Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2038/23.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: FALTA DE CONTESTAÇÃO
EFEITOS DA REVELIA
FORMALIDADES AD PROBATIONEM
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Nº do Documento: RP202406062038/23.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de contestação determina a confissão dos factos articulados pelo autor quando o réu não contestante tenha sido ou deva considerar-se regularmente citado na sua própria pessoa, ou haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu constitui a designada confissão tácita ou ficta (ficta confessio).
II - A revelia não produz efeitos em relação aos factos para a prova dos quais se exija documento escrito.
III - Face ao que dispõe o n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, a exigência de forma escrita para os contratos de arrendamento é meramente ad probationem.
IV - Faltando factos essenciais (na acepção estrita), a petição inicial considera-se inepta, não há lugar a despacho de aperfeiçoamento para permitir que essa falta seja suprida, tendo como consequência processual a absolvição do réu da instância
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2038/23.0T8MTS.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE AA E DE BB, representada pela cabeça de casal CC, administradora judicial, com domicílio profissional na Av. ..., ... Braga, instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra DD, com o NIF ..., com domicílio na Rua ..., ..., ... Matosinhos, peticionando:

1. A condenação do réu no pagamento das rendas vencidas dos meses de Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2019, a totalidade das rendas vencidas no ano de 2020, e as rendas vencidas dos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro do ano de 2021, à razão de 300,00 Euros, cada uma, perfazendo a quantia global de 8.400,00 Euros, referente ao arrendamento da fração “F”, Loja ..., com a área bruta privativa total de 78,75000m2, destinada a actividades comerciais, serviços, similares de hotelaria, ao nível do piso um e sobreloja ao nível do piso dois, com entrada no piso um pelo Largo ..., ... de polícia, do prédio constituído em propriedade horizontal, sito no Largo ..., da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º ...-F e da fração “E” Loja ..., com a área bruta privativa total de 76,0000m2, destinada a atividades comerciais, serviços, similares de hotelaria, ao nível do piso um e sobreloja ao nível do piso dois, com entrada no piso um pelo Largo ..., ... de polícia, do prédio constituído em propriedade horizontal sito no Largo ..., da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º ...-E.

2. A condenação do réu no pagamento de juros de mora calculados à taxa legal supletiva de 4% ao ano, a contar desde a data de vencimento de cada uma das rendas em falta, até efectivo e integral reembolso, perfazendo os vencidos, à data da propositura da acção, a quantia de 784,31 Euros.

3. A condenação do réu a indemnizar a autora no valor necessário à reposição das identificadas frações no estado físico e de conservação em que aquele as recebeu, no valor mínimo de 35.000,00 Euros.

Alegou, para o efeito e, em síntese, o não pagamento por parte do réu das rendas desde Junho de 2019 até à data da entrega do locado à autora, em Setembro de 2021, devidas por força do contrato de arrendamento celebrado pelas partes referente às identificadas frações que integram o acervo patrimonial hereditário do de cujus da autora.

Alegou, por outro lado, que o réu restituiu as frações arrendadas com extensos danos, que obrigam à reparação das frações e cujas obras orçam em, pelo menos, 35.000,00 Euros.

Regularmente citado, o réu apresentou contestação, a qual não foi admitida.

Nessa sequência, ao abrigo do artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, julgaram-se confessados os factos alegados pela autora na petição inicial.

Cumpriu-se o disposto no artigo 567.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

Foi, após, proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Nestes termos e em face do exposto, julga-se a presente acção totalmente procedente e, em consequência:

1. Condena-se o réu DD a pagar à autora Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de AA e de BB a quantia de 8.400,00 Euros (oito mil e quatrocentos euros), a título de rendas vencidas entre Junho de 2019 e Setembro de 2021.

2. Condena-se o réu DD a pagar à autora Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de AA e de BB a quantia de 784,31 Euros (setecentos e oitenta e quatro euros e trinta e um cêntimos), a título de juros de mora, calculados à taxa legal aplicável às obrigações civis, de 4%, a contar desde a data de vencimento de cada uma das rendas em falta, até efetivo e integral reembolso.

3. Condena-se o réu DD a pagar à autora Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de AA e de BB a quantia de 35.000,00 Euros (trinta e cinco mil euros), a título de indemnização para reposição das identificadas frações no estado de conservação em que o réu as recebeu.

4. Condena-se o réu no pagamento das custas processuais.


*

Valor da Causa:

Ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 296.º, 297.º n.ºs 1 e 2, 299.º n.º 1 e 306.º do Código de Processo Civil, fixo à acção o valor de 44.184,31 Euros (quarenta e quatro mil cento e oitenta e quatro euros).


*

Registe e notifique”.

Não se conformando com o decidido, interpôs o Réu recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“A - Entende o Apelante que a sentença de que se recorre padece de erro de julgamento da matéria de facto, fazendo errada aplicação do direito, designadamente, quanto aos efeitos da revelia e à verificação de ineptidão da petição inicial, fazendo errada interpretação e aplicação, desde logo, dos artigos 186º, 590º, 567º e 568º, todos do CPC.

