Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA PAULA AMORIM | ||
Descritores: | CONTRATO DE COMPRA E VENDA VENDA A RETRO NEGÓCIO FIDUCIÁRIO DIREITO DE RESOLUÇÃO CLÁUSULAS USURÁRIAS | ||
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Nº do Documento: | RP20231127187/22.1T8BAO.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/27/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O contrato atípico - “contrato de alienação fiduciária em garantia” - pressupõe a transmissão de um bem como garantia de um empréstimo e a obrigação paralela de revenda, logo que o empréstimo se mostre satisfeito, obrigação esta que vincula o comprador/credor. II - No contrato de compra e venda a retro, previsto no art. 927º CC é concedido ao vendedor/devedor o direito potestativo de retomar a propriedade do imóvel no prazo previsto no contrato, entre um e cinco anos. Não existe para o credor qualquer obrigação de celebrar novo contrato com o devedor. Pelo contrário e estando em causa imóveis, o devedor é titular de um direito de resolução que uma vez exercido, nos termos do art. 932º CC, afeta mesmo os direitos adquiridos por terceiro (ao contrário do regime geral – art. 435º/1 CC). III - O contrato de compra e venda a retro pode funcionar como forma de financiamento. IV - A tutela do interesse do devedor contra cláusulas usurárias é concedida pelo art. 928º CC. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Venda A Retro-Nulidade-RMF-187/22.1T8BAO.P1 * SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):* ………………………………… ………………………………… ………………………………… --- Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)I. Relatório Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como: - AUTOR: AA, solteiro, maior, residente na Rua ..., União das Freguesias ... e ..., ..., Baião; e - RÉUS: BB e CC, casados sob o regime da comunhão geral de bens, residentes na Travessa ..., União das Freguesias ... e ..., ..., Baião, formulou o autor os seguintes pedidos: - que se julgue procedente a ação, seja anulado o negócio de compra e venda a retro celebrado entre o A. e os RR., pelo qual aquele declarou vender a estes, que declararam comprar-lhe, o prédio urbano da extinta freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o artigo ..., atualmente inscrito na matriz da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião ...; - seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade que sobre o referido prédio se encontra em vigor a favor dos RR., em consequência da apresentação ..., de 20/11/2012. Alegou para o efeito e em síntese, que foi celebrada uma escritura pública de compra e venda no dia 20/11/2012 no Cartório Notarial a cargo do Dr. DD, sito no Marco de Canaveses, lavrada a folhas 18, do livro nº ......, pelo preço de € 5.000,00, já recebido, através da qual o A. declarou vender aos RR. e estes declararam comprar-lhe, o prédio urbano descrito no artigo 1.º da petição inicial. Mais alegou que também resulta da referida escritura pública, que nela declararam o A. e os RR. que a venda foi feita a retro, uma vez que se reconheceu àquele a faculdade de, no prazo de 5 anos a contar daquele dia 20/11/2012, poder resolver o contrato. Munidos do título, os RR. registaram a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio, como consequência da apresentação nº ..., de 20/11/2012. Sucede que a declaração negocial de venda constante da dita escritura pública não teve qualquer correspondência com a real vontade do Autor. E só foi produzida / emitida por erro que influenciou decisivamente a sua vontade e a emissão daquela declaração. Refere que nunca foi propósito do A. vender o prédio aos RR., ainda que com a faculdade de resolver o negócio no prazo referido, tanto mais que o prédio nunca saiu da posse do A., que nele continuou, como continua, a habitar. Por altura da celebração da escritura, os RR. emprestaram verbalmente ao A. uma quantia muito próxima de € 5.000,00, para que pudesse pagar dívidas fiscais vencidas junto do Serviço de Finanças de Baião, as quais foram pagas pelo R. e que nos termos do então acordado, o A. obrigou-se a restituir-lhes a quantia mutuada no prazo de 5 anos, sem juros, contudo, entenderam os RR. que deveriam munir-se de um instrumento documental que lhes garantisse o recebimento da quantia que emprestaram ao A o que fizeram com a celebração da escritura objeto dos autos que o autor assinou mas que apenas visava conceder aos RR. uma garantia de recebimento, ou seja, à data, o A. estava ele convencido que havia constituído a favor dos RR. uma hipoteca sobre o imóvel, nunca uma venda, ainda que a retro, o que aconteceu atento o seu estado de saúde, pois havia saído do hospital e encontrava-se muito debilitado. O prédio em causa tinha sido adquirido pelo autor um ano antes pelo preço de € 20.000,00. Conclui tratar-se de um erro sobre o objeto imediato, sobre a natureza do negócio e que os RR. eram perfeitamente conhecedores, ou não podiam ignorar, que o A. apenas acedeu a celebrar o negócio formalizado pela dita escritura, por ter incorrido em erro, nos termos já alegados. - Citados os réus, contestou o réu, defendendo-se por impugnação e exceção e deduziu reconvenção.Alegou para o efeito que o prazo de anulação do contrato caducou. Mais referiu que foi celebrado validamente o contrato a que se reporta o autor na petição e que o prazo findou a 20 de Novembro de 2017, sem que o Autor lançasse mão do mecanismo da venda a retro pelo que tal faculdade caducou e os efeitos do contrato consolidaram-se definitivamente, sendo o Réu, representado por EE, o legítimo proprietário do imóvel. Alegou, ainda, que paralelamente ao contrato de compra e venda a retro, foi celebrado, verbalmente, um contrato de comodato entre o Réu, aqui representado por EE e o Autor, sendo que a este último foi cedido o dito imóvel. Posteriormente, o Autor foi notificado, via carta, pelo Réu, aqui representado por EE, no passado dia 3 de Março de 2022, do término do comodato, sendo-lhe exigido a restituição do imóvel e que o Autor demonstrou-se perentório em não restituir o imóvel, ignorando toda e qualquer tentativa de interpelação por parte do Réu, estando o Autor a ocupar o imóvel, sem qualquer legitimidade para tal e consequentemente assiste ao Réu/ Reconvinte o direito em ver reconhecido o direito de propriedade do imóvel. Mais referiu que o internamento hospitalar do autor não ocorreu em 2012, mas em 2017, pelo que celebrou o contrato de compra e venda com vontade livre e esclarecida. Em reconvenção formulou o seguinte pedido: - seja judicialmente declarada a válida e eficaz a comunicação de restituição do bem imóvel; - seja condenado o autor a restituir o mencionado imóvel, com efeitos imediatos. - a condenação do autor no pagamento de custas e demais encargos legais. Ou, alternativamente: - caso a petição inicial seja julgada procedente por provada que se condene o Autor no pagamento do valor do imóvel, 5.000€ (cinco mil euros) e respetivos juros de mora, à taxa legal, até ao presente dia. - Na Réplica o autor impugnou a matéria da exceção e manteve a posição inicial.- Proferiu-se despacho que admitiu o pedido reconvencional e elaborou-se despacho saneador, dispensando-se a fixação do objeto do litígio e dos temas de prova.- Realizou-se o julgamento, com observância do legal formalismo.- Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:“Pelo exposto, decido julgar parcialmente procedente o pedido formulado pelo Autor, e em consequência: a) - declaro a nulidade do contrato celebrado entre autor e réus a 20 de novembro de 2012 designado de “venda a retro”, pelo qual aquele declarou vender a estes, que declararam comprar-lhe, o prédio urbano da extinta freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o artigo ..., atualmente inscrito na matriz da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião ...; b) Ordeno o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade que sobre o referido prédio se encontra em vigor a favor dos RR., em consequência da apresentação ..., de 20/11/2012 e, c) e em consequência, ao abrigo do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, condeno a autor a restituir aos réus a prestação pecuniária que deles recebeu em cumprimento do contrato celebrado entre as partes no valor de 5.000,00€ e respetivos juros de mora, à taxa legal, até ao presente dia. d) Julgo improcedente o demais pedido reconvencional. Custas pelo A e Réus de acordo com o respetivo decaimento”. - O réu veio interpor recurso da sentença. - Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:I. O Tribunal a quo julgou parcialmente procedente o pedido formulado pelo Autor, e em consequência: - declarou a nulidade do contrato celebrado entre autor e réus a 20 de novembro de 2012 designado de “venda a retro”, pelo qual aquele declarou vender a estes, que declararam comprar-lhe, o prédio urbano da extinta freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o artigo ..., atualmente inscrito na matriz da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ...; - Ordenar o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade que sobre o referido prédio se encontra em vigor a favor dos RR., em consequência da apresentação ..., de 20/11/2012 e, - em consequência, ao abrigo do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, condenar o autor a restituir aos réus a prestação pecuniária que deles recebeu em cumprimento do contrato celebrado entre as partes no valor de 5.000,00€ e respetivos juros de mora, à taxa legal, até ao presente dia. - Julgar improcedente o demais pedido reconvencional. II. É desta sentença proferida que o Recorrente discorda, pelo que interpõe o presente Recurso de Apelação (p. e p. art.º 27.º 629.º, 631.º, 637.º, 638.º, 639.º e 640.º do CPC) com base nos seguintes pontos: - Da declaração de nulidade do contrato celebrado entre autor e réus; - Do cancelamento o registo de aquisição do direito de propriedade que sobre o referido prédio se encontra em vigor a favor dos réus. III. Recurso esse que terá, na sua génese, a reapreciação da valoração do juízo a quo sobre a matéria de facto e a reapreciação da legalidade do enquadramento jurídico que o juiz a quo fez incidir sobre os factos que considerou como provados. IV. Nesta senda, o Recorrente pretende que seja alterada a resposta dada à matéria de facto e que passem a ser dados como PROVADOS os factos A), C) e D) da sentença recorrida, bem como de todos os factos explanados na Reconvenção apresentada pelo Réu, aqui Recorrente e que passem a ser dados como NÃO PROVADOS os factos n.º 3), 5), 6) e 7) da sentença recorrida. Veja-se, V. Relativamente ao contrato de compra e venda a retro, celebrado entre Autor e Réus – melhor descrito no artigo 2.º da presente peça processual – consubstancia, tal como assim o deveria, um contrato de venda a retro, cf. artigo 927.º e seguintes do Código Civil e nunca, em momento algum um mútuo, vulgo empréstimo. – cf. Reconvenção e Alegações escritas. VI. Caso assim não fosse, os Réus jamais estariam na disponibilidade de realizar qualquer outro tipo de contrato e/ou empréstimo, pois tinham como fim derradeiro a aquisição do imóvel em apreço, conforme se aferiu pelas declarações de ambos. – cf. Alegações escritas. VII. Facilmente se afere que, através das regras de experiência comum, caso o negócio jurídico em apreço, efetivamente se tratasse um contrato de mútuo por cinco mil euros, os Réus sairiam, sem qualquer sombra de dúvida, prejudicados, uma vez que não seriam credores de juros, nem tampouco teriam a posse da casa, não retirando qualquer proveito do negócio. – cf. Reconvenção e Alegações escritas. VIII. Nem tampouco se verifica o âmbito de uma relação familiar nem de qualquer tipo de proximidade que justifique o eventual negócio desvantajoso para os Réus. – cf. Alegações escritas. IX. Pelo que, a “garantia” e a “segurança” mencionada pelos Réus, quando se referem ao contrato de compra e venda a retro, espelham a sua convicção de que, na eventualidade da resolução do contrato, receberiam, novamente, a quantia de 5.000€, pelo que “nunca ficariam a perder”. X. Expressões essas que, em momento algum, colocam em causa a validade do contrato de compra e venda a retro, em prol de um eventual contrato de mútuo, uma vez que a celebração de um contrato de compra e venda a retro com escopo de garantia de uma obrigação não acarreta a sua inviabilidade, tal como se demonstrará adiante. – cf. Reconvenção e Alegações escritas. XI. Neste sentido, vide depoimento prestado pelo Réu, aquando da Audiência de Discussão e Julgamento: “Mandatária dos Réus: pronto, mas o que eu estou a tentar perceber é porque é que você perentoriamente disse neste tribunal dinheiro não empresto, mas venda a retro faço, tinha algum interesse na venda a retro pergunto-lhe. (...) Mandatária dos Réus: qual era a diferença para si entre emprestar-lhe dinheiro ou ficar com a casa no seu nome? Réu: porque com a venda a retro no meu modo de ver ficava mais garantido do que se lhe emprestasse o dinheiro. Mandatária dos Réus: exatamente e podia ficar com a casa para si? Réu: no meu modo de ver podia ficar com a casa para mim. Mandatária dos Réus: e essa foi a sua motivação? Réu: sim. Mandatária dos Réus: alem disso você sabe, pergunto, que podia ter emprestado o dinheiro e feito uma hipoteca um penhor, isto é penhorar a casa, para garantir o dinheiro? (...) Mandatária dos Réus: e quando foi falar com a sua filha sobre a venda a retro, o que o motivou a aceitar esta proposta? Réu: o que me levou a aceitar a proposta é que ela falou com o advogado e disse que era correto. Mandatária dos Réus: que era correto porque ficava com a casa? Réu: sim (...)” – cf. transcrição efetuada da Audiência de Discussão e Julgamento (minuto 00:00:00 a 00:30:20) XII. Bem como o depoimento prestado pela Ré, aquando da Audiência de Discussão e Julgamento: “Mandatária dos Réus: Alguma vez vocês tiveram interesse em emprestar dinheiro ao seu vizinho? Ré: Não, nenhum. Mandatária dos Réus: porque é que aceitaram fazer uma venda a retro, foi ou não foi com a intenção ou a possibilidade de ficarem com a casa? Ré: na altura não tínhamos esse pensamento, mas depois concluindo com o que nos foi explicado na escritura e tudo a casa era por baixo da