Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2720/18.4T8STS-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS
CONCURSO DE PRIVILÉGIOS
Nº do Documento: RP202006162720/18.4T8STS-C.P1
Data do Acordão: 06/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Perante a antinomia que se identifica entre as regras constantes do art. 333.º, nº 2, al. a) do Código do Trabalho (dispondo que os créditos laborais tem preferência sobre os créditos com idêntico privilégio do Estado), do art. 204.º, nº1 do Código Contributivo (que dispõe que os créditos do ISS se graduam logo após os referidos na alínea a) do n.º 1 do 747.º do CC), da prevalência do privilégio mobiliário geral do ISS sobre qualquer penhor (estabelecida pelo nº 2 do citado art. 204º) e da prevalência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral (art. 749º, nº 1 e 666º, nº 1 do C. Civil) a solução está em efectuar (quando concorram na mesma graduação um credito garantido por penhor, um crédito do ISS, um crédito de trabalhadores e um crédito do Estado, todos estes com privilégio mobiliário geral) a seguinte graduação: 1.º: O crédito do ISS; 2.º: O crédito garantido por penhor; 3.º: Os créditos laborais; e 4.º: Os créditos do Estado (…)”.
II – A mesma solução resulta do reconhecimento da natureza de norma especial à que consta do nº 2 do art. 204º do Código Contributivo, relativamente ás demais enunciadas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 2720/18.4T8STS-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 6

Rel. nº 573
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

Por sentença proferida em 7.9.2018, no processo de Insolvência a que estes autos se encontram apensados, transitada em julgado em 14.11.2018, foi declarada, a requerimento da própria devedora, a insolvência de “B…, S.A.”, NIPC ………, com sede na Zona Industrial …, …, .., n.º … – ….-… Maia.
Para a massa insolvente foi apreendido um bem imóvel, diversos bens móveis e 5000 acções do capital social da C…, SA.
Foram reconhecidos os créditos reclamados e não impugnados, entre os quais o crédito do credor C…, SA., no valor de € 184.489,77, e reconhecido também que este se encontra garantido por penhor sobre as 5000 acções apreendidas para a massa insolvente, bem como por hipoteca voluntária constituída sobre o imóvel apreendido nos autos, embora tão só quanto a 5,92% deste crédito.
Mais foi declarado que esse crédito haveria de ser graduado em primeiro lugar relativamente àquelas acções, sem prejuízo do que ulteriormente haveria de ser declarado em relação ao crédito da Segurança Social. E, quanto a este, foi afirmado o seguinte: “Já no que respeita às acções apreendidas, e em relação às quais se verifica que existe um penhor a favor de C…, S.A., a graduação haverá de ser distinta. Efectivamente, verificamos que o privilégio mobiliário geral previsto no art. 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/09, deverá ser graduado nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil. Mas vimos também que este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o que significa que prevalece sobre o crédito do credor C… quanto a tais acções.”
Em coerência com isto, a sentença de verificação e graduação de créditos, relativamente aos créditos com direito a obter pagamento pelo produto de venda das referidas 5.000 acções, dispôs que deveriam ser pagos:
“•através do produto da venda das acções apreendidas:
1º Crédito privilegiado reconhecido ao Instituto da Segurança Social, IP, no valor de €2.606,95;
2º Crédito garantido por penhor, reconhecido a C…, SA;
3º Créditos laborais, reconhecidos aos trabalhadores identificados sob os números 7, 70, 82, 85, 86 e 92, sem prejuízo das decisões proferidas nos apensos E e G;
4º Crédito privilegiado reconhecido à Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de €172,55;
5º Créditos comuns, em paridade e de forma rateada, se necessário; e 6º Créditos subordinados.”
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É desta decisão que o credor C… vem interpor recurso, por entender que o seu crédito não deve ser preterido a favor do crédito da Segurança Social, no tocante ao pagamento a executar por força da alienação das 5000 acções que constituíam penhor da satisfação desse seu crédito, que aqui também lhe foi reconhecido.
Terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões:
i) A douta sentença recorrida deve ser revogada, porque nela se fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do Direito.
ii) O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que, face à conjugação dos nº 1 e 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro com o artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigos 666º e 747º, nº 1, do Código Civil, entendeu que o crédito garantido reclamado pela Segurança Social deveria prevalecer sobre o crédito garantido por penhor e sobre os créditos laborais.
iii) Por aplicação do artigo 666º e 749º do Código Civil, o crédito garantido por penhor prevalece sobre i) o crédito com privilégio mobiliário geral dos trabalhadores (artigo 333º do Código do Trabalho) e ii) os créditos do Estado por impostos (mencionados na referida alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil).
iv) Segundo o nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, o privilégio mobiliário geral de que goza o crédito da Segurança Social por contribuições, quotizações e juros de mora “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
v) Pela mera aplicação da (letra da) lei, no confronto – exclusivo – entre um crédito da Segurança Social com privilégio mobiliário geral e um crédito garantido por penhor terá de prevalecer o primeiro.
vi) A solução poderá não ser a mesma quando, na graduação, estejam em concurso outros créditos com privilégio mobiliário geral (in casu, os créditos privilegiados dos trabalhadores e os créditos do Estado por impostos), sob pena de graves e arbitrárias distorções e incoerências jurídicas.
vii) A graduação levada a cabo pelo Tribunal a quo não resolve adequadamente o concurso de credores, especificamente o concurso entre os créditos que gozam de privilégios mobiliários gerais e o crédito garantido por penhor.
viii) Individualmente considerados, o crédito privilegiado dos trabalhadores prevalece sobre o crédito privilegiado da Segurança Social (cfr. artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009) mas cede perante o crédito garantido por penhor (artigo 666º e 749º, nº1, do CC); o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece sobre o crédito garantido por penhor (artigo 204º, nº 2 da Lei nº 110/2009); o crédito garantido por penhor prevalece sobre os créditos dos trabalhadores e sobre os créditos do Estado por impostos (artigo 666º e 749º, nº 1 do Código Civil).
ix) Na categoria dos privilégios mobiliários gerais, o legislador conferiu uma força especial aos privilégios laborais, uma vez que estes devem ser graduados antes dos restantes créditos privilegiados, nomeadamente os do Estado e os da Segurança Social (artigo 333º, nº 2, a), do Código do Trabalho).
x) Todavia, no confronto entre os privilégios mobiliários gerais e o penhor (garantia real) apenas o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece, por aplicação da norma absolutamente excecional do nº 2 do artigo 204º, da Lei nº 110/2009, mas já não os privilégios laborais ou os do Estado por impostos.
xi) Ao conjugar os normativos aplicáveis (nº 1 e 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro com o artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigos 666º, 747º, nº 1, do Código Civil) de forma a graduar em primeiro lugar o crédito da Segurança Social, em segundo o crédito pignoratício da C…, em terceiro o crédito dos trabalhadores e em quarto os créditos de IRS e IVA, o Tribunal a quo não interpretou adequadamente a Lei.
xii) À luz dos critérios estipulados no artigo 9º do CC, a unidade do sistema jurídico e a realização da justiça do caso reclamam uma interpretação corretiva-restritiva da norma do nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro, segundo a qual quando concorram em exclusivo, este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
xiii) Quando concorrem outros créditos com privilégio mobiliário geral (nomeadamente os créditos do Estado por impostos ou os créditos dos trabalhadores) a prioridade conferida pelo artigo 204º, nº 2, da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro não opera, uma vez que há uma contradição insanável entre todos os dispositivos aplicáveis.
xiv) O princípio da prevalência do penhor sobre os privilégios mobiliários gerais deve, assim, enformar a decisão a proferir pelo Tribunal, por ser um princípio geral nesta matéria, respeitando-se, ainda, a coerência do sistema jurídico.
xv) Esta é a única solução que:
i) Respeita a ordem geral de graduação dos privilégios mobiliários gerais, estabelecida no artigo 747º, nº 1, a) Código Civil, artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009 e artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho;
ii) Cumpre os princípios gerais do direito, mormente a natureza real e a característica da sequela do penhor, nos termos dos artigos 666º do Código Civil;
iii) Privilegia o substantivo em relação ao processual, na medida em que respeita o princípio substantivo, plasmado no artigo 749º do Código Civil, de que “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”, como é o caso do penhor.
xvi) A decisão a quo viola os artigos 9º, 666º, 747º, nº 1 e 749º, nº 1 do Código Civil, o artigo 204º, nº 1 e 2 da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social), o artigo 333º, nº 1 e 2, do Código do Trabalho.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso de apelação e revogando a douta sentença proferida, substituindo-a por outra que gradue, pelo produto da venda das acções, em primeiro lugar, o crédito reclamado pela C…, na parte garantida por penhor.
