Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10375/14.9T8PRT-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: DEVER DE COOPERAÇÃO
INFORMAÇÃO SOBRE PARADEIRO DE VIATURA ARRESTADA
INTROMISSÃO NA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RP2022060810375/14.9T8PRT-E.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O terceiro, notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 1, do C. P. C., para fornecer o paradeiro de viatura a arrestar, só pode eximir-se a responder se se preencher alguma das situações previstas no n.º 3, do mesmo artigo.
II - Não preenche a exceção ali prevista de intromissão na vida privada a menção a que está em causa a prestação de informação relativa a uma viatura pertencente ao mesmo terceiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 10375/14.9T8PRT-E.P1

Sumário.
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AA, com domicílio profissional na ...., Lisboa, propôs contra
J..., Lda., com sede na Rua ..., ..., Porto,
Procedimento cautelar de arresto, visando o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca ..., Modelo ..., matrícula TM-..-.., quadro n.º ....
Foi decretado, em 28/10/2019, o pedido arresto.
Depois de diversas vicissitudes nos autos, relacionadas com a descoberta do local onde se encontra o veículo a arrestar a fim de se materializar a sua apreensão (ainda não lograda efetuar), em 19/01/2022,
BB, com domicílio profissional na Avenida ..., ... (ora recorrente), foi notificado para informar os autos, por escrito, e sob pena de condenação em multa, em que local exato se encontrava o veículo a arrestar.
Em 01/02/2022, BB apresentou requerimento no tribunal, referindo que:
. o automóvel é seu;
. nunca se pôde defender nos presentes autos de arresto;
. tem direito a defender a sua propriedade, não podendo ocorrer uma intromissão na sua vida privada pelo que não responderá ao tribunal.
O tribunal, por despacho de 04/02/2022, condenou BB na multa de 2,5 UCs. e voltou a ordenar a sua notificação para informar onde se encontrava a viatura, sob pena de aplicação de nova multa.
Em 02/03/2022, BB volta a apresentar requerimento, dirigido ao tribunal, onde menciona que:
. o despacho de 04/02/2022 ofende o seu direito de defesa de propriedade pois prejudica o seu direito de defesa prévia;
. já está a exercer o seu direito de defesa mediante embargos de terceiro;
. a multa assentou num critério meramente discricionário;
. pondera recorrer do despacho.
Em 07/03/2022, o tribunal pondera a nova recusa em prestar informação, condenando BB na multa de 3 UCs. e ordenando a sua notificação para prestar a informação em falta, sob pena de condenação em nova multa.
Em 22/03/2022 BB informou os autos onde se encontrava a viatura (na posse de pessoa a quem a tinha emprestado).
Em 29/03/2022, BB interpõe recurso dos despachos proferidos em 01/02 e 07/03 de 2022, não tendo sido admitido o recurso referente ao primeiro por ser extemporâneo.
Nas conclusões, agora restritas ao despacho de 07/03/2022, menciona que:
«I – Da análise e estudo do regime jurídico dos procedimentos cautelares previsto nos Artigos 362.º a 376.º C.P.C. e, especificamente, do arresto previsto nos artigos 391.º a 396.º C.P.C., não vislumbra o Apelante a possibilidade legal de ser requerido procedimento cautelar de arresto por apenso a uma acção judicial principal já transitada em julgado.
II – Pois o Apelado/requerente deduziu o presente procedimento cautelar de arresto em 22 de outubro de 2019, por apenso à acção judicial já transitada em julgado em 30 de setembro de 2019.
III - Em síntese, considera o Apelante estar perante uma situação processualmente inadmissível, precisamente oposta à própria natureza jurídica dos procedimentos cautelares previstos no C.P.C..
IV - Tanto mais que, o Apelado/requerente não requereu e, por conseguinte, não foi decretada a inversão do contencioso. (Artigo 369.º C.P.C.)