nossa, um dia futuramente eramos vizinhos mais chegados. Mandatária dos Réus: quando você diz que a sua casa é por cima, não é o mesmo edifício, mas é ali ao lado? (...) Ré: Sim (...) Mandatária dos Réus: isso para vocês, ficarem com esta casa na altura era uma coisa positiva? Ré: sim, porque surgiu (...) Mandatária dos Réus: tinham ou não tinham dinheiro quando ele vos foi pedir dinheiro? Ré: tinha. Mandatária dos Réus: e o que eu estou a perguntar é porque é que não aceitou emprestar dinheiro que podia ser garantido de outras formas, o que é que a motivou a aceitar? Ré: como ele andava por lá não trabalhava, achava que ele nunca mais nos ia dar o dinheiro. Mandatária dos Réus: e tinha interesse em ficar com a casa? Ré: foi uma segurança. Mandatária dos Réus: foi uma segurança, quando fala em segurança não é uma segurança em ter os 5.000€ é segurança em ter a casa? Ré: sim. (...)” – cf. transcrição efetuada da Audiência de Discussão e Julgamento (minuto 00:00 a 20:37) Relativamente ao eventual erro sobre o negócio jurídico, XIII. O Autor, por sua vez, confessou de forma impreterível, que, não só se encontrava pleno das suas capacidades mentais, aquando da realização da escritura, como compreendeu – tal como ainda hoje compreende – o sentido e alcance dos efeitos jurídicos do contrato de compra e venda a retro (vide, neste sentido, as declarações do seu irmão, testemunha arrolada pelo próprio autor, esclarecedoras quanto à capacidade de entendimento deste minutos ), pelo que não é imputável nenhuma divergência entre a vontade real e a vontade declarada do Autor, conforme demonstrado supra. – tendo sido este o entendimento do Tribunal a quo, na perspetiva do Recorrente, com absoluto acerto. XIV. Por outras palavras, ao Autor não era desconhecido que possuía um prazo de 5 anos para resolver o contrato aludido, reavendo o direito de propriedade sobre o imóvel em questão, mediante o pagamento da quantia de 5.000€ (cinco mil euros). – cf. Reconvenção e Alegações escritas. XV. Demonstrou ainda compreender que ocupa, ilegalmente, um imóvel que não lhe pertence, até à data de hoje, uma vez que nunca procedeu à resolução do contrato de compra e venda a retro. XVI. Algo que o próprio admitiu, sem qualquer margem de dúvida, como se afere, mediante as gravações do depoimento prestado pelo Réu, aquando da Audiência de Discussão e Julgamento: “Mandatária dos Réus: olhe outra coisa, quando estavam na escritura foi explicado em voz alta pelo notário o que estavam ali a fazer? Réu: foi sim senhora. Mandatária dos Réus: e toda a gente entendeu? Réu: eu percebi e ele também disse que sim percebeu. Mandatária dos Réus: e sabia-se que o que estava ali em casa não era nenhum empréstimo? Réu: não, era uma venda a retro.” – cf. transcrição efetuada da Audiência de Discussão e Julgamento (minuto 00:00:00 a 00:30:20) E ainda o depoimento prestado pelo Autor, aquando da Audiência de Discussão e Julgamento: Mandatária dos Réus: Sr. AA disse ali ao seu advogado que fez este contrato e depois tinha 5 anos, o Sr. sabia que tinha 5 anos para pagar o valor que foi pago pela casa? Autor: Sim, mas eu não tinha dinheiro para poder pagar. Mandatária dos Réus: Pronto, mas sabia que tinha um prazo de 5 anos? Autor: hum hum. Mandatária dos Réus: Pronto e se não pagasse que ia ter problemas? Autor: Claro. Mandatária dos Réus: e assinou a escritura com essa consciência que tinha 5 anos para pagar os 5.000€? Autor: Hum hum. Mandatária dos Réus: eu gostava Meritíssima Juiz de exibir a escritura, para saber se o Sr. reconhece como sendo. (...) Mandatária dos Réus: essa assinatura, a primeira que aí está é sua? Autor: Acho muito estranho ser a minha porque a letra está muito apagadinha aqui. Mmª. Juiz: olhe, mas eu não estou a perceber, o Sr. está a dizer que isso foi falsificado? O Sr. foi ou não foi ao notário? Eu não estou a perceber. Autor: eu estou a achar estranho a letra aqui ser tão pequenina, eu não faço assim. Mmª. Juiz: sim, mas o Sr. não pôs em causa que assinou isso não é Sr. AA? O Sr. agora está a dizer que não. Autor: eu assinar assinei só que agora não estou realmente a ver se foi esta folha se qual é que foi. Mmª. Juiz: pronto, mas também não pôs em causa o Sr. não veio alegar falsidade de assinaturas nem impugnar. Mandatária dos Réus: Era só para ver se o Sr. se lembrava de ter assinado isso e essa assinatura. Olhe no dia que foi ao notário o Sr. notário falou consigo? Autor: falou, falemos todos juntos lá. Mandatária dos Réus: Isso você já tinha comprado uma coisa um ano antes e depois foi lá outra vez, o Sr. notário leu? Autor: Sim. Mandatária dos Réus: leu tudo? À vossa frente? Autor: hum. Mandatária dos Réus: muito bem e o Sr. sabia que tinha 5 anos? Autor: Hum. (...) Mandatária dos Réus: olhe e então diga-me lá se ao final dos 5 anos não pagasse o dinheiro o que é que acontecia? O que é que o notário lhe disse? Que ele leu tudo o que é lhe disse? Se ao final dos 5 anos não devolvesse o dinheiro o que é que ia acontecer à sua vida, ia ficar com a casa, ia perder a casa? Autor: que a casa ficava dele. Mandatária dos Réus: pronto e você tinha esta consciência no dia em que foi ao notário? Autor: Mais ou menos. Mmª. Juiz: o que o Sr. assinou no fundo declarou é que vende, o Sr. declarou e outro Sr. também aceitou é que vende certo? O que eu lhe pergunto é se na altura em que o Sr. foi lá o Sr. queria vender a casa? Autor: eu não. Mmª. Juiz: e o outro Sr. queria comprá-la? Autor: eu tinha-a comprado há cerca de um ano. Mmª. Juiz: e o Sr. BB queria comprar a casa? Autor: se queria comprar, o que ele queria era a segurança como eu lhe disse, se não pagasses em dinheiro fico com a casa em meu nome. Mmª. Juiz: e o Sr. aceitou isso, aceitou essa segurança como o Sr. Disse certo? Autor: Hum. (...) Mmª. Juiz: o que eu lhe ia perguntar é (...) o Sr. também sabe que foi lá o Sr. lhe emprestou o dinheiro e aquilo que ficou a perceber era que lhe vendia a casa ou...? Autor: É assim Sra. Dra. ele quis também a segurança, mas também no fundo no fundo interessou-lhe para a parte dele como é que hei-de dizer eh pá, isto é, por uma pechincha e a mim faz-me jeito fica tudo ligadinho. Mmª. Juiz: mas como é que o Sr. está 5 anos a saber isso sem lhe pagar nada? O que é que o Sr. estava à espera? Autor: ó Sr.ª. Dra. juíza aquilo nem água tem a casa estou a viver numa casa que é uma miséria, já chove lá dentro. Mmª. Juiz: não é isso que está em causa a verdade é que este Sr. Lhe emprestou dinheiro o Sr. passou 5 anos sem pagar? Autor: Não, não paguei. Mmª. Juiz: Pronto então e o Sr. sabia que ainda por cima tinha isto a cabeça não é, sabia que tinha assinado isto, que é que o Sr. estava à espera? Autor: não sei, a explicação é assim eu sei que assinei e prontos e foi tudo muito repentino e ele também podia dizer assim fala primeiro com a tua família tu tens irmãos e irmãs. Mmª Juiz: sim ele até disse que falou consigo e que lhe disse isso tudo está a ver? O Sr. a falar, o Sr. até disse logo. Porque é que não falou com os seus irmãos? Autor: porque ele disse logo, ofereceu-se e eu então olhe. (...)” – cf. transcrição efetuada da Audiência de Discussão e Julgamento (minuto 00:00:00 a 00:29:00) XVII. Paralelamente, no que concerne o contrato de comodato realizado entre os Réus e o Autor, o mesmo não foi, em momento ou circunstância alguma, questionado quanto à sua realização nem sequer prova alguma foi produzida contra a existência do respetivo contrato. XVIII. Pelo que, o Recorrente não consegue compreender as motivações e justificações do Tribunal a quo em qualificar o aludido contrato como um facto não provado. XIX. Neste sentido, apraz referir que a realização de um contrato de comodato, cf. 1129.º e ss. do Código Civil, não está sujeito a forma escrita, considerando-se celebrado pelas declarações negociais das partes (comodante e comodatário) e pela entrega da coisa móvel ou imóvel, pelo comodante ao comodatário (contrato real quoad constitutionem). – cf. Reconvenção e Alegações escritas. XX. Constituem elementos essenciais do comodato, a gratuidade, a temporalidade e o dever de restituição. – cf. Reconvenção e Alegações escritas. XXI. Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no2/16.5T8MGL.C1.S1, de 21/03/2019, “não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137.º, do CC”. – cf. Reconvenção e Alegações escritas. XXII. Atualmente, e apesar das interpelações levadas a cabo pelo Réu, o Autor não procedeu à restituição do imóvel, violando o disposto no artigo 1137.º n.º 2 do Código Civil e impedindo o Réu, de exercer, de forma livre e plena, o seu direito de propriedade, patente no artigo 1302.ºe seguintes do Código Civil. – cf. Reconvenção e Alegações escritas. Da análise dos factos e respetiva aplicação do direito na douta sentença, XXIII. Na visão da douta sentença “a venda acordada entre as partes tem subjacente um fim indireto de garantia de uma relação obrigacional, de que é credor o comprador – réu – no confronto do vendedor – autor –, emergente de um mútuo entre ambos celebrado”, tratando-se de um negócio fiduciário. XXIV. Perante esta qualificação jurídica, o Tribunal a quo procedeu à verificação da validade do contrato “sendo que apesar das partes o qualificarem de “Contrato de venda a retro” formalizaram, lateralmente a este contrato, um acordo diferente que o transforma numa realidade diferente – mútuo com garantia”. Mormente, o Douto Tribunal procedeu em aferir se “partes não terão precisamente atuado em fraude à lei, contornando, no caso, a proibição do pacto comissório que o art. 694.º estabelece imperativamente em sede de direitos reais de garantia.” XXV. Tendo como esteio a sentença recorrida, sucintamente, foi classificou o contrato aludido como nulo por se tratar de um pacto comissória cf. artigo 694.º, alicerçando essa classificação nos seguintes argumentos: A) A função de garantia atribuída ao contrato de compra e venda a retro (contrato esse que consta da escritura pública) automaticamente comporta a celebração de um contrato lateral, dissimulado, de um mútuo com garantia real; 1. Neste âmbito, dúvidas não deverão restar de que o negócio celebrado entre Autor e Réus consubstanciou um contrato de compra e venda a retro, de forma pura, pois aos Réus apenas lhes interessava a aquisição do imóvel, p. e p. artigo 927.º e seguintes do Código Civil. 2. Não obstante, sempre se dirá que, A venda a retro como garantia de obrigação “(...) pode aparecer em duas modalidades: (...) a segunda consiste em estipular imediatamente uma venda a retro, cujo preço ingressa no património do vendedor fazendo as vezes de dinheiro mutuado. (...) o mutuante-comprador obtém imediatamente a propriedade da coisa, que só perde quando for reembolsado pelo menos do preço. Ora, por esse meio o mutuante-comprador consegue adquirir para si a propriedade da coisa garantia, o que não conseguiria se tivesse sido constituída uma garantia real, penhor ou hipoteca, pois nestas é proibido o pacto comissório. (arts. 675.º e 694.º [ambos do Código Civil])”. 7 – cf. Alegações escritas. E que ainda na ótica doutrinária “A função de garantia é uma das finalidades que a venda a retro se revela apta a realizar. Permite a alienação de um bem por parte de alguém que necessita de recursos financeiros imediatos, mas que não pretende subtrair definitivamente aquele ativo do seu património. Possibilita a obtenção do capital desejado aliada à consagração a favor do devedor da possibilidade de desfazer a compra e venda mediante restituição do preço (capital mutuado), dentro de determinado período de tempo. Para quem disponibiliza os recursos financeiros, a venda a retro afigura-se mais vantajosa do que o tradicional contrato de mútuo assegurado por garantia real. Nesta modalidade de compra e venda, tendo as partes em vista o escopo de garantia, o preço desempenhará a função de objeto do mútuo, o comprador-credor torna-se proprietário do quid da garantia do seu crédito e esta sua dupla posição jurídica (de credor e proprietário) manter-se-á durante o prazo de resolução do contrato, sendo que por banda do vendedor-devedor, o contrato apenas poderáì ser resolvido se ele restituir o preço (quantia mutuada), estando essa faculdade limitada no tempo ao prazo máximo convencional ou legal. Se o vendedor a retro não puser termo ao contrato – normalmente por não (estar em condições de) exercer o direito de resolução – em tempo, o bem vendido ingressa, de modo definitivo, na esfera do comprador-mutuante, cessando, sic, a possibilidade de o vendedor-devedor o readquirir (automaticamente por via da resolução e respetiva restituição do preço recebido). Nestes termos, não vislumbram os doutrinadores impedimento algum a que a venda a retro seja utilizada com fim de garantia. Aliás, atendendo à tutela legal das partes – presente nas especificidades do seu regime –, na prática, será frequente que o comprador (credor-mutuante) e o vendedor (devedor-mutuário) a retro adotem este tipo negocial de alienação, como instrumento (exatamente) de maior segurança do crédito.” 3. Dúvidas não restam que a segunda modalidade de compra a venda a retro como garantia de obrigação se poderia subsumir, mutatis mutandis, ao caso sub judice, não obstante o entendimento do Recorrente em que o contrato foi celebrado na sua forma pura. – cf. Alegações escritas. 4. No que se alude à eventual validade deste escopo, lança-se mão, novamente, do Doutor Raul Ventura, pois segundo este “(...) pode perguntar-se se a licitude da venda a retro é ou não limitada aos casos em que não funcione como garantia do cumprimento de obrigações. (...) parece de afastar a referida limitação. O legislador estava consciente da generalizada utilização (ou possibilidade de utilização) da venda a retro com fins de garantia e apesar disso alterou a proibição do Código anterior, considerando licita a venda a retro e fá-lo genericamente, sem proibir aqueles fins de garantia [neste sentido perante as regras de interpretação da lei que resultam do artigo 9.º do Código Civil, a regra é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir]; por outro lado, o Código estabelece uma regulamentação destinada a evitar os principais abusos que podem resultar da venda a retro. Não havendo desconhecimento do problema tradicional, a intenção legislativa parece ter sido de admitir a venda a retro com escopo de garantia”. 