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Não se identifica que tenha havido qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Foi recebido nesta Relação, cabendo decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Assim, cumprirá decidir se, em função de uma concorrência de diversos créditos, que não apenas o da Segurança Social e o do credor pignoratício, ora apelante, para serem pagos pelo produto da venda de 5.000 acções, deve ser afastada a regra do nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009 que determina que o privilégio mobiliário geral de que goza o crédito da Segurança Social prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
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Na solução da questão descrita, ter-se-á presente a factualidade que consta do relatório que antecede, aceitando-se sem qualquer controvérsia a identificação, natureza e garantias dos créditos graduados na decisão recorrida.
Perante tal realidade, o problema surge pragmaticamente descrito nos arts. 21º a 23º das alegações do apelante, nos seguintes termos:
- o crédito privilegiado dos trabalhadores prevalece sobre o crédito privilegiado da Segurança Social (cfr. artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009) mas cede perante o crédito garantido por penhor (artigo 666º e 749º, nº1, do CC);
- o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece sobre o crédito garantido por penhor (artigo 204º, nº 2 da Lei nº 110/2009);
- o crédito garantido por penhor prevalece sobre os créditos dos trabalhadores e sobre os créditos do Estado por impostos (artigo 666º e 749º, nº 1 do Código Civil).
Perante esta incongruência do regime assim estabelecido, que jamais conduzirá ao cumprimento de todas as suas alternativas quanto estiverem em concurso créditos de trabalhadores, da Segurança Social e de um credor pignoratício, o apelante defende que deve rejeitar-se a aplicação do nº 2 daquele art. 204º da Lei nº 110/2009 e afirmar-se o “princípio da prevalência do penhor sobre os privilégios mobiliários gerais”.
Não só os dados da questão se mostram perfeitamente estabelecidos, como são conhecidas as diferentes respostas da jurisprudência ao problema.
Com efeito, alguma jurisprudência foi decidindo no sentido propugnado pelo apelante, como, de resto, é assinalado nas respectivas alegações. Por pertinente e acrescentar algum argumento a essa tese, não deixamos de referir o Ac. deste TRP, de 11-09-2018 (proc. nº 1211/17.5T8AMT-E.P1, em dgsi.pt) que, optando por reconhecer a prevalência dos créditos garantidos por penhor sobre créditos da Segurança Social, o justifica “dado que os privilégios creditórios em geral assumem uma natureza excepcional - à margem do princípio da autonomia privada, afectam o princípio da igualdade entre os credores – artº 604º nº1 CCiv e, sendo normas excepcionais, não podem ser aplicadas por analogia (artº 11º CCiv).” E depois “…porque as sucessivas alterações legislativas em matéria de privilégios creditórios e graduação de créditos em geral pressupõem um Estado atento e actuante, que evite a violação a seu favor dos princípios da igualdade e da confiança entre todos os credores – artº 604º nº1 CCiv.”.
Sem prejuízo do reconhecimento de uma pretensão de equidade a tal solução, entendemos não a poder acompanhar, aliás na senda do que vem sendo a jurisprudência maioritária desde a data de tal decisão. Mais se nos afigura nem se justificar a busca de argumentos complementares, perante as razões expostas nos Acórdãos do TRC de 21/5/2019 (proc. nº 4705/17.9T8VIS-B.C1) e de 28/5/2019 (proc. nº 3810/17.6T8VIS-B.C1), ambos disponíveis em dgsi.pt, pois que estas se impõem, determinando a solução do problema
Refere-se no sumário daquele primeiro acórdão: 1 - O privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real; mas uma mera preferência de pagamento, que assume a eficácia que lhe é própria aquando do acto da penhora, ou seja, que confere preferência no pagamento em relação aos credores comuns. 2 - O penhor é uma garantia real completa, que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores. 3 – Daqui decorre que o penhor prevalece contra e em relação aos privilégios mobiliários gerais de que gozam os créditos laborais e os créditos do Estado. 4 – E também seria assim em relação ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos do ISS, se a lei – art. 204.º/2 do CRCSPSS – não determinasse, imperativamente, que este privilégio do ISS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. 5 - Perante o conflito (de disposições legais) que assim se estabelece entre o art. 333.º/2/a) do C. T. (ao dizer que os créditos laborais tem preferência sobre os créditos com idêntico privilégio do Estado), o referido art. 204.º/1 do CRCSPSS (quando diz que os créditos do ISS se graduam logo após os referidos na alínea a) do n.º 1 do 747.º do CC), a prevalência do privilégio mobiliário geral do ISS sobre qualquer penhor (estabelecida imperativamente pela lei) e a também referida prevalência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral, a solução está em efectuar (quando concorram na mesma graduação um credito garantido por penhor, um crédito do ISS, um crédito de Trabalhadores e um crédito do Estado, todos estes com privilégio mobiliário geral) a seguinte graduação: 1.º: O crédito do ISS; 2.º: O crédito garantido por penhor; 3.º: Os créditos laborais; e 4.º: Os créditos do Estado (…)”.