V - Pelo que todo o presente processo está totalmente inquinado por manifestamente violação do princípio da legalidade bem como violação ou errada aplicação da lei de processo, pelo que deverá ser decretado a nulidade do mesmo, com todas as consequências legais. (674.º, n.º1, al. b), do CPC.
VI- Nulidade que é de conhecimento oficioso art.º 196.º e 200.º do CPC.
VII - A actividade jurisdicional levada a cabo no presente procedimento cautelar de Arresto serviu, essencialmente, para que a Apelada/Requerida passasse a constar como proprietária do veículo automóvel marca ..., Modelo ..., Matrícula TM-..-.., no competente registo automóvel, para que esta viatura pudesse legalmente ser objeto de arresto e subsequente conversão em penhora.
VIII - Objetivo meramente formal que foi conseguido,
IX- Com a realização da penhora em 11 de Novembro de 2021, a apreciação judicial do presente procedimento cautelar de Arresto perdeu supervenientemente utilidade.
X - Não restam dúvidas ao Apelante que deve ser declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide com fundamento na extinção, liquidação e sem partilha de bens da Apelada/requerida (Art.ºs 163.º, n.º 1 CSC E 269.º, N.º 3 C.P.C)
XI - Salvo melhor entendimento, tais notificações e respetivas decisões que agora se recorrem são uma violação do direito de defesa que assiste ao aqui Apelante, pois estando ainda em tempo de se defender judicialmente da penhora, não se pode, no entanto, defender-se do arresto que a antecedeu.
XII - Nesta conformidade, não poderia ser forçado, sob pena de multa, a prestar a informação solicitada pelo tribunal “a quo” acerca de um automóvel de sua propriedade, num processo que não conhece, nem lhe foi dado a conhecer, sem antes lhe ter sido dada a oportunidade de se defender nos tribunais.
XIII - No âmbito do direito à defesa do aqui Apelante, como a qualquer cidadão, é legalmente conferido o direito de legitimamente incumprir uma ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias ao abrigo do disposto no art.º 21.º da Constituição da República Portuguesa.
XIV - Confrontado com a situação acima descrita, a recusa à colaboração é legítima, se a obediência importar a intromissão na vida privada do Apelante.
XV - O Apelante tem o direito de defender a sua propriedade, sem ter que se deixar pacificamente esbulhar e sem a oportunidade de previamente se defender.
XVI - Direitos que as decisões sub judice, não asseguraram ao aqui Apelante.
XVII - Assim sendo tais notificações e respetivas decisões que agora se recorrem são uma intromissão ilegal na vida privada do Apelante e às quais, por isso, legitimamente não deveria ser forçado, sob pena de multa, a responder.
XVIII - As multas a que o Apelante foi condenado ofendem o seu direito de defesa da sua propriedade, porquanto prejudica o seu direito de defesa prévia.
XIX - Ainda mais que As multas aplicadas assentam em critério meramente discricionário, pois têm fundamentalmente como suporte a “…..situação económica, evidenciada e ilustrada suficiente e devidamente pela aquisição recente de um veículo com as caraterísticas do dos autos, cujo preço ronda as várias dezenas de milhares de euros…..”, bem sabendo o tribunal “a quo” que “No dia 13 janeiro de 2022 a Conservatória do Registo automóvel competente concretizou, finalmente, o registo do contrato de compra e venda do veículo automóvel veículo de marca e modelo ...", com a matrícula TM-..-.. que o aqui Requerente havia celebrado em 04/10/2019” (VIDE art.º 6.º PI Embargos de terceiros).
XX - Acresce que, o tribunal “a quo” proferiu a decisão refª citius 434071922 que agora se recorre precisamente no momento em que decorria ainda o prazo para o agora apelante tomar uma posição quanto decisão refª citius 432980255.
XXI - O direito à ação e à defesa do Apelante compreende o seu direito ao recurso.
XXII - Direito do qual o Apelante não prescinde e que foi deste modo violado.
