Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
118/20.3T9AGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CARTA POR PONTOS
PERDA DE PONTOS
MEDIDA ADMINISTRATIVA
CASSAÇÃO DA CARTA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20210210118/20.3T9AGD.P1
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ao instituir o regime da “carta por pontos”, prevendo a cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos [al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE], o legislador estabeleceu mais um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução atribuído, qual seja, a de o condutor não praticar infrações rodoviárias por que venha a ser condenado em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção de proibição de conduzir, e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos.
II - A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infração cometida.
III - A perda de pontos não configura uma sanção acessória e nem uma medida de segurança penal, tratando-se de uma medida administrativa que se «prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infração cometida» e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas rodoviárias, contraordenacionais ou criminais, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores um tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a segurança rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estradas.
IV – O art.º 148.º do CE conforma-se com o princípio ne bis idem consagrado no art.º 29.º, n.º 5 da CRP e com todos os preceitos e princípios constitucionais pois que a retirada de pontos não constitui uma nova condenação em sanção acessória do arguido pelos mesmos factos, mas um efeito da sanção acessória de proibição de conduzir, determinada pela segurança rodoviária, que limita o direito do cidadão a conduzir.
V - De igual modo, a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos não constitui uma condenação pela prática dos mesmos crimes e não viola qualquer preceito constitucional.
VI - O processo administrativo instaurado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, ao abrigo do disposto no n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, para a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos atribuídos, tem por objeto «a perda de pontos em virtude das sucessivas penas acessórias até ao total esgotamento dos créditos inicialmente concedidos, e a consequente inaptidão do recorrente para a condução decorrente do risco causado por aquelas condutas criminosas, para a segurança rodoviária.»
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 118/20.3T9AGD.P1
Recurso Penal
Juízo Local Criminal de Águeda

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
No âmbito do processo contraordenacional que, sob o nº 118/20.3T9AGD, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Águeda, foi determinada a cassação do título de condução n.º AV-......, pertencente ao arguido B…, por decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, datada de 18/10/2019.
Desta decisão interpôs o arguido recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial – Juízo Local Criminal de Águeda, ao abrigo do disposto no art.º 59.º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro, com os fundamentos constantes do respetivo articulado, pugnando pela sua revogação.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com produção de prova, após o que Tribunal Judicial de Águeda – Juízo Local Criminal proferiu sentença, confirmando a decisão da autoridade administrativa nos seus precisos termos e, consequentemente, condenando o arguido B… na pena de cassação do título de condução, para além das custas do processo.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões” (…)
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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Não foi apresentada resposta ao recurso pelo Ministério Público, em primeira instância.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, analisando proficientemente todas as questões suscitadas pelo recorrente, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso (nos termos constantes de fls. 125/131, cujo teor aqui se dá por reproduzido).
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
A) A sentença recorrida deve ser revogada, pois aplicou normas do Código da Estrada que violam os princípios constitucionais do ne bis idem, da necessidade da pena e da proporcionalidade (artigos 29.º, n.º 5 e 18.º, n.º 2, da CRP)?
B) Verifica-se a inexistência do elemento subjetivo, o que obsta à aplicação da sanção de cassação da carta de condução?
C) Os princípios da necessidade e adequação da pena determinam a substituição da sanção aplicada pela mera imposição da obrigação de frequência de ações de formação, devendo, no limite, ser permitida ao recorrente a obtenção imediata de novo título de condução?
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer o teor da sentença recorrida, nomeadamente a factualidade em que assenta a condenação proferida.
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A decisão recorrida tem o seguinte teor: [1]
“Nos presentes autos de contra-ordenação veio B… impugnar a decisão da autoridade administrativa que lhe determinou a cassação da carta de condução.
Para tanto alegou, em síntese, que decisão é excessiva e desproporcional.
Mais alega carecer da carta de condução para a sua vida profissional.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
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Mantêm-se os pressupostos processuais já oportunamente apreciados nos autos.
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Fundamentação de Facto:
Em sede administrativa foram apurados os seguintes factos:
1º - No âmbito do Processo n.º 134/16.0GCAGD o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 17.7.2016, por sentença datada de 22.7.2016 e transitada em julgado em 30.9.2016, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses e 15 dias.
