Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1804/03.7TBPVZ-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: RP202405231804/03.7TBPVZ-B.P1
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade da sentença prevista no 615º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil (aplicável aos despachos por força do artigo 613º, nº 3,) prende-se com o disposto no artigo 154º, do mesmo diploma, que fixa o dever do juiz fundamentar a decisão e concretiza o comando constitucional contido no n.º 1 do artigo 205.º da CRP ao estabelecer que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
II - Acolhe-se em razões de ordem substancial, demonstração do raciocínio lógico do juiz na interpretação da norma geral e abstrata aplicada ao caso concreto e de ordem prática, dar a conhecer às partes os motivos da decisão, em particular à parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respetivo fundamento.
III - Este dever de fundamentação da decisão judicial, no entanto não tem de ser exaustivo e cumpre-se sempre que a fundamentação da decisão judicial, permite ao destinatário a perceção do iter cognoscitivo e valorativo de facto e de direito, revelando o que a justifica.
IV - Só se pode falar em sentença nula por falta de fundamentação, se, se verifica a ausência absoluta de fundamentos, seja de facto, seja de direito, não bastando a fundamentação deficiente e incompleta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1794/03.7TBPVZ-B.P1

Sumário (artigo 663, nº 7 do Código de Processo Civil)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos presentes autos, por decisão transitada em julgado em 15 de outubro de 2019, AA, foi nomeada acompanhante de BB, tendo desde essa data exercido as suas funções.
BB encontra-se a residir na Santa Casa de Misericórdia ... desde 28.08.2018.
A seu tempo a Santa Casa de Misericórdia ... deu conhecimento ao processo do não pagamento das mensalidades devidas desde junho de 2022, no valor global de 8.188,52 €.
Notificada a acompanhante confessou o não pagamento de tais quantias que justificou com a impossibilidade de aceder às contas bancárias da Acompanhada, por a tanto não ter sido autorizada ainda pelas respetivas entidades bancárias
A 16.12.2023 e 16-04-2024 a Santa Casa de Misericórdia ... deu conhecimento ao processo de que o não pagamento das mensalidades devidas desde junho de 2022 ascende respetivamente a 19.385,82€ e a 16.832,47€.
Foram solicitadas informações complementares às entidades bancárias
A 8.01.2024 o Banco 1... juntou extrato de conta d/o da acompanhada com inicio em 20/09/2019 do qual consta diversos movimentos a débito, transferências bancárias e pagamentos diversos em supermercados, lojas de roupas e outros que se prologam com regularidade até 7-01-2024.
Foi junto pela acompanhante contrato de arrendamento de um dos imóveis da acompanhada cuja renda mensal é de 600.00€
O MP teve vista, tendo promovido diligências.
Seguidamente a 6.02.2024 foi proferido despacho referência citius 456673783 que decretou «medida provisória e urgente» além do mais como os seguinte teor decisório:
(…)
Em face do exposto, impõe-se acautelar imediatamente o património da beneficiária, sem prévio contraditório da acompanhante, para assegurar a eficácia da providência.
Face ao exposto, ao abrigo do disposto no art.º 139.º, n.º 2 do Cód. Civil e 891.º, n.º 2 do CPC:
Decido aplicar como medida provisória e urgente o bloqueio das contas bancárias de que seja titular a beneficiária junto do Banco 1..., vedando a movimentação das mesmas pela acompanhante ainda em funções, AA.
(…)
A 21.02.2024 em despacho autónomo foi ordenada a notificação ao Ministério Público e a acompanhante nomeada do despacho de aplicação de medida provisória e urgente e do bloqueio efetivado pelo Banco 1....
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A Acompanhante, a 7.03.2024 veio arguir a nulidade do despacho referência citius 456673783, que decretou “medida provisória e urgente” sustentada na violação do contraditório prévio.
A 12.03.2024 FOI PROFERIDO DESPACHO JUDICIAL REFERÊNCIA CITIUS 457976465 QUE DESATENDEU A ARGUIDA NULIDADE, O QUAL COM O SEGUINTE TEOR:
“Requerimento de 07/03/2024:
Os procedimentos cautelares e medidas provisórias podem ser decretadas sem audição prévia do requerido, entre o mais, para acautelar a eficácia da providência (art.º 366.º, n.º 1 e 891.º, n.º 2 do CPC).
As razões que levaram o legislador a diferir o contraditório no arresto para momento posterior ao decretamento da providência (art.º 393.º, n.º 1 do CPC) são em tudo idênticas às que levaram o decretamento do bloqueio em causa nos autos sem audição prévia – assegurar o efeito-surpresa da decisão e evitar a dissipação dos valores depositados.
O desiderato que presidiu à dispensa do contraditório mostra-se perfeitamente expresso da decisão proferida, de que consta que se impõe “acautelar imediatamente o património da beneficiária, sem prévio contraditório da acompanhante, para assegurar a eficácia da providência”.
Nestes termos, não declaro verificada a nulidade processual apontada.
Notifique, incluindo a acompanhante de que poderá exercer o contraditório acerca dos documentos a que alude no requerimento supra, no prazo de 10 dias desde a notificação do presente despacho.
DESTE DESPACHO REFERÊNCIA CITIUS 457976465 APELOU A ACOMPANHANTE BB, TENDO FORMULADO AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
1- A Recorrente, notificada do despacho que decretou medida provisória e urgente, veio oportunamente arguir a nulidade do mesmo, por omissão do contraditório, nos termos e para os efeitos do art. 195, nº1 do CPC.
2- O Tribunal a quo, por despacho com a referência Citius 457976465, declara que não se verifica a nulidade processual invocada,
3- A recorrente, inconformada, vem interpor recurso do despacho supra identificado.
4- Porquanto, o despacho é omisso na sua fundamentação quer de facto quer de direito, remetendo a justificação da decisão para o anterior despacho que decretou a medida provisória e urgente, bem como,
5- Adere por completo, sem mais justificações, à promoção do Ministério Público formulada nesse sentido.
6- Posto isto, o despacho com a referência Citius 457976465 é nulo, nos termos do artigo 615, nº1, al. b) do CPC, por ausência de fundamentação, nulidade que agora expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
O MP respondeu tendo sustentado a falta de fundamento do recurso
Nada obsta ao mérito.
OBJETO DO PROCESSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões da recorrente a única questão a decidir é a de saber se a decisão recorrida (referência citius 457976465) – que indeferiu o requerimento apresentado nos autos de arguição de nulidade processual por preterição do contraditório, é nula nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

