Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FILIPE CAROÇO | ||
Descritores: | TRANSPORTE INTERNACIONAL RODOVIÁRIO TRANSITÁRIO MERCADORIAS DANOS CONTRATO DE SEGURO TRANSPORTADOR PRESUNÇÃO DE CULPA | ||
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Nº do Documento: | RP202203241965/19.4T8PRD.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/24/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O art.º 17º, nº 1, da Convenção CMR consagra uma presunção de culpa do transportador relativamente aos danos ocorridos na mercadoria durante o transporte. II - Competindo à A. seguradora demonstrar os danos sofridos na mercadoria durante o transporte, é do transportador o ónus da prova de que tal situação de prejuízo teve por causa uma das situações previstas no art.º 17º, nº 2, designadamente que a avaria ocorrida (durante o transporte) teve por causa uma falta do expedidor (nº 1 do art.º 18º, em consonância com o art.º 342º, nºs 1 e 344º, nº 1, do Código Civil). III - Provado que o dano ocorrido durante o transporte internacional resultou do embate da mercadoria transportada (portas) contra a face interior das caixas de madeira onde estavam embaladas, por existência de espaços livres deixados pelo expedidor que permitiram a sua deslocação, no desenvolvimento de uma viagem normal, sem incidentes, fica ilidida a presunção de culpa que recai sobre o transportador e a sua responsabilidade relativamente ao prejuízo. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 1965/19.4T8PRD.P1 – 3ª Secção (apelação) Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes – J 2 Relator: Filipe Caroço Adj. Desemb. Judite Pires Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. X... – COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS, S.A.”, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida ..., ..., ..., ... ..., instaurou declarativa sob a forma de processo comum contra: 1. T..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede em Estrada Nacional n.º ..., ..., freguesia ..., ... Viseu; e 2. C... – SUCURSAL EM PORTUGAL, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida ..., ... Lisboa, alegando essencialmente que, no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com a transitária A..., Lda.. um contrato de seguro por via do qual ficou transferida para si a responsabilidade emergente de danos sofridos na mercadoria em trânsito, designadamente, o transporte de caixas de madeira assentes sobre paletes, contendo blocos de porta transportadas por terra, de Portugal para o Reino Unido, conforme determinado certificado de seguro. A transitária contratou a transportadora 1ª R. para a realização do transporte desde as instalações do expedidor, em Portugal, até às instalações da S... Limited, naquele país de destino, sendo que esta recusou a descarga, por a mercadoria se encontrar danificada. A A. averiguou a situação e concluiu que as caixas de madeira sofreram danos durante o transporte, devido a deficiente estiva da mercadoria, por má colocação das cintas de amarração e contenção, sofrendo forças em zonas impróprias, com as oscilações e travagens. A forma e tipologia do embalamento e acondicionamento da mercadoria era a indicada para o efeito, mas o procedimento de segurança, de acondicionamento, no transporte não foi o correto, daí tendo resultado danos em 15 blocos de portas no valor de € 11.975,40, sendo única responsável pelo sinistro a 1ª R., devendo a A. ser ressarcida de todas as quantias despendidas por causa dele, sendo que a responsabilidade daquela se encontra transferida para a 2ª R. A reparação, transporte de Inglaterra para Portugal, desmontagem, embalamento e transporte pelo cliente teve um custo que ascendeu a € 12.100,40, valor ao qual foi deduzida a franquia de € 125,00, assim, a quantia de € 11.975,40 que a A. suportou a favor do tomador do seguro e que tem o direito de exigir da transportadora ao abrigo do art.º 17º, nº 1, da CMR[1]. Terminou o seu articulado com o seguinte pedido: «Termos em que se requer a V. Exa. que julgue a presente acção procedente, por provada e, em consequência, condene as Rés ao pagamento do valor de € 11.975,40 (onze mil, novecentos e setenta e cinco euros e quarenta cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, a apurar, desde citação daquelas até efetivo e integral pagamento, custas judiciais e respetivas custas de parte.» Citadas, as RR contestaram autonomamente a ação. No seu articulado, a 1ª R. invocou a sua ilegitimidade, por ter transferido a sua responsabilidade par a 2ª R., não tendo, por isso, qualquer interesse em contradizer. Não obstante, invocou também a prescrição do direito da A. ao abrigo do art.º 32º da CMR, e impugnou parcialmente os factos alegados na petição inicial, negando que tivesse havido acondicionamento deficiente da mercadoria durante o transporte e alegando que tais atos de carga não foram praticados pelo seu motorista, tendo-o sido por funcionários pertencentes à empresa onde foi feita a carga, por ordem e orientação da A..., Lda.. Acrescentou que o deficiente acondicionamento e sobreposição da mercadoria, no ato de carregamento, não são da sua responsabilidade, mas do carregador/fornecedor. Alegou ainda que, tendo a mercadoria o valor de € 8.745,52, não pode o prejuízo pela reparação parcial da mesma ser superior a ele, como é pedido pela A., e terminou assim a contestação: «Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se a V.