2º - Por força dessa condenação, foi determinada a perda de 6 pontos no registo individual do condutor.
3º - No âmbito do Processo n.º 68/18.3GCAGD o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 20.5.2018, por sentença datada de 8.6.2018 e transitada em julgado em 7.2.2019, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 8 meses.
4º - Por força dessa condenação, foi determinada a perda de 6 pontos no registo individual do condutor.
5º - O arguido carece de carta de condução quer para a sua vida profissional, quer para a sua vida pessoal/familiar.
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Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados, ou contém expressões conclusivas ou de direito, ou são irrelevantes para a decisão da causa.
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Foi valorado o RIC de fls. 2 e ss. e as declarações do próprio arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento.
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Fundamentação de Direito:
Nos termos do art. 148º do Código da Estrada:
“2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor. (…)
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
Ora, em face das duas condenações em que o arguido foi condenado, a consequência legal foi a perda de 6 pontos, por cada uma dessas condenações.
Tirando à carta de condução todos os pontos, a cassação do título é uma decorrência legal, pelo que nada há a apontar à decisão administrativa, não havendo qualquer lugar a substituição ou ponderação a fazer, independentemente da necessidade da carta que o arguido tenha.
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Decisão:
Em face do que fica exposto, mantenho a decisão da autoridade administrativa nos seus exactos termos e, consequentemente, condeno o arguido B… na pena de cassação do título de condução.
Custas pelo recorrente, cuja taxa de justiça se fixa em 3 UC, nos termos do art.º 93º, do R.G.C.O. […]”.
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Apreciemos, então, os fundamentos do recurso, sendo que este visa apenas matéria de direito, nos moldes já delimitados, encontrando-se definitivamente fixados os factos com relevo para a decisão.
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Apreciando os fundamentos do recurso.
O regime da “carta por pontos” foi introduzido pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, que alterou os artigos 121.º e 148.º do Código da Estada [2]. O objetivo prosseguido pelo legislador com a implementação desse regime decorre da Exposição de Motivos que acompanhou a proposta de Lei n.º 336/XII, onde se consigna o seguinte:
«A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos.
O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado.
A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.
A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.»
Como é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/10/2020 [3], resulta do enunciado regime da carta por pontos, contemplado nos artigos 121.º- A e 148.º do Código da Estrada, o seguinte conjunto de regras e de consequências:
- É atribuído a cada condutor, 12 pontos (n.º 1 do artigo 121º-A), podendo estes ser acrescidos de: a) 3 pontos até ao limite máximo de 15 (se, em cada período de três anos, inexistir no registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações – cf. artigos 121º A, nº 2 e 148º, nº 5); 1 ponto até ao limite de 16 (se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar ações de formação – cf. artigos 121º, nº 3 e 148º, nº 7);
- A subtração de pontos ao condutor ocorre, em consequência da condenação, transitada em julgado, pela prática de contraordenações graves ou muito graves referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do CE ou de crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja cumprida injunção de proibição de conduzir, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 281º do CPP;
- Se na decorrência da subtração de pontos, o condutor tiver cinco ou menos pontos, fica sujeito à obrigação de frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º) e se tiver três ou menos pontos fica sujeito à obrigação de realizar a prova teórica do exame de condução (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º); finalmente, se forem subtraídos todos os pontos ao condutor, a subtração tem como efeito a cassação do título de condução (cf. al. c) do n.º 4 do artigo 148º).
Ao instituir o regime da “carta por pontos”, prevendo a cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos (al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE), o legislador estabeleceu mais um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução atribuído, qual seja, a de o condutor não praticar infrações rodoviárias por que venha a ser condenado (e especificamente as contraordenações graves ou muito graves, referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º do CE ou os crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção de proibição de conduzir), e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos [4].
Como se faz notar no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/1/2020 [5], «A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respetiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e atualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º A e 148º, do Código da Estrada).
A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infração cometida.»
Nesta perspetiva, e como vem sendo salientado em inúmeros arestos dos Tribunais da Relação [6], importa notar que com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.