B - O Tribunal a quo julgou confessados os factos alegados pela Autora na petição inicial, em virtude de a contestação apresentada pelo Réu não ter sido admitida, ao abrigo do disposto no artigo 567º, n.º 1 do CPC.

C - A petição inicial apresenta deficiências que comprometem a sua finalidade, não contendo factos essenciais ao reconhecimento dos direitos invocados e pedidos a final pela Autora, ou os factos articulados são insuficientes ou imprecisos, tendo em vista o efeito jurídico pretendido.

D – A Autora não produziu prova escrita da existência da relação de arrendamento, ao não apresentar nos autos o contrato de arrendamento, apesar do convite do Tribunal a quo, de aperfeiçoamento da petição inicial e da junção do contrato de arrendamento.

E - Os contratos de arrendamento devem ser reduzidos a escrito, nos termos do artigo 1069.º, n.º 1 do Código Civil, não sendo suficiente, se caso fosse admissível, para prova da existência do contrato, o documento junto à petição inicial sob o n.º 7, que configura uma comunicação de contrato de arrendamento à Autoridade Tributária.

F - Configurando a existência de contrato de arrendamento, o prazo do contrato e os termos do mesmo, factos para cuja prova se exige documento escrito, verifica-se a exceção prevista na alínea d) do artigo 568º do CPC, que impede que se operem os efeitos da revelia – a confissão dos factos articulados pela Autora – previstos no artigo 567º do CPC.

G – Destaca-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14 março de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 2212/16.6T8BCL.G1 (Relator Margarida Almeida Fernandes), disponível em www.dgsi.pt, que “I – Em caso de revelia o art. 567º nº 1 do C.P.C. consagra um sistema de efeito cominatório semipleno uma vez que a causa não é necessariamente julgada procedente, antes deve ser julgada conforme for de direito.

II – Estes efeitos da revelia não são aplicáveis, designadamente quanto a factos para cuja prova se exija documento escrito, como é o caso do contrato de arrendamento.

III - Se a autora se limitou a alegar que é proprietária de determinado imóvel, que a ré é arrendatária do mesmo, que esta não paga a renda há vários anos e não juntou o respetivo contrato de arrendamento, e não tendo o Tribunal a quo proferido despacho a convidá-la a aperfeiçoar o seu articulado, bem como a juntar o referido contrato, a Relação pode conhecer desta nulidade processual apesar de não haver sido arguida pela apelante.”

H – Em face da não produção de prova escrita da inexistência de contrato de arrendamento, não podia o Tribunal a quo ter dado como provados os factos 10 a 23 dos factos provados indicados na fundamentação de facto, por não se operarem os efeitos da revelia.

I – Por não poderem ser considerados provados os factos 10 a 23 constantes da fundamentação de facto, devem, inelutavelmente, improceder os pedidos da Autora, absolvendo-se o Apelante, integralmente, dos pedidos formulados.

J – Face às deficiências existentes na petição inicial, que comprometem a sua finalidade, ao não conter factos essenciais ao reconhecimento dos direitos invocados e pedidos a final pela Autora, ou factos insuficientes e/ou imprecisos, tendo em vista o efeito jurídico pretendido;

K - Deveria o Tribunal a quo ter declarado inepta a petição inicial, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º do CPC, com a consequente nulidade do processo, conforme dispõe o n.º 1 do mesmo preceito legal.

L - Configurando a nulidade de todo o processo uma exceção dilatória, nos termos do disposto da alínea b) do artigo 577º do CPC, de conhecimento oficioso (artigo 578º do CPC), que se requer seja declarada, com a consequente absolvição do Recorrente da instância.

M - No que concerne ao petitório indemnizatório, a Autora limita-se a enumerar danos de forma vaga e imprecisa, não invoca que os mesmos derivam da atuação do Recorrente, nem os motivos pelos quais os danos não se qualificam como decorrentes da normal e prudente utilização do locado.

N - A Autora também não alega nem invoca os factos e fundamentos quanto aos pressupostos da responsabilidade civil contratual na qual se enquadrará o pedido indemnizatório efetuado, desde logo, que os alegados danos resultam de um comportamento ilícito, por ação ou omissão, do Apelante.

O - A Autora interpôs a presente ação mais de um ano e meio após a data de cessação do contrato de arrendamento e da entrega do locado que é indicada no artigo 22º da petição inicial - setembro de 2021.

P - Sendo a petição inicial omissa quanto à existência, no momento da entrega do locado, de danos ou degradação extraordinária, desconhecendo-se, nem o Tribunal a quo tem forma de o saber, sendo a petição inicial omissa, mais uma vez, qual o uso que foi dado às frações em questão após a cessação do contrato/entrega do locado em setembro de 2021.

Q - Também aqui se impunha o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial pelo Tribunal a quo, nos termos do previsto no artigo 590º do CPC, o que não se verificou.