ª Ex.ª se digne considerar procedente por provada a presente contestação e, em consequência, I. Julgar a exeção da ilegitimidade passiva procedente por provada, e, em consequência, absolver a R. da instância; II. Julgar a exeção da prescrição procedente por provada, com as demais consequências legais; III. Julgar a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolver a R. do pedido.» A 2ª R. seguradora, na sua contestação, invocou também a prescrição do direito da A. e impugnou a ação, negando parte dos factos alegados na petição inicial, sobretudo por desconhecimento e ausência de obrigação de os conhecer. Afirmou que foi a segurada da A. ou alguém a mando desta que colocou as 4 caixas de madeiras aqui em causa de modo deficiente no camião, não tendo este sofrido qualquer incidente durante o transporte. Quanto aos danos sofridos na mercadoria, tal como a 1ª R., impugna o respetivo valor alegado, por ser superior ao valor total da mercadoria faturada. Concluiu assim: «Nestes termos, deve a) A invocada excepção de prescrição ser julgada procedente e as RR. absolvidas do pedido; Quando assim se não entenda, o que se aduz por mera cautela de patrocínio, b) deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se as RR. do pedido, tudo com as demais consequências legais.» A A. respondeu à matéria das exceções da ilegitimidade e da prescrição, defendendo a sua improcedência. Teve lugar a audiência prévia, com prolação do despacho saneador que relegou para final o conhecimento das referidas exceções. Foi ali identificado o objeto do litígio e foram especificados os temas de prova. O tribunal pronunciou-se sobre os meios de prova e designou data para a realização da audiência final. Após várias vicissitudes e delongas processuais a que não foi alheia a aplicação da legislação relativa à pandemia causada pela Covid 19, teve lugar a audiência fina, em várias sessões, após a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo, ipsis verbis: «Face ao exposto, julgo totalmente improcedente, por não provada a presente acção e, por conseguinte, absolvo as rés “T..., Ldª.” e “C... – Sucursal em Portugal” da totalidade do pedido deduzido. Custas na totalidade a cargo da autora, conforme o disposto no artigo 527º., nº. 1 do Código de Processo Civil.» * Da sentença, recorreu a A., X... – COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS, S.A., tendo produzido alegações com as seguintes CONCLUSÕES:……………………………… ……………………………… ……………………………… * Respondeu em contra-alegações apenas a 2ª R., C... - SUCURSAL EM PORTUGAL, onde sintetizou assim os seus fundamentos:……………………………… ……………………………… ……………………………… Assim defendeu a confirmação da sentença. * Foram colhidos os vistos legais.* II. O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso, sendo que se apreciam questões apenas invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova (art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil). Estão para decidir as seguintes questões: 1. Erro de julgamento em matéria de facto; e 2. Consequências jurídicas da modificação daquela decisão. * III.São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância[2]: 1). A Autora é uma pessoa coletiva, constituída sob o tipo de Sociedade Anónima, com o objeto social de exploração da indústria de seguros e no exercício da sua atividade, no âmbito do ramo dos transportes terrestres a Autora celebrou com a “A..., Ldª.” um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., em virtude da celebração do contrato de seguro foi transferida para a Autora a responsabilidade civil emergente de danos sofridos na mercadoria em trânsito, conforme certificado de seguro e condições especiais que se juntam sob documento n.º 1 e se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais. 2). Ao abrigo do contrato de seguro celebrado e referido em 1), a Autora emitiu certificado de seguro n.º ... para o transporte de mercadoria desde Portugal até Reino Unido, com data de emissão em 17.08.2018, conforme certificado de seguro já junto como documento nº.1 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido. 3). A Ré “T..., Ldª.” tem a sua responsabilidade transferida para a Co-Ré “C...-Sucursal em Portugal”, em virtude de um contrato de Seguro celebrado entre ambas, por meio da apólice n.º ....... Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 4). A mercadoria transportada e coberta pelo certificado era composta por quatro caixas de madeira assentes sobre paletes, contendo 39 blocos de porta, conforme factura ..., emitida em 2018.08.04, no valor total de € 8.745,52 que se junta sob documento n.º 2 que se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais. 5). O transporte efectuou-se por via terrestre desde as instalações da Y..., em ..., em Portugal até às instalações da consignatária em W..., Inglaterra. 6). Para o efeito, a segurada, enquanto transitária, contratou a “T..., S.A.”, para efectuar o transporte da mercadoria até às instalações da “S... Limited”, utilizando o semirreboque e tractor L ... /..-PI-.., ao abrigo do CMR n.º 33901. 7). O transporte da mercadoria ficou concluído em 22.08.2018, com a chegada às instalações da “S... Limited” para entrega da mercadoria, contudo, a descarga foi efectuada sob reserva após exame, nos termos que melhor se mostram anotados – nota do dano - no CMR nº. 33901. 