O regime da carta por pontos, como é referido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020 [7], «tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.» [8]
Relativamente à natureza da medida de que nos ocupamos, importa sublinhar que não se trata de uma sanção acessória e nem sequer pode ser configurada como uma medida de segurança penal - cuja aplicação dependa da verificação, em concreto, de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, para a condução, conforme previsto no artigo 101º do Código Penal -, tratando-se de uma medida administrativa que se «prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infração cometida» [10] e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas rodoviárias, contraordenacionais ou criminais, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores um tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a segurança rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estradas [11].
Aqui chegados, estamos em condições de afirmar a conformidade do preceito legal em análise (contido no art.º 148.º do CE) com o princípio ne bis idem consagrado no art.º 29.º, n.º 5 da CRP, segundo o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.” [12]
É que, como justamente é salientado no acórdão do TRC de 15/1/2020, a perda de pontos pela prática de uma infração estradal, ainda que, posteriormente, conduza à cassação da licença de condução, não constitui uma nova condenação em sanção acessória do arguido pelos mesmos factos, mas um efeito da sanção acessória de proibição de conduzir, determinada pela segurança rodoviária, que limita o direito do cidadão a conduzir. De igual modo, a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos não constitui uma condenação pela prática dos mesmos crimes, como parece pressupor o recorrente.
Com efeito, contrariamente ao que defende o recorrente, a medida de cassação da carta de condução determinada pela ANSR no âmbito do processo de cassação de título de condução, não constitui punição pelos mesmos factos objeto dos processos n.ºs 134/16.0GCAGD e 68/18.3GCAGD – que determinaram a aplicação de duas penas acessórias de proibição de conduzir, em conformidade com o artigo 69.º, n.º 1, al. a), do C.P.
O processo administrativo instaurado contra o ora recorrente pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, ao abrigo do disposto no n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, para a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos atribuídos, tem por objeto não a prática de qualquer daqueles crimes, mas sim, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/11/2019, [13] «o registo de infrações relativas ao exercício da condução, a perda de pontos em virtude das sucessivas penas acessórias até ao total esgotamento dos créditos inicialmente concedidos, e a consequente inaptidão do recorrente para a condução decorrente do risco causado por aquelas condutas criminosas, para a segurança rodoviária.»
O processo administrativo com vista à cassação da carta de condução, a que alude o n.º 10 do artigo 148º do C.E., visa apreciar o registo de infrações do condutor, para aferir da perda de pontos decorrente da prática de contraordenações e/ou de crimes rodoviários, previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º, que se mostram averbados àquele registo e aquilatar se se verifica a perda da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor e respetivo título de condução, caso em que será determinada a cassação deste último.
Assim e como se refere no citado acórdão do TC n.º 260/2020, «a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir. Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir.»
Deste modo, a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos, não constitui uma nova condenação pela prática dos mesmos factos/crimes de condução em estado de embriaguez por que o ora recorrente foi cominado em penas acessórias de proibição de conduzir veículos.
Salienta-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6/11/2019 [14], que a cassação do título de condução prevista no art. 148.º, nºs 4, alínea c), 10 e 12, do Código da Estrada, consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e, em última instância, por imperativos de segurança rodoviária.
Deste modo, não viola o princípio constitucional ne bis in idem a cassação de título de condução decorrente da perda da totalidade de pontos provocada por duas condenações do recorrente em penas acessórias de proibição de conduzir, pela prática dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (p. e p. pelo artigo 292.º do CP) [15].
Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso.
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Analisemos, agora, a conformidade constitucional do preceito legal em análise com o princípio da proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade ocupa um lugar central no nosso ordenamento jurídico-constitucional, no que diz respeito ao controlo dos atos do poder público, nomeadamente na avaliação da conformidade constitucional das restrições de direitos fundamentais. De acordo com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, tais restrições devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos». É à luz deste preceito que terá lugar a aplicação dos três subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade: idoneidade (ou adequação), necessidade (ou indispensabilidade) e justa medida (ou proporcionalidade em sentido estrito).
A compatibilidade da norma cuja análise constitui o objeto do presente recurso com o princípio constitucional da proporcionalidade vem sendo reconhecida, de modo que julgamos ser uniforme, pela jurisprudência dos Tribunais da Relação [16] e foi também assinalada pelo Tribunal Constitucional [17].