5. “Em tese, os negócios são diversos, quer pelo tempo da transmissão da propriedade quer pelo tipo de condição a que o efeito translativo fica sujeito. Assim, na venda a retro, o comprador-credor é investido na titularidade do direito real maior por mero efeito do contrato (alínea a) do artigo 879.º CC); já um pacto comissório, em princípio, opera o ingresso do bem na esfera do credor só depois do incumprimento da obrigação do devedor (parte final do artigo 694.º CC). Quanto à natureza condicional, existe em ambos os negócios, mas com uma diferença: enquanto a venda a retro faz depender a definitividade da aquisição de condição resolutiva, o pacto comissório condiciona-a suspensivamente. Do prisma puramente dogmático, de interpretação teleológica da norma que proíbe o pacto comissório, não nos parece que a venda a retro se situe no seu âmbito de aplicação. Aceita-se pacificamente que a venda a retro seja utilizada com função de garantia de um mútuo concedido através do pagamento do preço, em que o preço representa, portanto, a quantia mutuada e o objeto da compra e venda é a segurança do crédito do adquirente. É que este não pretende ficar com o bem que comprou, assim como o alienante também não quer perdê-lo para sempre, daqui que (tenha escolhido este tipo negocial para que) possa resolver o contrato em qualquer altura da sua vigência, isto é, dentro do prazo convencional ou legal, bastando, para tanto, que devolva o preço ao comprador, o mesmo é dizer o valor do empréstimo ao credor.” B) Motivo esse, pelo qual, o Autor continuou a habitar no referido imóvel, descartando e dando como não provado a celebração do contrato de comodato – comprovando a divergência entre a vontade declarada no contrato de compra e venda a retro e a vontade real que se extrai do contrato de mútuo. 1. Tal como citado pela Douta Sentença “por outro lado, e como bem salientou o Il. Mandatário do autor nas doutas e meritórias alegações, – as quais, pela sua clareza, aqui se reiteram –, se o tribunal se socorrer das regras da experiencia conclui-se que a real vontade das partes era criar uma segurança aos réus no pagamento do mutuo e não o de vender a retro a casa, o que retiramos dos seguintes pontos: ● O facto de se ter feito constar da escritura que a venda poderia ser revertida no prazo de 5 anos contra a devolução daquela quantia, é sintomático de que a venda apenas foi celebrada com esse propósito de garantia, de segurança da devolução do mútuo. ● O facto de o A. ter continuado a viver no imóvel, como ainda sucede, não é compaginável com um negócio de compra e venda, que importa a transferência do domínio para os adquirentes.” 2. Relativamente ao 1.º ponto – o prazo de 5 anos vertido na escritura pública que permite reverter a mesma, mediante a restituição da quantia – não entende o Recorrente como é que, de um pressuposto legal, que consta do próprio artigo 927.ºss do Código Civil, o Douto Tribunal conclui que tal só se deu por força da pretensão dos Réus em criar um propósito de garantia. 3. Quanto muito, tal poderá sido a intenção do Legislador ao consagrar quer a hipótese de reversão, quer o prazo máximo para a mesma. 4. E, não obstante, e por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que, mesmo que tal tivesse sido a intenção dos Réus – a criação de um propósito de garantia – a mesma não se afigura como incompatível com a figura jurídica do contrato de venda a retro, como demonstrado supra, cf. Pontos 32. º a 37. º. 5. Paralelamente, no que concerne o 2.º ponto, mormente o facto do Autor ter continuado a viver no imóvel e que tal facto não se afigura como compaginável num contrato de compra e venda, no que tange a questionabilidade da celebração de um contrato de comodato, por questões de brevidade, celeridade e economia processual, remete-se para o já exposto e alegado nos pontos 21. º a 26. º da presente peça processual. 6. E ainda no que respeita a alguma enfermidade por parte do contrato de compra e venda a retro celebrado, o artigo 1264.º do Código Civil, consagra a figura jurídica do Constituto Possessório, prevendo que na eventualidade do “titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.” Pelo que se verificam os três feitos essências do contrato de compra e venda – transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, obrigação de entregar a coisa e obrigação de pagar o preço – conforme o disposto no artigo 879.º do Código Civil. – cf. Reconvenção Alegações escritas. 7. Neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora n.º 356/11.0TBOLH.E1, de 27-10-2011. “Com a venda do imóvel, o proprietário transfere para o adquirente a posse que até aí detinha. Se apesar de vender o imóvel o alienante continua a usufruir do mesmo tal qual o vinha fazendo, a posse que até aí exercia em nome próprio passou a exercê-la em nome do adquirente e como mero detentor ou possuidor precário.” – cf. Reconvenção Alegações escritas. C) Tratando-se de um negócio fiduciário, os alegados valores envolvidos no mesmo – mormente o valor patrimonial do imóvel de 20.000€ (vinte mil euros) – é desproporcional (e consequentemente desvantajoso para o Autor); 1. Mediante análise cuidada da caderneta predial – cujo documento já se encontra nos presentes autos – é possível verificar que o valor patrimonial atual, do imóvel sub judice, determinado no ano de 2021, se cifra em 3.268,30€ (três mil, duzentos e sessenta e oito euros e trinta cêntimos). 2. Assim sendo, o valor pago pelo Réu – 5.000€ – não se afigura, de todo, como desproporcional. 3. O valor, alegadamente pago pelo Autor – 20.000€, em 2011 e não em 2012 – aludia ao imóvel sub judice e, conjuntamente a um terreno anexo ao mesmo, terreno esse do qual provinha a água e as respetivas condições sanitárias do imóvel. 4. Aquando da celebração do contrato de compra e venda a retro, o Autor já havia vendido o referido terreno a um terceiro, tendo o imóvel ficado sem as respetivas condições supramencionadas. 5. Importa concluir que o valor pago pelo Autor, mormente os 20.000€, padecerá sempre de um acerto diminutivo uma vez que, aquando da venda a retro, o terreno já não estava incluído no objeto do negócio celebrado pelo que, o valor pago pelos Réus, pela aquisição do imóvel, afere-se como justo e adequado. 6. Não obstante, “Pergunta-se da possibilidade prática de a compra e venda se realizar por um preço significativamente inferior ao valor real do bem. É inegável a hipótese de utilização desse subterfúgio, embora não se afigure como um problema privativo da venda a retro, mas dos negócios onerosos em geral e dos negócios translativos em particular, pelo que esses casos poderão ser sancionados com a faculdade de anulação, nos termos do artigo 282.º CC. Alguma doutrina sublinha, no entanto, que apresentará contornos de normalidade a fixação de um preço inferior na venda a retro, em relação àquele que o comprador pagaria numa compra e venda sem que o vendedor gozasse unilateralmente do direito de resolver o contrato. Nesta perspetiva, a prerrogativa atribuída ao alienante refletir-se-á no abaixamento do valor que o adquirente está disposto a dar pelo bem em causa”. 7. Afasta-se também a hipótese de usura através do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 2430/07.8TBCBR.C1, datado de 20-11-2012 “O artigo 282.º do CC exige como requisito da anulabilidade ou da modificação do negócio usurário prevista no artigo 283.º da mesma codificação legal, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém. Porém, não basta a verificação dum daqueles estados, sendo necessário que haja a consciência de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem para alcançar um benefício manifestamente excessivo ou injustificado, em proveito próprio ou de terceiro, ficando esta determinação entregue ao prudente arbítrio do julgador e só verificados todos estes requisitos pode o negócio ser havido como usurário. São pressupostos do preenchimento de tal preceito que se verifique uma situação de necessidade do declarante e a exploração dessa situação pelo usurário. E para que a situação de necessidade venha a afetar a liberdade negocial e tenha determinado a declaração negocial colocada em causa tem de se verificar no momento em que o negócio é celebrado. A situação de necessidade traduz-se numa situação de inferioridade relativamente à qual o usurário se aproveite de forma consciente, prometendo ou concedendo benefícios excessivos ou injustificados por parte de quem se encontra na situação de necessidade”. D) Sendo tão desvantajoso que o autor, nem queria vender o imóvel, apenas o fez por precisar de liquidar as dívidas; 1. Com efeito, apesar de transferir para o comprador-credor um bem seu que na verdade não quer alienar, pelo menos não em termos definitivos, como contrapartida da obtenção de crédito, a natureza do direito que a cláusula a retro lhe confere garante-lhe a reaquisição da propriedade sem necessidade de colaboração do comprador – bastando a comunicação da resolução à contraparte e a restituição do preço recebido”. Assim sendo, XXVI. A sentença recorrida viola, por incorreta interpretação o disposto nos artigos 282.º, 283.º, 694.º, 879.º, 927.º e ss. e o artigo 1264.º, todos do Código Civil. XXVII. Pelo que, padece de uma errónea apreciação quer da valoração da matéria de facto, quer da subsunção jurídica à referida realidade fáctica, p. e p. artigo 640.º CPC. XXVIII. Não logrou dar como provado o contrato de comodato celebrado entre Autor e Réus, tendo exigido a prova de um facto que deva considerar-se plenamente provado – v.g. por acordo das partes. XXIX. Nem tampouco o contrato de compra e venda a retro celebrado e supra demonstrado, tendo considerado provado que o mesmo ‘mascarou’ um contrato de mútuo, não havendo qualquer meio probatório que sustente tal facto, tal como se demonstra com os documentos de discussão e julgamento. Termina por pedir o provimento do recurso e, por via dele, ser revogada a sentença ora recorrida e, em consequência, ser reconhecido a validade do negócio de compra e venda a retro celebrado entre autor e Réus, concedendo aos Réus o seu direito real de propriedade sobre o imóvel e ainda que o Autor seja condenado a restituir o mencionado imóvel, com efeitos imediatos. - Não foi apresentada resposta ao recurso.- O recurso foi admitido como recurso de apelação.- Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.- II. Fundamentação1. Delimitação do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC. As questões a decidir: - reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova; - se os factos apurados determinam a procedência do pedido reconvencional formulado a título principal e consequente condenação do autor a restituir o imóvel aos réus. - 2. Os factosCom relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância: 1.No dia 20 de novembro de 2012 no cartório notarial sito na Rua ... em Marco de Canavezes e perante o Notário DD o autor AA, na qualidade de primeiro outorgante e o reu BB na qualidade de segundo outorgante celebraram um contrato intitulado “Venda a Retro” nos termos do qual declarou o primeiro outorgante que é dono de um prédio urbano composto de casa de rés do chão cave e anexo sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Baião descrito na Conservatória do Registo de Baião sob o numero quatrocentos e setenta e nove da freguesia ... e ai registado a seu favor pela Ap ... de 16/08/2011 (…) que pelo preço de 5.000,00€ (cinco mil euros) valor que já recebeu e do que dá quitação vende ao segundo outorgante o prédio urbano atra identificado Que esta venda é feita com a condição de ele vendedor poder recobrar o bem transmitido mediante a restituição do preço recebido desde que resolva este contrato no prazo de cinco anos a contar de hoje, vinte de novembro de dois mil e onze Declarou o segundo outorgante que aceita a venda nos termos exarados e que destina exclusivamente a habitação o imóvel adquirido. – cfr escritura publica junta aos autos como Documento n.º 1 com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 2. Munidos do título, os RR. registaram a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio, como consequência da apresentação nº ..., de 20/11/2012 (cfr Documento n.º 3 junto com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 3. Por altura da celebração da escritura, os RR. emprestaram verbalmente ao A. uma quantia muito próxima de € 5.000,00, por forma a que ele pudesse pagar dívidas fiscais vencidas junto do Serviço de Finanças de Baião. 4. Foi o R. quem pagou diretamente tais dívidas. 5. Nos termos do então acordado, o A. obrigou-se a restituir-lhes a quantia mutuada no prazo de 5 anos, sem juros. 6. Com o documento descrito em 1) visaram os RR. munir-se de um instrumento documental que lhes garantisse o recebimento da quantia que emprestaram ao A e referida em 2). 7. O autor assinou o contrato referido em 1) convencido de que se tratava de um documento que apenas visava conceder aos RR. uma garantia de recebimento. 8. O imóvel referido em 1) tinha sido adquirido pelo autor a 24 de agosto de 2012 pelo preço de € 20.000,00 (cfr documento n.º doc. 4 junto com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 9. O autor esteve internado com tuberculose e infetado com HIV em 2017. 