O MÉRITO DO RECURSO:
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a fundamentação supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Visando modificar/alterar a decisão do tribunal a quo onde alegadamente foi infringido o princípio do contraditório, a apelante não recorreu do despacho que decretou a medida provisória (nem com esse fundamento nem com outro), antes atravessou no processo requerimento autónomo a reclamar a nulidade consistente na preterição do contraditório prévio acostada no regime previsto nos artigos 195º e ss do Código de Processo Civil, sendo que é da decisão deste último incidente, a qual arguida de nula por falta de fundamentação, que incide o objeto deste recurso.
APRECIANDO
As causas de nulidade da sentença encontram-se enumeradas, de forma taxativa, no artigo 615º do Código de Processo Civil.
É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito. As nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento ( error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
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A nulidade assacada ao despacho recorrido (referência citius 457976465) é a prevista na alínea b) do artigo 615º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. b) do C.P.C. “é nula a sentença quando (…) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…)”.
A nulidade contemplada nesse preceito impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstrata soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respetivo fundamento
Prende-se com o disposto no artigo 154º, do mesmo diploma, que fixa o dever do juiz fundamentar a decisão e concretiza o comando constitucional contido no n.º 1 do artigo 205.º da CRP ao estabelecer que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».
É inquestionável que o dever de fundamentação das decisões judiciais, sendo uma garantia do Estado de Direito, reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afetam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adoção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
A decisão judicial é legitimada pela sua fundamentação que no entanto não tem de ser exaustiva, podendo aliás ser sucinta “o grau de exigência da sua concretização é diretamente proporcional ao grau de litigiosidade ou de controvérsia” Acórdão do TRL de 22.01.2008 processo 5705/2007.1, nota 11, ao artigo 154º do Código de Processo Civil anotado 4ª edição de Abílio Neto.
“Este dever cumpre-se sempre que a fundamentação da decisão judicial, apesar de algum eventual défice, permite ao destinatário a perceção das razões de facto e de direito, revelando o iter cognoscitivo e valorativo que a justifica” Acórdão do TRP de 19.10.2015, processo 1643/15, nota 18 ao artigo 154º do Código de Processo Civil anotado 4ª edição de Abílio Neto.
Com efeito, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, p. 687: “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Já afirmava o Prof. Alberto os Reis, Comentário ao Código de Processo Civil vol 2º, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
No mesmo sentido tem vindo a ser proferida jurisprudência pacífica e reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, sufragada, entre outros, nos acórdãos de 9.10.2019, Procº nº 2123/17.8LRA.C1.S1, 15.5.2019, Procº nº 835/15.0T8LRA.C3.S1 e 2.6.2016, Procº nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1, em todos se tendo decidido que só se verifica a nulidade da sentença em caso de falta absoluta de fundamentação ou motivação não bastando que esta seja deficiente, incompleta ou não convincente.
Podemos assim concluir que apenas será nula a decisão judicial que padece de falta absoluta de fundamentação quer de facto quer de direito.
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A nosso ver o despacho recorrido apresenta-se suficientemente fundamentado.
Convocou as regras jurídicas aplicáveis “Os procedimentos cautelares e medidas provisórias podem ser decretadas sem audição prévia do requerido, entre o mais, para acautelar a eficácia da providência (art.º 366.º, n.º 1 e 891.º, n.º 2 do CPC).
As razões que levaram o legislador a diferir o contraditório no arresto para momento posterior ao decretamento da providência (art.º 393.º, n.º 1 do CPC) são em tudo idênticas às que levaram o decretamento do bloqueio em causa nos autos sem audição prévia – assegurar o efeito-surpresa da decisão e evitar a dissipação dos valores depositados”.
e justificou a dispensa de contraditório prévio com a valoração que o tribunal fez da necessidade urgente de acautelar a situação/interesses visados, neste se explicitando que (…)” O desiderato que presidiu à dispensa do contraditório mostra-se perfeitamente expresso da decisão proferida, de que consta que se impõe “acautelar imediatamente o património da beneficiária, sem prévio contraditório da acompanhante, para assegurar a eficácia da providência”.
Nem se pode dizer como faz a Recorrente que o despacho recorrido “Adere por completo, sem mais justificações, à promoção do Ministério Público formulada nesse sentido”, pois a verdade é que a fundamentação do MP acolhe-se na fundamentação da decisão provisória e cautelar que legitima a preterição do contraditório que é a questão concreta a apreciar no despacho recorrido, ou seja, ocorre precisamente o inverso do alegado..
Em tais termos se conclui que não assiste qualquer razão à Recorrente quando pretende imputar à decisão recorrida a nulidade do artigo 615º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil que por isso, se desatende.
SEGUE DECISÃO.
NÃO PROVIDO O RECURSO. CONFIRMA-SE A DECISÃO RECORRIDA.
Custas pela Recorrente

Porto, 23 de maio de 2024
Isoleta de Almeida Costa
Ana Luísa Loureiro
Isabel Peixoto Pereira