R - Exigindo-se ao Tribunal, ao abrigo dos princípios do inquisitório, da gestão processual e da adequação formal, a adequação da tramitação processual da causa, de forma que, respeitando as especificidades do caso, seja possível alcançar a verdade material e a justa composição do litígio, conseguindo-se, assim, proferir uma decisão verdadeiramente justa.

S - O Tribunal a quo não respeitou o disposto nos artigos 562º e 566º do CC, relativos à obrigação de indemnização, que preveem o princípio da reconstituição natural em detrimento da indemnização fixada em dinheiro.

T – Não tendo a Autora alegado na petição inicial a impossibilidade ou insuficiência da reconstituição natural, limitando-se a dizer que “as obras terão um custo de, pelo menos, 35.000,00 €”, pedindo a condenação do Réu no pagamento do valor mínimo de 35.000,00 €, não podia o Tribunal a quo decidir, como decidiu, pela condenação do Recorrente no montante peticionado, em desrespeito pelo princípio da reconstituição natural.

U - Ainda que assim não fosse, e estivessem reunidos os pressupostos para a indemnização fixada em dinheiro, não dispunha o Tribunal a quo dos factos necessários para a redução da indemnização peticionada aos justos limites e a fixação de um valor indemnizatório.

Nestes termos e nos demais de direito, requer a V. Ex.ªs se dignem julgar procedente o presente recurso e conceder total provimento à Apelação, alterando-se a matéria de facto provada e alterando-se a decisão recorrida no sentido de absolver o Réu de tudo o peticionado pela Autora”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se:

- Ocorreu erro de julgamento da matéria de facto;

- É inepta a petição inicial;

- Se mostram preenchidos os pressupostos do dever de indemnizar.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:

1. Por sentença proferida no dia 04/01/2016, às 09h00m, no âmbito do processo n.º 8382/15.3T8GMR, que corre termos no Juízo de Comércio de Guimarães – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi declarada a insolvência de EE e de FF, tendo aí sido nomeada administradora da insolvência a Dra. CC.

2. A Massa Insolvente de EE e de FF instaurou processo de inventário para partilha das heranças abertas por óbito de AA e de BB,

3. Processo esse que corre termos no Cartório Notarial de GG, sito em Guimarães, com o n.º ....

4. No referido processo de inventário, a Sra. Administradora da Insolvência da Massa Insolvente de EE e de FF foi nomeada cabeça-de-casal das heranças a partilhar.

5. Enquanto cabeça-de-casal, no dia 13/07/2017, prestou declarações nos seguintes termos:

«(…) Que efectivamente o inventariado AA faleceu no dia trinta e um de Julho de dois mil e quatro (…) no estado de casado com BB, que também usava o nome de BB, em primeiras núpcias de ambos, sob o regime da comunhão geral (…)

Que o inventariado deixou testamento (…) no qual instituiu herdeira da quota disponível a sua referida mulher BB.

Que como únicos herdeiros lhe sucederam:

O CÔNJUGE

BB (…) já falecida;

TRÊS FILHOS,

(…)

a) EE, casado com FF, sob o regime de comunhão de adquiridos (…) ambos declarados insolventes pela aludida sentença de 04/01/2016, transitada em julgado em 26/01/2016, proferida pelo Juiz 1, do Juízo de Comércio de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no processo 8382/15.3T8GMR, tendo-lhes sido nomeada como administradora de insolvência a aqui cabeça de casal;

b) HH, viúvo (…)

c) BB, divorciada (…)

Três netos, filhos da filha pré-falecida II,

(…)

a) JJ, casada com KK, sob o regime da comunhão de adquiridos;

b) LL, solteiro, maior;

c) MM, solteira, maior.

Que por sua vez, a inventariada BB, que também usava o nome de BB, faleceu no dia oito de Junho de dois mil e sete (…) no estado de viúva de AA (…)

Que a inventariada também deixou testamento, outorgado no dia sete de Outubro de mil novecentos e oitenta e três (…) no qual instituiu herdeira da quota disponível o seu marido AA.

Que como únicos herdeiros lhe sucederam:

a) EE;

b) HH;

c) BB,

Três netos, filhos da filha pré-falecida II,

a) JJ;

b) LL

c) MM, todos atrás já identificados.

Que não existem outros herdeiros.

(…)».

6. Enquanto cabeça-de-casal, relacionou os bens pertencentes às heranças a partilhar, composto por prédios, contas bancárias e aplicações financeiras.

7. Na relação de bens, a cabeça de casal relacionou e descreveu, como verba n.º 31, a fração “E”, Loja ..., com a área bruta privativa total de 76,0000m2, destinada a actividades comerciais, serviços, similares de hotelaria, ao nível do piso um e sobreloja ao nível do piso dois, com entrada no piso um pelo Largo ..., ... de polícia, do prédio constituído em propriedade horizontal sito no Largo ..., da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art. ... e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º ...-E, com o valor patrimonial tributário de 60.687,72 Euros.

