Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7146/20.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP202211107146/20.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A avaliação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art.º 640º do CPC, o Tribunal da Relação deve ponderar as razões subjacentes à sua imposição e o princípio da proporcionalidade, não sendo de rejeitar o recurso quando estão em causa simples imprecisões, mais de ordem formal que substancial.
II - Não obstante, existe um mínimo a cumprir, designadamente a indicação nas conclusões de quais os factos em concreto que o Recorrente põe em crise e quais os concretos meios probatórios que em sua opinião impunham decisão diversa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 7146/20.7T8PRT.P1
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. AA (na qualidade de unida de facto), BB e CC (na qualidade de filhos), DD e EE (na qualidade de netos, menores, representados por sua mãe) intentaram ação contra X... - Companhia de Seguros, SA, pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia de € 380.385,79, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais e patrimoniais ocorridos em consequência de um acidente de viação que veio a resultar na morte de FF.
Em contestação, a Ré suscitou que os netos DD e EE não detêm a qualidade de lesados e que à companheira AA também não assiste o peticionado direito a alimentos futuros. Invocou que a vítima FF conduzia sob a influência do álcool, que lhe afetou a capacidade de condução, e deu causa ao acidente. Impugnou parcialmente os factos alegados.
Por fim, pediu a intervenção principal acessória do seu segurado, GG, com fundamento em direito de regresso, dado que o mesmo abandonou o sinistrado.
A intervenção foi diferida e o Interveniente GG apresentou contestação, imputando a responsabilidade do acidente à vítima.
O Instituto de Segurança Social (ISS) veio também pedir o reembolso das pensões de sobrevivência satisfeitas à Autora companheira da vítima, no valor de € 3.682,85, acrescido das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da ação.
Foi proferido despacho saneador, com seleção da matéria factual assente e controvertida com interesse para a decisão da causa.
Os Autores vieram a desistir parcialmente do pedido, relativamente ao pagamento do valor em falta do mútuo.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.

2. Inconformados, vieram os Autores AA, BB e CC interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Na douta sentença que ora se recorre, o conhecimento do mérito da causa consubstanciou-se, assim como dela consta, da convicção do julgador, pela ponderação e valoração, de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.
II. É nesta medida que a prova produzida, não serve o fim a que se propõe, de constituir a formação da convicção do douto tribunal nos fatos objetivos e formais da matéria de fato.
Desta forma,
III. Tendo o tribunal a quo afastado toda a prova apresentada e contraditando processualmente, como se evidenciou, a posição que vinha reiterando em processo e em apenso, colocou não só o julgamento de mérito em causa, mas concomitantemente a frágil situação dos aqui Recorrentes.
IV. Tendo sido mal valorada a prova testemunhal, também as conclusões que se tiram, tanto de facto como de direito saem fortemente inquinadas.
V. Tal como o que se apresenta transcrito dos trechos das inquirições destas alegações, todas as testemunhas do acidente e os elementos da força pública que acorreram ao local, corroboram no que os Recorrentes alegam no seu petitório inicial nomeadamente, que o acidente de viação se deve à manobra invasiva da hemi-faixa do veículo XG pelo veículo VF, por transposição de uma linha longitudinal continua e que o local do embate se dá nessa mesma hemi-faixa.
VI. A Meritíssima Juiz a quo promoveu por si violar o princípio da autonomia privada e dos direitos disponíveis pelas partes para absolver do pedido a Ré seguradora que já havia extrajudicialmente assumido a responsabilidade pelo acidente.
VII. Na verdade, tal assunção de responsabilidade está documentalmente provada nos autos em que, o que se discutia na verdade até era o quantum indemnizatório e não se a este havia direito ou não.
VIII. E é nesta medida que se considera, a decisão aqui em crise, além de tudo o mais, uma decisão surpresa pois contraria a prova produzida e faz tábua rasa do princípio da autonomia privada e dos direitos disponíveis e do poder dos particulares – neste caso a Ré seguradora - decidirem se assumem ou não a responsabilidade civil pelo acidente.
IX. E assim se impunha a matéria de facto provada com fundamento na prova produzida, mormente a prova gravada por da mesma não se poder concluir como se concluiu no ponto JJ da matéria provada.
X. Muito pelo contrário, a conclusão deve ser exatamente a inversa por ser o que decorre do depoimento das testemunhas como acima se viu pelas transcrições.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve a matéria de facto provada na sentença em crise ser alterada no sentido de dar como provado que o embate se deu quando o Mini (VF) ainda não se encontrava na sua faixa de rodagem.