10. O autor continuou, como continua a habitar o prédio. - Da contestação11. O Autor foi notificado, via carta, pelo Réu, aqui representado por EE, no passado dia 3 de Março de 2022 sendo-lhe exigido a restituição do imóvel. - - Factos não provadosA) Aquando da celebração do acordo referido em 1) o autor tinha o propósito de vender o prédio aos RR., ainda que com a faculdade de resolver o negócio no prazo referido. B) Que haja sido pelas doenças referidas em 9) que se verificou a condição referida em 7). C) Que paralelamente ao contrato de compra e venda a retro, foi celebrado, verbalmente, um contrato de comodato entre o Réu, aqui representado por EE e o Autor, sendo que a este último foi cedido o dito imóvel. D) Que o autor tenha tido uma vontade real em vender o imóvel referido em 1) nos moldes aí exarados e conforme à vontade declarada na aludida escritura. - Consignou-se, ainda:Todos os restantes factos descritos nos articulados, distintos dos considerados provados – discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” –, resultaram não provados, ou não se transcreveram para a presente decisão pelo facto de sendo matéria de direito e/ou conclusiva ser, como tal, irrespondível, ou se tratarem de factos acessórios e sem relevo para a discussão da causa. - 3. O direito- Reapreciação da decisão de facto - Nas conclusões de recurso, sob os pontos IV a XVII, o apelante impugna a decisão de facto, quanto à matéria dos pontos 3, 5, 6, 7 dos factos provados e alíneas A), C) e D) dos factos julgados não provados. - O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na despectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]” Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar - delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da indicação da prova e quando tal implique a reapreciação da prova gravada a transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação. O apelante impugna a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto a reapreciar, bem como, indica a prova a reapreciar e ainda, a decisão alternativa que deve ser proferida. Consideram-se, assim, preenchidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto. - Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[2]. Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3]. Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC. Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[4]. Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados ( art. 607º/4 CPC ). Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão. É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[5]. Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[6]. Ponderando estes aspetos, cumpre reapreciar a prova – declarações de parte, documental, prova testemunhal -, face aos argumentos apresentados pelo apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto. Está em causa a reapreciação dos seguintes factos: a) Factos provados 3. Por altura da celebração da escritura, os RR. emprestaram verbalmente ao A. uma quantia muito próxima de € 5.000,00, por forma a que ele pudesse pagar dívidas fiscais vencidas junto do Serviço de Finanças de Baião. 5. Nos termos do então acordado, o A. obrigou-se a restituir-lhes a quantia mutuada no prazo de 5 anos, sem juros. 6. Com o documento descrito em 1) visaram os RR. munir-se de um instrumento documental que lhes garantisse o recebimento da quantia que emprestaram ao A e referida em 2). 7. O autor assinou o contrato referido em 1) convencido de que se tratava de um documento que apenas visava conceder aos RR. uma garantia de recebimento. - b) Factos não provadosA) Aquando da celebração do acordo referido em 1) o autor tinha o propósito de vender o prédio aos RR., ainda que com a faculdade de resolver o negócio no prazo referido. C) Que paralelamente ao contrato de compra e venda a retro, foi celebrado, verbalmente, um contrato de comodato entre o Réu, aqui representado por EE e o Autor, sendo que a este último foi cedido o dito imóvel D) Que o autor tenha tido uma vontade real em vender o imóvel referido em 1) nos moldes aí exarados e conforme à vontade declarada na aludida escritura. Na fundamentação da decisão teceram-se as seguintes considerações, que se passam a transcrever: “De harmonia com o princípio plasmado no art. 574º, n.º 2 do CPC, atenta a posição das partes vertida nos respetivos articulados, tiveram-se como assentes o facto descrito em 1) a 9), ou seja, a efetiva celebração do contrato, através de procurador da ré, o seu efetivo teor bem como a não comparência da Ré à escritura, pois que é matéria que não é contestada pela Ré. A prova (ou falta de prova) dos demais factos logrou-se alcançar (ou não) com base na avaliação crítica dos depoimentos prestados em audiência e da documentação junta tendo por base os princípios que regem a apreciação da prova em processo civil. Vejamos pois. Entendemos nós que nos presentes autos – e estando assente entre as partes a celebração de um contrato - impunha-se fazer prova do direito arrogado pelo autor que a celebração do contrato que é objeto dos autos destinou-se a servir de “garantia” do reembolso aos RR., no prazo de 5 anos, da quantia mutuada ao A. Não crê o Tribunal que haja vingado a tese do autor de que celebrou o contrato sem saber o que aí se mostrava explanado pois o dito contrato foi celebrado entre o Autor e o réu, - o que o autor não contesta haja sido lido pelo notário em voz alta. Assim não cremos – de acordo com as regras da experiência, que o autor não houvesse entendido o contrato nem ficou demonstrado que o mesmo possua qualquer incapacidade que lhe retire discernimento para perceber o que assina, razão pela qual se deu como não provado o facto descrito em A)). Entende, antes o Tribunal, que paralelamente ao contrato de venda a retro celebrado – cujas cláusulas se encontram devidamente expostas nos documentos juntos – as partes acordaram uma realidade distinta da que fizeram constar do dito acordo, qual seja a concessão pelo réu ao autor de um no valor de 5.000,00€, acordando que o imóvel do autor seria usado como garantia desse empréstimo. E a prova desta matéria mostrou-se, julgamos, pacifica em audiência na medida em que foi atestada, em certa forma, pelos próprios réus nas declarações prestadas. Façamos antes de mais uma breve resenha sobre a prova produzida em audiência. Assim e para além da documentação junta foi ainda atendida à prova produzida em audiência como seja o depoimento de parte dos réus as declarações de parte do autor e os depoimentos das testemunhas inquiridas. Façamos agora uma síntese dos depoimentos prestados. Começou por ser ouvido BB que disse que autor e réu são vizinhos e que aquele o abordou a pedir lhe se lhe emprestava dinheiro “que ia ficar sem a casa por motivo de uma dívida às finanças”, e que numa fase inicial lhe respondeu não ter dinheiro e para pedir aos irmãos mas que depois de insistências o autor lhe apresentou com uma proposta dizendo-lhe que falou com o notário e que se fazia uma venda a retro e o réu pagava-lhe dívidas e que após obter informações sobre o negócio junto de uma filha acabou por aceitar. Referiu que no início não estava com a ideia de ficar com a casa (“não tinha interesse nela”) porque não precisava dela até porque o autor lhe disse que queria deixar a casa para os filhos mas agora como o autor não lhe pagou e a casa tem acesso para entrar uma ambulância (contrariamente à dos réus) passou a ter interesse na mesma. Depois prestou depoimento de parte CC que disse ter acompanhado o contexto do negócio. No essencial reiterou a posição do seu marido. Disse que o autor pediu ao marido para lhe pagar as dividas para não ficar sem casa e que depois sugeriu que passasse a casa para os seus nomes fazendo uma escritura a retro e a filha disse-lhes que a escritura era válida. Referiu que a celebraram por uma questão de segurança do autor lhes pagar a divida pois no prazo de 5 anos o autor juntava o dinheiro e pagava a casa por 5 mil euros. Asseverou que não tinham “o pensamento de ficar com a casa.” Mas já que ele ficou com o dinheiro e “aquela casa é mais jeitosa”. * Foi ouvido em declarações de parte o autor AA que no essencial referiu que precisava de dinheiro para pagar dividas, pediu dinheiro emprestado ao réu e que este lhe disse que queria um documento em como a casa ficava em nome dele no prazo de cinco anos para ver se tinha dinheiro para pagar a divida, o que admite não ter concretizado ate à presente data. Atesta que nunca quis vender a casa pois que esta lhe custara cerca de 20 mil euros e disse não ter tratado de qualquer documentação quanto à elaboração do contrato.Descreveu os seus problemas de saúde e disse que não percebeu o alcance do que assinava quando subscreveu o contrato. A prova testemunhal cingiu-se à inquirição de DD, notário que esteve presente na escritura objeto dos autos e que não se recordava do ato em si mas descreveu os procedimentos que tinha em atos desta natureza. Por fim foi ouvido FF irmão do autor que mencionou que o irmão lhe contara que o réu lhe emprestara cerca de 5 mil euros. Desconhecia os contornos do contrato. * Como se sabe na árdua tarefa da apreciação da prova impõe-se ao julgador, fazê-lo de formacrítica apelando aos princípios gerais que norteiam o processo civil, ou seja as plasmadas no art. e 607.º do CPC e 342.º do Código Civil. Como se escreveu num douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 11.2.2016 “Importa, mais uma vez, consignar que no julgamento da matéria de facto e na sequência dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração, o tribunal aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção, art. 607º, nº 5, do CPC (princípio da livre apreciação da prova), ou seja, depois da prova produzida, o tribunal tira as suas conclusões, em conformidade com as suas impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência, que forem aplicáveis, salvo previstos no nº 2 do mesmo artigo. E esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por fatores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas quase sempre intangíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objetiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento.” – disponível em www.dgsi.pt. Impõe-se, assim ao juiz analisar criticamente a prova valorando-a na sua globalidade, conjugando-a entre si, e valorando-a à luz das regras da experiência e do senso comum, devendo examinar se a realidade que a prova nos transmite é plausível de sustentar, de acreditar, de existir num pedaço de vida que esteja em discussão. E foi com base nestes princípios nucleares que o Tribunal entendeu dar como assente a maioria da matéria plasmada na petição inicial desvalorizando a versão dos réus de que haviam celebrado um comodato com o autor. Na verdade, foi pacificamente provado em audiência pelas próprias declarações dos réus que aquando da realização da escritura não tinham em mente adquirir a casa, em relação a qual não mostravam interesse, mas apenas assegurar o pagamento da divida que o autor confessamente não pagou aos réus. Como se sabe o depoimento de parte visa a confissão de factos que se tornem desfavoráveis à parte que os presta (art. 452.º do CPC). E no caso concreto foram os próprios réus a atestar que aquando da celebração do contrato que designaram venda a retro não tinham a intenção de ficar com a casa mas antes assegurar o pagamento da dívida, por uma questão de segurança. Por outro lado, e como bem salientou o Il Mandatário do autor nas doutas e meritórias alegações, - as quais, pela sua clareza, aqui se reiteram -, se o tribunal se socorrer das regras da experiencia conclui-se que a real vontade das partes era criar uma segurança aos réus no pagamento do mutuo e não o de vender a retro a casa, o que retiramos das seguintes pontos: - O facto de se ter feito constar da escritura que a venda poderia ser revertida no prazo de 5 anos contra a devolução daquela quantia, é sintomático de que a venda apenas foi celebrada com esse propósito de garantia, de segurança da devolução do mútuo. - O facto de o A. ter continuado a viver no imóvel, como ainda sucede, não é compaginável com um negócio de compra e venda, que importa a transferência do domínio para os adquirentes. - Inexistência de qualquer suporte documental que suporte o aludido comodato; - A discrepância de valor de compra do imóvel pelo autor um ano antes (20 mil euros) do valor da alegada venda (5 mil euros). Assim os depoimentos dos réus logrou abalar a força probatória de um documento autêntico, como é uma escritura pública (artigo 363º/2 do CC) que apenas abrange dois factos: os que nele se referem como tendo sido praticados pelo Notário e os que nele são atestados com base nas perceções daquele (artigo 371º/1 do CC). (como também referiu o IL. Mandatário do autor). Assim e por estas razões se logrou dar como provada no essencial a matéria alegada pelo autor em detrimento da descrita pelos réus, exceto no que tange à alegada existência de um erro e desconhecimento do que estava assinar pois que não logrou o autor fazer prova de que lhe faltava o discernimento do que subscrevia”. - Os apelantes impugnam a decisão dos pontos 3, 5, 6, 7 dos factos provados e alíneas A), C) e D) dos factos não provados. Sugerem que os factos provados se julguem não provados e os não provados, se julguem provados.Sustentam a alteração em excertos das declarações de parte do autor e nos depoimentos prestados pelos réus e ainda, no depoimento da testemunha FF. Está em causa apurar as circunstâncias que levaram as partes a celebrar em 20 de novembro de 2012 a Escritura Pública de Compra e Venda a Retro e o motivo pelo qual após a celebração do contrato o autor permaneceu a residir no imóvel objeto do contrato de compra e venda. Em depoimento de parte o réu BB referiu que o autor o abordou no sentido de lhe pedir dinheiro emprestado, porque ficaria sem a casa devido a uma divida nas Finanças. Nesse contacto respondeu-lhe que não tinha dinheiro para lhe emprestar e sugeriu que falasse com a sua família. Uns dias depois, voltou a pedir o mesmo e mereceu a mesma resposta. Numa terceira ocasião, o autor disse que tinha uma proposta nova “falei com o Notário, fazia uma venda a retro e pagava às Finanças”. O depoente disse que tratou de se informar e falou com a filha que trabalha num escritório de advogados, que lhe disse que estava bem. Referiu que aceitou a proposta e pagou cerca de € 3.000,00 às Finanças e o autor acompanhou-o às Finanças, não tendo ficado o depoente com comprovativo do pagamento. Esclareceu que quando o autor lhe falou na venda a retro, não tinha interesse na casa. “Achou que com a venda ficava mais garantido e podia ficar com a casa para si e foi essa a motivação. Não tinha interesse na casa”. Disse, ainda, que o autor procedeu à marcação da escritura pública no Marco e o depoente tratou de obter a documentação necessária para a sua celebração. Sobre a natureza do negócio proposto, o depoente disse “no meu modo de ver pagou a casa, uma venda a retro; o que era um empréstimo transformou-se numa compra e venda. Para mim é uma