8. E como verba n.º 32, a fração “F” Loja ..., com a área bruta privativa total de 78,75000m2, destinada a atividades comerciais, serviços, similares de hotelaria, ao nível do piso um e sobreloja ao nível do piso dois, com entrada no piso um pelo Largo ..., ... de polícia, do prédio constituído em propriedade horizontal sito no Largo ..., da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art. ... e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º ...-F, com o valor patrimonial tributário de 62.883,65 Euros.

9. A aquisição dos referidos prédios encontra-se registada a favor de AA e mulher, BB, pelas ap. ..., de 2000/09/19.

10. A Herança Indivisa aberta por óbito de BB acordou com o réu, por documento denominado “contrato de arrendamento não habitacional”, a cedência do gozo das referidas frações.

11. Mais acordaram que, em contrapartida, o réu pagaria à Herança a quantia mensal de 300,00 Euros.

12. Os referidos prédios foram entregues em bom estado de conservação, tendo o réu dado o uso que entendeu, não tendo apontado qualquer reserva quanto ao estado em que o recebeu.

13. No final do mês de Setembro de 2021, o réu entregou as frações à autora.

14. A última prestação mensal que o réu entregou à autora foi no mês de Maio de 2019.

15. A autora por diversas vezes insistiu junto do réu pelo pagamento das rendas vencidas.

16. Sem qualquer sucesso.

17. O réu acordou restituir as frações em bom estado de conservação e limpeza, decorrente de utilização normal e prudente das mesmas.

18. O réu restituiu as frações com as paredes riscadas e degradadas, com furos destinados à fixação de móveis e de objectos às paredes e todas as alvenarias esburacadas.

19. Decorrente da remoção de diverso material, como apliques de iluminação e sistemas de ar condicionado, as paredes apresentam uma acentuada degradação.

20. As louças das casas-de-banho encontram-se partidas, bem como os materiais cerâmicos de revestimento dessas paredes.

21. As partes móveis das mesmas foram retiradas, bem como os seus acessórios.

22. Os pisos encontram-se partidos e riscados, tendo que ser integralmente substituídos.

23. As obras de reparação terão um custo de, pelo menos, 35.000,00 Euros.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

1. Reapreciação da matéria de facto.

Não se conformando o recorrente com a decisão proferida em primeira instância que apreciou a matéria de facto, reclama desta instância o reexame da mesma.

Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:

A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Sustenta o recorrente que “Em face da não produção de prova escrita da inexistência de contrato de arrendamento, não podia o Tribunal a quo ter dado como provados os factos 10 a 23 dos factos provados indicados na fundamentação de facto, por não se operarem os efeitos da revelia” – Alínea H das conclusões.

Sob a epígrafe Efeitos da Revelia, dispõe o artigo 567.º do Código de Processo Civil:

1 - Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.

2 - É concedido o prazo de 10 dias, primeiro ao mandatário do autor e depois ao mandatário do réu, para alegarem por escrito, com exame do suporte físico do processo, se necessário, e em seguida é proferida sentença, julgando-se a causa conforme for de direito.

3 - Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.

Àquele que é judicialmente demandado reconhece a lei o direito de defesa. De forma a poder exercer tal direito é citado para, querendo, contestar, no prazo legalmente fixado para o efeito.

Está, porém, na livre disponibilidade do demandado exercer ou não o direito que a lei lhe reconhece, sendo certo que à falta de contestação faz a mesma lei corresponder determinados efeitos jurídicos àquele desfavoráveis, tomando por confessados os factos articulados pelo autor.

Contestar acção contra si proposta é não apenas um direito do réu, mas também um ónus que sobre ele recai, na medida em que a lei processual associa consequências jurídicas desfavoráveis ao réu, no caso da revelia operante. O exercício da contestação constitui, pois, uma das expressões do princípio do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes

A falta de contestação determina, como resulta do citado n.º 1 do artigo 567.º do Código de Processo Civil, a confissão dos factos articulados pelo autor quando o réu, não contestante, tenha sido ou deva considerar-se regularmente citado na sua própria pessoa, ou haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu constitui a designada confissão tácita ou ficta (ficta confessio).

A operância da revelia leva a que se assuma como verificado nos autos o quadro factual alegado na petição inicial, deixando de subsistir qualquer controvérsia acerca do mesmo, limitando-se então o juiz  a decidir a causa “conforme for de direito[1]. Esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante[2] . Tal como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2015[3], “o efeito cominatório semi-pleno, decorrente da situação de revelia operante da R./demandada, apenas determina que se devam ter por confessados os factos efectivamente alegados pelo demandante – cabendo ao juiz sindicar da suficiência e concludência jurídica da factualidade assente por confissão ficta, em termos do preenchimento ou não da fattispecie subjacente ao pedido deduzido.”

Porém, a revelia não produz efeitos em relação aos factos para a prova dos quais se exija documento escrito[4].

