Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10776/15.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE SUPRIMENTO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACTO INÚTIL
Nº do Documento: RP2019042910776/15.T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 694-A, FLS 23-34)
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - O tribunal ad quem não deve de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados.
III - O contrato de suprimento é um negócio jurídico estabelecido entre a sociedade e o sócio, que vem representando uma das formas mais frequentes de financiamento do ente societário; traduz, efectivamente, um investimento do sócio na “sua” sociedade, através da realização de empréstimos a esta e corresponde à fórmula mais antiga da ambição lucrativa: obter fortuna, sem correr risco empresarial e que, por isso nada tem que ver com as chamadas prestações suplementares.
IV - Estas representam um reforço do capital próprio, adjuvando a capitalização da empresa e conferindo protecção aos credores e apesar de poderem ser consideradas um capital adicional, não implicam um aumento de capital ou uma redução, e só podem ser restituídas aos sócios desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respectivo sócio já tenha liberado a sua quota (cfr. artigo 213.º, nº 1 do CSC).
V - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 10776/15.5T8PRT.P1-Apelação
Origem: Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto-J4
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Massa insolvente da sociedade “B..., Lda.”, propôs a presente acção sob a forma de processo comum contra C..., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 440.976,68 acrescidos de juros desde a data de interposição da acção até efectivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que a sociedade “B..., Lda.”, foi declarada insolvente em 10 de Janeiro de 2013. O seu administrador de insolvência, ao analisar a contabilidade, foi confrontado com a ausência de facturação de obras realizadas nas instalações da insolvente. A sociedade que alegadamente realizou as obras, D..., Lda., referiu nunca ter tido relações comerciais com a ora insolvente. De acordo com os registos de caixa entre Janeiro e Dezembro de 2015 verifica-se que foram feitos pagamentos sem suporte documental no montante de € 165.700,00. Já em 2004, ano anterior à realização das obras, a ora insolvente apresentava resultados transitados negativos de € 45.606,29 tendo as dívidas totais aos credores aumentado de € 922.994,40 em 2004 para € 1.234.844,66 em 2005. O prédio onde foram efectuadas as obras está registado a favor do aqui réu, ex-sócio gerente da insolvente, e das suas filhas. Da análise à contabilidade da ora insolvente, nomeadamente dos alegados cheques que deveriam ter passado pela tesouraria da B… (…) para pagar à D... (…), a verdade é que os mesmos não são localizados nas entradas de caixa. Verifica-se, isso sim, e a acrescer ao alegado, que foi movimentada na conta de caixa em 31 de maio de 2005, a saída de dinheiro através de transferência, no montante de € 150.000,00, saída de dinheiro essa que foi registada como contrapartida da conta “prestações suplementares-C...”, anulando-se dessa forma o saldo existente nessa conta, o qual passou a ser zero. Tal operação reduziu os capitais próprios ou a situação líquida da ora insolvente a €103.276,98, o equivalente a 41% do capital social da B... (…), que era de €250.000,00, com as reservas legais a cifrarem-se no valor de €6.286,06. A actuação do réu violou as disposições legais insertas nos artigos 35º, 78º, 213º e 523º do Código das Sociedades Comerciais.
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O réu contestou, alegando, em súmula, que foram feitos pagamentos à D... (…) decorrentes de obras que foram efectuadas, sem que todavia tivessem sido emitidas por esta as correspondentes facturas/recibos. A B... (…) laborou até 2003 em prédio arrendado próximo do prédio aqui em causa, tendo mudado de espaço físico na sequência de exigência do grupo E.... O réu adquiriu então o prédio aqui em causa nos autos, tendo alcançado acordo com a B... no sentido de que esta não pagaria, como nunca pagou, qualquer quantia a título de renda, mas suportaria os custos inerentes às obras necessárias, as quais vieram a ser realizadas pela B... (…). No que tange aos €150.000,00 corresponde ao montante que o autor injectou na B... (…) a título de suprimentos, e que com a respectiva retirada foi regularizada a dívida ao réu, ficando saldada a conta suprimentos ao réu. Termina pedindo a improcedência da acção.
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Na sequência de convite à correcção da contestação, o réu veio concretizar factos.
