que inviabilizem o gozo do locado, o locatário se veja, justificadamente, no todo ou em parte, impossibilitado de usufruir o locado.
Ora no presente caso o que se verifica é que apesar de alegar que o arrendado não dispõe de condições de habitabilidade, o R. continua a usufruir do mesmo, aí mantendo a sua residência permanentemente, pelo que, optando por tal fruição não lhe assistirá o direito a recusar a sua correspondente obrigação de pagamento da devida renda.
É certo que nos termos previstos pelo art. 12° do RAU., mesmo que opte por se manter a residir no arrendado tal não invalida que ao arrendatário assista o direito de exigir ao senhorio a realização de obras de conservação ordinária.
Todavia em tal circunstância caber-lhe-á lançar mão dos mecanismos previstos para o efeito pelos arts. 15° e 16° do RAU ou demandar judicialmente o senhorio para a realização de tais obras, devendo contundo manter o pagamento da renda enquanto se mantiver no gozo do arrendado, dado que não lhe assistirá, conforme acima se referiu, o direito ao não cumprimento da sua prestação enquanto optar por se manter no gozo no arrendado, porquanto que assim não se verifica o incumprimento do senhorio traduzido em privação do gozo da coisa por parte do locatário, sendo que apenas neste caso assistiria a este último o direito ao correlativo não cumprimento da sua parte ao abrigo do instituto da exceptio non adimpleti contractus previsto e estatuído pelo citado art. 428° n°1 do Código Civil.
No sentido de não aplicabilidade do instituto da excepção de não cumprimento do contrato relativamente á faculdade de recusa de pagamento de rendas por parte do arrendatário enquanto o senhorio não realizar obras que possibilitem o gozo do arrendado, veja-se, entre muitos outros, "Pinto Furtado in Manual do Arrendamento Urbano" Almedina 3ª Ed. pgs. 431 e 777; Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 27/05/2002, proc. 0250709; Ac. do Supremo Tribunal de justiça de 11/12/1984 in BMJ 342/355 e o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/02/2002, proc. 00120052

No sentido de assistir ao arrendatário o direito à exceptio em tal circunstância veja-se o Ac. da R.L. de 9.5.1995 in C.J. XXX, t. III p. 87.
Assim e em síntese se dirá que ainda que lograsse a prova da factualidade que alega na respectiva contestação, de tal factualidade não resultaria para o R. o direito à recusa do não pagamento das rendas, porquanto que ao manter-se no gozo do locado incorre na correspondente obrigação de pagamento da renda devida por tal gozo que assim lhe continua a ser disponibilizado pelos AA..
Face ao exposto e resultando provado que o R. não procedeu ao pagamento atempado da renda devida pelo arrendamento em apreço nos autos, forçosa é a conclusão da procedência da acção por força do disposto pelo art. 64° n°1 al. a) do R.A.U.”

Assim, o Sr. Juiz a quo decidiu pelo despejo do Réu, por não ter pago toas as rendas vencidas.

Todavia, temos por mais correcto dever mandar analisar a matéria apurada e não acolhida na sentença, embora controvertida.
De facto, perante duas correntes de opinião acerca de como decidir, é adequado e mais correcto, acolher mais factos, tais como os acima aludidos e retirados da contestação, para, em sede de julgamento, decidir em conformidade.
Na verdade nos termos do art. 1031º al. b) do Código Civil, o senhorio deve assegurar ao arrendatário o gozo do imóvel para os fins a que se destina, devendo, portanto, efectuar as obras e reparações necessárias para que o gozo do arrendatário não seja significativamente diminuído (como no caso alegadamente se encontra). – v. Ac. do STJ, in BMJ 440, 468.
E a obrigação do senhorio é contínua, renovando-se todos os dias até ao fim do contrato.
Sendo obrigação do senhorio assegurar o gozo do prédio ao inquilino os AA deveriam pagar as obras.
Sendo que o R. alegadamente não tem possibilidade de as efectuar.
Ora o quadro factual traçado na contestação, se se vier provar, leva à evidência, uma situação de extrema carência que se mostra mesmo chocante.

É que, por um lado, a ser verdade o alegado na contestação, designadamente a de só terem feito obras no resto do prédio e não no apartamento onde vive o R., - e que delas muito precisava -, o senhorio poderá ter agido em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, (art. 334º do CC), tanto mais que o locador se obrigou expressamente, por contrato, a fazer “os reparos” externos por sua conta e não terá cumprido – v. Cláusula 2ª do contrato de fls. 22, 2ª cláusula, ali se incluindo, obviamente as infiltrações de águas da chuva, de forma tal que a instalação eléctrica estará em curto circuito geradora assim de perigos e potenciadora, de tratamento jurídico ao abrigo do art. 334º do CC. Se for provada a matéria alegada na contestação e não acolhida pelo Sr. Juiz a quo.
Assim, em suma, há que alargar a base instrutória a fim de se acolher a matéria assinalada supra, retirada da contestação e ou outra, seguindo os autos seus termos para decisão final.

IV - Decisão:

Face ao exposto anula-se a sentença recorrida e os posteriores termos para o efeito assinalado.
Custas a decidir a final.
Porto, 25 de Novembro de 2004
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo
Gonçalo Xavier Silvano