Com efeito, impondo a lei[5] ou exigindo a convenção das partes[6] determinada forma para a declaração negocial, não pode a lei processual, em virtude da operância da revelia, por falta de contestação do réu, conduzir a uma solução contrária à definida em sede de lei substantiva.

Desta forma, ainda que o réu não conteste, se a lei ou a vontade das partes exigir documento escrito para prova de determinado facto alegado na petição inicial, se o autor não tiver junto tal documento a falta de contestação não pode suprir essa falta, pelo que tal facto não poderá ter-se por confessado.

Foi nos autos proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando a Autora a completar a petição inicial quanto aos termos do contrato de arrendamento por si alegado, no prazo de 10 dias e para, no mesmo prazo, juntar aos autos o contrato de arrendamento ainda em falta, respondendo esta ter o contrato sido celebrado a 1.01.2019 e que não dispõe do original do contrato de arrendamento, nem de cópia do mesmo, por se ter extraviado, dispondo apenas de documento comprovativo da participação à Autoridade Tributária, já junto ao processo.

À data em que o alegado contrato de arrendamento se terá iniciado, o artigo 1069.º do Código Civil, na redação conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, exigia que os contratos de arrendamento urbano, independentemente da sua modalidade, fossem celebrados por escrito.

Posteriormente, a Lei n.º 13/2019, de 12/02, veio aditar um número 2 ao referido normativo, permitindo que o arrendatário, na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não lhe seja imputável, possa provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário, sem oposição do senhorio, e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.

Por força do artigo 14.º, n.º 2, da referida Lei, o disposto no artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil, com as alterações por ela introduzidas, aplica-se a arrendamentos celebrados em data anterior, mas subsistentes à sua entrada em vigor.

O n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, tal como se acha formulado, aponta no sentido de que a exigência de forma escrita para os contratos de arrendamento é meramente ad probationem[7], pelo que, de acordo com o disposto no artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil, a celebração do contrato de arrendamento pode ser provada por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, devendo, neste último caso, a confissão constar de documento de igual ou superior valor probatório.

Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2022, “Esta confissão tem que ser expressa, pelo que estão excluídas as confissões resultantes da não impugnação de factos nos articulados, razão pela qual não é possível na fase de condensação apurar da celebração de um contrato de arrendamento não escrito, mas já poderá resultar de depoimento de parte prestado na audiência de julgamento, o qual poderá ser determinado pelo juiz (artigo 452.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Operando, em relação aos factos elencados como provados no ponto 10 da sentença aqui escrutinada, a circunstância excludente prevista na alínea d), do artigo 568.º do Código de Processo Civil, não tendo sido junto o contrato de arrendamento invocado pela Autora, apesar de notificada para proceder a essa junção, não poderá considerar-se provado, ainda que na ausência de contestação, que o acordo a que alude o referido segmento decisório foi “por documento denominado contrato de arrendamento habitacional”, já não operando aquela circunstância excludente quanto à restante matéria nele incluída, ou seja, o  acordo de cedência de gozo das fracções.

Quanto aos demais factos (pontos 11 a 23), não se achando abrangidos pelo regime de excepção do referido normativo, não podem ser objecto de impugnação pelo recorrente em sede de recurso, pelo que devem considerar-se fixados.

Com efeito, como refere o acórdão da Relação de Évora de 28.09.2023[8], “de harmonia com o preceituado no artigo 573.º do CPC, a respeito da oportunidade de dedução da defesa, não pode o recurso servir para que os Apelantes aleguem por esta via, aquilo que não alegaram oportunamente no prazo de apresentação da respetiva contestação, pois o momento de dedução da sua defesa, na vertente de facto, há muito se esgotou, precludindo o decurso do prazo para o efeito a possibilidade de impugnação do julgamento de facto, salvo se tiver havido violação de meio de prova tarifada [...].

Assim, pese embora os réus possam inequivocamente impugnar o julgamento na vertente jurídica da causa e «sindicar se a primeira instância respeitou os artigos 189.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, e, no limite, se respeitou o objeto da admissão por confissão prevista no n.º 1 do artigo 567.º»,(…) «não poderá, porém, impugnar o julgamento dos factos com a mesma amplitude que teria se revel não fosse. É que o recurso não pode servir para cumprir as funções da (omissa) contestação»”.

Assim, a confissão ficta dos factos alegados pela autora vertidos nos pontos 11 a 23 da matéria de facto provada, veda ao réu, que oportunamente nada disse, a possibilidade de, por via recursiva, colocar em causa tal decisão de facto.

Em conclusão: improcede o recurso do apelante quanto à impugnação da decisão de facto relativamente à matéria constante dos pontos 11 a 23, procedendo quanto à impugnação da matéria vertida no ponto 10, em relação à qual, por força do disposto no artigo 568.º, alínea d) do Código de Processo Civil, não operou a confissão ficta permitida pelo n.º 1 do artigo 567.º do referido diploma quanto à existência de documento denominado “contrato de arrendamento não habitacional”.