compra, mas durante aqueles anos pode tomar conta dela, pagando o preço”. Esclareceu desconhecer o valor do imóvel e referiu, também, que “não estava com ideias de ficar com a casa e por isso, não estava interessado no valor da casa, mas agora quer”. Disse, que quando estava a terminar o prazo foi falar com o autor e o autor disse-lhe que queria a casa para os filhos. Quando foi celebrada a escritura pública o Notário informou que “se não pagasse € 5 000,00, no prazo de 5 anos, o réu ficava com a casa”. O notário explicou e todos perceberam. Todos sabiam que não era um empréstimo, mas uma venda a retro. O depoente afirmou que pagou às Finanças e a diferença em relação ao valor da escritura entregou em dinheiro ao autor, desconhecendo o destino que lhe deu. A respeito do facto do autor permanecer na casa, disse o depoente que o autor continuou a habitar na casa “deixei-o lá estar”. O autor disse ao depoente quando estava a terminar o prazo, que queria deixar a casa para os filhos e o depoente disse-lhe “dá-me o dinheiro e eu celebro a escritura pública no nome dos filhos”. Voltou a referir que o autor continuou na casa, “porque não o pôs fora”. “Depois o depoente ficou doente, veio o Covid, o autor ficou doente e deixou estar. Também não precisava da casa e por isso, deixou-o lá. Agora precisa para ter acesso direto à via pública, caso seja necessário entrar uma ambulância”. Quando se aproximou o termo do prazo disse ao autor que lhe dava mais um mês ou dois, para resolver o negócio. Enviou uma carta. Referiu, por fim, que pagou as despesas no notário. Em 2017 o autor esteve doente, mas desconhece o motivo da doença, mas quando celebrou a escritura pública não tinha qualquer problema de saúde. Disse desconhecer em que consiste uma hipoteca. A ré CC no seu depoimento referiu que o seu marido contou-lhe que o autor pediu dinheiro para pagar uma divida às Finanças, pois se não pagasse ficava sem a casa. Pediu empréstimo ao marido, o marido disse que não tinha dinheiro e a ré disse não concordar com o empréstimo. Disse desconhecer o montante da divida às Finanças. Referiu que o autor insistiu uma segunda vez e depois sugeriu que “passava a casa para o vosso nome e celebrava uma escritura a retro”. Falou com a filha para a informar em que consistia a escritura a retro. A depoente disse que não estava de acordo. A filha informou que era possível. Disse, ainda, que a escritura “significava segurança de pagar a divida nas Finanças. No final retomava a casa, no prazo de 5 anos. Retomava a casa por € 5 000,00”. Referiu que o Notário informou que o autor tinha cinco anos para retomar a casa. Caso não retome a casa a casa é do réu que já está em nome do réu e com registo. Sobre o montante da divida nas Finanças, a depoente disse que ascenderia a € 4.000,00, mas não sabe bem. Referiu, ainda, que na data em que foi celebrada a escritura pública o autor não tinha problemas de saúde. Esteve doente em 2017. Esclareceu, a respeito dos termos do acordo, que “na maré não tinham isso [comprar] em pensamento”. A casa fica mais abaixo. A depoente não queria emprestar e sugeriu que fosse pedir ajuda aos irmãos. O autor “andava por lá, não trabalhava, foi uma segurança; tinha receio que não pagasse. Se não era o dinheiro era o valor”. Mais referiu que “achava que não pagaria e por isso, não queria emprestar. O interesse na casa agora é porque facilita o acesso à via pública”. Sobre o motivo que levou o autor a permanecer na casa, a depoente referiu que o depoente ficou lá a viver, entretanto o seu marido ficou doente, depois o autor ficou doente, veio o covid e foi ficando assim. Por fim, disse, que não “tínhamos lucro nenhum; a casa carece de obras”. O autor AA prestou declarações de parte referindo que continua a viver na casa. Referiu que “pôs a questão ao réu que tinha uma divida de € 4.800,00 às Finanças e corria o risco de ficar sem a casa. Pago-te a divida, mas tenho que ter uma segurança. Foi às Finanças e o réu pagou; acompanhou o réu. “Dali foi para o “Registo Civil””(que será a Conservatória do Registo Predial pela descrição do local e indicação feita pelo ilustre mandatário do autor em julgamento). Assinou um papel e não se recorda se pagou alguma coisa. Disse, ainda, que “para segurança o réu queria um documento em que a casa ficasse em nome dele e deu cinco anos para poder pagar a divida”. Referiu que o réu emprestou na condição de por a casa em nome dele. Mais referiu que a divida ascendia a € 4 800,00, mas “quis por € 5.000,00, mas não deu a diferença, nem um centavo”. Foi celebrar a escritura pública no Marco e foi transportado pelo réu. Esclareceu que pagou a divida às Finanças em 2012 e celebrou a escritura pública em 2012. Tinha comprado a casa um ano antes. Em relação ao ato de celebração da escritura pública disse que não sabia o que estava a assinar, nem se recorda do que disse o Notário. “Passou a casa para o nome dele, porque ele se ofereceu para pagar a divida. O réu disse que não emprestava, mas tinha que falar com a mulher e foi falar com a ré. A ré estava preparada tinha um dinheiro de lado da casa que herdaram dos pais e disse “mas temos que ter uma segurança”. Passar a casa para o nosso nome”. O autor disse que não aceitava porque tinha filhos, mas os réus disseram que esta era a condição, para emprestar o dinheiro. Referiu, também, que na data em que celebrou a escritura pública não tinha problemas de saúde e esses problemas surgiram apenas em 2017. Foi o réu quem suportou todas as despesas com a celebração da escritura pública. Disse que comprou a casa pelo preço de € 20.000,00, que pagou em dinheiro, produto das suas economias. Não sabe em que consistia a divida às Finanças. Por fim, esclareceu, que sabia que tinha cinco anos para pagar; o senhor notário leu tudo à sua frente e informou que ao fim de cinco anos se não pagar a casa fica para o réu. Só pediu dinheiro emprestado nesta ocasião. Não queria vender a casa. O réu queria uma segurança, se não pagares fico com a casa em meu nome. Disse o declarante: “segurança é uma pechincha, fica pegadinho”. A casa é uma miséria; não tem água. Disse que não falou com os irmãos, porque o réu se ofereceu para pagar a divida; foi o réu quem teve a ideia de fazer as coisas desta maneira. A testemunha DD, notário, que celebrou a escritura pública em causa nos autos, disse desconhecer as pessoas e dado já ter decorrido dez anos sobre a data da celebração da escritura, não se recordar de pormenores ou da sua celebração. Esclareceu que a escritura pública é lida e explicada, bem como se pergunta às partes se compreendem o seu conteúdo. A testemunha FF, irmão do autor, referiu nada saber sobre o negócio, porque em 2012 não estava em Portugal. Trabalhava em Angola, onde esteve entre 2007 e 2014. Durante este período veio a Portugal para visitar a mulher e filhos, em curtos períodos de tempo, que não lhe permitiam contactos com o irmão. Disse, ainda, que o irmão vive na mesma casa e que o irmão lhe disse que o réu lhe emprestou € 5.000,00. Em sede de prova documental releva o teor da escritura pública celebrada entre o autor e o réu, cujo conteúdo consta reproduzido sob o ponto 1 dos factos provados e ainda, a informação prestada pela Repartição de Finanças de Baião, inserida a páginas 225 do processo eletrónico sistema Citius. Desta informação resulta que em 2012 o montante em divida às Finanças ascendia a € 2 490,30, resultante de impostos não pagos: IRS e IMI. Por fim, na ata da sessão de julgamento realizado em 12 de dezembro de 2022 fez-se constar a seguinte assentada, face ao depoimento prestado pelo réu: “Referiu que o autor se lhe dirigiu duas vezes a pedir-lhe dinheiro emprestado e que o mesmo referiu que não tinha dinheiro para lhe emprestar. Que à terceira vez o autor tinha uma nova proposta e disse-lhe “eu falei com o notário fazia uma venda à retro e pagavas-me as dívidas”. Depois informou-se com outra pessoa, e foi a filha, que disse que estava correto, disse ainda que foi ele que pagou diretamente às Finanças o montante em dívida, cujo valor não se recorda mas que terá rondado os 3 mil euros e que o restante valor lhe entregou o dinheiro. Concluída a assentada foi observado o disposto no artº463º do C.P.Civil, tendo o depoente confirmado o seu teor”. Apreciando a prova. Começando pelas declarações de parte. Nos termos do art. 466º/1 CPC as partes podem prestar declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto. As declarações prestadas são apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se constituírem confissão, como se prevê no art. 466º/3 CPC. A parte deve ser admitida a prestar declarações apenas sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto e que sejam instrumentais ou complementares dos alegados. Daqui resulta que não merece relevo probatório as declarações que assentem em relato de terceira pessoa e ainda, aquela em que a parte se limita a narrar os factos alegados no respetivo articulado. Como refere FERNANDO PEREIRA RODRIGUES: “[…] também é suposto que a parte ao requerer a prestação das suas declarações não seja apenas para confirmar o que já narrou nos articulados através do seu mandatário. Seria inútil a repetição do que já é do conhecimento do tribunal. Por isso, estarão sobretudo em causa factos instrumentais ou complementares dos alegados de que a parte tenha tido conhecimento direto ou em que interveio pessoalmente e que se mostrem com interesse para a descoberta da verdade”[7]. LEBRE DE FREITAS a propósito do valor probatório das declarações de parte observa: “[a] apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”[8]. O valor probatório das declarações de parte, avaliado livremente pelo tribunal, estará sempre dependente do confronto com os demais elementos de prova. No caso concreto, o autor-declarante no essencial veio reproduzir a versão dos factos que apresentou na petição, referindo que celebrou o contrato de compra e venda a retro para garantir o empréstimo que contraiu junto dos réus, para pagar uma divida às Finanças. Porém, também resulta das declarações prestadas, que sabia que estava a celebrar um contrato de compra e venda e que tinha o prazo de cinco anos para pagar a divida. É certo que num primeiro momento das suas declarações afirmou que: “não sabia o que estava a assinar, nem se recorda do que disse o Notário”. Contudo, nos esclarecimentos prestados sobre tal matéria vem a admitir que tomou perfeito conhecimento do que o Notário referiu e que tinha o prazo de cinco anos para pagar a divida, sob pena da casa ficar para o réu. De igual forma, resulta das declarações prestadas, que em 2012 o autor não estava doente, o estado de doença que determinou o seu internamento no hospital apenas se veio a verificar em 2017, o que é comprovado com os registos clínicos juntos aos autos (cfr. documentos inseridos a páginas 190 do processo eletrónico). Quanto às circunstâncias que motivaram a celebração da escritura pública, relacionadas com o empréstimo do dinheiro, a confissão do réu em depoimento de parte, de acordo com a assentada, constitui prova plena de tais factos, confirmando, nesta parte, a versão do autor. Com efeito, o depoimento de parte é a declaração solene prestada sob compromisso de honra por qualquer das partes sobre os factos da causa – art. 452º CPC. O depoimento de parte não se confunde com a confissão e como refere o Professor ANTUNES VARELA: “constitui uma das vias processuais através das quais se pode obter a confissão”[9]. LEBRE DE FREITAS refere, aliás, que “o depoimento de parte constitui um meio de provocar a confissão”[10]. O depoimento de parte pode levar o juiz à convicção da realidade de um facto desfavorável ao depoente, mas sem que a declaração por ele prestada tenha revestido a forma de uma declaração confessória. A confissão, conforme resulta da definição contida no art. 352º CC, consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. Como refere LEBRE DE FREITAS, a confissão consiste no reconhecimento “de um facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse”[11]. O valor probatório atribuído à confissão, assenta na regra de experiência segundo a qual ninguém mente contrariamente ao seu interesse[12]. A declaração de ciência constitui presunção da realidade do facto (desfavorável ao confitente) ou, ao invés, da inocorrência do facto (favorável ao confitente) que dela é objeto[13]. A força probatória da confissão judicial (única que para o caso nos interessa) depende da forma que ela revista. Determina o art. 358º/1 CC que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente. Não sendo reduzida a escrito, a confissão feita no depoimento de parte ficará sujeita à regra da livre apreciação da prova pelo tribunal, conforme determina o art. 358º/4 CC. Podemos, assim, concluir que o depoimento de parte tem diferente valor probatório consoante estamos perante uma confissão ou apenas perante a afirmação de factos desfavoráveis ao depoente. Daqui resulta que o depoimento de parte quando não obedece aos requisitos exigidos para que tenha eficácia probatória plena, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis pode constituir meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (art. 361º CC). As declarações do depoente podem ainda ser objeto de livre valoração pelo tribunal quando falte algum dos pressupostos do art. 353º CC, quando a confissão não seja escrita ou reduzida a escrito e quando falte o requisito da direção à parte contrária (art. 358º/ nº3 e 4 CC) e também, quando a confissão conste duma declaração complexa, nos termos do art. 360º CC, e a parte contrária não se queira dela prevalecer como meio de prova plena. Nestas circunstâncias as declarações prestadas pelo depoente com valor de prova livre constituem um ato distinto do da confissão com valor de prova plena, que tem requisitos de forma e pressupostos, necessários à sua validade, mais amplos do que os daquela. A sua eficácia probatória exige que o juiz a confronte com todos os outros elementos de prova produzidos sobre o facto confessado para que tire a sua conclusão sobre se este se verificou ou não[14]. No caso presente, o depoimento prestado pelo réu e consignado na assentada reveste a natureza de confissão judicial e como tal tem força probatória