E consequentemente, que o acidente se deu por culpa exclusiva do condutor desta viatura, devendo a Ré seguradora e aqui Recorrida, para quem a responsabilidade civil está transferida, ser condenada em toda a extensão do que foi pedido pelos Recorrentes na ação declarativa de cuja decisão aqui se recorre. Assim decidindo, farão V. Exas, mais uma vez a habitual e sã JUSTIÇA!»

3. Contra-alegaram a Ré e o Interveniente, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados na douta sentença:
«FACTOS PROVADOS
A) Pelo contrato de seguro automóvel obrigatório com a apólice n.º ... foi transferida para a Ré a responsabilidade relativamente aos danos causados pela viatura marca MINI, modelo ..., matrícula ..-VF-.., propriedade de GG.
B) No passado dia 1 de Junho de 2019, cerca das 22:20 Horas, na Avenida ..., na freguesia ..., concelho de Vila do Felgueiras, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo ..., matrícula XG-..-.., propriedade de FF, e conduzido pelo seu proprietário, falecido e o veículo marca MINI, modelo ..., matrícula ..-VF-.., propriedade de GG, e conduzido pelo mesmo, bem como um terceiro veículo marca OPEL, modelo ..., matricula ..-AO-.., propriedade de HH e conduzido por II.
C) São filhos do falecido sinistrado, o qual morreu intestado e no estado de solteiro e da Autora AA os Autores BB e CC.
D) Os Autores DD e EE são filhos da também ela Autora, CC.
E) Os veículos VF e AO circulavam no sentido ascendente daquela Avenida, em direção ao santuário de ....
F) O veículo conduzido pelo falecido FF, circulava no sentido descente em direção ao centro da cidade.
G) Para a Ré, na ocasião do embate, estava transferida a responsabilidade pela circulação do Mini ..., através da Apólice de Seguro n.º ....
H) O sinistrado FF veio a falecer dos ferimentos causados pelo acidente, sendo que o óbito veio a ser declarado já na madrugada de 2 de junho.
I) Tinha 58 anos à data do sinistro.
J) A Segurança Social satisfez, a título de subsídio às despesas decorrentes do funeral, o montante de 1.307,28€ (mil trezentos e sete euros e vinte oito cêntimos).
L) A Autora AA recebe pensão de sobrevivência que lhe é paga pela Segurança Social, no valor de € 191,20 (cento e noventa e um euros e vinte cêntimos).
M) A 8 de Novembro de 2019, foi pela Ré apresentada aos AA proposta de ressarcimento dos danos decorrentes do sinistro, da qual constam os seguintes valores: “Com vista à regularização extra judicial do assunto, remeto, abaixo, proposta final de indemnização, por morte da infeliz vitima, FF, nos seguintes termos: Perda direito à Vida: €40.000,00; Dano moral da própria vítima: €1.750,00; Dano moral do cônjuge: €17.500,00; Dano moral dos Filhos (2) -€15.000,00 (€7.500,00 x2); Despesas com funeral: €2.065,00; Dano Patrimonial Futuro com base no SMN liquido até á idade da reforma: €27.459,43 ( o valor apurado com base nas premissas acima referidas é de €41.189,14 sendo que deste valor 1/3 é descontado a titulo de despesa com o próprio, ou seja, o valor do rendimento que seria imputado a despesas próprias da infeliz vitima), no montante de €13.729,71), Total : €103.774,43 (cento e três mil setecentos e setenta e quatro euros e quarenta e três cêntimos)”, conforme Doc. 14 junto com a petição, que se dá por reproduzido e integrado para os legais efeitos.
N) O malogrado FF, no momento do acidente, conduzia o ..-AO-.. com uma TAS de, pelo menos, 2,10 gramas de álcool por litro de sangue.
O) Devido à taxa de álcool no sangue com a qual conduzia, o FF estava afetado na sua coordenação psico-motora, os seus reflexos, a sua atenção e os tempos de reação estavam diminuídos, os seus campos de visão e de audição estavam reduzidos, a sua capacidade de análise das distâncias e da velocidade estavam afetadas.
P) O álcool no sangue atuava sobre o FF como agente desinibidor, provocando nele uma anormal euforia e sensação de controlo, bom como uma subavaliação dos perigos.