A propósito desta questão, importa sublinhar que partilhamos do entendimento comum à generalidade dos arestos que versaram sobre esta matéria de que a enunciada condição negativa imposta pelo legislador, para a manutenção do título de condução pelo condutor a quem foi atribuído, é plenamente justificada pelos potenciais riscos da atividade da condução para bens jurídicos fundamentais, tais como a integridade física e a vida dos utentes das estradas e a segurança rodoviária, que constitui uma prioridade da política criminal, perante os números da sinistralidade rodoviária no nosso país e as trágicas consequências que lhe estão associadas [18].
Neste sentido, é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27/1/2020 [19] que «a restrição de direitos decorrente da cassação do título de condução na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor, apresenta-se como necessária e proporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estrada (cf. arts. 24º, n.º 1, e 25º, n.º 1, da Constituição). Noutro prisma, encontra justificação no comportamento do condutor, revelador de uma perigosidade acrescida no exercício da condução.»
Na formulação do acórdão de 17/12/2020, igualmente proferido pela Relação de Guimarães, “A medida de cassação do título de condução por perda da totalidade de pontos, na medida em que é determinada em função da natureza, da gravidade e do número das infrações cometidas, com a consequente variação da quantidade de pontos a subtrair, e que não é indiferente ao período de tempo em que o condutor se mantém sem registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, propiciador da recuperação de novos pontos, respeita os princípios da proporcionalidade e também da necessidade, em função da maior perigosidade revelada pelo condutor.”.
O facto de o recorrente poder necessitar da carta de condução para exercer a sua atividade profissional, como invoca, não leva a considerar que da cassação do título de condução resulta qualquer violação do direito ao trabalho, sendo que as finalidades de prevenção de tal medida, e os bens e interesses da sociedade que visa tutelar, não podem ceder ao exercício da atividade profissional do particular, como é salientado no acórdão do TRE de 20/10/2020. O recorrente, por ter cometido dois crimes de condução em estado de embriaguez, por factos praticados em 17/7/2016 e em 20/5/2018, foi condenado nas penas acessórias de proibição de conduzir pelos períodos de 3 meses e 15 dias e de 8 meses, respetivamente, o que lhe acarretou a perda da totalidade dos 12 pontos que lhe haviam sido atribuídos, revelando-se, nesta situação, justificada a aplicação da medida de cassação do titulo de condução para salvaguarda de outros bens ou interesses constitucionalmente protegidos pela lei fundamental [20].
Assim, e em conclusão, consideramos que a cassação do título de condução por perda da totalidade dos pontos, a que se refere a alínea c) do n.º 4 do artigo 148º do Código da Estrada, respeita o princípio da proporcionalidade, em função da maior perigosidade revelada pelo condutor, afigurando-se necessária por forma a salvaguardar outros bens ou interesses protegidos pela lei fundamental.
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Defende, por fim, o recorrente que a medida de cassação aplicada afigura-se excessiva e desnecessária, revelando-se perfeitamente adequada a suspensão da execução da medida, eventualmente subordinada à condição de dever frequentar ações de formação ou, no limite, mantendo-se a medida de cassação mas com a possibilidade de obter imediatamente novo título de condução.
Diga-se, desde já, que nenhuma das soluções alternativas propostas pelo recorrente se afigura viável, carecendo, qualquer delas, de suporte legal.
Sufragando-se o entendimento defendido pelo TC no citado Acórdão n.º 260/2020, reafirma-se aqui que a cassação da carta de condução, neste âmbito, surge não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação ao condutor de penas acessórias de proibição de conduzir e consequente perda da totalidade dos pontos concedidos – situação que o legislador fez equivaler à verificação de ineptidão para o exercício da condução.
Assim sendo, e como é salientado no acórdão do TRE de 20/10/2020, não há que proceder a qualquer avaliação sobre a perigosidade ou inabilidade do condutor para o exercício da condução para que possa ser determinada a cassação do título de condução ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 4 do artigo 148º do Código da Estrada (ao contrário do que sucede quando se trata de aplicar a medida de segurança da cassação do título de condução prevista no artigo 101º do Código Penal), dado que o legislador ao prever essa medida administrativa teve subjacente o pressuposto de que o condutor que perdeu a totalidade dos pontos atribuídos revela inaptidão para o exercício da condução.