Se logo neste sumário se surpreendem as razões da solução para a questão que nos ocupa, maxime a imperatividade da regra constante do art. 204.º/2 do CRCSPSS que determina que este privilégio do ISS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o segundo dos acórdãos citados mais profundamente evidencia a impossibilidade de se optar por uma solução divergente, designadamente a defendida pelo apelante.
Além de citar Salvador da Costa (O Concurso de Credores, 2ª edição, Almedina, pág. 252.) e a sua afirmação de que “…no concurso entre o direito de crédito das instituições de segurança social garantido pelo referido privilégio mobiliário geral e o direito de crédito garantido por um direito de penhor, prevalece o primeiro” e Miguel Pestana de Vasconcelos (Direito das Garantias, 2013, 2º edição, Almedina, pág. 398) quando afirma: “Note-se, porém, que há um privilégio mobiliário geral que, de forma totalmente excepcional, vale contra terceiros, prevalecendo sobre qualquer penhor, mesmo que de constituição anterior: o privilégio mobiliário geral da segurança social que assegura os créditos por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora (art. 204.º n.º 2 Código Contributivo, CRCSPSS). Nessa medida, é mesmo mais forte do que um privilégio especial, pois este não prevalece sobre garantias reais anteriores”, o mesmo acórdão salienta que, contra a opinião deste último autor, o próprio Tribunal Constitucional “já foi chamado a apreciar a constitucionalidade da norma que estabelece a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor (norma que, à data, correspondia ao artigo 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 103/80 e que corresponde actualmente ao artigo 204º, nº 2, do Dec. Lei nº 110/2009) e entendeu que não existia qualquer inconstitucionalidade (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 64/2009 e 108/2009, de 10/02/2009 e 10/03/2009, respectivamente).”
E conclui que uma tal solução, de precedência do crédito da Segurança Social sobre um crédito garantido por penhor, não sofre qualquer desvio quando, no caso, concorram outros créditos tal como acontece no caso em apreço, designadamente créditos laborais e outros créditos da autoridade tributária, ambos beneficiários de privilégios creditórios mobiliários gerais.
Aí se diz “Ora, à luz destes princípios, pensamos que não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor à frente dos créditos da segurança social. E tal solução não pode prevalecer porque, além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, contraria, aberta e frontalmente, a letra da lei (o artigo 204º, nº 2, do CRCSPSS), bem como o pensamento e vontade do legislador quando determinou, de forma expressa e sem margem para qualquer dúvida, que o privilégio dos créditos da segurança social prevalece sobre qualquer penhor. Importa notar que a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor já constava do Dec. Lei nº 103/80 de 09/05 (cfr. artigo 10º,nº 2) e a transposição da norma em questão para a legislação actualmente em vigor evidencia o claro e firme propósito do legislador em assegurar a prevalência dos créditos por contribuições devidas à segurança social relativamente ao penhor, propósito que se insere na necessidade de assegurar a sustentabilidade da segurança social e o direito à segurança social que a todos é garantido pelo artigo 63º da Constituição da República. Pensamos, portanto, em face disso, que não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor à frente dos créditos da segurança social.
Mas se essa solução não é viável pelas razões apontadas, pensamos que também não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor atrás dos créditos dos trabalhadores e do Estado garantidos por privilégio mobiliário, uma vez que tal solução também não encontra o mínimo apoio na letra da lei e também contraria abertamente o pensamento e a vontade do legislador quando determinou (artigo 749º do CC) que tais privilégios não prevalecem sobre o penhor.