8). A “S... Limited” reclamou os danos na mercadoria ao tomador do seguro, “A..., Lda.” que, por sua vez, solicitou à “T..., S.A.” que participasse à sua companhia de seguros, conforme documento n.º 4 que se junta e se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais. 9). A segurada, “Y...”, por e-mail de 3 de Outubro de 2018, dirige uma reclamação referente aos danos decorrentes do supracitado sinistro à Ré “T..., S.A.”, conforme documento junto aos autos a fls 50 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzido. 10). A Autora requereu a averiguação do sinistro de forma a poder ter conhecimento das circunstâncias em que aquele ocorreu, tendo concluído que os danos na mercadoria terão sido resultado de uma desconjuntura das caixas de madeira que embalavam a mercadoria, que originou que as caixas de madeira, durante o transporte, designadamente com as oscilações e travagens, sofressem forças em zonas impróprias, ficando danificadas. 11). A desconjuntura das caixas de madeira que embalavam a mercadoria provocou o rebentamento dos seus lados, fez com esta ficasse desprotegida, causando danos materiais na mercadoria transportada: riscos, deformações e amolgadelas em quinze blocos de portas, conforme documento n.º 5 que se junta e se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais. 12). Pois, os blocos de porta transportados encontravam-se envoltos em película plástica e separados por películas de plástico de baixa espessura e acondicionados nas caixas de madeira. 13). Como procedimento de segurança foram colocadas cintas de amarração em torno das caixas de madeira, a travá-las tendo aquelas sido carregadas no semirreboque de forma sobreposta, ou seja, umas em cima das outras, conforme se verifica das fotografias. 14). Os danos na mercadoria causaram prejuízos que ascenderam a € 11.975,40 (onze mil, novecentos e setenta e cinco euros e quarenta cêntimos) deduzido o valor da franquia de € 125,00 e foram pagos pela Autora à tomadora do seguro “A..., Ldª.”, em 4 de Abril de 2019, conforme documento n.º 6, 7 que se junta e se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais 15). Apesar de a Autora ter solicitado às Rés, extrajudicialmente, o pagamento da referida quantia, a verdade é que até à presente data, não efectuaram qualquer pagamento do aludido montante. 16). O consignatário reclamou o valor total de € 16.047,44 (dezasseis mil quarenta e sete euros e quarenta e quatro cêntimos) para a substituição integral dos quinze blocos de porta, no entanto, foi possível posteriormente obter a sua concordância para apenas a reparação dos blocos de portas danificadas. 17). A reparação dos quinze blocos de portas incluiu o seu betume, acabamento e junquilhos novos. Mais resultou provado: 18). A presenta acção deu entrada a 26.08.2019. 19). A Ré “T..., Ldª.” enviou à autora uma carta escrita à autora recebida em 29 de Maio de 2019 referente ao sinistro ocorrido em 18.10.2018, na qual, discorda do pedido de reembolso, excluindo a sua responsabilidade na ocorrência dos danos verificados na mercadoria 20). Em 4 de Outubro de 2018 foi emitida pela “Y...- Componentes para Indústria de Carpintaria; Ldª.” em nome das “S... Limited”, a factura ..., no valor total de € 7.301,92, referente a 38 blocos de portas, estando indicado como local da carga ... e destino final as instalações da “S... Limited” conforme resulta do teor do documento junto aos autos a fls. 53 a 55 cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido. 21). A mercadoria estava nas instalações do consignatário e a Autora verificou que existiam 3 cintas de amarração em torno das caixas e 2 travessas. 22). A empresa “A..., Ldª.”, na relação que estabelece com a aqui Ré, contrata um camião por inteiro para efectuar o transporte entre Portugal e Inglaterra, no entanto tratou-se de um transporte em grupagem, tendo as operações de carga, junto dos diversos expedidores sido efectuadas por ordem e orientação daquela empresa. 23). E, a mercadoria foi embalada e acondicionada, no interior das caixas de madeira, por terceiros, em concreto, os trabalhadores da empresa onde foi feita a carga. 24). O motorista da Ré orientou o carregamento das caixas e amarração das mesmas no semirreboque e limitou-se a conduzir o camião que havia sido alugado por aquela empresa. 25). O transporte da mercadoria decorreu sem que tivesse sido registado qualquer acidente que pudesse desencadear os referidos danos. 26). O embalamento dos blocos de porta no interior das caixas de madeira foi efectuado de forma deficiente. 27). O prejuízo pela reparação parcial da mercadoria é superior ao custo da mesma, saída de fábrica. * Quanto à matéria não provada registou-se o seguinte:Nenhuma outra factualidade com interesse para a presente causa, por estar em manifesta contradição com os factos provados acima elencados, constituírem expressões de teor conclusivo designadamente: Petição inicial: 9 quanto à recusa da mercadoria, 13, 16, 17, 19, 21. * Contestação de fls. 31 e seguintes: 16, 29, 30, 32, 40Contestação de fls. 41 e seguintes: 11, 12. * IV.* 1- Erro de julgamento em matéria de facto A recorrente impugna os seguintes pontos da decisão em matéria de facto: 12. Pois, os blocos de porta transportados encontravam-se envoltos em película plástica e separados por películas de plástico de baixa espessura e acondicionados nas caixas de madeira. Pretende que se lhe dê o seguinte teor: 12. “Os blocos de portas transportados encontravam-se envoltos em espuma e polipropileno, separados entre si por ripas, de forma a evitar o contacto dos junquilhos, sendo posteriormente cintadas para evitar a sua deslocação e finalmente acondicionadas em caixas de aglomerado”. 22. A empresa “A..., Ldª.”, na relação que estabelece com a aqui Ré, contrata um camião por inteiro para efectuar o transporte entre Portugal e Inglaterra, no entanto tratou-se de um transporte em grupagem, tendo as operações de carga, junto dos diversos expedidores sido efectuadas por ordem e orientação daquela empresa. Pretende a sua eliminação. 25. O transporte da mercadoria decorreu sem que tivesse sido registado qualquer acidente que pudesse desencadear os referidos danos. Pretende a sua eliminação. 26. O embalamento dos blocos de porta no interior das caixas de madeira foi efetuado de forma deficiente. Deve o seu teor ser substituído pelo seguinte facto: 26. A forma como os blocos de portas foram embalados correspondem às melhores práticas da atividade”. A apelante indicou como prova determinados excertos do depoimento testemunhal de AA, com referência a determinadas passagens da gravação. Fora cumpridos os ónus de impugnação a que se refere o art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil. Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º, que, no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece. Como refere A. Abrantes Geraldes[4], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”. Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelo recorrente e, se necessário, outras provas, maxime indicadas pelo recorrido nas contra-alegações e as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, por esta via, serviram para formar a convicção do Ex.mo Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efetivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto. Citando Antunes Varela, escreve Baltazar Coelho[5] que “a prova jurídica de determinado facto … não visa obter a certeza absoluta, irremovível da (sua) verificação, antes se reporta apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador ou, o que vale por dizer, apenas aponta para a certeza relativa dos factos pretéritos da vida social e não para a certeza absoluta do fenómeno de carácter científico”. Na mesma linha, ensina Vaz Serra[6] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficientemente justificativo da decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária. A fundamentação funciona sempre como meio de justificação e compreensão do processo lógico e convincente da formação da convicção. No essencial, quanto à impugnação da decisão em matéria de facto, a recorrida remete para a fundamentação da sentença. Nesta, a Ex.ma Juiz destaca as fotografias juntas ao processo, alguns documentos e os depoimentos de BB, CC, DD, EE e FF. Havemos de ponderar os documentos juntos aos autos e, pelo menos, também os depoimentos daquelas testemunhas que vão ser ouvidos na íntegra. Existiu uma grande discussão em audiência, com longos depoimentos e momentos de elevada tensão entre ilustres mandatários das partes e algum deles e, pelo menos, a testemunha CC, que acabou por justificar também uma intervenção menos afável da Ex.ma Juiz. É o depoimento daquela testemunha que a A. recorrente considera essencial na decisão da matéria de facto impugnada. E é, na realidade, um depoimento importante na discussão trazida, sobretudo, pela razão de ciência da testemunha; mas não é o único, sendo de grande valia probatória, pela sua razão de ciência e proximidade com o facto essencial, a prestação de FF, o motorista do camião que efetuou o transporte da mercadoria em causa, desde as instalações da cliente Y..., Lda. (vendedora da mercadoria) até ao local da descarga, em Inglaterra, nos arredores de Londres. Esta testemunha foi funcionário da 1ª R. apenas durante cerca de 6 meses e não mantém com ela, desde há muito tempo, qualquer vínculo, nem relação com qualquer outra das partes que pudesse justificar agora a parcialidade ou interesse pessoal no resultado da ação. Já a testemunha CC é funcionário da Y..., Lda. e, embora seja desenhador de profissão, evidenciou claramente ter outras importantes funções na empresa, muito próximas da gestão, sendo pessoa de grande confiança da gerência. Acompanhou o carregamento das quatro caixas de portas (a mercadoria vendida) no camião, na presença do motorista da empresa transportadora (a 1ª R.) e soube expressar o modo como a mercadoria é tratada e embalada pela expedidora. Se, só por si, a proximidade relacional desta testemunha não é geradora de qualquer desconfiança ou desabono --- até porque a Y..., Lda. não é parte na ação --- o conteúdo do seu depoimento não pode deixar de ser conjugado com a demais prova produzida, designadamente com as fotografias juntas ao processo e os outros depoimentos testemunhais. A deslocação a Inglaterra para averiguações foi efetuada pelos serviços de perícia contratados pela A.