Q) Aqueles efeitos do álcool afetavam a capacidade de condução do FF, limitando e diminuindo a sua aptidão para conduzir com atenção, destreza e perícia.
R) A Autora AA vivia, à data do acidente, em união de facto com o lesado FF tendo tal união durado largo tempo, até que a morte deste os separou.
S) Na sequência do acidente, o condutor do veículo seguro na Ré, após ser removido do veículo com auxílio do condutor do terceiro veículo indicado acima, ausentou-se do local do acidente/da cena deste, antes da chegada da autoridade policial, como dos bombeiros, não se tendo apresentado àquela autoridade policial na ocasião, mas apenas ulteriormente, decorridos alguns dias sobre o sinistro.
T) O acidente ocorreu numa noite de Verão, com piso seco e sem qualquer obstáculo na via.
U) O local em que o acidente se verificou, era uma reta com a inclinação que se alcança da fotografia sob o número 56 do relatório tático de inspecção ocular junto aos autos, com visibilidade recíproca não inferior a 50 metros, mostrando-se o pavimento em bom estado de conservação.
V) No local do acidente, a via tinha uma largura de 6,10 metros e bermas de ambos os lados.
X) O eixo da via encontrava-se delimitado por uma linha longitudinal contínua, pouco visível, bastante desgastada.
Z) A via, no local do acidente, estava ladeada por árvores e vedação de madeira na lateral, com saída para a via pública, próxima do Hospital ..., sito na mesma cidade e freguesia.
AA) O veículo ..-VF-.., Mini ... realizou antes do embate uma manobra de ultrapassagem do veículo de matrícula ..-AO-.., Opel ....
BB) O 84-VF e o veículo da vítima embateram, sendo-o a parte frontal esquerda do veículo da vítima.
CC) Após o embate o veículo do lesado prosseguiu a sua marcha e acabou por capotar, ficando imobilizado na faixa de rodagem destinada ao trânsito do sentido que tomava.
DD) O Mini ... ficou imobilizado contra um poste de iluminação, existente na berma, na lateral direita da faixa de rodagem, tendo emborcado e ficado virado na horizontal, do lado do condutor.
EE) Após a imobilização do veículo, o lesado ficou encarcerado no veículo, como consequência do embate, mas também da trajectória e capotamento do veículo após a colisão.
FF) O condutor do Mini ... foi ajudado a sair do veículo, mediante a quebra completa do para brisas da frente deste, pelo condutor do Opel ..., sendo que, após sair do veículo e efetuar uma chamada telefónica, ausentou-se do local do sinistro a pé, não tendo aguardado pela chegada da autoridade policial, nem também ali se tendo apresentado perante ela, enquanto realizava as normais diligências subsequentes a um acidente.
GG) O condutor do primeiro veículo embatido foi auxiliado pelos ocupantes do Opel ..., que pediram o auxílio da emergência médica e polícia.
HH) O automóvel do interveniente não foi embatido na frente, mas na sua roda da frente esquerda, sendo que os respetivos faróis de nevoeiro ficaram intactos e apenas a ótica frente esquerda (posicionada lateralmente) e a roda frente esquerda, foram arrancadas.
II) O local do embate, no sentido da circulação do veículo do falecido FF, configura uma reta, com descida de percentagem já referida, precedida de uma curva.
JJ) O embate deu-se quando o Mini (VF) já se encontrava na sua faixa de rodagem.
LL) O veículo VF com o embate foi projetado para trás, levantando e embatendo no poste.
MM) Após o desencarceramento, o condutor do veículo Volkswagen, foi assistido pelos Bombeiros e já dentro da ambulância teve uma paragem cardiorrespiratória, tendo a equipa médica conseguido reverter este quadro e estabilizado o condutor, que, encaminhado para o Hospital 1... em Guimarães, viria a falecer horas mais tarde.
NN) Durante o período de assistência hospitalar, o FF entrou novamente em paragem cardiorrespiratória.
OO) Do acidente resultaram para aquele, fratura do corpo da vertebra C3 da coluna vertebral, com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes, bem como fratura das costelas lado esquerdo da 1.ª à 9.ª e lado direito da 1.ª à 6.ª, ao nível do arco anterior, com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes,fratura cominutiva da articulação do cotovelo esquerdo, fratura localizada na zona da coxa e terço proximal da perna esquerdo, entre hemorragias, lacerações e equimoses e outras lesões devidamente identificadas no relatório da autópsia junto aos autos, as quais foram causa da sua morte.