A cassação do título de condução é consequência automática [21] da perda da integralidade dos pontos, como resulta do n.º 4 do art.º 148.º do CE. Consequentemente, não é legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto [22].
Também a pretendida suspensão da cassação da licença de condução carece de suporte legal. Com efeito, nos processos de cassação não existe norma idêntica à do art.º 141.º do Código da Estrada, não se afigurando possível a suspensão da decisão de cassação, ainda que condicionada à frequência de uma ação de formação.
Consumada a perda de pontos, verificados os pressupostos da medida de cassação, a sua aplicação torna-se obrigatória, estando legalmente excluída a possibilidade de suspensão.
Do mesmo modo, a aplicação da medida de cassação acarreta, inelutavelmente, a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, nos termos do disposto no n.º 11 do artigo 148.º do CE. Tendo constituído objeto de apreciação de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional concluiu, no Acórdão n.º 260/2020, que temos vindo a citar, pela conformidade de tal norma com o princípio da proporcionalidade, tendo considerado que «a duração prevista dois anos não se apresenta como excessiva tendo em conta que o título de condução habilita a conduzir veículos a motor na via pública, atividade que exige competência técnica que pressupõe um juízo prévio de aptidão para o seu exercício, e que o condutor que vê a sua carta cassada revelou a perda dessa aptidão.»
Concluímos, assim, que a decisão recorrida não merece censura, improcedendo na totalidade o presente recurso.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido B…, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, com 4 UC de taxa de justiça (art.º 513.º do CPP).
Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)
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Porto, 10 de fevereiro de 2021.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
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[1] 2 Mantendo-se a ortografia original do texto.
[2] O art.º 148.º do CE, sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, é do seguinte teor:
1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A. 6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.»
[3] Relatado por Fátima Bernardes e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., no mesmo sentido, o acórdão deste TRP de 30/4/2019 (relatado por Pedro Vaz Pato e consultável em www.dgsi.pt).
[5] Relatado por Alcina Costa Ribeiro e disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr., a título exemplificativo, o acórdão do TRG de 27/1/2020 (relatado por Jorge Bispo); o acórdão do TRP de 30/4/2019 (Pedro Vaz Pato); e o acórdão do TRC de 15/1/2020, já citado, onde é assinalado que o direito de conduzir não é um direito absoluto, na medida em que “só é concedido temporariamente e na medida em que se verifiquem os pressupostos que o determinaram”.
Todos os acórdãos estão disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[7] Relatado pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros e acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200260.html.
[8] É de notar que já no Acórdão n.º 337/2002, da 2.ª Secção, ponto 4, o Tribunal Constitucional havia reconhecido o carácter especial da atividade de condução de veículos automobilizados, que justifica a intervenção do legislador na sua regulação e controlo da sua aprendizagem e prática, referindo o seguinte:«Como a condução de veículos automotorizados não é, em regra, inata às faculdades humanas, requerendo, por isso, aprendizagem, quer das respetivas técnicas, quer das regras a que deve obedecer a circulação rodoviária, é facilmente aceitável a ideia de que ao Estado se imponham especiais cautelas para apurar da suficiência dessa aprendizagem, não permitindo que quem não seja detentor de tal suficiência possa livremente levar a efeito a condução.»
E afirmou, a propósito da caducidade da carta de condução provisória em caso de condenação em sanção acessória de inibição de conduzir ou de condenação pela prática de crimes e contraordenações rodoviárias, no Acórdão n.º 461/2000, da 2.ª Secção, ponto 7:
«apenas existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento.
(…)
A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa atividade para bens jurídicos essenciais.
(…)
Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa-se no plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infração de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir».
[9] Como, de resto, vem sendo reiteradamente afirmado pela jurisprudência dos Tribunais da Relação. A propósito desta questão, refere-se no acórdão deste TRP de 9/5/2018, relatado por Francisco Mota Ribeiro e disponível em www.dgsi.pt, que a subtração de pontos “ocorre como efeito automático da infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infração cometida e do relevo que esta possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração”.