Pensamos, portanto, que a observância da lei e o respeito pelo pensamento e vontade legislativos impõem necessariamente que os créditos da segurança social sejam graduados com preferência relativamente aos créditos garantidos por penhor e que estes sejam graduados com preferência relativamente aos demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente, os créditos laborais e os créditos do Estado.
É certo que a graduação dos créditos assim efectuada implica que os créditos dos trabalhadores e os créditos do Estado sejam graduados após os créditos da segurança social, quando é certo que, por aplicação dos artigos 204º, nº 1, da Lei nº 110/2009, 333º do Código do Trabalho e 747º do CC, os créditos da Segurança Social seriam graduados a par dos créditos do Estado e depois dos créditos dos trabalhadores. Importa notar, no entanto, que essa graduação nem sequer entra em colisão directa e frontal com o artigo 333º do Código do Trabalho, uma vez que aqui apenas se determina que os créditos dos trabalhadores são graduados antes dos referidos no artigo 747º do CC e esta disposição nem sequer alude aos créditos da segurança social (sendo que estes são graduados nos termos da alínea a) desse artigo 747º por força de disposição legal que consta de outro diploma) e, portanto, se os créditos dos trabalhadores forem graduados antes dos créditos do Estado e depois dos créditos da segurança social, estar-se-á a respeitar – ou pelo menos não se estará a desrespeitar abertamente – o citado artigo 333º onde não se determina (de modo expresso) que esses créditos sejam graduados antes da segurança social. Por outro lado, ainda que por aplicação das citadas normas legais os créditos da segurança social e os créditos do Estado devessem ser graduados a par, pensamos que a inobservância dessa regra será, apesar de tudo, menos ostensiva e assumirá uma menor gravidade quando comparada à inobservância das demais regras supra citadas por via das quais o legislador manifestou, de modo claro e expresso, a sua vontade de que o privilégio da segurança social prevalecesse sobre o penhor e que este prevalecesse sobre os demais privilégios.”
Ainda no mesmo sentido, em decisão igualmente recente, cfr. Ac. do TRL de 2/7/2019, no proc. nº 2789/14.0T8SNT-K.L1, também disponível em dgsi.pt
Acresce que, para além do acerto do que acima se transcreveu, a que aderimos na íntegra e que também no caso sub judice impõe a confirmação da decisão recorrida, perante a incongruência da descrita situação normativa, uma outra ordem de razões acaba por tornar incontornável a mesma solução.
Como se sabe, os critérios de superação de antinomias normativas são a hierarquia, a especialidade e a cronologia das regras em tensão (Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pg. 170)
No caso, os diplomas em conflito têm idêntica categoria hierárquica. O que convoca a aplicação do segundo critério: o da especialidade.
Como define Baptista Machado (ob. cit., pg. 95) normas especiais são aquelas que consagram uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações.
Segundo esta definição, a regra constante do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS (Código Contributivo), aprovado pela lei nº 110/2009, assume a natureza de norma especial em relação às regras constantes quer do Código Civil, quer do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, na medida em que constitui uma disciplina específica e divergente relativamente às demais, visando dotar de uma inequívoca precedência o interesse de satisfação dos créditos da segurança social sobre os demais créditos do próprio Estado, de credores pignoratícios ou titulados por trabalhadores. Ou seja, estabelece uma regra específica para um determinado tipo de relação jurídica.
Podendo concordar-se ou não com tal solução – algo que aqui não compete apreciar - cabe reconhecer que ela nem sequer é nova ou única, pois que o Estado sempre lança mão dos mais diversos meios para conseguir o pagamento dos seus créditos de natureza fiscal, como forma de compensar o distanciamento que tem em relação ao devedor, quando comparado com outro tipo de credores, por regra mais lestos a tentarem obter pagamento dos seus valores.
Por conseguinte, também por aplicação do critério da especialidade caberá impor a aplicação da regra constante do nº 2 do art. 204º do CRCSPSS para a graduação dos créditos verificados, do que resulta a precedência do crédito da segurança social sobre o crédito do ora apelante, apesar de garantido por penhor sobre as 5.000 acções em causa.
Resta, pois, reconhecer o acerto da decisão recorrida, que só pode confirmar-se, na improcedência da presente apelação.

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC).
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, em razão do que confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Not.

Porto, 16/6/2020
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro