Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1498/24.7T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO
LIMITE MÍNIMO
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
Nº do Documento: RP202502111498/24.7T8STS.P1
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O artigo 239.º, n.º 3, al. b) - i), do CIRE determina que se exclua do rendimento disponível a ceder ao fiduciário o valor que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual terá sempre como limite mínimo o valor correspondente a uma RMMG e como limite máximo o valor correspondente a 3 vezes a RMMG (sem prejuízo deste poder ser excedido, por decisão fundamentada do juiz), devendo aquele valor concreto ser fixado neste intervalo tendo em conta a singularidade da concreta situação do devedor e do seu agregado familiar, sem perder de vista o equilíbrio dos interesses conflituantes dos devedores e dos credores, constitucionalmente garantidos.
II – O referido limite mínimo deve englobar os valores dos subsídios de férias e de Natal, pois estes integram o conceito de RMMG.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1498/24.7T8STS.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente no Largo ..., Bloco ...... – Casa ..., 3.º andar, ..., ... Matosinhos, veio apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.
O requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 15.05.2024.
O administrador da insolvência (AI), no relatório que apresentou ao abrigo do artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), propôs o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e pronunciou-se favoravelmente à concessão da exoneração do passivo restante, sugerindo se fixasse o valor do rendimento “indisponível” em 2,4 vezes o salário mínimo nacional (SMN).
Por decisão proferida em 27.08.2024 foi declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 230.º, n.º 1, al. d), e 232.º, n.º 2, e 233.º, n.º 1, do CIRE.
Notificado para juntar aos autos certidões dos assentos de nascimento dos seus filhos maiores e documentar que os mesmos se encontram a estudar, o insolvente veio esclarecer que a sua filha BB terminou o curso em 04.09.2024 e encontra-se a trabalhar e que o seu filho CC terminou o 12.º ano de escolaridade em Julho de 2024, não se tendo inscrito no ensino superior, estando desempregado mas à procura de emprego.
Por decisão proferida em 21.10.2024 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nomeado fiduciário o administrador da insolvência e fixado como rendimento disponível todo aquele que exceder o valor de um SMN, multiplicado por 12 meses.
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Inconformado, o insolvente apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
«1. O presente recurso vem interposto do Despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante proferido pelo Tribunal a quo e circunscreve-se à fixação ao insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional e que tal valor será multiplicado por doze meses, a iniciar-se com o trânsito deste despacho uma vez que já foi proferido despacho de encerramento do processo;
2. Com o devido respeito, o despacho proferido pelo Tribunal a quo encontra-se ferido de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 613.º, n.º 3 do CPC e 17.º do CIRE, na parte em que procede à fixação do rendimento disponível a entregar pelo recorrente/insolvente ao fiduciário;
3. No despacho recorrido o Tribunal a quo limitou-se a fixar como estando excluído do montante do rendimento disponível a entregar ao fiduciário o valor equivalente a um salário mínimo nacional por mês;
4. Mas tal despacho não fundamenta, nem sequer minimamente, a decisão proferida, nem os pressupostos que estiveram na base da referida exclusão;
5. Sendo totalmente omisso quanto à fundamentação, não sendo possível descortinar qual o percurso decisório levado a cabo pelo Tribunal a quo, pois da decisão não constam quaisquer factos assentes, dos quais se possa concluir do acerto, adequação e razoabilidade de que é esse valor que garante a sobrevivência condigna do insolvente e do seu agregado familiar;
6. Da decisão proferida não decorre, ainda que mínima e deficientemente, qual a ponderação que esteve subjacente à fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, com o que o despacho ora recorrido, por total ausência de fundamentação quanto a este ponto concreto, violou o disposto nos artigos 154.º do CPC e 205.º, n.º 1 da CRP e padece de nulidade, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a qual expressamente aqui se arguiu para todos os efeitos legais;
7. O conceito de “rendimento disponível” vem indicado no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE e tratando-se de um conceito aberto, cabe ao intérprete essa tarefa de concretização;
8. Caberá ao juiz fixar, caso a caso, e de acordo com as regras da experiência, da equidade e atendendo à situação particular e concreta do insolvente e do seu agregado familiar, qual o valor a atribuir ao mesmo;
9. O montante mínimo a fixar em sede de exclusão ao rendimento disponível não corresponde necessariamente a um salário mínimo nacional – uma vez que se correspondesse o legislador tê-lo-ia dito;
10. O reconhecimento do princípio da dignidade humana, assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa é o princípio subjacente a tal conceito;
11. No juízo a formular pelo julgador impõe-se assim uma efectiva ponderação casuística da situação em causa;
12. Ponderação que o Tribunal a quo não fez;
13. Considerou o Tribunal a quo que o montante equivalente a um salário mínimo nacional é suficiente para os “fins do artigo 239.º, n.º 3, alínea b)”, isto é, para assegurar o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, onde se incluem dois filhos que, embora maiores, ainda não trabalham;
14. E decidiu fixar o rendimento disponível do recorrente no valor correspondente a um salário mínimo nacional, não tendo em consideração a composição do agregado familiar do insolvente;
15. Como podem quatro pessoas viver com o valor de um salário mínimo nacional???
16. Nao tendo considerado o Tribunal a quo, os montantes concretos que o insolvente despende com as despesas referidas no artigo 11.º da petição inicial, a saber, “despesas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, despesas médicas e medicamentosas, água, luz, gás, comunicações, transportes, habitação e outras”;
17. Pelo menos, ao valor equivalente a um salário mínimo nacional relativamente ao insolvente, deveria, pelo menos acrescer ¼ (um quarto) de um salário mínimo nacional para a sua companheira e para cada um dos filhos;
18. A decisão do Tribunal a quo fixou o mencionado rendimento disponível no valor correspondente a um salário mínimo nacional por mês, sendo que da leitura da parte da decisão sob recurso não se vislumbra como foi alcançado tal valor, não constando da mesma uma exposição dos factos julgados relevantes para justificar a fixação do valor que veio a ser fixado;
19. Nem teve a preocupação de que ficasse salvaguardada a sobrevivência minimamente digna do insolvente e do seu agregado familiar;
20. Ao não fazer a casuística ponderação que é exigida, não explicitou as despesas que teve em consideração para fixar tal valor;
21. Na decisão tomada pelo Tribunal a quo, não foram ponderadas as despesas efectivas do insolvente e dos dois filhos, devendo este Tribunal da Relação, o que desde já se requer, mandar ampliar a decisão de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, com vista a ser proferida decisão que determine que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao recorrente, com exclusão do valor correspondente:
- a dois salários mínimos nacionais acrescido de metade de um salário mínimo nacional por cada menor, o que equivale ao total de três salários mínimos nacionais
Ou, em alternativa
- a dois salários mínimos nacionais acrescido de um quarto de um salário mínimo nacional por cada filho, com referência a catorze meses.
22. O montante que se encontra fixado revela-se manifestamente insuficiente para fazer face às despesas que o insolvente, a sua companheira e mãe dos seus dois filhos mensalmente têm de suportar para assegurar o seu sustento;
23. Não sendo concebível, dada a letra e o espírito do CIRE, que se fixe, sem mais, ignorando as regras da experiência, os princípios da razoabilidade e da equidade, o valor que foi fixado como estando excluído do rendimento disponível e, por essa via, se obrigue o recorrente, para (sobre)viver, a depender da ajuda ininterrupta de familiares e amigos;
24. É que, com o devido respeito, subjacente à concessão da exoneração do passivo restante não está nenhum espírito ou finalidade sancionatório, punitivo ou humilhante do insolvente;
25. O sacrifício que é imposto ao insolvente, que fica privado de proventos futuros que em circunstâncias normais lhe adviriam, tem necessária e obrigatoriamente como limite a respectiva vivência minimamente condigna;
26. No modesto entender do recorrente, o despacho ora posto em crise coarta a possibilidade de o mesmo se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento e dos dois filhos;
27. A fixação do valor excluído do rendimento objecto de cessão nos moldes em que foi decretada, sem ter em conta as regras da experiência, a equidade e o princípio da razoabilidade, é passível de violar o direito da mesma a uma subsistência condigna, bem como impossibilita o recorrente de prover à sua reabilitação económica;
28. O valor excluído do rendimento objecto de cessão é manifestamente diminuto, consubstanciando uma decisão inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da CRP;
29. Os subsídios de férias e de Natal devidos ao insolvente deverão ser incluídos no valor do rendimento disponível, atenta a composição do seu agregado familiar;
30. O rendimento mínimo mensal indisponível deverá ser encontrado pelo valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) multiplicado por 14;
31. O despacho proferido deverá ser revogado e substituído por Acórdão que estabeleça que o insolvente, tem a obrigação de entregar ao Sr. Fiduciário os montantes que anualmente receba ou venha a receber e que excedam 3 vezes 1 salário mínimo nacional».
Não foi apresentada resposta à alegação do recorrente.
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II. Fundamentação
A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, corresponde à determinação do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239.º, n.ºs 2 e 3, al. b) - i).
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B. Da nulidade da decisão
O recorrente veio arguir a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, alegando que o Tribunal a quo se limitou «a fixar como estando excluído do montante do rendimento disponível a entregar ao fiduciário o valor equivalente a um salário mínimo nacional por mês», mas «da decisão não constam quaisquer factos assentes, dos quais se possa concluir do acerto, adequação e razoabilidade de que é esse valor que garante a sobrevivência condigna do insolvente e do seu agregado familiar» e da mesma «não decorre, ainda que mínima e deficientemente, qual a ponderação que esteve subjacente à fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário».
Nos termos da norma acima citada, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Nas palavras de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Coimbra 2014, p. 602), este vício concretiza-se «na omissão da especificação dos fundamentos de direito ou na omissão da especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão».