Assim, procede-se à alteração do ponto 10 dos factos provados, cuja redacção passa a ser a seguinte:

- 10. A Herança Indivisa aberta por óbito de BB acordou com o réu a cedência do gozo das referidas frações.

2. Da invocada ineptidão da petição inicial.

Alega o recorrente, em sede de recurso:

“J – Face às deficiências existentes na petição inicial, que comprometem a sua finalidade, ao não conter factos essenciais ao reconhecimento dos direitos invocados e pedidos a final pela Autora, ou factos insuficientes e/ou imprecisos, tendo em vista o efeito jurídico pretendido;

K - Deveria o Tribunal a quo ter declarado inepta a petição inicial, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º do CPC, com a consequente nulidade do processo, conforme dispõe o n.º 1 do mesmo preceito legal.

L - Configurando a nulidade de todo o processo uma exceção dilatória, nos termos do disposto da alínea b) do artigo 577º do CPC, de conhecimento oficioso (artigo 578º do CPC), que se requer seja declarada, com a consequente absolvição do Recorrente da instância”.

Segundo o n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil, “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”.

E acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo:

“Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

A ineptidão da petição inicial emana da análise da causa de pedir e do pedido, enquanto elementos essenciais, estruturantes e estruturadores do objecto do processo, os quais, por sua vez, delimitam os poderes de cognição do tribunal.

Segundo o artigo 552.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil, “Na petição, com que propõe a acção, deve o autor […] expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, ou seja, o conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido).

Os factos a que se refere a norma em causa são os factos principais, na concepção ampla dos factos essenciais a que alude o n.º 1 do artigo 5.º da lei processual civil, que, integrando a causa de pedir, têm função fundamentadora do pedido deduzido. A falta de alegação de algum deles compromete a procedência do pedido deduzido, por insuficiência de fundamentação de facto do mesmo, isto é, da respectiva causa de pedir, conduzindo à absolvição do demandado do pedido contra ele formulado

Alguns desses factos principais são, todavia, factos essenciais, mas agora numa acepção estrita: tratam-se de factos que cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor (a causa de pedir é, enquanto cumpre a sua função individualizadora, o núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido)[9]. Estando esses factos essenciais alegados, a causa de pedir mostra-se identificada, não podendo considerar.se inepta a petição inicial por falta de causa de pedir, embora possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.

Faltando factos essenciais (na acepção estrita), a petição inicial considera-se inepta, não há lugar a despacho de aperfeiçoamento para permitir que essa falta seja suprida, tendo como consequência processual a absolvição do réu da instância[10].

Omitidos outros factos principais, a petição inicial não será de considerar inepta, mas a causa de pedir acha-se incompleta ou está insuficientemente concretizada. Nesta hipótese deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento, que actualmente tem natureza vinculativa, convidando o juiz a parte a suprir as irregularidades do articulado, ou a suprir as deficiências de alegação ou exposição dos factos, designadamente completando a causa de pedir através de alegação de factos que complementem ou concretizem os factos antes alegados[11], podendo a parte ainda manifestar a vontade de se aproveitar desses factos que venham a surgir durante a instrução do processo[12].

Explica Lebre de Freitas[13] que a função individualizadora da causa de pedir permite verificar se a petição é apta (ou inepta) para suportar o pedido formulado e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da acção.

A causa de pedir é formada pelo complexo de factos que constituem o suporte da pretensão formulada, que fundamentam o efeito jurídico peticionado pelo autor.

Como refere Abrantes Geraldes[14], “no que concerne à causa de pedir, que, com o pedido completa o objecto do processo, exige-se da parte do autor, normalmente patrocinado por profissional do foro, apetrechado com os necessários conhecimentos técnicos, que saiba identificar os fundamentos fácticos da sua pretensão, de acordo com os preceitos que são aplicáveis, e transpor para o articulado inicial, através da verbalização adequada, a realidade histórica que subjaz ao litígio”.

Esse imperativo, que onera o autor, decorre claramente dos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, d) da lei adjectiva.

A primeira circunstância que conduz à ineptidão da petição ocorre quando não exista qualquer narração da factualidade que serve de suporte ao(s) pedido(s) da causa de pedir, ou no caso de falta de pedido, o qual permite identificar a tutela jurídica reclamada por quem exerce o direito de acção.

Daí que “…a falta de pedido ou de causa de pedir, traduzindo-se na falta de objecto do processo, constitui nulidade de todo ele, o mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente, o pedido ou a causa de pedir é formulado de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem a alegação de factos concretos[15].

Ocorre omissão de indicação de causa de pedir “quando falte a alegação do núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo concedentes do direito em causa[16]. Só esta constitui fundamento de ineptidão da petição inicial, com a decorrência processual fixada no n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, há que distinguir entre a falta absoluta de formulação de causa de pedir, traduzida na omissão de alegação do complexo factual que serve de fundamento à pretensão deduzida, e a insuficiência de causa de pedir, neste caso por o quadro fáctico alegado no articulado inicial não ser bastante para conduzir à procedência do efeito jurídico peticionado[17].