PP) Ao menos na ocasião da causação das lesões a vítima sofreu dores, tendo sofrido as dores provocadas pelos ferimentos, lesões traumáticas raqui-medulares, torácicas e pélvicas.
QQ) Os AA sofreram com a sua morte, intercedendo uma relação familiar próxima e afetuosa, de laços estreitos.
RR) O lesado e a Autora, AA recorreram a dois financiamentos bancários de 90.000,00€ e 60.000.00€, no total de 150.000,00€, conexos com a aquisição e construção de uma casa, na qual viviam, em andares diferentes e com entradas diferentes, a companheira (a Autora AA) e a vítima, a sua filha (a Autora CC) e os seus netos DD e EE.
SS) À data do acidente, FF estava desempregado, tendo exercido, até data não concretamente apurada, a profissão de mecânico.
TT) Após a morte e com o choque, a sua companheira de longa data, aqui autora, entrou num processo de depressão, angústia e choque emocional.
UU) A companheira vivia com o agora falecido, sendo doméstica, prestando-lhe todos os cuidados necessários na vida conjugal, nomeadamente, tarefas domésticas cozinhando, limpando-lhe a casa, existindo um bom relacionamento entre ambos, que se cuidavam mutuamente.
VV) À data do óbito o filho (o Autor BB) encontrava-se emigrado na Bulgária, onde se encontrava a trabalhar, tendo a perda do pai resultado em dor, angústia e choque, por não conseguir ver novamente o seu pai com vida, sendo que ao menos se deslocou a Portugal.
XX) A filha e netos residiam no primeiro andar da habitação construída pelo agora falecido, conviviam diariamente e tinham uma proximidade e uma convivência alegre e feliz com o pai e avô, respetivamente.
ZZ) Após o decesso de seu pai, a filha entrou também ela em depressão, causada pelo desgosto e dor da perda em circunstâncias tão trágicas.
AAA) O neto e neta necessitaram de apoio psicológico, com respetivamente 10 e 3 anos, para acompanhamento do processo de comunicação da morte do avô e todo o processo de luto, cuja repercussão se verificou a nível psicológico, a nível cognitivo e comportamental, pois ambos foram criados com o avô, que foi parte das suas infâncias e memórias.
BBB) Perderam o avô, mas também o companheiro de brincadeiras, dos lanches, dos ensinamentos do ofício da mecânica, do que com eles partilhava tempo e toda a disponibilidade que podia, do contador de histórias.
CCC) A Autora AA despendeu/liquidou:
a) Com o Funeral – 757,72€ (setecentos e cinquenta e sete euros e setenta e dois cêntimos) (para além do valor do subsídio recebido pela SS);
b) Com a aquisição de terra/sepultura no cemitério – 500.00€ (quinhentos euros);
c) Com o Jazigo – 1.650,00€ (mil seiscentos e cinquenta euros).
DDD) A A. CC gastou/pagou:
a) as viagens para Portugal e regresso do autor BB – 475.07€ -Quatrocentos e setenta e cinco euros e sete cêntimos;
b) a Habilitação dos herdeiros – 138.00€ (cento e trinta e oito euros);
c) Certidões de nascimento e óbito – 50.00€ (cinquenta euros).
EEE) A Autora AA aufere 558 EUR mensais pelo exercício da respetiva atividade.
FFF) Até à data da dedução da pretensão o ISSS, IP satisfez à A. AA, a título de pensão de sobrevivência, conforme certidão de fls. 142 dos autos, a quantia global de 3.682,85 EUR.
FACTOS NÃO PROVADOS
1. A união de facto da A. AA e da vítima durou mais de 33 anos;
2. O veículo propriedade do lesado circulava pela hemi-faixa esquerda, a velocidade moderada, a cerca de 40 km/h.
3. O seu condutor seguia atento à circulação de pessoas e bens, concentrado na condução e respeitando todas as diligências requeridas a uma condução segura.