A jurisprudência e a doutrina nacionais vêm insistentemente alertando para a necessidade de distinguir entre falta de fundamentação, fundamentação insuficiente e fundamentação errada ou divergente da pretendida. E vêm defendendo uniformemente que a norma do artigo 615.º, n.º 1, al. b), inclui apenas a falta de fundamentação, não se aplicando às situações de insuficiência da fundamentação ou erro de julgamento, que, deste modo, não geram a nulidade da decisão.
Só aquela falta absoluta pode gerar a nulidade da sentença, na medida em que, por se traduzir na inobservância das regras de elaboração da sentença, configura um vício formal, um error in procedendo que afecta a validade da sentença.
Neste sentido, a título de mero exemplo, vide, na doutrina, Alberto os Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra 1981, Vol. V, p. 140; A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, p. 687; Tomé Gomes, Da Sentença Cível, in O novo processo civil, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, pp. 736 a 738; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Coimbra 2014, pp. 602 e s.
Na jurisprudência, vide o acórdão do STJ, de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da origem), em cujo sumário se escreve o seguinte: «I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma. II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil». No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos do TRG, de o2.11.2017 (proc. n.º 42/14.9TBMDB.G1), do TRL, de 07.12.2021 (proc. n.º 8513/09.2YYLSB-B.L2-7) e do TRP, de 24.09.2020 (proc. n.º 173/20.6YRPRT).
No caso vertente, é apodíctico que não ocorre o apontado vício formal.
Ao contrário do que afirma o recorrente, a decisão recorrida contém a descrição dos factos que julgou provados (que transcrevemos infra), ainda que o respectivo elenco não discrimine – nem tenha de discriminar – quais os factos que relevam para a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante dos factos que relevam para a fixação do montante a excluir do rendimento disponível. De resto, o próprio recorrente acaba por considerar insuficiente a factualidade apurada – que não impugna – e pedir a sua ampliação, ao abrigo do artigo 662.º do CPC, o que contradiz a alegação da falta de fundamentação de facto da decisão.
A decisão recorrida contém, igualmente, os fundamentos de direito da decisão, apelando expressamente, entre outras, à norma do artigo 239.º, n.º 3, al. b), do CIRE, interpretando o seu sentido e aplicando-a ao caso concreto, fixando o valor a excluir do rendimento disponível com base nessa interpretação.
Saber se esta fundamentação está correcta é assunto que não contende com a validade formal da decisão, sendo insusceptível de gerar a sua nulidade.
Nestes termos, conclui-se pela manifesta improcedência da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
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C. Os Factos
O Tribunal a quo julgou demonstrados os seguintes factos:
1. O requerente é solteiro, maior
2. Tem actualmente 51 (cinquenta e um) anos de idade
3. Tem como habilitações literárias o 4.º ano de escolaridade, exercendo a profissão de Preparador de Produtos Congelados.
4. O agregado familiar do requerente, para além do próprio, é composto pela sua companheira e por dois filhos maiores que já não se encontram a completar o seu percurso académico.
5. E residem em imóvel arrendado pelo Município ..., pelo qual paga a título de renda mensal o valor de € 158,26 (cento e cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos).
6. Tendo como único rendimento, o seu vencimento no valor base mensal de € 822,00 (oitocentos e vinte e dois euros).
7. O insolvente não tem antecedentes criminais.
8. O insolvente não requereu a exoneração do passivo restantes nos últimos 10 anos.
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Afirma o recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração «os montantes concretos que o insolvente despende com as despesas referidas no artigo 11.º da petição inicial, a saber, “despesas de alimentação, vestuário, calçado, saúde, despesas médicas e medicamentosas, água, luz, gás, comunicações, transportes, habitação e outras”», devendo este Tribunal ad quem mandar ampliar a decisão de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662.º do CPC (parecendo assim aludir ao mecanismo previsto na al. c), do n.º 2, deste artigo).
Todavia, naquele articulado, o insolvente apenas concretiza e junta prova documental do montante que despende com a renda da casa (cfr. artigo 8.º e documento n.º 2), tendo o tribunal a quo julgado provada tal alegação (cfr. ponto 5 dos factos provados).
Quanto às demais despesas, o insolvente limita-se a aludir à sua existência, sem especificar ou apresentar qualquer prova dos respectivos montantes concretos.
Tais despesas apenas foram quantificadas no relatório apresentado pelo AI e aí «consideradas como primordiais para a vida d[o] insolvente». Com excepção do valor referente à renda da casa, esta quantificação parece traduzir uma mera estimativa das despesas mensais do insolvente que o AI considera indispensáveis ao sustento do seu agregado familiar, mas sem que se perceba – ao contrário do que sucede com outros factos ali relatados – em que dados ou elementos probatórios se baseou essa estimativa, admitindo-se que se tenha baseado no que foi comunicado pelo próprio insolvente ou pela sua mandatária (cfr. ponto 4 do relatório, relativo às diligências efectuadas pelo AI).