Já Alberto dos Reis[18] ensinava que “se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.

Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) quando (…) sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga”.

Também Anselmo de Castro[19] entende que “para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei - art. 193 º, n.º 2 al. a)- só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento”.

Só a total falta de causa de pedir, isto é, a absoluta ausência de factos fundamentadores da pretensão deduzida, é geradora do primeiro daqueles vícios[20], o que no caso concreto, como veremos, não se verifica.

A circunstância da causa de pedir e/ou o pedido serem incompreensíveis, isto é, indecifráveis também determina a ineptidão da petição. Sem conteúdo ou pretensão, a acção não pode assegurar qualquer tutela jurídica que demande a intervenção do tribunal.

A propósito da ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir esclarece Rodrigues Bastos[21]: “é necessário, porém, ter sempre presente que não é a obscuridade, a imperfeição ou equivocidade da indicação do pedido ou da causa de pedir que aquele preceito (al. a) do artigo 193º) contempla, como bem se vê da redacção do n.º 3 do mesmo artigo.

Poderá, assim, dizer-se que a petição é inepta por ininteligibilidade “quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir”[22].

A petição só será inepta por ininteligível quando, face à forma deficiente como os factos e/ou o pedido foram articulados, não for possível determinar qual a causa de pedir e/ou o pedido.

Outra circunstância que pode ditar a ineptidão da petição inicial verifica-se quando exista uma desarmonia irreversível entre a exposição dos factos e a pretensão jurídica formulada. Isto significa que o percurso expositivo da factualidade está em oposição com a pretendida solução jurídica, existindo um impacto entre ambas que não possibilita qualquer tutela jurisdicional.

No caso vertente, nenhum desses vícios se configura.

Como precisa a sentença recorrida, “os pedidos formulados pela autora visam a condenação do réu ao pagamento das rendas vencidas e vincendas e não pagas, bem como ao pagamento de uma indemnização pelos danos com que entregou as frações e com vista à sua reposição no estado de conservação em que aquele as recebeu”.

Para o efeito alegou, em síntese, haver acordado com o Réu a cedência a este do gozo das fracções identificadas na petição inicial, mediante a contrapartida mensal de € 300,00, e que este não procedeu à entrega das prestações acordadas desde Junho de 2019 até à data da entrega das fracções cujo gozo lhe havia sido cedido, em Setembro de 2021. a.

Alegou, por outro lado, que o réu restituiu as ditas frações com extensos danos, que obrigam à reparação das mesmas e cujas obras orçam em, pelo menos, 35.000,00 Euros.

Alegou, assim, a Autora, de forma compreensível, o núcleo dos factos essenciais à procedência dos pedidos que, em coerência com aqueles factos, formula.

A petição inicial é, pois, apta à procedência dos pedidos formulados, improcedendo o invocado vício de nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial.

3. Da indemnização.

Refere a sentença recorrida: “...quanto ao pedido indemnizatório, decorre também das alíneas d) e i) do artigo 1038.º, bem como do n.º 1 do artigo 1043.º do Código Civil, que o locatário é obrigado a manter e a restituir o locado no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.

Nos termos do artigo 1044.º do Código Civil, o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela, responsabilidade civil esta que assume natureza contratual e, nesse sentido, encontra sujeita ao regime do artigo 798.º e segs. do Código Civil, do qual releva, desde logo, a presunção de culpa do artigo 799.º do Código Civil, pela qual incumberá ao locatário provar que o incumprimento contratual das citadas obrigações legais não procede de culpa sua.

No caso, face aos danos verificados aquando da entrega das frações pelo réu, as referidas obrigações de conservação e manutenção da coisa locada mostram-se incumpridas, incumprimento esse que se presume culposo (sem que tal presunção tenha ficado ilidida), sendo ainda geradora de danos para a autora que, sendo forçada a reparar os vícios constatados, terá que despender, pelo menos, a quantia de 35.000,00 Euros, nas respetivas obras.

Tal princípio indemnizatório tem consagração, ainda, nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil”.

Da celebração de um contrato de arrendamento resulta, para o inquilino, não só a obrigação de pagar a renda, mas também a de utilizar o prédio arrendado de forma prudente, no âmbito e para os fins do contrato celebrado, sendo implicitamente responsável pelas deteriorações que resultem de uma utilização imprudente[23].

O arrendatário deve, pois, utilizar o imóvel prudentemente, ou seja, como o utilizaria um bom pai de família. A utilização prudente do prédio permite-lhe, no entanto, fazer pequenas deteriorações que se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade que, porém, salvo estipulação contrária, deve reparar antes da restituição do prédio ao senhorio[24].

O arrendatário está, assim, vinculado a, findo o contrato de arrendamento, restituir o imóvel arrendado no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato, sendo certo que a lei presume que o local arrendado lhe foi entregue em bom estado de manutenção, presunção que, evidentemente, joga a favor do senhorio[25].