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Foi prolatado despacho saneador.
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Procedeu-se à realização de julgamento com observância do formalismo legal aplicável.
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A final, foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente acção e condenou o réu a pagar à autora a quantia de trezentos e quinze mil euros acrescidos de juros à taxa supletiva legal de 4% até efectivo pagamento, perfazendo os vencidos em 30 de Abril de 2015 a quantia de cento e vinte e cinco mil e trinta e três euros.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Réu interpor recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual;
c)- saber se a obrigação de juros em que o Réu foi condenado se encontra, ou não prescrita.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
A) Por sentença datada de 10 de Janeiro de 2013, transitada em julgado em 31 de Janeiro de 2013, a sociedade “B…, Lda.”, foi declarada insolvente.
B) O réu era à data da insolvência e desde 31 de Dezembro de 1985, sócio gerente da referida sociedade, juntamente com a sua mulher F…, com quem era casado em comunhão de adquiridos.
C) O réu detinha uma quota de € 150.000,00 e a sua mulher uma quota de € 100.000,00 sendo o capital social de € 250.000,00 e obrigando-se a sociedade com a assinatura de qualquer um deles.
D) Na sequência da declaração de insolvência da sociedade “B…, Lda.”, foi nomeado administrador da insolvência G….
E) A D…, Lda., realizou obras num prédio sito na Rua …, .. a .., Matosinhos, o qual está registado em nome do réu e das suas filhas.
F) Entre 1 de Janeiro de 2015 e 31 de Dezembro de 2015 foram feitos pagamentos pela sociedade “B…, Lda.”, sem suporte documental, de € 50.000,00 cada, em 31 de Janeiro de 2005, 28 de Fevereiro de 2005 e 31 de Março de 2005, e um de € 15.700,00 em 30 de Abril de 2005, num total de € 165.700,00 que se destinaram a pagar as obras referidas em E).
G) Em 2004, a ora insolvente sociedade “B…, Lda.”, apresentava resultados transitados acumulados negativos de € 45.606,29 e em 2005 atingiu resultados de exercício negativos de € 108.409,57…
H) …Tendo as dívidas totais aos credores aumentado de € 922.994,40 em 2004 para €1.234.844,66 em 2005.
I) A ora insolvente sociedade “B…, Lda.”, quer no balancete geral de 31 de Dezembro de 2012 quer nas contas apresentadas pelo Técnico Oficial de Contas e pela gerência em 31 de Dezembro de 2005, não dispunha de qualquer imóvel no imobilizado nem obras em curso.
J) Da contabilidade da ora insolvente resulta que foi movimentada na Conta da H… em 31 de maio de 2005 a saída de dinheiro, através de transferência, no montante de € 150.000,00, saída de dinheiro essa que foi registada como contrapartida da conta Prestações Suplementares–C…, anulando-se dessa forma o saldo existente nessa conta, o qual passou a ser zero…
K) …Tal operação reduziu os capitais próprios ou a situação líquida da ora insolvente a €103.276,98 equivalentes a 41% do capital da “B…, Lda.”, com as reservas legais a cifrarem-se em €6.286,06.
L) Após a efectivação das obras referidas em E), a “B…, Lda.”, passou a exercer a sua actividade nesse prédio, não pagando renda.
M) Pela apresentação 173 de 7 de Setembro de 2009 mostra-se registada na Conservatória do Registo Comercial a constituição da sociedade “I…, Lda.”, dos quais são sócios o réu e as suas duas filhas, tendo sede na mesma morada onde foram efectuadas as obras referidas em E).