[7], averiguação que prosseguiu em Portugal, após a devolução da mercadoria danificada, nas instalações da vendedora, de onde resultou o auto pericial que foi junto ao processo por requerimento de 7.1.2020, subscrito pelas testemunhas DD e EE que, em audiência esclareceram vários aspetos do relatório, também importantes na discussão dos pontos impugnados. Os depoimentos das testemunhas GG e HH recaíram mais sobre matéria de facto diferente da que constitui objeto do recurso, muito embora o depoimento da última testemunha tenha alguma relevância também nesta matéria, quando contribui para a explicação do que seja a “grupagem” na gíria dos transportes de mercadorias e se referiu à importância do papel do expedidor e do transportador no acondicionamento da carga no camião, sendo aquele o real conhecedor da mercadoria a transportar, das suas caraterísticas, das suas fragilidades e condições particulares. As fotografias da mercadoria em carga juntas ao processo com a petição inicial, como parte integrante do relatório pericial e outras juntas posteriormente, dão um contributo muito significativo na apreensão dos factos relacionados com o seu acondicionamento e transporte e permitem, pelo seu confronto e explicação das testemunhas, uma perceção mais realistas das causas do dano ocorrido na longa viagem internacional a que foi sujeita. É o conjunto destes elementos probatórios, conjugado com as regras da experiência e da lógica no acontecer que justificará mais pormenorizadamente a sustentação, a modificação ou a eliminação dos factos impugnados na apelação. Ponto 12 O texto proposto pela recorrente vai ao encontro do depoimento da testemunha AA. Sendo ele funcionário da Y..., Lda. também com responsabilidades de supervisão na área do transporte e na área comercial, tem conhecimento da forma como as portas são embaladas na empresa para efeito do transporte, designadamente para longas distâncias. Mas isto não significa que a forma como a Y... acondiciona a mercadoria seja a mais correta, ainda que tenha afirmado que, nessa matéria, seguem orientações correspondentes aos melhores usos do comércio, provenientes de especialistas na matéria. As fotografias juntas ao processo, embora espelhando um embalamento individual das portas com cartão, não permitem observar e confirmar a afirmação daquela testemunha, sendo que a perícia realizada a pedido da A., pela W…, após deslocação ao destino da mercadoria, refere: “Blocos de porta envoltos em película plástica e separadores em esferovite. Topos de portas envoltos em cartão. Portas acondicionadas em caixa de madeira.” A existência de outros fatores de segurança no embalamento não convencem, quer pela observação das fotografias, quer, sobretudo, pela descrição pericial. Ao facto provado deve ser apenas aditado o que mais referiram os Sr.s peritos, passando a ter a seguinte redação: 12. Pois, os blocos de portas transportados encontravam-se envoltos em película plástica e separadores de esferovite de baixa espessura, dento de caixas formadas por folhas de aglomerado de madeira, tendo as portas os topos forrados a cartão. Ponto 22 Esta matéria só em parte ficou demonstrada, relativamente à contratação, pela empresa transitária A..., Lda.. da aqui 1ª R. para efetuar o transporte da mercadoria entre Portugal e o Reino Unido. O motorista do camião referiu que as quatro paletes, com as caixas de portas, constituía apenas uma parte da carga, o que não deixa dúvida, dada a capacidade de carga do veículo transportador, o escasso peso das portas, de apenas algumas centenas de quilos e a necessidade rentabilizar o transporte e prevenir um significativo acréscimo desnecessário de custos. Porém, o motorista não soube dizer onde carregou a restante mercadoria que levou para Inglaterra, nem onde a foi descarregar (nesta parte a sua prestação foi marcada por um critério de normalidade, parecendo não se lembrar bem da totalidade da mercadoria transportada) e a testemunha CC declarou que toda a mercadoria transportada pertencia à Y..., Lda., sendo, na sua maior parte, destinada a um hotel, também sito no Reino Unido, onde a sua empresa tinha uma obra de muito maior vulto. Esta testemunha e também a testemunha HH consideraram, ainda assim, a existência de “grupagem” com o argumento de que esta forma de transporte conjunto de mercadoria não depende da existência de mais do que um cliente, mas apenas da existência de mais do que um ponto de carga ou de um ponto de descarga da mercadoria transportada. Seja como for, ficamos na dúvida sobre se o camião transportou outra mercadoria que não pertencesse à Y..., Lda. Quanto ao critério de orientação do modo de carga, não ficou provado que tivesse estado presente no local de carga qualquer funcionário ou representante do transitário; foi, aliás, referido que não havia ninguém da parte do transitário naquele momento e local. Nas operações de carga intervieram apenas funcionários da Y..., Lda. e o motorista do camião da 1ª R. que deu algumas orientações. O ponto 22, cuja eliminação é pretendida pela A. recorrente, passa a ter apenas o seguinte teor: 22. A sociedade A..., Lda., na relação que estabeleceu com a aqui R., contratou um camião para efetuar o transporte da referida mercadoria e, pelo menos de outra mercadoria do mesmo expedidor (Y..., Lda.) para outra obra também situada no Reino Unido. Ponto 25 Não há qualquer referência probatória em sentido contrário ao facto dado como provado, sejam travagens, excesso de velocidade, ou qualquer outra manobra digna de relevar para o estado em que a embalagem da carga é visível nos fotogramas juntos ao processo. Todo o depoimento do motorista aponta no sentido de que se tratou de uma viagem normal, sem quaisquer incidentes. Verificou o estado da carga de portas, com surpresa, apenas à chegada ao seu destino. Analisando as caixas que acondicionam as portas, nem dos depoimentos testemunhais, nem das fotografias