XXIII - A Constituição da República Portuguesa, Lei Fundamental que prevalece sobre todas as leis ordinárias nacionais e os atos judiciais, assegura a todos os cidadãos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.».
Termina pedindo a revogação das decisões recorridas e, consequentemente, serem substituídas por uma decisão que declare:
A) Todo o presente processo está totalmente inquinado por manifestamente violação do princípio da legalidade, bem como violação ou errada aplicação da lei de processo pelo que deverá ser decretado a nulidade de todo o processado, tendo em conta estarmos perante a prática de um ato que a lei não admite, ou, sem prescindir nem conceder, em alternativa,
B) A extinção da instância por inutilidade superveniente da lide com fundamento na conversão do arresto em penhora. (Art.º 536.º, N.º 3 C.P.C), ou, sem prescindir
nem conceder, em alternativa,
C) A extinção da instância por inutilidade superveniente da lide com fundamento na extinção, liquidação e sem partilha de bens da Apelada/requerida (ART.ºS 163.º, n.º 1 CSC E 269.º, N.º 3 C.P.C), ou, sem prescindir nem conceder, em alternativa,
D) A violação dos direitos de defesa, de recurso e da reserva da vida privada do Apelante, farão A DEVIDA JUSTIÇA.».
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O requerente/recorrido apresentou contra-alegações onde, além de pugnar pela extemporaneidade já acima mencionada, do despacho de 07/03/2022 não consta qualquer decisão sobre a legalidade ou ilegalidade dos autos ou sobre a inutilidade superveniente da lide pelo que tais matérias não podem ser apreciadas por serem questões novas.
No mais, pugna pela improcedência do recurso.
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A questão a decidir é aferir se o recorrente devia ter sido condenado em multa, ao abrigo do artigo 417.º, do C. P. C. por não ter cooperado com o tribunal em indicar onde se encontrava o veículo a arrestar.
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
Dá-se por reproduzido o teor do relatório que antecede.
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2.2). Do mérito do recurso.
O despacho recorrido, como acima está retratado, pronunciou-se sobre a falta de resposta sobre o que tinha sido pedido ao recorrente – informação sobre o local onde se encontraria a viatura automóvel que se procurava arrestar -.
Nada mais é analisado nem decidido em tal decisão, pelo que, o que o recorrente menciona, quanto a:
. impossibilidade legal de ser requerido procedimento cautelar de arresto por apenso a uma ação judicial principal já transitada em julgado;
. nulidade do processo;
. extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento na extinção, liquidação e sem partilha de bens da requerida (artigos 163.º, n.º 1, do C. S. C. e 269.º, n.º 3, do C. P. C)
são questões que não podem ser apreciadas neste recurso pois não existe objeto de recurso. Como menciona o recorrido/requerente, são questões novas que não podem ser apreciadas ex novo pelo tribunal de recurso.
Como se refere no Ac. do S. T. J. de 17/04/2018, relator Cons. João Camilo, «…em principio, os recursos visam apenas reapreciar ou modificar as decisões já tomadas e não proceder, ex novo, à apreciação de questões novas, não apreciadas na instância que proferiu a decisão recorrida. Porém, há uma exceção que tem de ser considerada a esta regra. É o caso das questões que, por serem do conhecimento oficioso do julgador, este tem de apreciar, mesmo sem que tal lhe haja sido pedido. O julgador, na elaboração da sentença, nos termos do art. 608º, nº 2 apenas pode conhecer das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.» - www.dgsi.pt. -.
Não estão em causa exceções de conhecimento oficioso, mas antes situações que poderiam inquinar a validade dos atos processuais, matéria que só poderia ser apreciada nesta sede se tivesse sido previamente decidida na 1.ª instância, o que não sucedeu.
Prosseguindo então com a análise das efetivas questões objeto do recurso, temos que a primeira é:
Estando o recorrente ainda em tempo de se defender judicialmente da penhora, não pôde defender-se do arresto que a antecedeu.