Em todo o caso, como afirma o recorrente, a existência das despesas indispensáveis ao sustento de qualquer pessoa é um facto notório, que não carece de alegação e prova, pelo que não pode deixar de ser ponderado pelo Tribunal, como seguramente foi pelo Tribunal a quo, visto que a decisão recorrida apela às despesas e encargos com habitação, saúde e outras necessidades essenciais.
O mesmo não sucede com os montantes concretamente despendidos por cada pessoa, cujo apuramento carece de prova. Porém, como vermos melhor infra, mais do que apurar o valor dos gastos do insolvente à data em que é admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o que importa é apurar o valor necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar, pois é este o critério legal para fixar o valor a excluir do rendimento disponível, o qual não se destina a manter o nível de vida do insolvente – cfr. artigo 239.º, n.º 3, maxime na sua alínea b), subalínea i), do CIRE.
Sem prejuízo do aditamento de novos factos que reputamos relevantes e consideramos estarem demonstrados, nos termos a seguir expostos, afigura-se-nos que a factualidade apurada com base nos elementos carreados para os autos é suficiente para e fazer este juízo, como vermos melhor quando analisarmos a questão de direito.
Por conseguinte, entendemos não se verificar qualquer insuficiência da factualidade adquirida que justifique a anulação da decisão para ampliação da matéria de facto, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.
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Mas, como já deixámos implícito, entendemos que os elementos juntos aos autos demonstram alguns factos que, sendo relevantes para a decisão do recurso, não foram incluídos na fundamentação de facto da decisão.
Na petição inicial alega-se que o insolvente tem a seu cargo dois filhos maiores, ambos estudantes, o que foi corroborado no relatório do AI. Porém, mediante solicitação do Tribunal a quo, o insolvente veio esclarecer que a sua filha BB terminou o curso em 04.09.2024 e está a trabalhar (o que contraria a afirmação contrária constante da alegação de recurso, designadamente da conclusão 13) e que o seu filho CC terminou o 12.º ano de escolaridade em Julho de 2024, não se inscreveu no ensino superior e está desempregado, mas à procura de emprego.
Na decisão recorrida consta apenas que o agregado familiar do requerente, para além do próprio, é composto pela sua companheira e por dois filhos maiores que já não se encontram a completar o seu percurso académico (cfr. ponto 4). Este facto fica aquém da informação prestada, dele não se extraindo se os filhos do insolvente, ou algum deles, deixaram de depender deste para o seu sustento (note-se que, a este respeito, não é aqui invocável o disposto nos artigos 1880.º e 1905.º, n.º 2, do CC, ao contrário do disposto nos artigos 2003.º e seguintes, maxime no artigo 2009.º, n.º 1, al. c), do mesmo código), sendo inegável a relevância deste facto para o apuramento das necessidades do agregado familiar do insolvente.
Nestes termos, perante a admissão que o próprio insolvente fez desses factos, importa aditar ao ponto 4 dos factos provados que um dos seus filhos se encontra a trabalhar e que o outro está à procura de emprego.
Na petição inicial alega-se também que o requerente tem como único rendimento o seu vencimento, no valor base mensal de 822,00,00 €, com o qual tem que prover ao seu sustento e dos seus filhos, não se incluindo aqui a companheira do insolvente, nem se esclarecendo se esta aufere algum rendimento.
No relatório que apresentou, o AI afirma que esta trabalha três horas por dia numa empresa de limpezas, auferindo cerca de 250,00 € mês, o que é corroborado pelo valor do seu rendimento anual no ano de 2023, que o AI terá apurado mediante consulta das declarações de IRS (cfr. pontos 6 e 7 do referido relatório). Acresce que aquele valor mensal não foi questionado pelo recorrente, sendo expressamente referido na sua alegação de recurso.
Sendo igualmente indiscutível a relevância deste facto para se apurar as necessidades do agregado familiar do insolvente, importa aditá-lo ao ponto 6 factos provados.
Por fim, do documento n.º 3 da petição inicial, cujo teor se dá como integralmente reproduzido naquele articulado, decorre que ao vencimento base do insolvente acresce o subsídio de refeição e o prémio de assiduidade e que, depois dos descontos relativos ao IRS e às contribuições devidas à Segurança Social, aquele afere um valor líquido de cerca de 870,00 € mensais, facto que foi integralmente corroborado no relatório do AI e mencionado na alegação do recorrente.
Embora este facto assuma menos relevância para a fixação do valor a excluir do rendimento disponível, o rigor da fundamentação exige que o mesmo seja igualmente aditado ao ponto 6 factos provados.
Pelo exposto, decide-se alterar os pontos 4 e 6 dos factos provados, que passam a ter a seguinte redacção:
4. O agregado familiar do requerente, para além do próprio, é composto pela sua companheira e por dois filhos maiores que já não se encontram a completar o seu percurso académico, encontrando-se um deles a trabalhar e o outro à procura de emprego.
6. O agregado familiar do requerente tem como únicos rendimentos o vencimento daquele, no valor líquido mensal de cerca de 870,00 € (correspondente ao valor base mensal de 822,00 €, acrescido de subsídio de refeição e prémio de assiduidade e deduzidos os respetivos descontos), e o rendimento da sua companheira, no valor mensal médio de 250,00 €.
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D. O Direito
1. O instituto da exoneração do passivo restante – inspirado na discharge britânica e norte-americana, mas que chega a nós por influência do direito alemão e que tem paralelo em quase todas as leis de insolvência europeias – foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo CIRE, que entrou em vigor em 2004.
Como ensina Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 610), à semelhança do alemão, «o regime português consiste, em traços gerais, na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período».
A lei portuguesa não seguiu, portanto, um modelo puro de fresh start, em que a liquidação do património e o pagamento das dívidas têm lugar no processo de insolvência, findo o qual o devedor é libertado das dívidas que não tiverem sido satisfeitas.
O regime legal português aproxima-se mais do modelo do earned start, em que o devedor, findo o processo de insolvência, passa ainda por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamentos das dívidas remanescentes, só então podendo beneficiar de um fresh start, se ficar demonstrado que o merece. Na súmula de Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O Fiduciário. Algumas Notas, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, p. 197), a exoneração do passivo restante «vigente no nosso ordenamento jurídico tem como finalidade precípua facilitar a recuperação/integração socioeconómica do insolvente de boa fé (“honest but unfortunate debtor”), através de um procedimento que, em primeiro lugar, passa pela liquidação do seu acervo patrimonial (art. 156.º e ss), e em segundo lugar pressupõe a cessão ao fiduciário (art. 240.º) da parte considerada disponível do seu rendimento (art. 239.º) e, a final, se o insolvente tiver cumprido com as obrigações de conduta a que está adstrito [art. 239.º, n.º 4, alíneas a) a e)], é-lhe perdoado o remanescente da dívida que ainda subsistir (art. 245.º, n.º 1)». Nas palavras de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 401, «[a] exoneração do passivo restante é aplicável exclusivamente aos devedores pessoas singulares (titulares de empresa ou não, titulares de uma grande ou de uma pequena empresa) que se tenham “portado bem”, desde que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência».
O aludido período de prova, que a nossa lei designa como período de cessão, tem início com a prolação do despacho inicial, isto é, o despacho em que, por não haver motivos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz declara que esta será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE (cfr. artigo 237.º, al. b), do mesmo código).
2. De harmonia com o disposto neste artigo 239.º do CIRE, o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário escolhido pelo tribunal.
Nos termos do disposto no n.º 3, deste artigo 239.º, o rendimento disponível para cessão engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Alguns autores defenderam que o legislador adoptou um critério objectivo na determinação do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor o do seu agregado familiar, fazendo-o coincidir com o triplo do salário mínimo nacional, sem prejuízo de este valor poder ser excedido por decisão fundamentada do juiz. Nesse sentido vide Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, 2005, p. 194, onde se pode ler o seguinte: «O legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional. Merece, pois, aplauso esta solução, que tem ainda a vantagem de assegurar a actualização automática da exclusão».
Contudo, como refere Catarina Serra (cit., p. 620), a jurisprudência propende «para interpretar o critério do “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” como um limite mínimo e o valor correspondente a três vezes o salário mínimo nacional como um limite máximo – que pode ser excedido, mas só em casos excepcionais, por decisão (especialmente) fundamentada do juiz. Não obstante isto – ou por isto mesmo –, o apuramento do montante a excluir envolve sempre uma ponderação casuística por parte do juiz».
Cremos ser mais consentâneo com a letra e com o espírito da norma em apreço afirmar que a mesma se limita a estabelecer um tecto máximo, correspondente a três vezes o SMN, que apenas pode ser ultrapassado por decisão fundamentada do juiz, apelando a uma apreciação casuística do que seja o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual não representa, assim, um limite mínimo abstracto, mas antes o valor razoável a fixar pelo tribunal para quele caso concreto. De resto, cremos ser este o entendimento subjacente à jurisprudência maioritária que, como veremos melhor infra, acaba por fazer corresponder aquele limite mínimo abstracto ao valor do SMN, por considerar que abaixo deste valor nunca estará assegurado o sustento minimamente digno do devedor, ainda que, em concreto, o valor razoavelmente necessário para esse sustento minimamente digno possa ser superior.
Na determinação deste valor (razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor) deve atender-se às condições pessoais e de vida do insolvente e do seu agregado, designadamente a sua idade, situação profissional, estado de saúde, rendimentos, composição do seu agregado familiar, encargos essenciais com o seu sustento, habitação, vestuário e despesas de saúde (cfr. ac. do TRL de 12.12.2013, relatado por Vítor Amaral, citado na breve recensão jurisprudencial efectuada por Maria do Rosário Epifânio, Manuel de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra, 2022, p. 409, nota 1303).
Mas, como se afirma no ac. do TRG, de 19.03.1013, relatado por António Santos, igualmente citado por Maria do Rosário Epifânio, tal «não significa que o devedor deva manter “o nível de vida que tinha anteriormente, antes pode/deve mesmo baixá-lo, ainda que tendo sempre como limite o quantum necessário para a salvaguarda de uma sua existência condigna”».