O inquilino está, pois, adstrito a indemnizar o senhorio por todas as deteriorações que cause no bem arrendado, que não sejam provocadas pelo decurso do tempo ou inerentes a uma prudente utilização desse mesmo bem[26].

Independentemente dessa relação contratual, também o possuidor de boa fé está obrigado a restituir a coisa que lhe foi entregue no estado em que a recebeu, respondendo pela deterioração da coisa nos termos do disposto no artigo 1269.º do Código Civil.

Resulta nos autos comprovado que o réu acordou restituir as frações em bom estado de conservação e limpeza, decorrente de utilização normal e prudente das mesmas.

Porém, contrariamente ao acordado, o réu restituiu as frações com as paredes riscadas e degradadas, com furos destinados à fixação de móveis e de objectos às paredes e todas as alvenarias esburacadas.

Decorrente da remoção de diverso material, como apliques de iluminação e sistemas de ar condicionado, as paredes apresentam uma acentuada degradação.

As louças das casas-de-banho encontram-se partidas, bem como os materiais cerâmicos de revestimento dessas paredes.

As partes móveis das mesmas foram retiradas, bem como os seus acessórios.

Os pisos encontram-se partidos e riscados, tendo que ser integralmente substituídos.

Do descrito factualismo resulta evidente não ter o réu cumprido a obrigação de restituir as fracções em bom estado de conservação e limpeza, apresentando as mesmas as degradações e deteriorações enunciadas no elenco factual registado nos autos, incompatíveis com uma utilização prudente das mesmas.

Também aqui incumpriu o Réu a obrigação a que contratualmente se vinculara, incumprimento que se presume culposo, nos termos do disposto no artigo 799.º do Código Civil.

E tendo as obras de reparação das aludidas deteriorações um custo de, pelo menos, € 35.000,00, que a Autora terá de custear, correspondendo ao dano sofrido em consequência das mesmas, é o Réu responsável nos termos dos artigos 562.º e 566.º, ambos do Código Civil.

Improcede, consequentemente, o recurso, com excepção da alteração do ponto 10.º dos factos provados, nos termos que antes se deixaram expostos, mas sem qualquer influência no desfecho da acção.

Confirma-se, assim, o decidido.


*

Síntese conclusiva:

………………………………

………………………………

………………………………


*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:
- Alterar o ponto 10.º dos factos provados, cuja redacção passa a ser a seguinte: “A Herança Indivisa aberta por óbito de BB acordou com o réu a cedência do gozo das referidas frações”;
- Quanto ao mais, confirmar a sentença recorrida.

Custas: pelo recorrente, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.

Porto, 6.06.2024
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Isabel Silva
António Carneiro da Silva
_________________
[1] Artigo 567.º, n.º 2, in fine, do Código de Processo Civil.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 630.
[3] Processo n.º 7256/10.9TBCSC.L1.S4, www.dgsi.pt.
[4] Alínea d) do artigo 568.º do Código de Processo Civil.
[5] Artigo 364.º do Código Civil.
[6] Artigo 223.º do Código Civil.
[7] Neste sentido, cfr., entre outros, acórdão do STJ de 12.01.2022, processo n.º 9715/19.9T8LRS.L1.S1; da Relação de Lisboa de 7.05.2024, processo n.º 3006/21.2T8CSC.L1-7; da Relação do Porto, de 4.03.2024, processo n.º 18195/21.8T8PRT.P1, todos em www.dgsi.pt.
[8] Processo n.º 1728/22.0T8STR.E1, www.dgsi.pt.
[9] Lebre de Freitas, A acção declarativa, pág. 41; Introdução ao processo civil…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 64/72.
[10] Artigos 186.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, b), 577.º, b), 595.º, n.º 1, a, todos do Código de Processo Civil.
[11] Artigo 590.º, n.ºs 2, b) e 4 do Código de Processo Civil.
[12] Artigo 5.º, n.º 2, b) do Código de Processo Civil.
[13] Introdução, 2013, págs. 70, 71.
[14] “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, ed. Almedina, pág. 81.
[15] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil anotado”, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 343.
[16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2007, processo nº 06A4150, www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 82.
[18] “Comentário ao Código de Processo Civil”, 2º, págs. 364 e 371.
[19] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, pág. 221.
[20] Cfr. acórdão da Relação do Porto de 29.09.2011, processo nº 1023/10.0TBVNG.P1, www.dgsi.pt.
[21] “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. I, pág. 253.
[22] Citado acórdão da Relação do Porto de 29.09.2011.
[23] Artigos 1038.º, c) e d), e 1043.º, n.º 1, do Código Civil.
[24] Artigo 1073.º, nºs 1 e 2, do Código Civil.
[25] Artigos 350.º, n.ºs 1 e 2, e 1043.º, n.º 2, do Código Civil.
[26] Artigo 1044.º do Código Civil.