plena, justificando a prova dos factos indicados sob os pontos 3 e 5. O restante depoimento do réu e da ré (apesar de não ter intervenção na celebração da escritura pública de compra e venda a retro), na medida em que não consta consignado na assentada, apenas pode ser livremente apreciado pelo tribunal no confronto da restante prova e na medida em que constituam declarações desfavoráveis à sua pretensão. Quanto a este aspeto, os depoimentos relevam para a prova da matéria do ponto 6 e 7 dos factos provados, porque tal como referido pelo autor e admitido pelos réus, a celebração da escritura pública de compra e venda, com a cláusula a retro, visava garantir o cumprimento do empréstimo concedido, dando a possibilidade de no termo do prazo ali previsto (cinco anos) e paga a divida, o autor reaver o imóvel. Cumpre salientar que autor e réus revelarem ter conhecimento que no termo do prazo estabelecido na escritura pública o imóvel ficaria a pertencer ao réu, por efeito da compra e venda a retro, caso o autor não procedesse ao pagamento da divida, “pode tomar conta dela pagando o preço”, como referiu o réu. Não seria necessário outro ato para formalizar a transferência de propriedade, o que leva a eliminar no ponto 7 a expressão “apenas”. Passando à reapreciação dos factos julgados não provados. Quanto à alínea C) dos factos julgados não provados. Nenhuma prova foi produzida sobre tal matéria. Apenas o autor e os réus foram confrontados com a questão de saber a que título o autor permaneceu a residir no imóvel, sem que qualquer das partes se tenha pronunciado sobre a formalização de um qualquer acordo para autorizar o autor a residir em tal imóvel. Não merece censura a decisão que julgou não provada tal matéria. Em relação aos factos julgados não provados, sob as alíneas A) e D), não assiste legitimidade ao apelante para se insurgir contra a decisão, pois estão em causa factos alegados pelo autor e que se julgaram não provados. Como manifestação do princípio geral contido no art.631º/1CPC, apenas assiste legitimidade para impugnar a decisão de facto se a parte ficar vencida na sua pretensão. Os factos impugnados sustentavam a pretensão do autor de ver anulado o contrato, com fundamento em vício na formação da vontade, o que não se veio a reconhecer e por isso, quanto a tal segmento da sentença os apelantes não ficaram vencidos e por isso, não têm legitimidade para impugnar a decisão. Mas, ainda que assim não se entenda, é de considerar que contêm matéria conclusiva, para além de não expressarem a versão que o autor apresentou na petição. Na petição os Autores alegaram: - Art. 4º. “Sucede que a declaração negocial de venda constante da dita escritura pública não teve qualquer correspondência com a real vontade do A. e só foi produzida / emitida por erro que influenciou decisivamente a sua vontade e a emissão daquela declaração”. - Art. 5º. “Com efeito, nunca foi propósito do A. vender o prédio aos RR., ainda que com a faculdade de resolver o negócio no prazo referido”. Julgaram-se não provados as alíneas A) e D), com a seguinte redação: A) Aquando da celebração do acordo referido em 1) o autor tinha o propósito de vender o prédio aos RR., ainda que com a faculdade de resolver o negócio no prazo referido. D) Que o autor tenha tido uma vontade real em vender o imóvel referido em 1) nos moldes aí exarados e conforme à vontade declarada na aludida escritura. A sentença julgou improcedentes os fundamentos da ação, quanto ao pedido de anulação da escritura pública com fundamento em vícios na formação da vontade (art. 247º e 251 CC). Este segmento da sentença não foi impugnado pelo autor. Por outro lado, a matéria dos art. 4º e 5º da petição que foi vertida (ainda que sem refletir a redação original) nas alíneas A) e D) dos factos julgados não provados, reveste natureza conclusiva, porque a efetiva vontade ou o vício que a inquina deve ser apreciado a partir de concretos factos que revelem esse vício e não de uma abordagem conclusiva da matéria. O art. 607º/4 CPC dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o art. 646º/4 CPC, previa, ainda, que têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes. Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito. Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão. Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (art. 607º/3) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (art. 607º/4). Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”[15]. ANTUNES VARELA considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “ás respostas do colectivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito[16]. Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos. No caso concreto, porque as alíneas A) e D), como se disse, contêm juízos de valor, exprimindo as relações de compatibilidade entre os factos a apreciar sobre o concreto vício na formação da vontade, revestem natureza conclusiva e como tal, não podem ser considerados, por não constituírem factos. Mas mesmo que assim não se entendesse, a ausência de prova de tal matéria - sublinhe-se art. 4º e 5º da petição - acabaria por conduzir à mesma solução, no sentido de julgar não provada tal matéria. As declarações de parte do autor sobre tais factos não merecem relevo, porque não foram confirmadas por qualquer outra prova, sendo certo que o próprio autor acaba por dar uma diferente versão de tais factos. Os depoentes não confessaram tais factos, pois nada se fez constar na assentada com tal sentido. Também não admitiram os mesmos, porque apesar de afirmarem não ser seu propósito inicial comprar, apresentam sempre uma justificação em conformidade com a sua pretensão, para a celebração do contrato de compra e venda, reafirmando com segurança que sabiam, tal como o autor, estar a comprar o imóvel, concedendo o prazo de cinco anos para o autor pagar a divida, o que está conforme com os fins do próprio contrato. Refira-se, por fim, que a prova testemunhal em nada releva para este efeito, porque não demonstraram ter conhecimento dos factos. Refira-se, ainda, que admitindo a possibilidade de enquadramento de tais factos na figura da simulação, nunca tal prova seria admissível, face aos limites de prova previstos no art. 394º /1/2 CC, quando é certo que não foi apresentado um qualquer documento que sirva como princípio de prova. Neste contexto, por conter matéria conclusiva não se responde aos art. 4º e 5º da petição e eliminam-se as alíneas A) e D) dos factos julgados não provados. - Em conclusão procede, em parte, a reapreciação da decisão de facto e nessa conformidade elimina-se as alíneas A) e D) dos factos julgados não provados e a expressão “apenas” no ponto 7 dos factos julgados provados.Procedem, em parte, as conclusões de recurso sob os pontos IV a XVII. - Na apreciação das restantes questões cumpre ter presente os seguintes factos provados e não provados, com as alterações introduzidas por efeito da reapreciação da decisão (em itálico):1. No dia 20 de novembro de 2012 no cartório notarial sito na Rua ... em Marco de Canavezes e perante o Notário DD o autor AA, na qualidade de primeiro outorgante e o reu BB na qualidade de segundo outorgante celebraram um contrato intitulado “Venda a Retro” nos termos do qual declarou o primeiro outorgante que é dono de um prédio urbano composto de casa de rés do chão cave e anexo sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Baião descrito na Conservatória do Registo de Baião sob o numero quatrocentos e setenta e nove da freguesia ... e ai registado a seu favor pela Ap ... de 16/08/2011 (…) que pelo preço de 5.000,00€ (cinco mil euros) valor que já recebeu e do que dá quitação vende ao segundo outorgante o prédio urbano atra identificado Que esta venda é feita com a condição de ele vendedor poder recobrar o bem transmitido mediante a restituição do preço recebido desde que resolva este contrato no prazo de cinco anos a contar de hoje, vinte de novembro de dois mil e onze Declarou o segundo outorgante que aceita a venda nos termos exarados e que destina exclusivamente a habitação o imóvel adquirido. – cfr escritura publica junta aos autos como Documento n.º 1 com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 2. Munidos do título, os RR. registaram a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio, como consequência da apresentação nº ..., de 20/11/2012 (cfr Documento n.º 3 junto com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 3. Por altura da celebração da escritura, os RR. emprestaram verbalmente ao A. uma quantia muito próxima de € 5.000,00, por forma a que ele pudesse pagar dívidas fiscais vencidas junto do Serviço de Finanças de Baião. 4. Foi o R. quem pagou diretamente tais dívidas. 5. Nos termos do então acordado, o A. obrigou-se a restituir-lhes a quantia mutuada no prazo de 5 anos, sem juros. 6. Com o documento descrito em 1) visaram os RR. munir-se de um instrumento documental que lhes garantisse o recebimento da quantia que emprestaram ao A e referida em 3)[17]. 7. O autor assinou o contrato referido em 1) convencido de que se tratava de um documento que visava conceder aos RR. uma garantia de recebimento. 8. O imóvel referido em 1) tinha sido adquirido pelo autor a 24 de agosto de 2012 pelo preço de € 20.000,00 (cfr documento n.º doc. 4 junto com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais). 9. O autor esteve internado com tuberculose e infetado com HIV em 2017. 10. O autor continuou, como continua a habitar o prédio. - Da contestação11. O Autor foi notificado, via carta, pelo Réu, aqui representado por EE, no passado dia 3 de Março de 2022 sendo-lhe exigido a restituição do imóvel. - - Factos não provadosA) Eliminado. B) Que haja sido pelas doenças referidas em 9) que se verificou a condição referida em 7). C) Que paralelamente ao contrato de compra e venda a retro, foi celebrado, verbalmente, um contrato de comodato entre o Réu, aqui representado por EE e o Autor, sendo que a este último foi cedido o dito imóvel. D) Eliminado. - - Do contrato de compra e venda a retro -Nas conclusões de recurso, sob os pontos XXIII a XXIX, insurgem-se os apelantes contra o enquadramento jurídico dos factos tal como consta da sentença recorrida, defendendo a válida celebração de um contrato de compra e venda a retro e como consequência a procedência do pedido principal formulado em sede de reconvenção. Cumpre situar a questão no contexto dos autos. O autor veio peticionar a anulação do contrato de compra e venda a retro, com fundamento no art. 247º e 251º CC. Tal pretensão foi julgada improcedente. Em reconvenção, os réus formularam o seguinte pedido: a) Ser judicialmente declarada a válida e eficaz a comunicação de restituição do bem imóvel. b) Ser condenado o Réu a restituir o mencionado imóvel, com efeitos imediatos. c) Ser o Réu condenado no pagamento de custas e demais encargos legais. Ou, alternativamente: d) Caso considere a Petição Inicial julgada procedente por provada que condene o Autor no pagamento do valor do imóvel, 5.000€ (cinco mil euros) e respetivos juros de mora, à taxa legal, até ao presente dia. Na sentença proferiu-se a seguinte decisão: “Pelo exposto, decido julgar parcialmente procedente o pedido formulado pelo Autor, e em consequência: a) - declaro a nulidade do contrato celebrado entre autor e réus a 20 de novembro de 2012 designado de “venda a retro”, pelo qual aquele declarou vender a estes, que declararam comprar-lhe, o prédio urbano da extinta freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o artigo ..., atualmente inscrito na matriz da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião ...; b) Ordeno o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade que sobre o referido prédio se encontra em vigor a favor dos RR., em consequência da apresentação ..., de 20/11/2012 e, c) e em consequência, ao abrigo do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, condeno a autor a restituir aos réus a prestação pecuniária que deles recebeu em cumprimento do contrato celebrado entre as partes no valor de 5.000,00€ e respetivos juros de mora, à taxa legal, até ao presente dia. d) Julgo improcedente o demais pedido reconvencional. Custas pelo A e Réus de acordo com o respetivo decaimento”. Na sentença ponderando os factos provados considerou-se que os mesmos configuravam a celebração entre as partes de um “contrato de alienação fiduciária em garantia”, nulo por violação do princípio insíto no art. 694º CC. O tribunal julga factos e não está vinculado ao enquadramento jurídico apresentado pelas partes, como determina o art. 5º/3 CPC. Não merece censura, por isso, que o tribunal tenha apreciado da validade do contrato celebrado entre as partes, com um enquadramento distinto daquele que foi apresentado pelo autor. Contudo, apenas pode decidir considerando os factos alegados pelas partes e provados, nos termos do art. 607º CPC. No caso presente o enquadramento jurídico, não tem suporte nos factos provados, porque a figura criada pela doutrina e que configura um contrato atípico - “contrato de alienação fiduciária em garantia” - pressupõe a transmissão de um bem como garantia de um empréstimo e a obrigação paralela de revenda, logo que o empréstimo se mostre satisfeito, obrigação esta que vincula o comprador/credor. Não resulta dos factos alegados, nem dos factos provados, que o réu, na qualidade de credor, assumiu tal obrigação. Pelo contrário, resulta dos termos do contrato de compra e venda a retro celebrado, que apenas foi concedido ao autor/devedor o direito potestativo de retomar a propriedade do imóvel no prazo de cinco anos. Não existe para o credor qualquer obrigação de celebrar novo contrato com o devedor. Pelo contrário e estando em causa imóveis, o devedor é titular de um direito de resolução que uma vez exercido, nos termos do art. 932º CC, afeta mesmo os direitos adquiridos por terceiro (ao contrário do regime geral – art. 435º/1 CC). Esta distinção tem sido salientada por diversos autores, podendo citar-se MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS Direito das Garantias, 2ª edição, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2017, pag. 474-477 e PEDRO ROMANO MARTINEZ, PEDRO FUZETA DA PONTE, Garantias de Cumprimento, 5º edição, Almedina, Coimbra, 