Esta salvaguarda de uma vida condigna assenta directamente no princípio da dignidade humana plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), igualmente aludido no artigo 59.º, n.º 1, al. a), da mesma lei fundamental, cujo reconhecimento exige ao legislador o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna. Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda (cit., p. 194) escrevem que «[a]s exclusões previstas nas subalíneas i) e ii) [da al. b), do artigo 239, do CIRE] decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular», que prevalece sobre a sua função externa, enquanto garantia geral dos credores.
Mas o sacrifício desta garantia dos credores deve cingir-se à justa medida do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para o exercício condigno da sua actividade profissional e para outras despesas que se integrem nesse conceito.
A expressa alusão ao valor razoavelmente necessário para os apontados fins realça, assim, a imprescindibilidade da ponderação dos interesses e dos valores constitucionais em conflito no instituto da exoneração do passivo restante.
Como se afirma no ac. do STJ, de 23.03.2021 (proc. n.º 1155/14.2TBPRD.P2.S1, rel. Ricardo Costa), «a exoneração do passivo restante, na perspectiva do devedor, serve a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica (ou, em rigor, a recuperação dessa liberdade) e o direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas e recorrentes relacionadas com a insolvência. Essa tutela, agora na perspectiva do credor, colide naturalmente (ou pode colidir), ao aspirar à liberação, objectiva e subjectiva, das dívidas restantes do devedor, com a tutela constitucional da titularidade dos direitos de crédito de natureza patrimonial, protegidos pela via do art. 62º, 1, da CRP (direito à propriedade privada). Ora, no perímetro da liberdade de conformação do legislador, deve considerar-se que essa conciliação entre valores e direitos constitucionalmente protegidos corresponde a uma ponderação equilibrada de interesses, que não deixa de ter em conta os interesses dos credores (…), ainda que os interesses do devedor insolvente não culposo prevaleçam, tendo em conta o peso do interesse na reintegração na vida económica (e social) e da protecção social do mais fraco (como princípio do Estado Social de Direito)».
A previsão legal da cessão do rendimento disponível a um fiduciário, assim como a própria definição desse rendimento a ceder, traduzem o resultado desta ponderação equilibrada dos interesses em conflito, levada a cabo pelo legislador ordinário no âmbito dos seus amplos poderes de conformação. A este respeito vide Paulo Mota Pinto, Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade, in III Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, Coimbra, 2015, pp. 175 a 195, que a dada altura afirma o seguinte: «No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em conta os interesses dos credores, designadamente com a cessão a um fiduciário do rendimento disponível do devedor nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (artigo 239.º, n.º 2, do CIRE), incluindo todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão apenas dos créditos futuros cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz, do que “seja razoavelmente necessário” para o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”, para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional, e para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor» (p. 190).
Tal não significa, porém, que a exoneração esteja condicionada à satisfação, ainda que parcial, dos créditos, tendo em conta a já referida prevalência dos interesses do devedor não insolvente. Mas significa que esta prevalência não é absoluta, impondo-se sacrifícios também ao devedor não culposo para que possa beneficiar da exoneração do passivo restante, nomeadamente uma diminuição do seu nível de vida. A exoneração do passivo restante não se traduz na desresponsabilização do devedor, antes implicando o seu empenho e sacrifício no sentido de comprimir ao máximo as suas despesas, como contrapartida do sacrifício imposto aos credores, tendo em vista o equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
Por isso mesmo, a lei não impõe uma correspondência entre o valor a fixar e o montante global das despesas demonstradas pelo devedor insolvente, antes pressupondo um maior rigor no orçamento familiar e uma redução destas despesas ao mínimo indispensável (neste sentido vide Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, Abril de 2016, p. 222, onde se citam aos acórdão do TRC de 31.01.2012 e do TRP de 16.09.2014). Dito de outro modo, a lei tem pressuposto que, no período de cessão, o devedor se esforçará por se adequar à especial situação em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida à nova realidade que enfrenta, como é desde logo evidenciado pela modéstia do valor máximo de 3 SMN fixado na lei (cfr. ac. do TRP, de 07.10.2021, proc. n.º 1112/21.2T8VNG-A.P1, rel. Judite Pires).
Cláudia Oliveira Martins, no artigo anteriormente citado, afirma que «[d]e entre os vários critérios possíveis, assentou a jurisprudência base na fixação de um ordenado mínimo nacional (Ac. da R.P. de 15.09.2015), ponderando a composição do agregado familiar, nomeadamente o número de dependentes menores ou em idade escolar (acrescendo àquele montante, em média, ½ ordenado mínimo nacional por cada um dos dependentes), e apenas admitindo que integre o rendimento indisponível despesas de natureza excepcional, nomeadamente, relacionadas com problemas de saúde crónicas».