juntas ao processo, nem ainda do relatório da averiguação efetuada a pedido da A., resultam sinais das caixas terem sido deslocadas no solo do semirreboque ou de terem sido embatidas. Não estão partidas, mas desconjuntadas, desarmadas entre as cintas que as amarram. Se as próprias portas, no interior das caixas, também estivessem cintadas --- como afirmou a testemunha CC --- não era previsível acontecer o seu embate contra as paredes das caixas e a desmontagem destas, pelo menos com os efeitos que produziu, num transporte sem incidentes. Mas a verdade é que até pelos Sr.s peritos foi reconhecido em audiência (cf. depoimento de DD) que --- ao contrário do que ficou escrito no relatório --- é provável que o estado em que as caixas se encontram não tenha resultado de uma travagem do camião, pois que, se o fosse, as caixas ter-se-iam desmontado para a frente e não para o lado, como seguramente aconteceu, face ao teor das fotografias com que foram confrontados. As ilhargas das caixas desconjuntaram-se entre as cintas que as envolviam, sem qualquer deslocação de base. O ponto 25 não deve sofrer qualquer modificação. Ponto 26 Pretende a apelante que o facto relativo à deficiência do embalamento dos blocos de portas no interior das caixas de madeira seja substituído por facto contrário, ou seja, de que foram embalados conforme as melhores práticas da atividade. Reforçando a afirmação já efetuada, não existe a menor indicação probatória de que qualquer uma das quatro caixas tenha sofrido deslocação na sua base de ocupação do espaço no contentor de carga do camião, tal como não existem sinais de terem sido objeto de colisão de outra mercadoria transportada. Provado que ficou que havia espaços vazios no interior das caixas, e não havendo deslocação das próprias caixas no espaço que ocuparam no transporte, até por se encontrarem cintadas --- pelos funcionários da Y..., Lda., na expressão segura e convincente do motorista --- as regras da experiência e a lógica apontam para a deslocação dos blocos de portas no interior das caixas, como causa mais direta dos danos verificados, desde logo no movimento contra as ilhargas de contraplacado que formam as caixas do embalamento. O ponto 26 deve manter-se provado, com esclarecimento: 26. O embalamento dos blocos de porta no interior das caixas de madeira que os contêm foi efetuado de forma deficiente, com espaços livres de ocupação, permitindo o seu movimento contra as faces interiores das caixas de embalagem no movimento do transporte. Termos em que procede parcialmente a primeira questão da apelação. * 2. Consequências jurídicas da modificação da decisão proferida em matéria de factoEsta questão da apelação gira em torno da aplicação do art.º 17º, nº 1, da Convenção CMR[8]. Segundo a A. recorrente X..., S.A., nos termos daquela disposição convencional, “impende uma presunção de culpa sobre a transportadora, na medida em que, nos termos do referido normativo, o transportador é responsável pela perda total ou parcial da mercadoria, só assim não sendo se a referida perda se tiver ficado a dever a uma falta do interessado, uma ordem deste, um vício próprio da mercadoria ou a circunstâncias que o transportador não podia ter evitado e cujas consequências não podia obviar, conforme disposto no nº2 do referido art. 17º”. Entende que a transportadora não logrou demonstrar qualquer facto idóneo a ilidir a referida presunção. Teria, assim, a A. direito a ser reembolsada da indemnização que pagou à beneficiária do seguro, a Y..., Lda., no âmbito do contato de seguro que celebrou com a empresa transitária, a A..., Lda.., pelos danos ocorrido na mercadoria durante o transporte entre as instalações daquela expedidora, onde foi carregada, e o local do destino, no Reino Unido, onde se procedeu à descarga. A atividade transitária, sujeita a licenciamento no seu acesso, está atualmente --- e estava à data dos factos --- regulada pelo Decreto-lei nº 255/99, de 7 de julho.[9] Segundo o respetivo art.º 1º, nº 2, “consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção: a) Gestão dos fluxos de bens ou mercadorias; b) Mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte; c) Execução dos trâmites ou formalidades legalmente exigidos, inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal.” Esta atividade engloba, assim, uma complexidade de atuações, as quais poderão passar não só pela realização de atos jurídicos (contratos de expedição ou de trânsito), mas também, pela realização de operações materiais, sendo estas as de recebimento da mercadoria e a sua entrega aos transportadores, receção, verificação e entrega da mercadoria ao seu destinatário, bem como a celebração dos contratos de seguro e cumprimento das formalidades administrativas e alfandegárias.[10] São prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direção das operações relacionadas com a expedição, receção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.11.2010.[11] Conforme jurisprudência pacífica, a atividade de transitário consiste numa prestação de serviços de intermediação para o cumprimento de todos os trâmites burocráticos e operações materiais para assegurar o fluxo e circulação de mercadorias, designadamente na comissão do transporte destas entre os expedidores e os destinatários.