Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
986/22.4T9OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: ASSISTENTE
TAXA DE JUSTIÇA
DESISTÊNCIA DE QUEIXA
Nº do Documento: RP20251029986/22.4T9OAZ.P1
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O assistente é sempre responsabilizado quando, por sua iniciativa, inutiliza a atividade desenvolvida até ao momento da desistência, independentemente das razões que motivaram essa sua decisão e que poderão estar, pura e simplesmente, num ato de clemência, de compaixão, reparação, satisfação moral, apaziaguamento ou de entendimento com o denunciado/arguido, envolvendo, ou não, recíprocas concessões e benefícios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 986/22.4T9OAZ.P1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
I.1
Nos autos de processo comum que, sob o n.º 986/22.4T9OAZ, corre termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro foi, a 02.05.2025, proferida decisão homologatória (Ref.ª 138456852) que julgou válida e juridicamente eficaz a desistência de queixa apresentada, com a consequente extinção do procedimento criminal, isentando os assistentes do pagamento de taxa de justiça.
*
I.2
Não se conformando com o decidido, veio o Ministério Público apresentar o presente recurso (Ref.ª 17759017), referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
a. O art. 515.º nº 1 al. d) do Código de Processo Penal consagra, entre o mais, que é devida taxa de justiça pelo assistente se fizer terminar o processo por desistência de queixa e, estando em causa crime de natureza particular, impõe o art. 518.º do Código de Processo Penal impõe a sua condenação nos encargos a que a sua actividade houver dado lugar.
b. Resulta, assim, do elemento gramatical dessas normas, que foi intenção do legislador não estabelecer qualquer excepção à tributação da desistência de queixa.
c. A única isenção do pagamento de taxa de justiça é aquela que está consagrada no art. 517.º do Código de Processo Penal, sendo que essa é inaplicável à desistência de queixa, na medida em que a desistência de queixa é sempre imputável ao assistente, pois está sempre dependente da sua vontade e, quando válida e eficaz, não leva à não pronúncia ou à absolvição do arguido.
d. Pelo que não podia o Tribunal decidir como decidiu, não condenando os assistentes AA e BB em taxa de justiça e encargos pelas desistências de queixas.
V. Normas jurídicas violadas
O despacho recorrido, por errónea interpretação e por não aplicar os seus regimes, violou os art. 515.º nº 1 al. d) e 518.º, ambos do Código de Processo Penal e art. 8.º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
VI. Pedido
Em conformidade com o que vem de ser alegado, peticiona-se que
- Seja revogado o despacho recorrido;
- Seja substituído por outro que:
a. Condene os assistentes AA e BB em taxa de justiça e encargos pelas desistências de queixas.
Porém, V. Exas. farão a costumada
JUSTIÇA
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1.3
Devidamente notificados, vieram os assistentes AA e BB apresentar articulado de resposta, pugnando pela preservação do decidido, referindo, em síntese, que apesar de o art.º 515.º do C.P.P. não prever, expressamente, a reciprocidade de desistências como causa de isenção, não se pode ignorar a natureza equitativa e consensual do desfecho alcançado, que deve ser protegido e incentivado.
Em caso de desistência (recíproca) a condenação do assistente em taxa de justiça não é automática.
A decisão recorrida não viola o princípio da legalidade, nem cria uma exceção inexistente na lei, mas sim aplica de forma ponderada e conforme aos princípios constitucionais os dispositivos legais existentes, designadamente os artigos 6.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), no que concerne ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
Concluem referindo que “deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente o despacho recorrido, por não violar qualquer norma legal e por constituir uma aplicação equilibrada e justa dos princípios e regras processuais.”.
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I.4
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do provimento do recurso (Ref.ª 19778152), aderindo aos fundamentos recursórios da primeira instância e aduzindo outros complementares em sustento, designadamente com recensão jurisprudencial alinhada no sentido preconizado.
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1.5
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo o recorrente exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, de eventuais vícios da decisão.
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do recurso apreciar da correção da decisão de não condenação dos assistentes em taxa de justiça na sequência de desistência de queixa.
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III.
III.1
A decisão recorrida:
Certidão de 09/04/2025
a) Do procedimento criminal