A mesma autora aplaude esta opção, por dispensar o tribunal de proceder à análise e à ponderação da necessidade de todas despesas do devedor, o que poderia mesmo configurar uma intromissão na vida privada deste. Mas não nega a possibilidade de alterações pontuais, devidas a despesas excepcionais, ou permanentes, devidas ao surgimento de novas despesas, como sucederá no caso de aumento do agregado familiar.
Afigura-se inegável o valor referencial do salário mínimo nacional, assim como do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego e de outras prestações sociais com finalidades similares, que o ac. deste TRP, de 15.05.2015, relatado por José Igreja Matos, igualmente citado por Maria do Rosário Epifânio, considera «noções consolidadas e que reflectem o nosso estado civilizacional relativamente a conceitos como os da dignidade do trabalho».
Também não podemos perder de vista o regime processual civil das impenhorabilidades – que fixa a impenhorabilidade dos «vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado» entre o mínimo de 1 e o máximo de 3 SMN (cfr. artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC) –, cujo paralelismo com a realidade que subjaz à insolvência, enquanto execução universal, é absolutamente inegável e que, por isso mesmo, não pode deixar de ser aí respeitado.
O próprio Tribunal Constitucional já afirmou que «o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo» (cfr. ac. n.º 177/2002, de 23 de Abril).
De todo o modo, dentro destes limites, cremos que só em concreto se poderá discernir o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pois é essa avaliação que, em rigor, a lei impõe ao julgador. Aquele valor deverá ser, assim, encontrado em face da situação concreta de cada devedor e respectivo agregado familiar, não obstante as dificuldades que essa ponderação possa encerrar, sem perder de vista que, de harmonia com o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do CC, deverão ter-se em devida conta os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, no respeito do principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.
Neste sentido se pronunciaram, a título de mero exemplo, os acórdãos: do TRP, de 07.10.2021, já antes citado, do TRG, de 02.03.2023 (proc. n.º 2148/22.1T8GMR.G1, rel. José Carlos Pereira Duarte), do TRC, de 12.03.2013 (proc. n.º 1254/12.5TBLRA-F.C1, rel. Sílvia Pires) e do TRL, de 21.03.2023 (proc. n.º 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, rel. Fátima Reis Silva), afirmando-se neste último que «[o] limite mínimo, que não foi objetivado no preceito [do artigo 239.º do CIRE], deve situar-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional, valor de referência em sede de penhora, nos termos do art. 738.º, nº3 do CPC, por similitude de razões, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição do que seja a quantia razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor».
Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, cremos poder afirmar, em síntese conclusiva, que o artigo 239.º, n.º 3, al. b) - i), do CIRE determina que se exclua do rendimento disponível a ceder ao fiduciário o valor que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual terá sempre como limite mínimo o valor correspondente a um SMN e como limite máximo o valor correspondente a 3 vezes o SMN (sem prejuízo deste poder ser excedido, por decisão fundamentada do juiz), devendo aquele valor concreto ser fixado neste intervalo tendo em conta a singularidade da concreta situação do devedor e do seu agregado familiar, sem perder de vista o equilíbrio dos interesses, constitucionalmente garantidos, em conflito.
Nesta operação, é frequente o recurso a uma escala para determinar a capitação dos rendimentos do agregado familiar, nomeadamente a conhecida escala da OCDE ou escala de Oxford, de acordo com a qual se atribui o índice 100 ao 1.º adulto, o índice 0,7 ao 2.º adulto e o índice 0,5 por cada criança, correspondendo o índice 100 ao SMN.
3. Uma outra questão, distinta da anteriormente tratada, mas conexa com ela, tem sido alvo de divergências jurisprudenciais: saber se o limite mínimo da moldura dentro da qual deverá ser fixado o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar tem como referência o valor mensal do SMN, isto é, o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), actualmente fixado em 870,00 € (cfr. Decreto-Lei n.º 112/2024, de 19 de Dezembro), ou esse valor acrescido dos subsídios de férias e de natal, isto é, se tem como referência a retribuição anual mínima garantida.
Cremos que o entendimento preconizado pela recorrente é o mais consentâneo com a argumentação anteriormente exposta a respeito do valor mínimo necessário para assegurar uma existência digna, tendo em conta que ao considerar, para esse efeito, o valor da RMMG, o legislador não ignora, antes tem em conta, que esta é paga 14 vezes por ano.
Como se afirma no acórdão deste TRP, de 19.03.2024 (proc. n.º 1336/23.8T8AMT-C.P1, rel. Rui Moreira, em que foi adjunto o agora relator), «o legislador considera que o montante do salário mínimo (ou remuneração mensal mínima garantida) correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade. Todavia, essa ponderação tem por pressuposto que um tal valor é pago 14 vezes por ano. Ou seja, se tal argumento usa como referência o valor do salário mínimo, para o ter por suficiente, também tem de incluir o pressuposto de que o que é suficiente é o valor mensal pago por 14 vezes. E isso porquanto tal é a medida do salário mínimo, que um trabalhador há-de receber 14 vezes por ano».