Não é aplicável aos autos esta alegação pois não está em causa qualquer penhora, não constando que o arresto aqui decretado tenha sido convertido em penhora, não tendo razão de ser esta argumentação.
Por outro lado, não vislumbramos que o recorrente esteja impedido de usar qualquer meio de defesa em relação ao arresto decretado sobre a viatura, mesmo que tenha de responder ao pedido de informação do tribunal recorrido.
Pode o recorrente informar o tribunal onde se encontra a viatura ou que desconhece tal localização e, se preenchidos os respetivos pressupostos legais, reagir contra a providência que, alegadamente, atinja um bem da sua pertença (embargos de terceiro, por exemplo – artigos 342-º e 344.º, do C. P. C. - como já fez – apenso D, iniciado em 11/02/2022 -).
Ao ser pedida a informação, ao terceiro/recorrente não se está a pedir que cumpra o arresto nem que, antes de se poder defender, tenha de atuar no sentido de cumprir aquela decisão cautelar; o que se pede é que, para se poder cumprir uma decisão judicial, tem de cooperar com o tribunal para o auxílio do cumprimento da decisão, mantendo-se intocado o seu direito de defesa.
Pensamos que a alegação do recorrente visa mais uma eficácia prática da sua atuação, ou seja, ao informar onde está a viatura, na prática, está a permitir que se arreste um bem que lhe pertence, sendo o recorrente alheio aos intervenientes no processo, sem ainda se ter podido defender.
No entanto, essa visão prática tem de se abrigar na eventual cessação da obrigação de ter de responder ao tribunal quando lhe é pedida uma informação, ao abrigo do artigo 417.º, do C. P. C., tendo assim de se aferir se, a pessoa a quem é pedida uma informação, a tem de prestar mesmo que tal implique uma possível compressão de um seu direito.
Por isso, esta situação tem de ser analisada ao aferir-se das situações que legitimam a recusa de cooperação com o tribunal, previstas no artigo 417.º, n.º 3, do C. P. C. ou de alguma outra norma (constitucional, por exemplo) que consinta tal recusa.
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Casos de recusa legítima em cooperar com o tribunal – artigo 417.º, n.º 3, do C. P. C. -.
Este artigo prevê as seguintes situações:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
É desde logo de afastar a terceira situação, claramente não aplicável ao caso e que, corretamente, nem foi alegada.
Também se afigura que a primeira situação não foi alegada já que não se menciona qualquer agressão física nem moral do recorrente.
Resta então aferir se a notificação dirigida ao recorrente, no sentido de mencionar onde se encontrava a viatura automóvel, constituiu uma intromissão na sua vida privada ou familiar ou eventualmente no seu domicílio.
Quanto a este último, sabendo-se que a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual ou, se residir alternadamente, em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles (artigo 82.º, n.º 1, do C. C.), pensamos que se constata que a resposta sobre onde se encontra a viatura, mesmo que se responda que está no local onde se reside, não significa uma intromissão no domicílio do recorrente.
Este, mesmo respondendo que a viatura se encontra na sua residência e indicando a morada, não estará a permitir que se viole o seu domicílio pois apenas informa onde se encontra a viatura; na eventual e subsequente diligência de apreensão da viatura é que se poderia ter de atentar na eventual defesa do domicílio.
Se a viatura se encontrar numa garagem, por exemplo, a mesma até pode não integrar a noção de domicílio – se for externa à habitação –; mas se o integrar, então terá de se aferir do modo como a apreensão pode ser feita, estando aqui em causa o ato de apreensão, enquanto o que nos ocupa é apenas o fornecimento de dados da morada aos autos que, por si, não fere a privacidade do domicílio.
E também pensamos que não ofende a reserva da vida privada, protegida no artigo 26.º, n.º 1, da C. R. P. pois, desde logo, o uso do conhecimento da morada seria unicamente para procurar, no local exterior à residência ou no interior, a viatura em causa, situação em que, mais uma vez, seria no ato de apreensão que teria de ser ponderada.