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que no recurso vem colocada consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões o Réu recorrente impugnou a decisão da matéria de facto referindo que o tribunal recorrido devia ter dado como provados outros factos para além daqueles que constam da fundamentação factual e, concretamente os seguintes:
1º) Do acordo celebrado entre a B… e o Réu de que, como contrapartida do pagamento das obras do imóvel em causa por parte da B…, esta ficaria dispensada do pagamento de qualquer renda;
2º) Do pagamento de renda, por parte da Sanamar, antes da mudança de instalações;
3º) Da absoluta necessidade de mudança de instalações e cumprimento das exigências impostas pela E…;
4º) Do pagamento de uma renda mensal não inferior a € 1.500,00, caso a B… optasse por arrendar outro local que cumprisse as imposições da E…;
5º)- Da perda de Clientela, depois da realização das obras, sem responsabilidade imputável à B…, e que comprometeu a situação financeira da sociedade.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao Réu apelante, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
Importa, desde logo, enfatizar que de entre os factos que o Réu recorrente entende que deveriam ter sido dado como provados pelo tribunal recorrido, apenas o primeiro dos enunciados assume relevo para o “thema decidendum” tal como este vem recortado quer na petição inicial quer na contestação, todos os outros são meramente instrumentais e, portanto, só interessariam indirectamente à solução do pleito, quando pudessem servir, para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes, ou seja, não pertencendo à norma fundamentadora do direito são-lhe, em si, indiferentes e, portanto, serviriam apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.
Ora, os citados pontos 2º) a 5º) dos supra enunciados, mesmo que este tribunal os considerasse provados a partir deles não se podia dar como assente o facto essencial enunciado no nº 1º), isto é, a existência de um acordo entre o Réu e a B… de que, como contrapartida do pagamento das obras do imóvel em causa por parte desta ficaria ela dispensada do pagamento de qualquer renda.
Como assim, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de actos inúteis (artigo 137º do Código de Processo Civil, na redacção que vigorava antes da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho e a que corresponde actualmente o artigo 130º do vigente Código de Processo Civil, aprovado pela lei que antes se citou).
Como refere Abrantes Geraldes,[6] “De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objecto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
No mesmo sentido cfr. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.4.2012, processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, e da Relação de Guimarães de 10.09.2015, processo n.º 639/13.4TTBRG.G1.[7]
Por esse motivo, abstemo-nos de reapreciar a decisão da matéria de facto relativamente aos factos em questão.
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Debrucemo-nos, então, sobre o ponto 1º) dos citados factos e que o Réu recorrente entende que deveria ter sido dado como provado.
Para a prova do citado facto o recorrente convoca apenas o depoimento da testemunha J…-contabilista da insolvente B….
Acontece que não se divisa como, partir desse depoimento, se pode dar como provado o citado facto.
Com efeito, o referido depoimento, sob este conspecto, é de uma pobreza manifesta, aliás, vale a pena transcreve-lo:
ADVOGADA RÉU - Sabe se o não pagamento da renda foi um acordo pela realização das obras? Sabe se o objectivo do Sr. C… era este, isto foi falado consigo?
TESTEMUNHA ML - Quer dizer, isso eu sei que era uma coisa discutida entre os sócios. Eu não tinha poder nenhum com eles, só quando era necessário alguma coisa da minha parte.
ADVOGADA RÉU - Claro, claro mas tem… a ideia era essa? A B… pagava as obras e não pagava renda?
TESTEMUNHA ML - Eu penso que sim, que era essa a ideia. Porque foi assim, foi assim que aconteceu, não é?
J… (11-10-2017 14:10:20) – Contabilista
1ª Gravação (36:46)
ADVOGADA RÉU - Certo, olhe diga-me uma coisa D.ª J…, aqui a Sra. explicou as obras que foram feitas e por quem e disse aqui, eu vou ler o que diz no email “O imóvel pertencia ao Sr. C… a quem a B… nunca pagou renda”. A Sra. também explicou esta questão que havia, a B… faz as obras, mas não paga renda ao Sr. C…, era isto, é isto?
TESTEMUNHA ML - Exactamente.”
Como dele resulta, a testemunha em causa nada sabe sobre tal acordo, quer de forma directa quer de forma indirecta.
Diga-se, aliás, que é o mandatário que na sua instância enuncia a questão e vai sugerindo a resposta, limitando-se a testemunha a anuir com um “eu penso que sim” “que era essa a ideia” e “exactamente”.
Portanto, numa palavra, a testemunha em causa, sobre o referido acordo nada sabia.
Acresce que, mesmo que a mencionada testemunha se tivesse, no seu depoimento, referido de forma directa à existência do acordo em questão, teria que invocar uma razão de ciência forte e elementos objectivantes que pudessem, neste facto em particular, dar consistência e credibilidade ao seu depoimento coisa que, manifestamente, não aconteceu.