Em abono deste entendimento cita-se aí o voto de vencido subscrito pelo Conselheiro João Cura Mariano no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 770/2014 (disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140770.html), no qual a questão é apreciada a propósito da impenhorabilidade de rendimentos, com uma clareza e assertividade que justificam a sua transcrição parcial:
«Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador».
O exposto não significa que o valor a excluir do rendimento disponível tenha de ser fixado por referência à retribuição anual mínima garantida, podendo sê-lo por referência ao valor do SMN ou RMMG, desde que seja respeitado o limite mínimo antes referido (como sucede, por exemplo, quando se fixa aquele rendimento em 1,5 ou 2 SMN vezes 12 meses) e, naturalmente, o rendimento excluído corresponda ao o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
4. No caso concreto, apurou-se que o agregado familiar do insolvente é composto por si, pela sua companheira e por dois filhos maiores, que já terminaram o seu percurso escolar.
Mais se apurou que um destes filhos já trabalha, o que nos permite concluir que já não depende do insolvente para prover ao seu sustento minimamente digno, ainda que se desconheça o valor do seu vencimento.
Quanto ao outro filho, apurou-se que está à procura de emprego, o que nos leva à conclusão oposta, isto é, que depende financeiramente dos seus pais para assegurar o seu sustento.
Relativamente à companheira do insolvente, apurou-se que aufere cerca de 250,00 € por mês, o que representa quase 30% do valor do SMN.
Importa ainda considerar que as despesas essenciais ao sustento do agregado familiar são as despesas comuns com alimentação, vestuário, habitação (ascendendo o valor da renda mensal a € 158,26 €), transportes, comunicações e outras semelhantes, pois não foi alegada nem demonstrada a existência de quaisquer outras despesas que importe ressalvar.
Vimos que o AI quantificou essas «despesas primordiais para a vida do insolvente» num total de 1.258,26 €, valor que o recorrente também invoca na sua alegação – ainda que, sem qualquer coerência, termine a sua alegação pugnando pela fixação do valor a excluir do rendimento disponível em 3 SMN vezes 14 meses (cfr. conclusões 30 e 31), depois de ter pedido a sua fixação em 3 SMN vezes 12 meses ou, em alternativa, em 2,5 SMN vezes 14 meses (cfr. conclusão 21), bem como depois de ter pugnado pela fixação desse mesmo valor em, pelo menos, 1,75 SMN (cfr. conclusão 17).
Tudo ponderado, inclusivamente o valor considerado pelo AI, que se revela consentâneo com as regras da experiência comum, mas sem perder de vista que um dois filhos do insolvente não depende deste para o seu sustento minimamente digno, entendemos que o valor razoavelmente necessário para os efeitos do artigo 230.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), do CIRE, deve ser fixado em 1,5 RMMG, vezes 14 meses por ano.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, alteram a decisão recorrida, fixando o valor a excluir do rendimento disponível em uma vez e meia a retribuição mínima mensal garantida, multiplicada por catorze meses.
Custas pelo recorrente (art. 527.º do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Registe e notifique.
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Porto, 11 de Fevereiro de 2025
Artur Dionísio Oliveira
Rodrigues Pires
Lina Baptista [parcialmente vencida:
VOTO DE VENCIDO:
Não subscrevo o Acórdão ao alterar a decisão recorrida na parte em que esta decidiu que o rendimento disponível seria todo aquele que excedesse o valor fixado como necessário ao sustento do Insolvente multiplicado por 12 meses.
Entendo que esta decisão da primeira instância é conforme à teleologia e aos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Em meu entendimento, os subsídios de férias e de Natal não podem ser analisados à luz das regras laborais e, por inerência, considerados como integrantes na retribuição e vencendo-se progressivamente em cada mês do ano.
O direito do trabalho é um direito especial de direito privado que regula as relações jurídicas entre empregador e trabalhador, tendo por base o princípio da protecção deste último, enquanto parte presumivelmente mais fraca.
O direito insolvencial é um outro direito especial de direito privado que regula os mecanismos de satisfação dos direitos dos credores em caso de insolvência do devedor, através da repartição dos seus bens ou da aprovação de um plano de insolvência.
São áreas do direito absolutamente autónomas entre si, não havendo qualquer fundamento jurídico para entender aplicáveis as regras jurídicas especiais privativas de um ao outro.
Ficando assente esta delimitação negativa, a forma de contabilização dos valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível deve ser decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Os subsídios de férias e de Natal são incontestavelmente rendimentos disponíveis do devedor e traduzem-se, como se sabe, num complemento à retribuição auferida nos 12 meses do ano com a função de auxiliar nas despesas potencialmente acrescidas em época de férias ou no período do Natal.
Devem, por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.
Em face dos interesses em presença, esta será a forma concreta mais justa de adaptar a situação sócio-económica do Insolvente à condição jurídica especial em que se encontra, conjugando o valor necessário para assegurar o sustento condigno deste nos 12 meses do ano com a máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.]