Sobre a reserva da intimidade da vida privada, recorrendo ao escrito por David Festas, O Direito à reserva da intimidade da vida privada do trabalhador no Código do Trabalho, R. O. A. Ano 64, novembro 2004, páginas 377 e seguintes, verifica-se que se vem entendendo que essa reserva contém várias perspetivas:
. uma estrutural, que se subdivide em direito de impedir o acesso a informações sobre a vida privada e impedir a divulgação dessas informações;
. uma perspetiva teleológica, onde se procura evitar a tomada de conhecimento e divulgação de informação pessoal e subtrair a informação da atenção de terceiros;
. uma perspetiva substancial, onde existem três esferas de aplicação:
a). Esfera íntima ou secreta que abrange todas as informações que, pela sua natureza íntima, estão reservadas do conhecimento alheio (estado de saúde, gravidez, emoções, sexualidade,…);
b). Esfera privada que compreende as informações que o titular partilha com um número restrito de pessoas (aqui se enquadram os factos relativos ao domicílio ou hábitos de vida, factos passados, família, convicções, práticas religiosas, círculos de amigos);
c). Esfera pública, onde estão em causa as informações relativas a um indivíduo, suscetíveis de serem conhecidos por todos (no exercício da profissão, atividades de lazer, …).
Não se nos afigura que a referência à localização de uma viatura se possa enquadrar na esfera secreta pois não tem um caráter íntimo ser-se dono de um veículo, o qual é destinado a circular na via pública.
Mesmo que se possa querer manter em segredo o modo de aquisição/detenção da viatura, a resposta ao pedido pelo tribunal não belisca esse eventual segredo ( se fornece o local onde está a viatura, não a quem pertence).
É aceite que aquele direito de reserva da vida privada, constitucionalmente protegido, só deve ceder quando haja necessidade de fazer prevalecer direitos ou interesses que devam ser considerados superiores (mesma obra, citando Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, I, página 49).
No artigo 417.º, n.º 3, do C. P. C., para nós, não está prevista a possibilidade de se recusar o pedido de informação sobre o paradeiro de uma viatura, ainda que pertencente ao terceiro/destinatário da informação.
Se é certo que a propriedade integra um espaço de autonomia pessoal, a sua defesa não significa que se possa recusar toda e qualquer possibilidade de intervenção sobre essa autonomia.
Como se menciona no Ac. do T. C. de 16/06/2020, n.º 299/20, D. R. 183/2020, I, de 18/09/2020, a propriedade privada é «um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projetos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas».
Só uma intervenção desproporcional, desregulada é que pode ser considerada ofensiva da reserva da vida privada e, por isso, legitimando a recusa da prestação dessa informação; no caso, prestando a informação que se revele necessária para a prossecução da justiça (efetivação de arresto), importa analisar se se mantém aquela possibilidade de cumprir o projeto de vida pessoal ou se, não se mantendo, deve ser restringida essa possibilidade através do cumprimento do dever de prestar a informação.
Não se conseguindo localizar a viatura e sabendo-se da possibilidade de o recorrente ter conhecimento onde se encontra, afigura-se proporcional que se imponha ao terceiro que faça ceder aquela autonomia de vida pessoal por causa da necessidade de se cumprir uma decisão judicial. Ao fazê-lo, mantém intacta a possibilidade de usar a viatura, projetando toda a sua vida pessoal no seu uso, mantém-se dono da mesma (se o for) e toda a sua vida privada decorre sem qualquer ingerência.
Aliás, no futuro, se o tribunal diligenciar pela apreensão e a efetivar, percebe-se que o que pode ser ferido é desde logo o seu direito de propriedade e consequentemente aquela parcela da autonomia da sua vida que tinha como objeto a viatura, mas será o ato de apreensão que comprime essa reserva e não a prestação de informação.