Também no acórdão do TRC de 13/11/2019 (relatado por Vasques Osório e igualmente disponível em www.dgsi.pt) se refere que a “cassação do título de condução não é agora uma medida de segurança mas uma sanção administrativa”.
[10] Conforme expressão utilizada no acórdão do TRC de 15/1/2020, já citado.
[11] Cfr. o acórdão do TRE de 20/10/2020, já citado e que aqui seguimos de perto.
[12] O princípio ne bis in idem abrange não apenas o julgamento em sentido formal, mas, também, qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público. Como é salientado no acórdão do TRP de 30/4/2019, relatado por Pedro Vaz Pato, o princípio ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado.
[13] Relatado por Vasques Osório e disponível em www.dgsi.pt.
[14] Relatado por Maria José Nogueira e disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr., no mesmo sentido, para além do mencionado acórdão do TRE de 20/10/2020, os acórdãos do TRG de 17/12/2020 e de 27/1/2020 (ambos relatados por Jorge Bispo), os acórdãos do TRC de 15/1/2020 (relatado por Alcina Costa Ribeiro) e de 6/11/2019 (relatado por Maria José Nogueira), o acórdão do TRE de 3/2/2019 (relatado por Nuno Garcia), todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[16] Veja-se o acórdão do TRC de 13/11/2019 (Vasques Osório), no qual se refere: “[…] sendo o título de condução a autorização administrativa para o exercício da condução, que tem como pressuposto a aptidão do condutor para esse exercício, afigura-se razoável e proporcional que a lei estabeleça mecanismos de verificação, ao longo do tempo, da manutenção ou não daquela aptidão, visando acautelar os interesses públicos que uma condução inapta e/ou perigosa pode afectar.[…]
Assim, entendemos que o sistema de pontos previsto no art. 148º do C. da Estrada não viola o art. 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (no sentido da conformidade do regime de cassação do título de condução com a Constituição da República Portuguesa, acórdãos da R. de Coimbra de 9 de Outubro de 2019, processo nº 280/19.8T8ACB.C1, que julgamos ainda inédito e de 8 de Maio de 2019, supra citado).”.
[17] Como se adverte no acórdão do TC n.º 260/2020, no caso da norma em análise, não se identifica nenhum direito fundamental que seja restringido. Não existe, com efeito, um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e estádepende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador.
Não existindo uma restrição de um direito fundamental, não existe razão para mobilizar o princípio da proporcionalidade com este fundamento.
Já no que concerne ao segmento previsto no n.º 11 do artigo 148.º do Código da Estrada – que determina a imposição de um período de dois anos sobre a efetivação da cassação da carta durante o qual não pode ser obtido novo título de condução – concluiu o TC que não viola a proibição do excesso, salientando o seguinte: “Dúvidas não existem de que a fixação de um período sobre a cassação da carta se apresenta como uma medida idónea para salvaguardar o interesse público da segurança rodoviária, prevenindo o perigo resultante da condução na via pública por parte de condutores que não apresentam a aptidão necessária para o efeito, ao mesmo tempo que permite ao condutor inabilitado refletir sobre a inadequação da conduta estradal anterior e colher a instrução e ensinamentos necessários ao aperfeiçoamento da sua aptidão como futuro condutor. Não são apresentados argumentos que permitam censurar o legislador por desprezar medidas menos gravosas que pudessem produzir o mesmo efeito com o mesmo grau de eficácia. O foco da questão de constitucionalidade colocada incide no último teste, a ponderação da proibição de obtenção de título de condução durante dois anos após a cassação, naturalmente onerosa para a pessoa em causa, com o interesse público da segurança rodoviária e da prevenção do risco para a sociedade decorrente da condução de um veículo motorizado por um agente que não cumpre as regras da estrada.