4. A manobra de ultrapassagem assente em AA) foi-o inopinadamente e sem se acautelar de que não circulava qualquer veículo no sentido contrário;
5. Iniciada a ultrapassagem, o condutor do veículo seguro na Ré apercebeu-se que vinha um veículo em sentido contrário, pelo que, repentinamente, acelerou e tentou guinar para a direita para retomar a sua faixa de rodagem;
6. O capotamento do veículo da vítima ocorreu porque o condutor do Mini ... não controlou a velocidade do seu veículo, por forma a garantir a sua imobilização no espaço livre e visível à sua frente;
7. Foi o veículo do condutor do Mini ... que, após o choque frontal, foi ainda embater na lateral esquerda do veículo Opel ...;
8. O capotamento do Mini ... deveu-se à excessiva velocidade com a qual seguia;
9. O Mini ... circulava a uma velocidade seguramente superior a 90 km/h;
10. Após o embate o Mini ... ainda prosseguiu a marcha, imobilizando-se apenas, quando e porque chocou com o poste de iluminação contra o qual ficou imobilizado;
11.A assistência à vítima mortal foi efetuada pelos ocupantes do terceiro veículo.
12.Do lado da faixa destinada à circulação do veículo XG não havia iluminação pública.
13.Quando o interveniente iniciou a manobra de ultrapassagem do veículo que seguia na sua frente não avistou qualquer veículo em sentido contrário, nem sinais do mesmo;
14. A vítima teve a perceção das dores após ou para lá da ocasião assente em PP) e padeceu sofrimento e horas de angústia, entre o momento do acidente e o da morte, acrescidos da antevisão do acidente, antes de chocar frontalmente com o veículo Mini ...;
15.A vítima sofreu mediante a introdução de cânula da máscara laríngea e as manobras de reanimação, como sofreu também a angústia da consciência de que iria morrer;
16.Sofreu também por se aperceber de que não teria oportunidade de se despedir dos seus entes queridos, principalmente dos Autores e, principalmente, de que nunca mais os veria nem os abraçaria jamais;
17.À data do óbito o falecido era um homem robusto, proactivo, determinado, bem-disposto;
18.FF encerrou a atividade de mecânico em Maio de 2007;
19.Foi a A. AA a receber em primeira mão a notícia do falecimento do seu companheiro;
20.As despesas domésticas eram suportadas na íntegra pelo falecido;
21.A Autora AA sofre de doença crónica impeditiva da realização de esforços, pelo que uma das razões que levou o falecido FF a ficar por casa, foi a de auxiliar a companheira e dar-lhe assistência;
22. O Autor BB regressou definitivamente a Portugal para amparar e ser amparado pela família;
23.Dos mútuos assumidos a Autora AA ainda deve € 101.815,00, (cento e um mil oitocentos e quinze mil euros), mantendo-se a obrigação de proceder ao respectivo pagamento integral, apenas e a seu cargo;
24. A A. AA recebe € 610,00 mensais (seiscentos e dez euros mensais).»

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
· Se é de proceder à reapreciação da matéria de facto (questão colocada nas contra-alegações da Ré e do Interveniente);
· Perante uma resposta positiva, efetuar essa reapreciação;
· Em conformidade com o resultado da decisão sobre a matéria de facto, equacionar as suas repercussões na subsunção ao direito.

5.1. Se é de proceder à reapreciação da matéria de facto
A sindicância da matéria de facto tida em conta na 1ª instância, provada e/ou não provada, está dependente do cumprimento pelo Recorrente do ónus de alegação que se lhe impõe no art.º 640º do CPC, do seguinte teor:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
Partilhamos do entendimento mais recente da jurisprudência de que a avaliação do cumprimento deste ónus deve ser efetuado de acordo com as razões subjacentes à sua imposição, e com o princípio da proporcionalidade, não sendo de rejeitar o recurso quando estão em causa simples imprecisões, mais de ordem formal que substancial.
«I - A fim de evitar, na apreciação do cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC, os efeitos dum excessivo formalismo, tem o STJ procurado estabelecer uma separação entre os requisitos formais de admissão da impugnação da decisão de facto e os requisitos ligados ao mérito ou demérito da pretensão, afirmando que “a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro de reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade e consistência daquela fundamentação”.
II - Em todo o caso, há sempre um “mínimo” a cumprir, sem o qual ainda estaremos no âmbito do requisito formal do ónus de impugnação.
III - Tal “mínimo” não é atingido/concretizado quando o apelante se limita a dizer que os pontos de facto identificados devem ser modificados porque duas testemunhas disseram coisa diversa da que foi dada como provada, mas não indica exatamente o que disseram (ou sequer o momento dos seus depoimentos em que o disseram, antes se limitando a dizer que os depoimentos estão gravados do “Lado A da fita da Cassete”).