No âmbito da audiência de julgamento que seria realizada no âmbito do processo n.º ..., os aqui ofendidos AA e BB desistiram das queixas apresentadas contra a aqui arguida CC.
Nas mesmas circunstâncias, a aqui arguida CC declarou aceitar a desistência das queixas.
Decidindo.
Considerando a natureza particular dos crimes de injúria e de difamação, previstos e punidos nos termos dos artigos 181.º, n.º 1, e 180.º, n.º 1, ambos do CP, bem como a natureza semipública do crime de ofensas à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP, de que a arguida vem acusado, a legitimidade dos desistentes, a tempestividade do ato praticado e a não oposição da arguida, a desistência de queixa é válida e juridicamente eficaz, em virtude do disposto no artigo 116.º, n.º 2 do CP, motivo pelo qual, nos termos previstos no artigo 51.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPP, a homologo por sentença, declarando consequentemente extinto o procedimento criminal instaurado nos presentes autos contra a arguida relativamente à imputada prática destes crimes.
Não se condenam os assistentes em taxa de justiça, atenta a reciprocidade nas desistências de queixa formuladas no âmbito da audiência de julgamento que seria realizada no âmbito do processo n.º ....
Notifique.
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b) Da instância cível

No âmbito da audiência de julgamento que seria realizada no âmbito do processo n.º ..., os aqui demandantes e demandados AA, BB e CC desistiram dos pedidos de indemnização civil que haviam formulado e chegaram a acordo quanto ao pedido de indemnização civil formulado pelo CH..., E.P.E..
Decidindo.
Atenta a legitimidade dos demandantes AA e BB e a disponibilidade do objeto do litígio, julgo válida a desistência dos pedidos formulados contra a demandada CC, que homologo por sentença, extinguindo-se, assim, nesta parte, a instância cível, ao abrigo do disposto nos artigos 289.º, n.º 1, a contrario, 290.º, n.º 1, 283.º, n.º 1, 286.º, n.º 2, e 277.º, al. d), todos do CPC.
Por outro lado, atenta a legitimidade das partes e a disponibilidade do objeto do litígio, julgo válida a transação alcançada quanto ao pedido de indemnização formulado pelo CH..., E.P.E., que homologo por sentença, condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos, extinguindo-se, assim, também nesta parte, a instância cível, ao abrigo do disposto nos artigos 289.º, n.º 1, a contrario, 290.º, n.º 1, 283.º, n.º 2, 284.º, e 277.º, al. d), todos do CPC.
Custas em partes iguais no que concerne aos pedidos de indemnização formulados por AA e BB contra CC (cfr. artigo 537.º, n.º 2, do CPC).
Sem custas quanto ao pedido do CH..., E.P.E..
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Em face do supra decidido, não haverá lugar à realização da audiência de julgamento, agendada para o dia 13/11/2025, pelas 14h00m (2.ª data a 18/11/2025, pelas 09h30m), devendo ser desconvocadas as testemunhas que tinham sido convocadas para o ato, bem como os demais intervenientes.
Notifique e desconvoque.
D.n.
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Oportunamente, arquivem-se os autos.
*
(…)

III.2
Apreciando:
Vista a argumentação produzida e como já referido, a única questão a apreciar prende-se com a bondade da decisão de isentar os assistentes do pagamento de taxa de justiça na sequência de desistência de queixa, com o argumento de que se tratou de desistências recíprocas de que beneficiaram, também, na qualidade de arguidos.
Vejamos.
Dispõe o art.º 515.º do C.P.P., sob a epígrafe “Responsabilidade do assistente por custas”:
1 - É devida taxa de justiça pelo assistente nos seguintes casos:
a) Se o arguido for absolvido ou não for pronunciado por todos ou por alguns crimes constantes da acusação que haja deduzido;
b) Se decair, total ou parcialmente, em recurso que houver interposto ou em que tenha feito oposição;
c) (Revogada pelo DL 34/2008, 26/2.)
d) Se fizer terminar o processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar;
e) (Revogada pelo DL 34/2008, 26/2.)
f) Se for rejeitada, total ou parcialmente, acusação que houver deduzido.
2 - Havendo vários assistentes, cada um paga a respectiva taxa de justiça.
3 - (Revogado pelo DL 34/2008, 26/2.)

Por sua vez, estatui o art.º 517.º do mesmo diploma legal (casos de isenção do assistente):
O assistente é isento do pagamento de taxa de justiça quando, por razões supervenientes à acusação que houver deduzido ou com que se tiver conformado e que lhe não sejam imputáveis, o arguido não for pronunciado ou for absolvido.