2006, pag. 247. A jurisprudência sublinha de igual forma a distinção entre as duas figuras jurídicas, entre outros, no Ac. STJ 16 de março de 2011, Proc. 279/2002.E1.S1, Ac. STJ 28 de junho de 2017, Proc. 1626/12.5TBMT.J.L1.S1, Ac. STJ 09 de julho de 2020, Proc. 1128/17.3T8PVZ.P1.S1 e Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 2013, Proc. 4867/06.0TBVLG.P1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt). Por outro lado, na sentença, considerou inválido o alegado “contrato de alienação fiduciária em garantia”, por aplicação do regime do art. 694º CC, em função do fim que tal norma visa tutelar. Considerou-se que através da compra e venda de imóvel, as partes terão atuado em fraude à lei, contornando, no caso, a proibição do pacto comissório que o art. 694º CC estabelece imperativamente em sede de direitos reais de garantia. Contudo, a jurisprudência tem defendido que ao abrigo do princípio da liberdade contratual, apesar de não tipificado, não se pode considerar inválido um contrato de alienação em garantia, sendo certo que não é no regime contido no art. 694º CC que se deve procurar a tutela dos interesses do devedor quando se questiona a validade de tal negócio. Pela sua relevância na análise desta problemática e fundamentação jurídica apresentada, não podemos deixar de citar o Ac. STJ 16 de março de 2011, Proc. 279/2002.E1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), onde se observou: “Sem embargo das semelhanças que se possam descortinar entre a típica funcionalidade de um verdadeiro pacto comissório – facultando ao titular de um direito real de garantia a apropriação dos bens por ela onerados, em caso de incumprimento – e a venda tendo como função indireta a garantia de um crédito, consubstanciada no «pactum fiduciae» acordado entre vendedor e comprador (frequentemente dissimulado, encoberto ou oculto pelos contraentes, não constando ou transparecendo minimamente do contrato formal de alienação que celebraram), importa acentuar a radical e estrutural diversidade de situações jurídicas subjacentes a cada uma de tais hipóteses. São, na realidade, vias jurídicas estruturalmente diferenciadas a que, por um lado, se traduz em onerar um bem do devedor (ou de terceiro), vinculando-o à garantia de um crédito mediante constituição de um direito real e garantia, e estipulando-se que – se ocorrer incumprimento da obrigação e só nesse preciso momento – poderá o titular do direito real de garantia apropriar-se do bem hipotecado, «convertendo» a garantia real em direito de propriedade ; e a que, por outro lado, se traduz em proceder-se à imediata alienação de certo bem ao credor - produzindo, naturalmente, tal negócio de venda efeitos reais imediatos, transferindo sem mais a propriedade do bem para a esfera jurídica do comprador – estando, porém, subjacente a tal alienação um pacto «fiduciário» celebrado entre os contraentes, do qual resulta a vinculação do credor/comprador às obrigações de conservação do bem transmitido e de posterior revenda ou retransmissão em benefício do anterior proprietário, logo que o fim de garantia do crédito se mostre exaurido. Esta diversidade estrutural das situações jurídicas em confronto – hipoteca com pacto omissório e venda em garantia, tendo subjacente o «pactum fiduciae» entre os contraentes - impede, desde logo, que se possa pretender «converter» ou convolar livremente de uma situação para a outra; como se afirma no Ac. de 19/9/06, proferido pelo STJ no P. 06A2092:” O nº 1 do art. 238º citado prescreve que tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. Daqui resulta que nunca poderia ser interpretada a declaração negocial de compra e venda como de hipoteca, pois estando esta sujeita a forma especial - escritura pública, nos termos do art. 80º, nº 2 al. g) do Cód. do Notariado – nenhuma correspondência havia no texto que, mesmo que imperfeitamente, correspondesse à pretendida vontade real. A natureza jurídica de ambos os institutos jurídicos é de tal modo diversa que nunca uma compra e venda poderia traduzir, sem mais, a vontade de dar de hipoteca, pois a declaração bilateral de compra e venda não contém o mínimo de correspondência com uma declaração unilateral de dar de hipoteca. Consideramos, aliás, que a radical e estrutural diversidade entre a constituição de direitos reais de garantia (ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissório) e a alienação ou venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à direta subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - claramente ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso – e no momento - em que o devedor não cumprisse a obrigação garantida. O que, deste modo, está verdadeiramente em causa é saber se se justificará a efetivação de uma verdadeira operação de «extensão teleológica» da proibição contida no citado art. 694º, de modo a nela incluir situações que, sendo embora, de um ponto de vista jurídico, estruturalmente diferenciadas da hipótese ali prevista, têm com ela alguma conexão funcional relevante: e a admissibilidade de realização de uma tal extensão teleológica da norma proibitiva dependerá naturalmente do balanceamento ou ponderação de todos os interesses envolvidos, tendo particularmente em conta os reflexos que a tese da nulidade da venda ou alienação fiduciária de imóveis – estabelecida com o fito essencial de proteção dos interesses do devedor/vendedor - poderá envolver no plano da tutela do princípio fundamental da confiança e da segurança do comércio jurídico. Na verdade, não pode olvidar-se que, enquanto a proscrição do pacto comissório, confinada ao estrito âmbito das garantias reais, não tem reflexos negativos relevantes na segurança do comércio jurídico e na legítima confiança dos subadquirentes do bem imóvel indevidamente apropriado pelo credor, a sua extensão à venda fiduciária é suscetível de implicar lesão relevante desse princípio fundamental do ordenamento jurídico, ao conduzir à aplicação do típico regime da nulidade a uma venda de imóveis, aparentemente consolidada e definitiva (se atendermos ao teor da escritura pública e ao consequente registo predial), facultando aos outorgantes a invocação entre eles e a consequente oponibilidade a terceiros de boa fé do «pactum fiduciae», muitas vezes oculto e dissimulado relativamente às cláusulas contratuais do negócio formal de alienação ( como, aliás, o caso dos autos bem ilustra e documenta). Assim, no caso de constituição de hipoteca, acompanhada da ilegal estipulação de pacto comissório, ainda que o credor consiga, em termos fácticos, apropriar-se do bem onerado no momento em que ocorrer o incumprimento da obrigação garantida, não logrará naturalmente registar a aquisição do direito de propriedade que lhe resultaria da cláusula ou convenção nula – sendo evidente que os serviços de registo predial rejeitarão seguramente inscrever uma pretensa aquisição do direito de propriedade pelo credor que tivesse como título jurídico uma convenção que a lei categoricamente fulmina com o valor negativo da nulidade: e daqui decorre que o credor hipotecário que, prevalecendo-se do ilegal pacto comissório convencionado, tenha logrado - em termos puramente práticos ou fácticos - apropriar-se do bem hipotecado , não conseguirá normalmente inscrever tal aquisição no registo predial, ficando por isso inibido de se apresentar no comércio jurídico como aparente titular de um direito de propriedade sobre tal bem, em termos de poder frustrar a confiança de terceiros subadquirentes no teor daquele registo. Como é evidente, a situação é radicalmente distinta no caso da venda fiduciária em garantia, já que: - o credor/comprador adquire imediatamente a propriedade do bem, através do ato de alienação, documentado por escritura pública e obviamente suscetível de imediata inscrição no registo predial, podendo passar a apresentar-se no comércio jurídico como legítimo proprietário do prédio; - ulteriormente – se e quando não for cumprida a obrigação que se pretendia indiretamente garantir através da venda fiduciária realizada – é lícito ao interessado invocar o «pactum fiduciae», informalmente acordado com o credor, opondo-o , não apenas à contraparte, mas - pela via do art. 291º do CC - a eventuais subadquirentes de boa fé dos bens, entretanto transmitidos pelo credor/comprador a terceiros, em violação das obrigações pessoais de conservação e revenda do imóvel que lhe resultavam do pacto fiduciário; - tal invocação e oponibilidade é possível mesmo nos casos – como o dos autos – em que o «pactum fiduciae» foi oculto, encoberto ou dissimulado pelos contraentes, não deixando qualquer rasto ou indício nos instrumentos que titulavam a alienação realizada - sendo, pois, absolutamente impossível que terceiros dele se pudessem ter apercebido. Cumpre apurar se tais relevantes limitações ou restrições ao princípio fundamental da confiança e segurança no comércio jurídico, decorrentes da extensão teleológica da proscrição do pacto comissório à venda fidiciária em garantia, são necessárias, proporcionais e adequadas, face aos interesses contrapostos – desde logo, o interesse do devedor/ vendedor ( sujeito ao risco de significativa desproporção entre o valor do débito indiretamente garantido pelo ato de alienação e o valor real dos bens transmitidos) e o interesse de terceiros subadquirentes do prédio, sujeitos, através da via da nulidade do ato de alienação, à invocação e oponibilidade de um verdadeiro «ónus oculto», suscetível de destruir a consistência jurídica dos direitos que fundadamente supunham ter adquirido. Deve, desde logo, notar-se que a alienação fiduciária tem uma margem incontornável e aleatoriedade , repousando decisivamente numa relação de confiança pessoal entre os outorgantes do «pactum fiduciae» – e devendo tal álea ou risco inelutável – decorrente da eventualidade de as obrigações de conservação e revenda dos bens transmitidos poderem não ser cumpridas - ser prioritariamente assumida no plano das «relações internas» entre os contraentes, em vez de, em primeira linha, recaírem os custos da possível infidelidade do fiduciário sobre terceiros de boa fé : na verdade, ao aceitar uma estipulação puramente informal do pacto fiduciário, o devedor ( no caso dos autos, um advogado, agindo profissionalmente no comércio imobiliário) tem necessariamente a noção da fragilidade da tutela do seu interesse na reaquisição do bem vendido e do risco que inelutavelmente irá correr, ao transmitir – em termos reais – a propriedade do imóvel, em troca de uma vinculação, puramente obrigacional e pessoal, de revenda ou retransmissão por parte do comprador. E tal risco podia ter sido eliminado ou minimizado, optando as partes pela celebração de uma venda «a retro», estipulando, para tal, em termos formalmente válidos, a cláusula resolutiva e procedendo ao respetivo registo, de modo a conciliar plenamente a tutela do seu interesse em readquirir efetivamente a propriedade do bem vendido com a garantia da confiança de terceiros, nos termos do art. 932º do CC. Não parece, por outro lado, que a não aplicação do regime de nulidade à venda fiduciária, sempre que se não mostre adequadamente assegurado o direito à restituição da diferença entre o valor do imóvel alienado e o montante das obrigações indiretamente garantidas, conduza a uma absoluta desproteção dos interesses do devedor/vendedor – dispondo este, ainda assim, de meios de tutela jurídica que, ao menos nos casos de maior gravidade, poderão ainda satisfazer minimamente os seus interesses. Assim, e em primeiro lugar, poderá dispor o vendedor/devedor da via da efetivação da responsabilidade civil obrigacional, decorrente do incumprimento das obrigações «pessoais» de conservação e retransmissão do imóvel alienado em garantia, assumidas no seu confronto pelo adquirente do bem, através do pacto fiduciário acordado: ao contrário do que ocorreria se tal pacto - ou a própria venda fiduciária - fossem fulminadas com o vício da nulidade – em que assistiria ao vendedor o direito a ser ressarcido pelo «dano negativo» decorrente da invalidação do negócio, - a subsistência jurídica e o incumprimento de tais obrigações de conservação e revenda dos bens transmitidos fiduciariamente poderá implicar, nos termos gerais, o surgimento na esfera jurídica do comprador de um dever de ressarcir o vendedor pelos danos decorrentes do incumprimento de tais obrigações, nomeadamente quando tenha entretanto alienado os bens transmitidos a terceiros, colocando-se em situação de impossibilidade de cumprimento da obrigação de revenda. Por outro lado – e pelo menos nas situações de mais gravosa desproporção entre o valor da dívida indiretamente garantida e o «preço» por que os bens foram alienados «fiduciariamente» - não excluímos que a situação possa ser enquadrada normativamente no âmbito da disciplina dos negócios usurários, contemplada no art. 282º do CC – por essa via se obtendo a anulação da venda realizada: porém, e como é evidente, para poder beneficiar deste particular regime jurídico, será indispensável que o A. alegue factos que preencham a «fattispecie» ali prevista, não podendo limitar-se a invocar a natureza fiduciária da venda e a sustentar a aplicabilidade do regime de proibição do pacto comissório, fora do âmbito dos direitos reais de garantia”. Neste sentido se pronunciou, ainda, o Ac. STJ 28 de junho de 2017, Proc. 1626/12.5TBMT.J.L1.S1, Ac. STJ 09 de julho de 2020, Proc. 1128/17.3T8PVZ.P1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. Resta-nos, pois, apreciar da efetiva validade do contrato efetivamente celebrado “Contrato de compra e venda a retro”. No direito das obrigações vigora o princípio da liberdade contratual, consignada no artigo 405º, nº1 do C.C., no qual se predispõe que “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código, ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.” O contrato de compra e venda a retro inclui-se no conjunto de contratos tipificados previstos no Código Civil, estabelecendo o art. 927º do C.C.: “Diz-se retro a venda em que se reconhece ao vendedor a faculdade de resolver o contrato”. Como refere PESTANA DE VASCONCELOS: “o elemento distintivo desta modalidade de venda consiste na atribuição ao vendedor do direito