[12] O contrato de expedição ou de trânsito define-se como aquele em que uma parte (o transitário) se obriga perante a outra, expedidor) a prestar-lhe certos serviços, que tanto podem ser atos materiais como jurídicos, ligados a um contrato de transporte, e, também, a celebrar um ou mais contratos de transporte, em nome e representação do cliente. Nesta figura contratual, o transitário assume a obrigação de celebrar um contrato de transporte com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, sendo fundamental o mandato, mas não a ausência de poderes representativos[13]. O contrato de transporte, em si, é aquele em que uma das partes, o transportador, se obriga mediante retribuição --- por si ou através de terceiro ---, a deslocar pessoas ou coisas de um lugar para outro (ou ao retorno ao lugar de partida, nalguns contratos de transporte de passageiros). Embora não esteja como tal expressamente qualificado na lei portuguesa, o contrato de transporte pertence, segundo opinião unânime, à categoria ampla dos contratos de prestação de serviços.[14] A pessoa ou entidade que assume a obrigação do transporte designa-se por transportadora, o credor dessa obrigação é o expedidor e a entidade a quem as mercadorias devem ser entregues é o destinatário. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008[15] --- ao abrigo art.º 1º da CMR (Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada, de 19 de maio de 1956, inserida no direito interno português pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de setembro) --- o contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada traduz-se na convenção por via da qual uma pessoa se obriga perante outra, mediante um preço, a realizar a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida situado num dado país até outro ponto de destino localizado noutro país. É um contrato consensual.[16] Assim, a referida Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada, a título oneroso, em veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes. É pacífica a celebração de um contrato de transporte internacional entre a transitária, contratada pela expedidora Y..., Lda., e a 1º R., T..., Lda., relativamente à mercadoria transportada nas circunstâncias do sinistro, tendo sido utilizado um veículo semirreboque e trator ao abrigo do CMR nº 33901. Dispõe o citado art.º 17º, sob a epígrafe “Responsabilidade do transportador”, na parte que aqui poderá relevar: «1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega. 2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar. 3. (…) 4. Tendo em conta o artigo 18, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes: a) (…); b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas; c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário; d) (…); e) (…); f) (…). 5. Se o transportador, por virtude do presente artigo, não responder por alguns dos factores que causaram o estrago, a sua responsabilidade só fica envolvida na proporção em que tiverem contribuído para o estrago os factores pelos quais responde em virtude do presente artigo.» A execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga desdobra-se em três operações: a receção da mercadoria, a sua deslocação (ou transporte em sentido estrito) e a sua entrega ao destinatário no local de destino. O transportador obriga-se a entregar a mercadoria no local de destino, na mesma quantidade e estado em que a recebeu (a obrigação de resultado), sendo, em princípio, responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega. O referido art.º 17º, nº 1, consagra uma verdadeira presunção de culpa. Em caso de avaria na mercadoria --- a situação que aqui nos interessa, por determinado conjunto de portas (15 blocos) ter sofrido danos durante o seu transporte --- o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se ela teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (nº 2 do art.º 17º). Competindo, no caso, à A. seguradora demonstrar os danos na mercadoria transportada sofridos durante o transporte, é do transportador o ónus da prova de que tal situação de prejuízo teve por causa um dos factos previstos no art.º 17º, nº 2, designadamente que a avaria ocorrida (durante o transporte) teve por causa uma falta do expedidor (nº 1 do art.º 18º, aliás, em consonância com o art.º 342º, nºs 1 e 344º, nº 1, do Código Civil). Porém, o transportador não pode aproveitar a limitação da sua responsabilidade que resulta da aplicação do art.º 17º se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo (art.º 29º, nº 1). Aqui chegados e provada que está a ocorrência dos danos na mercadoria expedida pela cliente da empresa transitária, durante o transporte, encontramo-nos com a essência do recurso e perguntamos: Os factos provados revelam uma falta do expedidor das portas como causa do incidente danoso? As RR. lograram fazer a prova de qualquer facto determinante da imputação objetiva e subjetiva dos dano ao expedidor (art.º 18º, nº 1)? Ou, pelo menos, provaram as RR. que os danos, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultaram de um ou mais dos riscos particulares previstos no § 4º do art.º 17º, caso em que se presume que aqueles resultam deste risco (art.º 18º, nº 2)? A culpa será apreciada, em face das circunstâncias de cada caso pela diligência ou homem médio (in abstracto) e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito (in concreto) (art.