No despacho contestado, não há referência a qual o inciso legal que foi aplicado ou desaplicado. Contudo, invocando-se uma ideia de que a condenação em taxa de justiça, no caso, seria desadequada, porquanto a desistência de queixa não seria decorrência de qualquer ato injustificado mas, tão só, a defluência lógica de outra desistência de que terão os assistentes beneficiado noutro processo, então, sendo um caso de “recíproca desistência”, é pressuposto da decisão recorrida que, com tais argumentos, não seria de aplicar a al. d) do n.º 1 do art.º 515.º do C.P.P.
Embora, de iure constituendo a decisão tomada seja defensável, denotando um sentido de justiça relativa e de equidade louvável, a verdade é que, ante a letra da lei, não encontramos sustento para o decidido.
Efetivamente, nos crimes de natureza particular, como também é o caso dos autos, é exigível, como condição de procedibilidade, não só a apresentação de queixa pelo respetivo titular, como, também, a respetiva constituição como assistente – cfr. art.ºs 48.º a 50.º do C.P.P. e 113.º, do C.P. – e, bem assim, reunidos elementos para tanto, a dedução de acusação particular.
Quando o procedimento assume natureza semi-pública, como também ali sucedeu, não sendo necessária a constituição de assistente, é imprescindível a apresentação de queixa a fim de habilitar o Ministério Público a exercer a competente ação penal.
Estando, pois, na disponibilidade dos ofendidos a possibilidade de dar início ao procedimento criminal, pondo em marcha a máquina investigatória, também a lei lhes reconhece a faculdade de pôr fim a esse mesmo procedimento, quer declarando expressamente não pretender o seu prosseguimento, desistindo da queixa, quer, nos crimes de natureza particular e numa fase mais precoce, não deduzindo a competente acusação particular, não obstante a notificação para o efeito nos termos do disposto no art.º 285.º do C.P.P.
Porém, no caso de o titular do direito de queixa se constituir assistente, como sucedeu no caso vertente (o que era imperativo no procedimento de natureza particular), o uso da possibilidade de pôr fim antecipadamente ao procedimento é penalizado, nos termos do preceito transcrito, quer pela desistência – no caso verificada – quer, a montante, se fosse o caso, pela não dedução de acusação particular, desta forma fazendo repercutir sobre aquele sujeito processual uma fração do custo da atividade gerada e dos meios mobilizados por ter dado início ao processo.
Assim, o assistente é sempre responsabilizado quando, por sua iniciativa, inutiliza a atividade desenvolvida até ao momento da desistência, independentemente das razões que motivaram essa sua decisão e que poderão estar, pura e simplesmente, num ato de clemência, de compaixão, reparação, satisfação moral, apaziaguamento ou de entendimento com o denunciado/arguido, envolvendo, ou não, recíprocas concessões e benefícios e acomodando a possibilidade de o montante devido a título de taxa de justiça ser ponderado no âmbito desse acordo mais vasto.
Não ignoramos a posição de Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal, 5.ª Ed., vol. II, nota 8 ao artigo 515.º, pág. 837, e nota 3 ao artigo 517.º, pág. 839] e que, à semelhança do decidido pelo Tribunal a quo, considera não haver lugar ao pagamento de taxa de justiça em caso de desistência recíproca por entender tratar-se de facto superveniente não imputável ao assistente.
Encontramos razões supervenientes, não imputáveis ao assistente e enquadráveis no art.º 517.º do C.P.P., na descriminalização da conduta, amnistia ou prescrição.
Porém, no caso que nos ocupa, diferentemente, a extinção do procedimento emerge de facto voluntário e incondicional (desistência), imputável aos sujeitos processuais declarantes. Sendo assim, a norma transcrita – art.º 515.º, n.º 1 al. d) do C.P.P. - é literalmente clara, não estabelecendo exceções (designadamente a invocada desistência recíproca), não se tratando, também, de nenhum dos casos prevenidos no art.º 517.º do mesmo diploma, inexistindo, neste conspecto, cobertura normativa para o decidido, não podendo o intérprete, ainda que motivado por alegadas razões de justiça e de equidade, aplica-la de acordo com um pensamento que não encontra respaldo na letra da lei.
Assim, o despacho proferido não pode subsistir, importando, no provimento do recurso, a sua revogação parcial - na parte em que isentou os assistentes do pagamento de taxa de justiça - e a sua substituição parcial por outro que, na sequência do decidido, condene aqueles em taxa de justiça e encargos, nos termos dos art.ºs 515.º, n.º 1, al. d) e 518.º., ambos do C.P.P.
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IV.
Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, revogam parcialmente o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que condene os assistentes em taxa de justiça e encargos, nos termos dos art.ºs 515.º, n.º 1, al. d), e 518.º do C.P.P.
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Sem tributação.
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Porto, 29 de outubro de 2025
José Quaresma
Castela Rio
Pedro M. Menezes