de discricionariamente, dentro do condicionalismo fixado pela lei, por negócio unilateral, extinguir o contrato, resolvendo-o, e, em consequência, readquirir a propriedade da coisa[…]vendida nestes termos”[18]. Não é necessário a celebração de um novo contrato para que se opere a retransmissão do direito, sendo suficiente o exercício por parte do vendedor nos prazos fixados do direito potestativo extintivo de resolução. Este tipo contratual foi abolido pelo código de 1867 (art. 1587º), por se ter entendido que a “venda a retro” encobria, na generalidade dos casos um contrato de usura ou em muitos casos equivaleria a um empréstimo pignoratício ou hipotecário com pacto comissório[19]. Em anotação ao art. 927ºCC, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, citando GALVÃO TELLES, referem que “[…]o mal que se vê na venda a retro é de ela poder servir desígnios de usura”. E prosseguem, dizendo que “[d]iz-se que em muitos casos equivalerá praticamente a um empréstimo pignoratício ou hipotecário, com pacto comissório, em que o preço funcionará como capital mutuado. A coisa vendida como objeto de garantia e a transmissão da propriedade como cláusula comissória, que, em caso de não restituição do capital, pelo resgate, permitirá ao mutuante (comprador) reter como seu objeto, sem avaliação”. O Código Civil de 1966 voltou a integrar este tipo contratual, por se considerar, não obstante os perigos que poderia acarretar, que constituía uma forma viável de resolver alguns problemas, entre os quais o recurso ao crédito[20]. Como forma de obstar à celebração de negócios usurários impediu-se que o comprador receba qualquer contrapartida da resolução, nos termos do art. 928º CC[21]. Como se refere no Ac. STJ 19 de setembro de 2006, Proc. 06A2092 (acessível em www.dgsi.pt): “[…]com a finalidade de moralizar a utilização destes institutos – tentando evitar situações de usura – existe o disposto no art. 928º do Cód. Civil”. Contudo, defende PESTANA DE VASCONCELOS que nas situações em que o contrato assume a função de crédito e garantia “em que a coisa é vendida por um preço inferior ao seu valor de mercado, na eventualidade de o vendedor não conseguir reunir, dentro do prazo do art. 929º, a quantia necessária para resolver o contrato, pagando o preço ao comprador, a propriedade da coisa firma-se definitivamente no património deste. Ora desta forma, atinge-se mesmo o resultado que a proibição do pacto comissório quer afastar. Isto apesar de ter respeitado o art. 928º”[22]. Porém, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA citando, mais uma vez, GALVÃO TELLES referem: “[a] venda “a retro” pode servir interesses sérios e legítimos, como o daquele que, precisando de dinheiro, não queira todavia recorrer ao crédito, para não sentir o peso dos encargos e não queira também despojar-se definitivamente dos bens, conservando a esperança e o direito de os recuperar”[23]. Em tese geral, a venda a retro pode funcionar como forma de financiamento do vendedor. Isso mesmo refere PEDRO ROMANO MARTINEZ quando observa: “[e]ste tipo contratual serve, amiúde, para financiar o vendedor, o qual, sem recorrer a outros meios, designadamente ao crédito hipotecário e sem perder a possibilidade de reaver a titularidade do bem, pode obter o dinheiro de que carece”[24]. Também PESTANA DE VASCONCELOS destaca entre as funções desta modalidade de venda, a de crédito e garantia, “o que permite que este negócio típico possa ser um negócio de crédito e garantia”. Sublinha: “[c]remos mesmo que é esta a sua principal aplicação prática”. Acrescenta que “o recurso a um contrato desta natureza será mesmo preferível, do prisma de quem empresta dinheiro, ao recurso à celebração de um contrato de mútuo com uma garantia real”[25]. FERREIRA DE ALMEIDA afirma tratar-se de “um contrato de financiamento, porque satisfaz necessidades financeiras de uma das partes, Mas nem por isso deixa de ser funcionalmente um contrato de troca, um subtipo do contrato de compra e venda, tipo contratual que sempre serve para financiar o vendedor”. E sublinha: “[n]ão tem a natureza de contrato de mútuo, porque a parte financiada não se obriga a restituir a quantia recebida. Não se qualifica como contrato de garantia, porque o contrato não tem como função global garantir o cumprimento de uma obrigação ou suprir uma frustração eventual”[26]. No caso concreto, resulta provado que entre o autor e réu foi celebrado, por escritura pública, em 20 de novembro de 2012 um contrato de compra e venda a retro através do qual o autor vendeu ao réu um imóvel pelo preço de € 5.000,00 (ponto 1 dos factos provados). Neste contrato ficou convencionado: “Que esta venda é feita com a condição de ele vendedor poder recobrar o bem transmitido mediante a restituição do preço recebido desde que resolva este contrato no prazo de cinco anos a contar de hoje, vinte de novembro de dois mil e doze. Declarou o segundo outorgante que aceita a venda nos termos exarados e que destina exclusivamente a habitação o imóvel adquirido”. O contrato celebrado destinava-se a financiar o autor, para proceder ao pagamento de dívidas ao fisco (pontos 3, 4, 5, 6 dos factos provados). O réu procedeu ao registo de aquisição logo após a celebração do contrato - ponto 2 dos factos provados – ato revelador da efetiva transmissão da propriedade. Resulta dos termos do contrato de compra e venda celebrado, que foi concedido ao autor/devedor o direito potestativo de retomar a propriedade do imóvel no prazo de cinco anos. Ficava na disponibilidade do autor exercer, ou não, tal direito. O fim que as partes pretendiam alcançar com a celebração do contrato está compreendido nas funções do contrato, que pode funcionar como forma de financiamento, mostrando-se sérios e legítimos os interesses tendo em vista a sua celebração. Face ao que resulta provado, sob os pontos 6 e 7, não se mostra inequívoco que através do contrato se procurava apenas atingir um fim de garantia. Contudo, mesmo com tal escopo, refere FERREIRA DE ALMEIDA que “a propriedade da coisa vendida funciona como garantia, na medida em que o financiamento tem como contrapartida a transmissão da propriedade sobre essa coisa”[27]. Não se apurou que pelo exercício do direito de resolução o autor tivesse que suportar encargos adicionais e por esse motivo ficasse impedido de proceder à resolução do contrato, o que a ocorrer determinaria a nulidade de tais cláusulas, nos termos do art. 928º CC. Também não se provou, qualquer outra circunstância suscetível de configurar a celebração de um negócio usurário, nos termos do art. 282º/1 CC. Resta apreciar se mesmo assim, o contrato foi celebrado para contornar proibições legais, como seja, a proibição do pacto comissório e com fraude à lei (art. 280º, 281º CC). O art. 694º do Cód. Civil prescreve que é nula, mesmo que anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir. No caso dos autos, não foi considerada ter sido constituída qualquer hipoteca, mas um contrato de compra e venda a retro que é legalmente admitida, como já acima referimos. O facto de existir uma diferença entre o valor pelo qual o autor comprou o prédio cerca de um ano antes e depois veio a vender ao réu, não configura a celebração de um pacto comissório. Neste ponto apenas se apurou que o preço pelo qual o autor vendeu o imóvel ao réu corresponde ao montante do mútuo e que no ano anterior ao da celebração do contrato de compra e venda a retro, o autor adquiriu o imóvel pelo preço de € 20.000,00 (pontos 1, 3 e 8 dos factos provados). Contudo, não se provou que seja este o valor de mercado do imóvel. Refira-se, aliás, que o autor não alegou ser este - € 20.000,00 - o real valor de mercado do imóvel, nem indicou qualquer outro e desconhecendo-se as circunstâncias em que foi celebrado o contrato de compra e venda pelo autor, o preço declarado e pago em agosto de 2011, pelo autor, não indicia qualquer fraude. Cumpre ter presente que o autor dispunha do prazo de cinco anos para exercer o direito à resolução e seria expetável que o fizesse. Tal circunstância é suscetível de gerar depreciação do preço, atento o caráter temporário da propriedade. Por outro lado, não se provou que o montante da divida ao fisco correspondia a 5.000,00 (cfr. ponto 3 dos factos provados). Acresce que o autor permaneceu a residir no imóvel. Estes aspetos seguramente que pesaram no preço convencionado. Não resulta demonstrado, atento os factos provados, que o preço pelo qual foi celebrado o contrato de compra e venda a retro é inferior ao valor real do imóvel. Conclui-se, ponderando os factos apurados, que entre autor e réu foi validamente celebrado um contrato de compra e venda a retro e que o autor não procedeu à resolução do contrato no prazo de cinco anos a contar da data da sua celebração, nem restituiu ao réu o valor do mútuo/preço, consolidando-se definitivamente a propriedade na esfera jurídica do réu. Com efeito, com a compra e venda celebrada, transmitiu-se para o adquirente o direito de propriedade sobre a coisa, nos termos do disposto no art. 879º alínea a) do Código Civil, encontrando-se por sua vez o vendedor obrigado a entregar a coisa (alínea b) da mesma norma), o que se provou não ter ocorrido, isto é não houve entrega material do imóvel. Tal não significa que não tenham ocorrido, por força do contrato os efeitos da compra e venda estabelecidos no art. 879º do C.C. e que a posse não tenha sido transmitida. Dispõe o art. 1264º do C.C.: “Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir este direito a outrem, não deixa de considerar-se transmitida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.” “O constituto possessório é assim uma forma de aquisição da posse, solu consensu, isto é uma aquisição sem necessidade de um ato material ou simbólico que a revele. Consiste tradicionalmente num acordo, pelo qual o possuidor, alienada a posse, reserva, por qualquer título, a detenção da coisa e se dispensa, assim, de a entregar ao novo possuidor. O alienante que tinha em relação á coisa uma causa possessionis, passa a deter a coisa em virtude duma causa detentionis”[28]. No caso concreto, não se provou que as partes celebraram um contrato de comodato. Provou-se, apenas que apesar do contrato de compra e venda a retro celebrado, o autor permaneceu a habitar no imóvel (ponto 10 dos factos provados). Por outro lado, o autor não provou qualquer causa legítima de ocupação. Desta forma, assiste aos réus o direito à restituição do imóvel, conforme peticionaram em sede de reconvenção, a título principal, como efeito do contrato de compra e venda a retro que celebraram. Procedem as conclusões de recurso, sob os pontos XVIII a XXIX. - Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas:- na ação e reconvenção pelo autor, sem prejuízo do apoio judiciário; - na apelação pelos apelantes e apelado-autor, na mesma proporção. - III. Decisão:Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação, em julgar parcialmente procedente a apelação e nessa conformidade, revogar em parte a sentença, condenando o autor a restituir ao réu o imóvel objeto do contrato de compra e venda a retro. - Custas:- na ação e reconvenção pelo autor, sem prejuízo do apoio judiciário; - na apelação, pelos apelantes e apelado-autor, na mesma proporção, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor. * Porto, 27 de novembro de 2023(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art. 131º, 132º/2 CPC) Assinado de forma digital por Ana Paula AmorimAugusto de Carvalho José Eusébio Almeida ____________ [1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, julho 2013, pag. 225. [3] ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pag.272. [4] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 569. [5] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt. [6] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt. [7] FERNANDO PEREIRA RODRIGUES Os meios de prova em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 72 [8] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, setembro 2013, pag. 278. [9] JOÃO MATOS ANTUNES VARELA et al Manual da Processo Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Lda, Coimbra, 1985, pag. 539. [10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, vol.II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 496. [11] JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pag. 227-228. [12] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pag. 228 e JOÃO MATOS ANTUNES VARELA et al Manual da Processo Civil, ob. cit, pag. 553. [13] JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pag. 228. [14] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pag. 245-247. [15] JOSÉ LEBRE DE FREITAS E A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pag. 606. [16] ANTUNES VARELA, et al, Manual de Processo Civil, ob. cit., pag. 648. [17] Retifica-se, passando a ler-se “3” onde se escreveu “2”. Na sentença consta “2”, mas resulta do contexto que é um lapso de escrita, porque é no ponto 3 que se faz menção ao montante do empréstimo. [18] L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, 2ª edição, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2017, pag. 465 [19] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, 2ª edição (3ª reimpressão da edição de maio de 2001), Almedina, Coimbra, 2007, pag. 83 e PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. II, 4ª edição revista e atualizada-reimpressão, Coimbra Editora, Wolters Kluwer, Coimbra, 2010, pag. 222 [20] Cfr. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, ob. cit., pag. 8, ob. cit., [21] Cfr. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. II, pag. 222 [22] L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, ob. cit., pag. 485 [23] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. II, ob. cit., pag. 222 [24] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, ob. cit., pag. 83 [25] L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, ob. cit., pag. 470 [26] CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pag. 197 [27] CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, ob. cit., pag. 197 [28] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. III, 2ª edição-Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pag. 29 |