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Para além deste depoimento, o Réu recorrente limita-se a tecer meros considerandos e a dizer que era usual, neste tipo de situações, que a realização das obras de adaptação dos locados ao objecto do arrendado ser da responsabilidade dos arrendatários sendo, em contrapartida, atribuída a carência do pagamento de rendas até ao montante despendido nas obras, ou seja, tudo hipotéticas situações e, por conseguinte, sem qualquer relevo sobre o que foi acordado pelas partes neste caso concreto.
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Improcedem, desta forma, as conclusões 2ª a 21ª formuladas pelo recorrente, pois que, não ficando provado o referido acordo, não se pode afirmar que careça de sentido a condenação do Réu na restituição à massa insolvente do valor de €: 165.700,00, quantia esta que se destinou a pagar as obras referidas em E) dos factos provados, num prédio do Réu e das suas duas filhas, acompanhando-se sob este conspecto as demais considerações feitas a esse propósito na decisão recorrida e que nos abstemos de reproduzir.
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A segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se o réu praticou actos de gestão da gestão danosa e (in)cumprimento das normas do código das sociedades comerciais.
Para além do que ficou dito na decisão recorrida e que inteiramente subscrevemos no que tange aos pagamentos feitos pela insolvente B… relativos às obras num prédio do Réu e das suas duas filhas qualificáveis como actos de gestão danosa, sendo que o vertido nas conclusões 23ª a 26ª não tem qualquer respaldo no quadro factual que ficou assente, vem também provado nos autos que:
“- Da contabilidade da ora insolvente resulta que foi movimentada na Conta da H… em 31 de Maio de 2005 a saída de dinheiro, através de transferência, no montante de € 150.000,00, saída de dinheiro essa que foi registada como contrapartida da conta Prestações Suplementares-C…, anulando-se dessa forma o saldo existente nessa conta, o qual passou a ser zero…
- …Tal operação reduziu os capitais próprios ou a situação líquida da ora insolvente a €103.276,98 equivalentes a 41% do capital da “B…, Lda.”, com as reservas legais a cifrarem-se em € 6.286,06” [cfr. als. J) e K) da fundamentação factual].
Refere a este propósito o Réu recorrente que apesar da classificação de “Prestações Suplementares” relativa à referida transferência do montante de € 150.000,00 (decidida técnicamente pelo TOC Dr. K… e não comunicada ao gerente nem à testemunha D. J…), a verdade é que a Empresa tratou sempre este valor como “suprimentos”.
Não cremos, salvo o devido respeito, que assim possa ser entendido.
Analisando.
O contrato de suprimento é um negócio jurídico estabelecido entre a sociedade e o sócio, que vem representando uma das formas mais frequentes de financiamento do ente societário; traduz, efectivamente, um investimento do sócio na “sua” sociedade, através da realização de empréstimos a esta e corresponde à fórmula mais antiga da ambição lucrativa: obter fortuna, sem correr risco empresarial.[8]
Como refere Alexandre Mota Pinto[9], no meio da heterogeneidade dos diversos modos possíveis de financiamento da sociedade, o capital alheio combina-se, tantas vezes com o capital próprio, como acontece quando um sócio realiza um empréstimo ou difere créditos, misturando a qualidade de sócio com a de credor.
Ora, o pressuposto primeiro da realização de suprimentos está na liberdade dos sócios quanto ao financiamento da sociedade, na medida em que, cumprida a obrigação de formação e conservação do capital social, cada sócio decidirá livremente, quando, em que montante e de que modo financia a sociedade.
Os sujeitos do contrato de suprimento são, linearmente, o sócio e a sociedade; aquele, como se tem entendido, pode ser também o accionista (da sociedade anónima), desde que seja o accionista empresário e não (apenas) o accionista investidor[10]; esta pode ser, por isso, uma sociedade anónima.[11]
O objecto do contrato de suprimento, o seu objecto imediato, é a entrega de– financiamento por–dinheiro (o mais habitual) ou de outra coisa fungível (243.º, n.º 1 do CSC), mas apenas devem ser sujeitos ao regime especial do contrato de suprimento os créditos que desempenhem na sociedade “a função económica de substituição do capital próprio”, mas como o seu apuramento nem sempre se revela capaz foi encontrado um critério, mais facilmente reconhecível e que o CSC considera ser a “permanência dos créditos dos sócios na sociedade”.