Nesse contexto, o período estabelecido na norma expressando, naturalmente, uma opção dentro da liberdade do legislador, pode ser controlada pelo juiz constitucional caso se afigure excessiva. Ora, no caso, a duração prevista dois anos não se apresenta como excessiva tendo em conta que o título de condução habilita a conduzir veículos a motor na via pública, atividade que exige competência técnica que pressupõe um juízo prévio de aptidão para o seu exercício, e que o condutor que vê a sua carta cassada revelou a perda dessa aptidão. Nessa situação, demanda algum tempo a recuperação das condições que poderão habilitar a pessoa de novo a conduzir, o que não dispensa um reforço da consciência pessoal sobre a natureza e perigos da atividade de condução, bem como a sedimentação da aprendizagem das regras do Código da Estrada. Neste contexto, a imposição de um período de dois anos entre a efetivação da cassação da carta e a concessão de novo título de condução não se apresenta como uma medida excessiva ou desequilibrada.”.
[18] Cfr., neste sentido, o acórdão do TRE de 20/10/2020 (relatado por Fátima Bernardes e já citado).
Como é referido no acórdão do TRC de 15/1/2020 (relatado por Alcina Costa Ribeiro, já mencionado), “o flagelo da sinistralidade nas estradas é responsável pela perda, em média por ano, de 1,2 milhões de pessoas, sendo considerado com um problema de saúde pública à escala global pela Organização Mundial de Saúde.
Além das vítimas mortais, todos os anos ficam feridas cerca de 50 milhões de pessoas em acidentes de viação.
A estimativa da OMS é de que, no planeta, nas próximas duas décadas o número deverá aumentar em 65%, caso não haja alterações na forma de enfrentar esta realidade.
E este drama que se vive nas estradas, não é unicamente uma realidade mais acutilante em nações menos desenvolvidas, com infraestruturas rodoviárias de menor qualidade, veículos mais envelhecidos ou condutores menos disciplinados.
[…]
Em Portugal, segundo a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) morreram, em 2017, 602 pessoas nas estradas. Até 21 de novembro de 2018 a contabilidade de vidas perdidas em acidentes rodoviários estava já nas 446 vítimas.
Estes e outros dados evidenciam a necessidade de reduzir os acidentes de viação, através de acções a vários níveis, onde se incluam medidas de educação contínua dos cidadãos, incentivando-os a adoptar um melhor comportamento, designadamente, através do cumprimento das regras rodoviárias e da previsão de medidas restritivas da atribuição das licenças de condução.”.
[19] Relatado por Jorge Bispo e disponível em www.dgsi.pt.
[20] Como se refere no mencionado acórdão do TRE de 20/10/2020, esta argumentação vem sendo sustentada pelo Tribunal Constitucional em acórdãos em que decidiu da conformidade à Constituição da norma do artigo 69º do Código Penal, que prevê a pena acessória de proibição de conduzir, e o direito ao trabalho, constitucionalmente protegido (vide, entre outros, Acórdão n.º 440/2002, publicado no DR II-Série, de 29/11/2002).
[21] Note-se que a compatibilidade da norma que nos ocupa com o preceito constitucional contido no art.º 30.º, n.º 4 da CRP (segundo o qual “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”) tem sido sistematicamente assinalada na jurisprudência. Cfr., a título exemplificativo, o acórdão do TRP de 30/4/2019 (relatado por Pedro Vaz Pato e já citado).
[22] Seria em cada um dos processos onde se consumou, por reflexo das condenações, a perda sucessiva e cumulativa de pontos que teria relevância a discussão e análise dos circunstancialismos concretos invocados pelo recorrente, designadamente atinentes ao grau da sua culpa e da ilicitude, da sua condição profissional e pessoal e das necessidades de prevenção especial, como justamente se salienta no acórdão deste TRP de 27/5/2020 (relatado por Nuno Pires Salpico e disponível em www.dgsi.pt) e no acórdão do TRC de 13/11/2019, já citado.
No mesmo sentido, o acórdão do TRP de 30/4/2019, atrás mencionado, quando refere: “Vem o recorrente alegar que não deverá ser determinada a cassação do seu título de condução, atendendo ao facto de as infrações em causa não terem sido praticadas com dolo e à imprescindibilidade desse título para a sua atividade profissional. No entanto, nenhumas destas circunstâncias é, nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada, relevante para o efeito de obstar à cassação do título de condução.”.