º 487º, nº 2, do Código Civil). A diligência relevante para a determinação da culpa é a que um homem normal (um bom pai de família) teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto, e não a diligência que o agente costuma aplicar nos seus actos (diligentia quam suis rebus adhibere solet), de que ele se revela habitualmente capaz[17]. Segundo Menezes Cordeiro[18], a mera culpa ou negligência tem sido entendida como a violação (objetiva) de uma norma por inobservância de deveres de cuidado. No decurso da sua atuação, as pessoas devem observar determinadas regras de cuidado, de prudência, de atenção ou de diligência para que não violem, ainda que involuntariamente, normas jurídicas. A não observância desses cuidados elementares pode provocar uma violação, ainda que não incluída, a título direto, necessário ou eventual na atuação do agente. Durante o transporte, as oscilações e travagens do camião, repercutiram-se necessariamente na mercadoria transportada. É normal. O transporte da mercadoria decorreu sem que tivesse sido registado qualquer acidente que pudesse desencadear aqueles factos danosos. O que não é normal nem desejável é o efeito produzido: as caixas que embalavam a mercadoria terem-se desconjuntado com o regular desenvolvimento da viagem de transporte, causando danos materiais nas portas, apesar de beneficiarem ainda de mais alguma proteção dentro das caixas (película plástica, separadores de esferovite, mas de baixa espessura, e topos forrados a cartão). O motorista orientou (os trabalhadores da expedidora) no carregamento das caixas nas paletes e a sua amarração no semirreboque. Não foi ele, portanto, que executou materialmente a amarração. E também não consta que esta tivesse sido mal executada. As caixas não se deslocaram no interior do semirreboque; o que se deslocou foi a mercadoria dentro das caixas, exercendo força centrífuga sobre a embalagem de madeira, assim causado o seu rebentamento, causando o dano nos blocos de portas. Está efetivamente provado que o embalamento daqueles blocos no interior das caixas não foi adequado ao transporte, por nelas haver espaços livres de ocupação que permitiram o movimento das portas contra as paredes interiores das caixas, no movimento do transporte. As RR. fizeram a prova de que os danos (corridos durante o transporte) resultaram de deficiente embalamento e acondicionamento da mercadoria nas caixas, por ação da expedidora e dos seus funcionários, por terem sido eles quem executou tais tarefas, nada justificando a existência de culpa da 1ª R. (do motorista do veículo transportador) no acontecimento danoso. Não só ocorre o risco a que se refere a al. b) do nº 4 do art.º 17º, como também ficou provado que foi uma falta do expedidor que deu origem aos danos na mercadoria, assim se ilidindo a presunção de culpa que recaía sobre a 1ª R. transportadora nos termos do nº 1 do art.º 17º. Com efeito, nem a 1ª R., nem, consequentemente, a 2º R. seguradora, para a qual aquela transferira a sua responsabilidade, por contrato de seguro, podem ser civilmente responsabilizadas pelos danos ocorridos no transporte de mercadorias que ficou concluído no dia 22.8.2018. A sentença absolutória dos RR. merece inteira confirmação. * SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):……………………………………… …………………………………… …………………………………… * IV.* Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão sentenciada. * Custas pela A. recorrente, por ter decaído totalmente na apelação (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da quantia já paga pela interposição do recurso.* Porto, 24 de março de 2022Filipe Caroço Judite Pires Aristides Rodrigues de Almeida _________________ [1] Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada. [2] Por transcrição. [3] Por transcrição. [4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225. [5] Sob o título “Os Ónus da Alegação e da Prova, em Geral …”, in Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, T I, pág. 19. [6] “Provas – Direito Probatório Material”, in BMJ 110/82 e 171. [7] Não se tratou de uma perícia conjunta das partes. [8] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que forem citadas sem menção de origem. [9] Alterado pela Lei nº 5/20123, de 22 de janeiro. [10] Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 14.1.2014, proc. 2896/04.TBSTB.L2.S1, in www.dgsi.pt. [11] Proc. 3219/04.1TVLSB.S1, in www.dgsi.pt. [12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.11.2010, proc. 776/04.6TCGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt. [13] Francisco Costeira da Rocha, O contrato de transporte de mercadorias/Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias, 2000, 80 a 82; Acórdão Relação de Lisboa de 15-10-92, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, T4, 177 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.6.2011, proc. 437/05.9TBANG.C1.S1, in www.dgsi.pt. [14] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2012, 3ª edição, pág. 165, citando N. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos Transportes, Coimbra, 2004; COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit, p. 25 Segurança Social; A. MENEZES CORDEIRO, Introdução ao direito dos transportes, Revista da Ordem dos Advogados, 2008,1, p. 139, entre outros. [15] In www.dgsi.pt. [16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.3.1999, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. I, pág. 141 [17] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, Almedina, pág. 526. [18] Direito das Obrigações, edição da AAUL, 1980, vol II, pág. 317. |