A permanência é, portanto, um elemento objectivo muito relevante, assente no tempo de duração dos créditos e indicador de que a entrega do sócio, que passou para a disponibilidade da sociedade, não foi feita de forma transitória, antes preenche as finalidades próprias de uma entrada de capital, os fins semelhantes aos do capital.
E como, ainda assim, a permanência continuava a ser um critério algo indeterminado, o legislador criou “índices de permanência”, isto é, presunções (ilidíveis) da existência de um contrato de suprimento, como a duração efectiva e o prazo estipulado.
Assim, perante o silêncio qualificador das partes, um contrato de suprimento indicia-se se (a) foi estipulado um prazo de reembolso superior a um ano, (b) se, não tendo sido estipulado qualquer prazo de reembolso, este não foi exigido durante um ano ou (c) se as partes estipularam um prazo de reembolso inferior a um ano, mas o reembolso, durante um ano, não veio a ser exigido–artigo 243.º, n.º 2 e n.º 3 do CSC.[12]
Feito, pela forma descrita, o recorte do contrato de suprimento é bom de ver que a factualidade que se mostra assente nos autos não preenche a sua factie species.
O que se provou, isso sim, é que o referido montante de € 150.000, havia sido injectado na empresa como prestações suplementares e não como suprimento.
Como assim, a retirada do referido montante violou, como bem se refere na decisão recorrida, o disposto no artigo 213.º, nº 1 do Código das Sociedades que preceitua que: “As prestações suplementares só podem ser restituídas aos sócios desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respectivo sócio já tenha liberado a sua quota”.
Com efeito, tal operação reduziu os capitais próprios ou a situação líquida da ora insolvente a € 103.276,98 equivalentes a 41% do capital da “B…, Lda.”, com as reservas legais a cifrarem-se em € 6.286,06 [cfr. al. K) da fundamentação factual acima transcrita].
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Improcedem, assim, as conclusões 22ª a 36ª formuladas pelo Réu recorrente.
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A terceira e última questão colocada no recurso prende-se com:
c)- saber se os juros em que o Réu foi condenado estão, ou não, prescritos.
Refere o Réu apelante a este propósito que o tribunal recorrido o condenou no pagamento dos juros vencidos e vincendos, desde 31.05.2005 (até 30.04.2015), ou seja, em juros prescritos, já que foi citado em 06/05/2015, quando nos termos do artigo 310.º al. d) do CCivil prescrevem em 5 anos os juros moratórios, convencionais ou legais.
A questão colocada, trata-se, como é evidente de uma questão nova sobre a qual o tribunal recorrido não foi chamado a pronunciar-se.
Acontece que, como supra se consignou, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objecto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[13], em relação ao objecto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[14]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excepcionada quando a lei expressamente determine o contrário[15] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[16]
Portanto, a questão da prescrição dos juros trata-se de argumentação nova que nunca tinha sido defendida pelo apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso, pois que nos termos do artigo 303.º do CCivil o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita.
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Destarte, improcedem, as conclusões 37ª a 40ª formuladas pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo Réu apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 29 de Abril de 2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada pág. 297.
[7] In www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Código das Sociedades Comercias, Vol. III, Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu Almedina, 2001, p. 627.
[9] Do Contrato de Suprimento, O financiamento da sociedade entre capitais próprios e capital alheio, Coimbra, Almedina, 2002, p. 27
[10] Embora o STJ tenha vindo a seguir o entendimento – proposto por Raúl Ventura – de o regime dos suprimentos só abranger accionistas detentores de, pelo menos, dez por cento do capital social (STJ, 14.02.94 e 9.02.99, CJ/94, T. III e CJ/99, T. I).
[11] Alexandre Mota Pinto, obra citada, pág. 299.
[12] Cfr. Código das Sociedades Comercias, Vol. III, cit. 637/639.
[13] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.
[14] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.
[15] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.
[16] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.