IV - A forma não deve prevalecer sobre o conteúdo, razão pela qual pequenas imprecisões sobre a identificação das passagens da gravação não serão fundamento para o tribunal da Relação rejeitar a reapreciação da decisão de facto, porém, para alterar um facto, de provado para não provado (ou vice-versa), não basta dizer que “não foi produzida prova” (ou o contrário).» [1]
Não obstante, existe um mínimo a cumprir, designadamente a indicação nas conclusões de quais os factos em concreto que o Recorrente põe em crise e quais os concretos meios probatórios que em sua opinião impunham decisão diversa.
Isto porque são as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art.º 639º nº 1 e 3 do CPC).
Analisado o articulado de recurso, na motivação, e sob a epígrafe “âmbito do presente recurso”, as Recorrentes começam por dizer que o recurso “visa a impugnação da matéria de facto dada como provada” (toda?); depois, ao pormenorizar, apenas se faz referência ao “facto provado JJ”, fazendo-se transcrição parcial do teor do depoimento de várias testemunhas.
De seguida, elencam-se as conclusões (atrás transcritas), de cuja leitura se vê serem completamente omissas no que é considerado o limite mínimo de alegação: os concretos pontos de facto e os concretos meios probatórios. [2]
Assim também o considera Abrantes Geraldes: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: (…) b) – Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; c) – Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (…).
Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.» [3]
Em face do exposto, não se irá proceder à reapreciação da matéria de facto.

5.2. Matéria de direito
Refere-se ainda no recurso a pretensão de ver reapreciada a subsunção dos factos ao direito.
Porém, também nada se alega em particular; tal alteração da decisão passava necessariamente pela alteração da decisão de facto, como os Recorrentes admitem (“consequentemente, também se recorre da matéria de direito”).
Não se tendo procedido à alteração da matéria de facto, nenhuma censura há a fazer ao decidido na sentença.
Na verdade, para que a Ré pudesse ser responsabilizada, seria necessário ter-se demonstrado ter sido o seu segurado quem deu causa ao acidente. E essa conclusão não se extrai da factualidade provada (da qual decorre a culpa da própria vítima).

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo dos Recorrentes.

Porto, 10 de novembro de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira [com o seguinte voto de vencido:
Não subscrevo o aresto, pois admitiria o recurso da matéria de facto. Em primeiro lugar, interpreto de forma restrita os requisitos formais, por forma a possibilitar o mais amplo exercício do direito de recurso. Depois, no caso concreto os apelantes, nas suas alegações, indicam de forma suficiente os meios de prova que sustentam o seu pedido, o qual é formulado na parte final de forma clara. Assim, o tribunal e a parte contrária podem determinar o quê e o porquê do recurso e identificar as razões da discordância. Por último, esta parece ser a posição mais consensual do STJ, conforme por exemplo, Ac de 06-07-2022 (Mário Morgado) nº 3683/20.1T8VNG.P1.S1.
Concluiria também, pela alteração, ainda que oficiosa, da matéria de facto, nos termos do art. 662º, do CPC, sucintamente:
O depoimento da testemunha fundamental, segundo a transcrição foi: " vi que não tinha tempo de o condutor retomar por completo para a via dele e depois sei que colidiram ". Ora, se essa foi a testemunha fundamental , parece que a mesma não pode isoladamente fundar de forma racional um juízo de tão grande certeza, porque vai além do que a testemunha aqui admitiu.
Depois, duas testemunhas directas situam o embate na outra faixa. E, por fim o agente policial que efectuou o auto situa o embate no eixo da via, facto concordante com os danos do veículo e vestígios. Temos ainda de ponderar que quem efectuou a manobra perigosa foi o segurado da ré, e que sem essa manobra o acidente não teria ocorrido naquele tempo e local. Por isso, entendo que face à prova testemunhal produzida e indícios objectivos não é possível com suficiente certeza, afirmar o que consta do facto JJ.]
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[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 07/07/2021, processo nº 682/19.0T8GMR.G1.S1, Relator Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdão de 06/07/2022, processo nº 3683/20.1T8VNG.P1.S1, Relator Mário Belo Morgado; de 18/01/2022, processo nº 243/18.0T8PFR.P1.S1, Relatora Maria Clara Sottomayor.
[2] Integrando o denominado limite mínimo, o “ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação” – acórdão do STJ, de 19/10/2021, processo nº 7129/18.7T8BRG.G1.S1, Relator Oliveira Abreu.
[3] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 135.