Note-se que a referência à possibilidade de recusa da prestação de informação quando estivesse em causa grave prejuízo de natureza patrimonial – artigo 520.º, n.º 3, do C. P. C./1961 – permitindo-se assim a recusa quando estivesse em causa um eventual prejuízo de natureza patrimonial, onde se poderia enquadrar a informação sobre a localização de um bem a arrestar, de valor elevado -, foi eliminada. Entendeu-se assim que, a defesa do direito de propriedade não validava a recusa, o que permite concluir que, quando a defesa da esfera da autonomia privada, passa pela defesa do património, tal recusa já não é permitida (o que sucede desde a entrada em vigor da revisão de 1955-1996, do C. P. C./1961).
Em processo civil não se vislumbra que se possa evitar o dever de ter de prestar este tipo de informação por se recear que o terceiro (ou mesmo a parte) possa, através de tal ato, prejudicar os seus interesses patrimoniais.
Tal como a parte não se pode recusar a depor sobre determinada matéria, mesmo que daí possa resultar a confissão de factos (excetuando as situações previstas no artigo 454.º, n.º 2, do C. P. C. – factos criminosos ou torpes - e que, ainda assim, tem merecido reservas quanto à sua aplicação[1]), e sabendo-se que da prestação de informação pela parte pode resultar a confissão – artigo 356.º, n.º 2, do C. C. -, também o terceiro não se pode recusar a prestar informação sobre determinados factos que não estejam incluídos naqueles exceções do n.º 3, do artigo 417.º, do C. P. C..
O paradeiro do (eventual) seu património ou mesmo a informação sobre o património que possa deter não podem servir de base a uma recusa ao abrigo daquele artigo 417.º, n.º 3, comprimindo deste modo o legislador aquele espaço de autonomia privada.
E tal eventualmente pode dever-se a que, por um lado, a defesa dos interesses da justiça não pode ser barrada por meros interesses patrimoniais e, por outro lado, a que, mesmo prestando a informação (paradeiro da viatura ou mesmo os bens de que é proprietário), não se afasta a possibilidade de o terceiro poder usar de todos os seus direitos de defesa.
Não só pode defender a sua propriedade, se esta for atacada, como a informação que presta sobre onde se encontra a viatura não pode ser entendida como um qualquer tipo de assunção de prática de um ato ilegal da sua parte, que nem sequer lhe está a ser imputado pelo tribunal.
Assim, entendemos que o recorrente não se podia recusar a prestar a informação solicitada pelo tribunal, como fez, não havendo direito da sua parte em negar essa colaboração nem estando o tribunal a esbulhar a sua propriedade ao pedir a informação.
Mesmo quanto à posterior apreensão, só após ser judicialmente questionada, é que se poderia eventualmente vir a considerar ilegal.
Improcede assim a argumentação do recorrente.
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Da sanção.
O tribunal fixou em 3 UCs. a multa por recusa injustificada de prestação de informação.
Estava em causa a segunda vez que o recorrente se recusava a fornecer a informação, sendo que a multa pode ser fixada entre 0,5 e 5 UC – artigo 27.º, n.º 1, do R. C. P. -.
A diligência de arresto foi ordenada em 28/10/2019 e ainda não se efetivou pelo que, sendo o recorrente (nas suas palavras) o alegado proprietário da viatura, é necessário que se tente junto do mesmo obter a localização da viatura e proporcional que se fixe a referida multa para se procurar demonstrar que a inércia não é uma atuação adequada a uma ordem judicial e para compelir ao cumprimento (o que se veio a verificar em 22/03/2022).
Assim, não vemos que o valor seja desproporcional à atuação reincidente do recorrente e à necessidade do processo em se concretizar a diligência, pelo que se mantém o valor aplicado.
Conclui-se assim pela improcedência do recurso.
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3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
Registe e notifique.

Porto, 2022/06/08.
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
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[1] Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, página 291.